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A lingüística como uma ciência natural

ENTREVISTA

A lingüística como uma ciência natural

Noam Chomsky

Noam Chomsky, professor de lingüística do Massachusetts Institute of Technology (MIT), é conhecido tanto pelo seu trabalho científico, quanto pelas suas posições políticas, expostas em vários livros e conferências. No final dos anos 50, Chomsky produziu o que alguns caracterizam como uma verdadeira revolução na lingüística, advogando uma posição radicalmente antibehaviorista, para fundar uma nova ciência da linguagem. Desde seus primeiros livros, como Syntactic Structures (1957) e Aspects of the Theory of Syntax (1965), até seus trabalhos mais recentes como Knowledge of Language (1986), Language and Thought (1994) e The Minimalist Program (1995), Chomsky dedica-se à formulação de uma teoria que dê conta das propriedades universais da linguagem. Nessa entrevista, concedida a Carlos Fausto, Mike Dillinger e Bruna Franchetto, realizada na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 18 de novembro de 1996, Chomsky fala de suas posições teóricas, de sua perspectiva política e de sua história pessoal.

Carlos Fausto

Como você caracterizaria, para o grande público, a primeira revolução cognitiva das décadas de 50 e 60, na qual a gramática gerativa desempenhou papel tão fundamental?

Noam Chomsky

Eu preferiria chamá-la de segunda revolução cognitiva, não de primeira. A primeira revolução cognitiva ocorreu no século XVII, e foi apenas uma parte da revolução científica geral daquele período. Se retornarmos àquela época, perceberemos que as questões então postas - e até mesmo algumas das respostas dadas - foram, de várias maneiras, retomadas e modificadas, reformuladas e redescobertas (já que tinham sido totalmente esquecidas) pela revolução cognitiva da década de 50. Tomemos Descartes como exemplo: suas contribuições científicas mais duradouras, fora do campo da matemática, foram provavelmente na teoria da visão e muitas das suas idéias foram redescobertas e, obviamente, reformuladas a partir da década de 50. O mesmo se aplica à linguagem: alguns trabalhos muito substantivos foram produzidos naquela tradição, muitos dos quais foram redescobertos posteriormente. Isso após um longo período no qual essa tradição foi, em grande medida, esquecida. Isso inclui os modelos computacionais da mente, a idéia de que a mente basicamente cria o esquema no qual estímulos dispersos recebem uma interpretação rica, o interesse nos autômatos que era comum aos séculos XVII e XX; de fato, muitas dessas idéias retornaram e foram redescobertas pela revolução cognitiva da década de 50.

Carlos Fausto

Por que a gramática gerativa desempenhou um papel tão fundamental na segunda revolução cognitiva, como você prefere designá-la?

Noam Chomsky

Isso não é tão surpreendente, já que a linguagem é um aspecto absolutamente central da existência humana. Não existe praticamente nenhuma dimensão da atividade intelectual humana, ou da história humana, ou da organização social, em que a linguagem não desempenhe um papel distintivo. Assim, naturalmente, o estudo da linguagem ocupou um lugar central. Se olharmos para a revolução cognitiva do século XVII, os dois tópicos principais foram, provavelmente, a visão e a linguagem. Estes são também os dois temas de investigação mais produtivos na revolução cognitiva que começou na década de 50. E existem razões para isso: eles são acessíveis para o estudo, de uma maneira que muitas outras coisas não o são. Assim, devido tanto ao interesse especial que os humanos têm pela linguagem - a linguagem é um tipo de propriedade da espécie, a mais dramática e talvez única propriedade básica que distingue a humanidade do resto do mundo orgânico - quanto ao fato de ela ser mais acessível ao estudo, a pesquisa sobre a linguagem desempenhou um papel central e ajudou a reformular o ponto de vista desenvolvido na revolução cognitiva, o qual - como foi descoberto posteriormente, mas ainda não era efetivamente conhecido naquela época - estava, na verdade, recuperando muito do que já tinha sido explorado séculos antes.

Carlos Fausto

Qual foi a principal característica dessa segunda revolução cognitiva?

