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Le quotidien et l'intéressant. Entretiens avec Catherine Darbo-Peschanski

RESENHAS

VEYNE, Paul. 1995. Le Quotidien et l'Intéressant. Entretiens avec Catherine Darbo-Peschanski. Paris: Les Belles Lettres. 319 pp.

Ivana Stolze Lima

Doutoranda em História, UFF

O gênero que alia memória e reflexão teórica, seguindo os passos de Montaigne, é percorrido pelo pouco convencional historiador Paul Veyne. O livro trata de questões clássicas da história, impressas com as marcas contemporâneas da descontinuidade, diferença, acaso, incerteza. Nascido em 1930 e eleito para o Collège de France em 1975, Veyne constrói sua biografia descrevendo ainda sua relação com acontecimentos-chave do século XX: a Segunda Guerra, o nazismo, o Partido Comunista, a Argélia, maio de 1968, a proclamação do fim das ideologias...

Dedicada à história da antiguidade greco-latina, a obra de Veyne é pouco explorada no Brasil, com exceção de Como se Escreve a História (1971), livro que pretende seguir um percurso original, com uma forte crítica epistemológica à historiografia marxista e a qualquer tentativa de fundar o conhecimento histórico em leis gerais ou categorias universais. Modelos formais rigorosos empobreceriam e mesmo deformariam a história, descrita como sublunar: campo de experiências múltiplo, desequilibrado, transitivo; cognoscível desde que não se reduza sua originalidade. Pode-se arriscar também que naquele que foi seu primeiro livro, Veyne buscava uma via diferente da então predominante história quantitativa e das tendências do estruturalismo em desprezar o acontecimento em proveito da sincronia ou do tempo longo, quase imóvel, proposto por Braudel.

Le Quotidien et l'Intéressant compõe-se de entrevistas concedidas a Catherine Darbo-Peschanski, historiadora da antiguidade clássica, e de um longo relato inicial de próprio punho. Nele, o autor rediscute algumas das propostas levantadas, não só no livro citado, mas em textos teóricos como "História Conceitual", O Inventário das Diferenças, "Foucault Revoluciona a História". A história greco-romana também está presente, através do percurso composto por livros como Acreditaram os Gregos em seus Mitos, Elegia Erótica Romana e O Pão e o Circo, entre outros projetos. Mas o melhor de Le Quotidien et l'Intéressant é o que traz de diferente, o que se acrescenta como facetas insuspeitas de suas interrogações.

Principalmente a série de confissões do autor. Algumas seriam relativamente esperadas dentro da atitude intelectual de Paul Veyne - suas dúvidas, sua resistência a aceitar as teses sobre o "monoideísmo" dos homens. Outras versam sobre o amor e a amizade, são raras e instigantes. E há as que desconcertam.

A mais difícil declara uma atração pelo nazismo no final de sua infância. Explicita-se o pecado. Mas a confissão não obedece à crença na redenção. Nem é um apelo à "sinceridade". Tampouco uma obrigação ao verdadeiro. Se crença existe por trás disso, é no caráter histórico das verdades. Tocando a questão clássica do pensamento histórico, a relatividade dos valores, o objetivo de Paul Veyne é demonstrar a arbitrariedade das crenças e das ideologias. O que surge de seu pensamento não é o puro relativismo. Nem o fim das ideologias. O nazismo e suas variantes devem ser combatidos. A forma de combate do historiador pode ser justamente apontar os mecanismos de construção da verdade.

A opção pelo cotidiano também é uma diferenciação em relação a um certo autoritarismo dos valores edificantes e pomposos. A pesquisa sobre "o modo de existência dos valores em nós" mostra que o cotidiano é banal, é cinzento, é a dimensão medíocre do tempo. "Eu não acredito nos sonhos romanescos de Madame Bovary sobre o amor que brota nas ilhas como um absoluto, não acredito tampouco no homem ou antes no Dasein de Heidegger, e é inútil dizer que nunca acreditei no paraíso soviético: este se denunciava como falso, pois era contrário à cotidianidade" (:181). Há um desnível entre as "grandes coisas" (a pátria, a religião, a tradição) e sua vivência simples, entre agir/obedecer e acreditar/sentir/pensar. Ultrapassando os grandes valores pomposos e edificantes construídos pela época estudada ou por sua própria época, o historiador precisa considerar "a dispersão do tempo, a pluralidade do eu e a objetividade exterior de valores que nos governam, mas que não palpitam dentro de nós" (:183).

Se um dos campos de investigação delineados por Foucault foram as condições de produção de conhecimento, Veyne inquieta-se com as crenças, a religião, a moral, a partir do que têm em comum com a política e a filosofia: são "regimes de verdade". Ao longo das entrevistas, o tema da religião aparece ora explícito, ora um tanto subterrâneo. A própria escolha da história romana é apresentada por tratar-se de uma história abolida, sem continuidade com o presente, diferente da tradição cristã dogmática. A todo momento surge uma relação ambígua com o cristianismo, que ao ser recusado parece pairar como referência para o autor. O interesse pelos "estados religiosos da alma" revela um projeto de pesquisar o Evangelho escrito por São João, que seria abordado como testemunho histórico e como única fonte autêntica e ocular sobre a vida do Cristo - ao contrário de outros relatos que teriam servido ao cristianismo convencional, direcionado pelo gosto dos teólogos pela fábula: "Se um dia eu fizesse a loucura de escrever uma biografia de Cristo, o faria a partir do quarto Evangelho" (:84).

A religião precisa ser reconduzida à sua historicidade e multiplicidade. Ao mesmo tempo, o autor busca a presença de certos sentimentos religiosos em contextos não-religiosos. Se o sagrado não é exclusivo da religião, elementos da "molécula" religiosa percorrem ideologias políticas e sociais. Esta afirmação orientará a memória do período de filiação ao Partido Comunista, intitulada "Croire et ne plus Croire", em que apresenta seu testemunho dos fenômenos da dupla crença, da má-fé, da crença pouco convicta ou indiferente. "A religião não é um piedoso voto de nossa natureza angustiada, mas a prova de nossa inconsistência diante da verdade, de nossa credulidade pelos contos de fada e os filmes de terror. Somos os produtos desses contos e não de nossa natureza; não somos 'sujeitos' no sentido filosófico, isto é, espécies de soberanos, mas um público, um grupo de leitores (lectorat) crédulos" (:93).

A aproximação de Raymond Aron aconteceu com o primeiro livro, Como se Escreve a História. No entanto, embora tenha sido Aron quem indicou seu nome para o Collège de France, e apesar da declarada presença de uma filosofia aroniana em sua concepção de história apresentada na aula inaugural no Collège de France, Veyne escreve uma veemente crítica ao projeto aroniano de consonância entre o filósofo e o político. Aron procuraria a razão onde só há escolhas não demonstráveis pela razão; a concórdia, a "coesão da manada", o "gregarismo" patriótico, onde há conflitos, instabilidade, luta de classes. "A paz no interior da verdade como horizonte ideal do homem, infelizmente isto não existe" (:46). A racionalidade de Aron inquietava-se com a mudança, em nome de uma ação política votada à defesa da paz civil. Tal filosofia política, supondo uma razão única, mas no fundo partindo de uma concepção particular sobre a sociedade e o homem, contorna o problema da pluralidade de sociedades e de racionalidades. Já eleito, Veyne foi convidado a participar de um seminário com Aron para falar sobre igualdade e liberdade na Grécia Antiga. Foi o momento da ruptura: "Como historiador, eu procurava mostrar as diferenças que separam as épocas e que fazem com que tais palavras já não tenham o mesmo sentido para nós. Fiquei espantado ao ver-me diante de ouvintes muito irritados com essas banalidades [...]. Indignados, eles me opuseram a permanência dos valores" (:48-49).

O alentado capítulo dedicado a Foucault abre-se também aos três campos do livro: memória, reflexão teórica, história. É como se Foucault ocupasse um lugar simétrico ao de Aron no percurso de Veyne - o revoltado e o defensor da ordem. Veyne freqüentou suas aulas desde o tempo da École Normale, e sem dúvida acabou por ser mais que um mero espectador da obra do autor de História da Sexualidade. Foucault parece ter encaminhado o incerto historiador a abandonar a ilusão do "horizonte de paz fundado na razão" (:203). Veyne procura mostrar um certo retrato íntimo do filósofo: "Alguns diriam que ele projetou sua multiplicidade, sua histeria, em sua filosofia pluralista e anti-cogito. Eu diria que ela o levou a compreender a realidade desordenada de todas as coisas, o 'caos da precisão' como fala René Char" (:199).

Paul Veyne apresenta-se fragmentado, e seu percurso não tem uma direção mais precisa que a de sua narrativa, cuja leitura pode ser orientada por dois princípios. O primeiro é a curiosidade pelo interessante, único e verdadeiro móvel do ofício de historiador; o segundo é o sentido antigo do ceticismo por ele confessado: se não temos respostas definitivas às grandes questões do ser, o que vale é examinar e observar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2000
  • Data do Fascículo
    Abr 1998
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