Noam Chomsky

A principal característica foi uma mudança de ponto de vista: naquele tempo, o objeto de pesquisa nas ciências humanas era o comportamento, ou o que era produzido pelo comportamento, como um texto, por exemplo. De fato, as ciências sociais da época eram chamadas de ciências comportamentais - aquela era a época das ciências comportamentais, particularmente nos Estados Unidos e no mundo anglo-americano. Havia duas fontes principais na tradição lingüística daquele tempo. Uma era a lingüística antropológica, que se dedicava principalmente a estudar textos - coletava-se um corpus de dados e fazia-se a análise desse corpus; a outra tradição, o estruturalismo, interessava-se por alguns padrões e arranjos, principalmente de sons - ocasionalmente arriscando-se um pouco além, mas ainda estudando manifestações de comportamento. À medida que isso evoluiu, a revolução cognitiva adquiriu um ponto de vista radicalmente distinto. Passou a encarar o comportamento, os textos e as estruturas simplesmente como dados. Eles não eram mais tomados como objetos de pesquisa, mas como dados passíveis de serem utilizados para algum outro propósito.

Carlos Fausto

Que propósito era esse?

Noam Chomsky

O outro propósito era descobrir o que a mente está realmente fazendo. Quais são os mecanismos internos através dos quais a mente desempenha as atividades que culminam no comportamento e que, uma vez escritas, produzem textos? No caso do estruturalismo, quais são os mecanismos que levam a essas estruturas e não a quaisquer outras? Logo se percebeu que os dados que estavam sendo estudados pelas ciências comportamentais, pelos estruturalistas e pela lingüística antropológica, qualquer que fosse sua relevância específica, não podiam ser tomados como as melhores evidências para esse outro tipo de estudo, o qual conduzia a investigações sobre novos tipos de dados. De fato, os interesses do período anterior e da revolução cognitiva eram quase complementares; ou seja, os temas que não tinham sido privilegiados pelas abordagens comportamental e estrutural, viriam a ser exatamente os tópicos de estudo a partir do ponto de vista cognitivo. Na lingüística, notou-se rapidamente que o estruturalismo estava lidando com um aspecto muito superficial da linguagem e que, embora tivesse dado contribuições efetivas - particularmente no estudo de sistemas de sons -, não avançava muito. Mesmo nesses estudos era preciso repensar a matéria completamente se quiséssemos dar uma descrição mais rica de como essas estruturas deveriam ser consideradas. No que se refere ao estudo de um corpus ou de um texto, essa perspectiva revelou-se, logo, muito limitada: imediatamente se descobriu que o tipo de dado que era encontrado no estudo de um corpus obtido de modo padronizado, a partir de um informante, de um texto, de um conjunto de contos populares, ou até de uma extensa gramática tradicional, era muito superficial. Uma vasta gramática ou um vasto dicionário apresentam muitos dados, mas estes só podem ser utilizados por alguém que já conhece a língua ou, ao menos, é dotado de uma faculdade da linguagem em funcionamento. O mesmo se aplica ao ensino de uma segunda língua: você pode pensar que está ensinando, digamos, inglês para estudantes que falam português, mas o fato é que a parte inglesa do processo pressupõe o conhecimento da linguagem, o qual é transportado de uma língua para a outra. Para ensinar, essa é uma boa idéia. Seria um erro ensinar às pessoas gramática universal, se o objetivo é fazê-las aprender uma segunda língua. Seria como ensinar fisiologia a alguém cujo objetivo é aprender a nadar. Isso apenas confundiria as pessoas, porque tudo isso já está em seus corpos; elas já sabem como fazer todas essas coisas. Nós simplesmente supomos que todos são como nós, e então não ensinamos essas coisas. E isso é válido para o ensino. Mas se o objetivo é compreender seres humanos, isso é exatamente o que você deve estudar.

Carlos Fausto

E essa foi uma mudança significativa...

Noam Chomsky

Isso é o que integra o estudo da linguagem em particular, e as ciências humanas de modo geral, nas ciências naturais. Assim, se você está estudando, vamos supor, rãs, você não investiga apenas aquilo no que as rãs estão interessadas. Presumivelmente, as rãs estão interessadas nas diferenças entre as rãs, e não no que há de comum entre elas. Isso elas tomam como dado. Mas se nós estamos estudando rãs, acontece o contrário. Nós não estamos muito interessados nas diferenças, mas no que torna algo uma rã, não um pássaro, vamos supor. Se sua atitude em relação aos seres humanos é a mesma, você quer é descobrir o que é um ser humano. Trata-se, então, não apenas de constatar as diferenças entre um campeão olímpico e uma pessoa que caminha na rua, e sim de descobrir o que ambos têm em comum. O que eles compartilham são braços e pernas, certos modos de agir, o corpo que trabalha de um certo modo, e assim por diante. Esses foram, justamente, os tópicos deixados de fora pela lingüística tradicional, pela antropologia e pelas ciências sociais, e que se tornaram os tópicos de estudo. Essa foi realmente a grande mudança.

Carlos Fausto

Alguns cientistas sociais progressistas, marxistas ou não, estão preocupados de a abordagem naturalizante do fenômeno social estar dando origem a uma nova forma de darwinismo social. Você acredita que essas preocupações são válidas?

Noam Chomsky

Bem, há um fato curioso a respeito da ciência social marxista; ela presumiu durante muito tempo - algo que eu acho teria horrorizado Marx - que os seres humanos deveriam ser tomados exclusivamente como criaturas da história, e não como parte da natureza. Assim, os seres humanos estão, de certo modo, fora da natureza: diferentemente de qualquer outra coisa existente no mundo, eles não têm natureza. Possuem apenas uma história e são o produto da sua organização social e da sua experiência. Isso é completamente absurdo. Se você não tem uma natureza inata, você jamais se tornará algo. É como perguntar: se você toma um organismo desprovido de informação genética e lhe fornece apenas alimentação, o que ele se tornará? Bem, a resposta é nada. Ele não terá nenhuma estrutura, nenhuma propriedade, será apenas uma massa de células, cada criatura sendo diferente da outra. Para se ter quaisquer capacidades, é preciso ter uma determinada estrutura. Isso se verifica em todo o mundo orgânico. Agora, é claro que todo organismo é influenciado pelo seu meio; você é um tipo diferente de rã ou abelha se você tiver uma nutrição e interações diferentes. Mas isso é marginal. Você é basicamente uma rã ou uma abelha.

Carlos Fausto

Mas isso é verdadeiro, na mesma medida, para os seres humanos?

Noam Chomsky

É preciso que seja o mesmo com os seres humanos, a menos que sejamos anjos e estejamos de algum modo fora do mundo natural. Mas se estamos no mundo natural, as mesmas propriedades devem ser válidas para nós. Devemos ter características geneticamente programadas muito amplas. Nada disso corresponde à chamada "teorização naturalista". Como postulado mínimo, deve ser apenas verdadeiro. Como seres humanos, é importante que estudemos como somos afetados pelo nosso meio, mas isso deve estar baseado na nossa natureza. A idéia de que os seres humanos existem fora da natureza está presente tanto na ortodoxia religiosa, quanto no marxismo contemporâneo. Na ortodoxia religiosa, é uma alma que vem de Deus; no marxismo, é algo místico que vem da história e das condições sociais. Mas isso não faz nenhum sentido. O próprio Marx certamente acreditava que os seres humanos estavam no mundo material. Eu suspeito - é difícil projetar seus pensamentos em outra pessoa - que ele teria ficado muito descontente se visse essa tendência na teorização posterior.

Carlos Fausto

Por que então os intelectuais progressistas são tão atraídos por essa idéia de que os seres humanos não têm natureza?

Noam Chomsky

Essa é uma questão interessante, e penso que é possível especular sobre isso e chegar a conclusões não muito atraentes. Uma coisa que você nota prontamente é que, se os seres humanos não têm natureza, então não existem barreiras morais para o controle; não se infringem sua liberdade e seus direitos, se eles não têm liberdade ou direitos. Se os homens são apenas criaturas produzidas pela história, não há nada que impeça o engenheiro social de dizer: "OK, vou projetar uma sociedade para você, e vou dirigi-la para você, porque sou mais esperto". Se você pensa no que o marxismo se transformou, essa não é uma descrição ruim. Isso é o marxismo-leninismo, a doutrina do partido de vanguarda, que se tornou muito atraente para os intelectuais. De fato, os intelectuais são rapidamente atraídos por essa doutrina, pois ela permite afirmar: "nós temos o direito de ter poder, e é claro que nós o usaremos para todos os tipos de bons propósitos, porque nós somos pessoas muito legais. Nós temos o poder e não existe barreira moral que nos impeça de usá-lo para projetar uma sociedade na qual as pessoas irão trabalhar e nós diremos a elas o que fazer". De fato, uma idéia muito atraente para um intelectual que quer poder. Isso já tinha sido previsto muito antes por Bakunin - antes mesmo de Lenin.

Carlos Fausto

O mesmo não se aplica também aos intelectuais não-marxistas?

Noam Chomsky

Sim. O outro ponto de vista que atraiu os intelectuais foi o seguinte: "OK, nós não podemos obter poder explorando as lutas da classe trabalhadora, então obteremos poder servindo aos que têm poder de fato; nós nos tornaremos dirigentes dos centros ideológicos, das instituições estatais e das empresas privadas das democracias capitalistas". Essa é a intelectualidade ocidental. E para ela, de modo geral, a idéia de que os seres humanos não têm propriedades também é interessante: "é perfeitamente legítimo que controlemos as vidas das pessoas e sejamos aqueles que fabricam o consenso" (como eles mesmos formulam). O neoliberalismo é isto. É justamente o dispositivo para transferir o poder do espaço público, onde o povo pode exercer certo tipo de influência sobre ele, para as tiranias privadas, que serão gerenciadas pelos intelectuais. E, é claro, esses intelectuais adquirem seu poder não porque são espertos, mas porque fazem aquilo que os detentores do poder desejam. O neoliberalismo é basicamente isso, e ele é atraente para os intelectuais pelo mesmo tipo de razão que o marxismo era, diferindo apenas na avaliação de onde se encontra o poder. A intelectualidade moderna é em grande medida composta por "gerentes" - sociais, intelectuais, ideológicos, corporativos. Para os intelectuais, é uma idéia muito atraente que os homens não tenham natureza, pois nesse caso eles não estariam violando sua natureza quando os controlam. Por outro lado, se as pessoas têm uma natureza efetiva, e parte dela, digamos, é uma necessidade interna de controlar seus próprios assuntos, de ser livre, não ter seus direitos infringidos por outros e assim por diante - em grande medida, os ideais do Iluminismo e, incidentalmente, até mesmo do liberalismo clássico -, e se esses direitos estão inscritos na natureza humana, então existe uma barreira moral contra a manipulação social e intelectual. E isso nunca foi uma idéia atraente para os intelectuais. Mas isso é especulação; estou apenas tentando reportar-me ao fato curioso de que uma idéia obviamente impossível e absurda tornou-se tão disseminada entre os intelectuais em um espectro tão amplo, incluindo a esquerda. De qualquer modo, não faz nenhum sentido.

Carlos Fausto

E quanto a um novo tipo de darwinismo social...

Noam Chomsky

O darwinismo praticamente não diz nada sobre como são as capacidades humanas. A teoria evolutiva nem se aproxima da humanidade. Mal podemos estudar a evolução de criaturas microscópicas. Quando se vai além das estruturas mais simples como, por exemplo, células ou pequenos grupos de células, a verdadeira teoria evolutiva torna-se bastante descritiva. Não há muito o que dizer. As coisas ficam muito difíceis. Assim, se entrarmos em um fantástico departamento de biologia, por exemplo, no MIT ou mesmo aqui no Rio, perceberemos que os biólogos não estão estudando animais, eles sequer sabem o que é um animal. Eles estudam grandes moléculas. E é aí que você tem a ciência. Bem, você pode fazer coisas como genética de populações e assim por diante, mas isto não diz nada sobre seres humanos. Pode-se retirar do darwinismo qualquer conclusão que se queira sobre seres humanos.

Carlos Fausto

Mas os darwinistas do século XIX fizeram precisamente isso...

Noam Chomsky

De fato, a primeira aplicação - quer dizer, aplicação mítica - de idéias darwinistas no campo social foi o darwinismo social, que tinha um caráter muito reacionário. Mas isto era reflexo das estruturas de poder daquela época. Você pode usar o darwinismo, ou alguma forma falsificada dele, para argumentar que as pessoas estão em uma luta pela existência e devem cuidar de si mesmas, e assim por diante. A teoria darwinista não diz nada sobre isso. É quase a mesma coisa que usar Einstein para dizer: "tudo é relativo". Do mesmo modo, pode-se usar Darwin para dizer que "todo mundo está em luta pela existência", e se existe algum outro motivo, pode-se fazer disso uma teoria sobre os seres humanos.

Carlos Fausto

Você diria que é isso o que a sociobiologia realmente faz?

Noam Chomsky

Realmente, a sociobiologia é uma tentativa de aplicar a teoria biológica aos seres humanos. Presumiu-se sempre que ela começou por volta da década de 70 com Ed Wilson (um biólogo de Harvard, que foi meu colega), que escreveu um livro chamado Sociobiology, livro este que se tornou amplamente conhecido, e que talvez tenha um caráter reacionário. Mas não foi aí que o campo de fato começou: o primeiro trabalho de sociobiologia, foi uma obra importante de Kropotkin que, todavia, foi completamente esquecida devido às suas implicações políticas inaceitáveis. Kropotkin foi um historiador natural, além de ter sido um líder anarquista, e escreveu um livro em 1902 intitulado Mutual Aid: A Factor in Evolution. Era uma crítica ao darwinismo social, e falava sobre como a evolução teria possivelmente privilegiado criaturas que estavam cooperando entre si, e que, portanto, a cooperação, a solidariedade, a simpatia etc., teriam sido favorecidas pela evolução. Kropotkin propôs uma teoria que é tão boa quanto qualquer outra, argumentando que a seleção natural tendia a levar a sistemas anarquistas, basicamente a sistemas socialistas libertários. Ninguém queria ouvir isso, e então esse livro foi quase que completamente esquecido - embora os cientistas da época o levassem bastante a sério, por ser, de fato, um trabalho científico importante. Mas foi esquecido, e o que ficou foi o chamado darwinismo social. Mas este permaneceu por outras razões, devido aos interesses do poder.

Carlos Fausto

Isso não foi também conseqüência de uma abordagem naturalista?

Noam Chomsky

Uma abordagem naturalista busca descobrir a verdade; todos devemos querer conhecer a verdade, não há sentido em viver com ilusões. Nós queremos conhecer a verdade sobre os seres humanos, qualquer que seja ela. Isso é muito difícil. As ciências estão longe de estar avançadas o suficiente para nos dizer muito sobre esses tópicos. Se as pessoas pregam uma forma renovada de darwinismo social, isto se deve aos mesmos tipos de fatores que deram origem ao antigo darwinismo social; quais sejam, estruturas de poder com certas ideologias, a serem aceitas e respeitadas, para que se possa martelá-las nas cabeças das pessoas. Mas não existe nada nas ciências que leve necessariamente a isso.

Carlos Fausto

Gostaria de voltar à primeira questão a partir de uma perspectiva diferente, a perspectiva da história pessoal. Quando e como surgiram as idéias centrais da gramática gerativa, como essa visão diferente foi absorvida pela linhagem dominante da academia, e que tipo de ramificações políticas ela teve?

Noam Chomsky

Qualquer história pessoal é sempre composta por uma série de acidentes e isso não é realmente muito interessante. De fato, eu cheguei à lingüística a partir de um interesse em política de esquerda [radical politics]. Quando tinha cerca de dezesseis anos, eu estava em via de deixar a faculdade, por ser muito tediosa. Então, conheci uma pessoa com conexões políticas mais ou menos anarquistas ligada à minha trajetória enquanto imigrante judeu envolvido na retomada do hebraico e do sionismo. A corrente do sionismo à qual eu estava pessoalmente vinculado era o sionismo antiestatal, que foi relativamente significativo no início da década de 40. Através dessas conexões libertárias de esquerda, conheci uma pessoa que vinha a ser um lingüista importante, Zellig Harris. Tornamo-nos muito amigos e ele me fez assistir a seus cursos de pós-graduação, e eu passei também a assistir outros. Eu jamais tive uma formação de graduação. Iniciei fazendo cursos de pós-graduação em vários campos. Todos na área conhecem um pequeno segredo, a saber, que eu não tenho qualificações profissionais. Eu não podia obter um emprego em uma universidade decente porque não conseguiria passar nos exames. E o diploma foi apenas, bem, um acidente. Nunca pretendi obtê-lo particularmente; não planejei ingressar na carreira acadêmica, isto acabou acontecendo por várias razões.

Carlos Fausto

Onde você fez os cursos?

Noam Chomsky

Eu não estava em uma universidade de elite, mas na universidade local, junto com minha mulher. Naquela época, não se ia a lugar algum além daquele onde se vivia. Você tinha que trabalhar. Então fomos para a universidade da cidade, Universidade da Pennsylvania na Filadélfia, que tinha figuras individuais muito boas, mas em campos dispersos. Gente como Nelson Goodman em filosofia, Nathan Fine e Hans Rademacher e alguns outros que eram matemáticos de primeira classe naquela época. Adquiri, então, uma curiosa gama de interesses: matemática, filosofia, lingüística, e algumas outras coisas, áreas nas quais havia pessoas efetivamente competentes.

Mike Dillinger

Como você foi introduzido à lingüística?

Noam Chomsky

A primeira coisa que eu vi em lingüística foi um manuscrito de Zellig Harris, que ainda não tinha sido publicado. Apareceu posteriormente como seu livro Methods in Structural Linguistics, que se tornou a obra clássica do estruturalismo americano. Essa era a única coisa que eu conhecia. Bem, de fato eu conhecia um pouco de lingüística histórica semítica, mas tinha sido através de meu pai que era um estudioso do assunto; assim, quando eu era criança, lia essas coisas. Harris incentivou-me a fazer pesquisa e sugeriu que eu trabalhasse com o hebraico, que eu conhecia e no qual ele estava interessado (sua própria formação era em línguas semíticas). Comecei a trabalhar nisso exatamente da maneira como era suposto na lingüística estrutural: pega-se um informante - um falante nativo do hebraico, no caso - e começa-se a fazer perguntas, a produzir textos e o tipo de coisa que se ensina nos chamados "cursos de informantes" ou "cursos de métodos de campo". Foi assim que aprendi e começei a fazer, mas depois de um certo tempo, dei-me conta: "isso é completamente ridículo. Eu sei as respostas para todas as questões. Então, por que não perguntar apenas as questões que são interessantes, em vez de fazer isso da maneira que esperam que você faça?". E foi assim que comecei. Felizmente, eu não tive nenhum treinamento efetivo, então não houve nenhuma grande surpresa em relação a isso: estava chegando a esse campo fresco, com pouca, de fato quase nenhuma, formação específica. Então fiz apenas o que parecia razoável, que era fazer uma gramática gerativa. De fato, minha tese de graduação foi uma gramática no estilo de Panini, feita 2.500 anos antes, embora tudo isso tivesse sido esquecido e ninguém tivesse comentado ou mencionado para mim.

Mike Dillinger

Isso estava completamente esquecido na lingüística americana daquele tempo?

Noam Chomsky

Há uma estranha esquizofrenia no campo. A principal figura da lingüística americana, Leonard Bloomfield, que era o grande mestre da lingüística descritiva americana, era também, no outro lado de seu cérebro, especialista em lingüística hindu e germânica. Assim, ele conhecia tudo isso, mas era completamente esquizofrênico. Quando ele fez um trabalho sobre o estilo hindu clássico, que ele conhecia por sua formação, ele o publicou na Europa, nos tempos do Círculo de Praga. Em 1939, ele publicou um grande estudo de uma língua indígena norte-americana, Menomini, mais ou menos no estilo de Panini. Por outro lado, na obra pela qual ele ficou famoso deste lado do Atlântico, ele não só não fez isso, como rejeitou esse estilo como completamente absurdo. Uma gramática à Panini tem regras ordenadas, e é gerativa. Mas se você lê Language de Bloomfield, ele diz que tudo isso é misticismo e que se você quer fazer lingüística estrutural não deve dar a menor importância para isso. O que é curioso a respeito dessa esquizofrenia é que as pessoas com as quais eu estava estudando eram muito próximas a Bloomfield. Eram seus alunos e amigos e tinham tido um treinamento similar: um deles era especialista em lingüística indiana e germânica; outro (Harris), tinha experiência em estudos semíticos e tinha dado contribuições a estes. Eles nunca me disseram quando eu ainda não era graduado, na década de 40, que aquilo que eu estava fazendo era muito semelhante ao que Bloomfield tinha publicado seis anos antes na Tcheco-Eslováquia, e que, de fato, isso remontava a 2.500 anos. Descobri isso anos depois. Enfim, minha abordagem surgiu do nada. Pareceu-me apenas a coisa mais razoável a fazer, e por eu não ter tido muito treinamento anterior, não havia também muitas barreiras.

Carlos Fausto

Como isso foi absorvido pelas linhagens dominantes da academia?

Noam Chomsky

Bem, um exemplo disso é o lugar onde eu leciono: o MIT, que é uma escola de engenharia e ciência. Não leciono em Harvard, que fica a duas milhas de distância, e que era a principal universidade, onde eu estava fazendo os estudos de pós-graduação como pesquisador-bolsista. E foi o MIT que se tornou o centro de lingüística moderna; não as faculdades voltadas para as humanidades como Harvard, Yale, Princeton etc. Esse é um padrão que tem proliferado em todo o mundo. Quando a gramática gerativa começou a se expandir, essa expansão ocorreu mais ou menos da mesma maneira, fora do quadro das instituições nas quais as humanidades eram fortes. Nesses lugares, ela foi, fundamentalmente, bloqueada. Isso se deve à própria natureza das humanidades, que são muito autoritárias e hierárquicas, e realmente não desejam (quase nunca) novas idéias. As pessoas sentem-se ameaçadas pelo novo. Posso perceber isso claramente quando comparo Harvard e MIT: existe uma grande diferença entre ambas. Mas isso é uma tendência, e não algo cem por cento. Você encontra muitas diferenças.

Bruna Franchetto

A gramática gerativa deparou-se com a mesma situação na Europa?

Noam Chomsky

Paris tornou-se o lugar a partir do qual a infecção se espalhou pela Europa, mas o lugar onde ela era ensinada era Vincennes. Vincennes foi criada na década de 60, durante a revolta estudantil. O governo queria expulsar todos os agitadores da cidade, então instalou uma pequena universidade em um parque, bem longe de Paris. Foi para lá que mandaram todos os estudantes do Terceiro Mundo, além dos estudantes radicais, e ninguém prestou muita atenção ao que estava se passando lá. Assim, esse foi o local onde a gramática gerativa teve início na Europa. Então, pessoas começaram a chegar de outros países da Europa para estudar com Richard Kayne, que era um dos nossos alunos e que foi lecionar lá. Essas pessoas começaram a lingüística em seus próprios países; na Itália, na Noruega, na Alemanha, em todos os lugares. E foi basicamente o mesmo padrão de expansão. A mesma coisa se verifica no Japão. Lá, a gramática gerativa está se infiltrando gradualmente, mas isso não começou na Universidade de Tokyo - a universidade de elite -, mas distante, onde ninguém poderia vê-la.

Bruna Franchetto

O que mudou com a expansão da gramática generativa?

Noam Chomsky

O que mudou nos últimos anos - e isso é importante - é que ao invés de apenas os ocidentais (pessoas provenientes da Europa e dos Estados Unidos) estudarem todas essas línguas, as pessoas passaram a estudar suas próprias línguas. Assim, por exemplo, a lingüística românica - um campo bem estudado - efetivamente deu um salto adiante quando o trabalho começou a ser feito por lingüistas franceses, italianos e espanhóis e não por americanos. Quando você trabalha na sua própria língua é completamente diferente. Há uma aluna portuguesa que concluiu recentemente o Ph.D. no MIT, que descobriu toda uma série de coisas sobre a língua portuguesa que nunca tinham sido notadas. E ocorre o mesmo em todos os lugares. Em japonês, muito do que tem sido descoberto é novo. Os lingüistas japoneses tradicionais desconheciam esses fatos. Uma de nossas recém-doutoras, é uma japonesa que começou a estudar a língua das mulheres japonesas, a qual se revelou completamente diferente do que todo mundo pensava. Isso não era estudado; estudava-se a língua dos homens. Mas aquela tem propriedades gramaticais diferentes, que ela conhecia porque cresceu em contato com ela, mas os lingüistas não conheciam. E, de fato, quando as pessoas estudam utilizando seu próprio conhecimento, obtém-se uma enorme quantidade de informações e idéias.

Bruna Franchetto

Ocorreu o mesmo com o estudo das línguas indígenas?

Noam Chomsky

O mesmo se aplica quando você começa a trabalhar nas línguas aborígines. Um dos projetos que Ken Hale desenvolvia no MIT era trazer pessoas de comunidades nativas americanas com muito pouca formação acadêmica, e colocá-las em nosso programa de pós-graduação de modo que pudessem trabalhar em suas próprias línguas. Esse é um programa muito árduo, e foi um trabalho difícil porque as pessoas não tinham nenhum treinamento escolar efetivo. E subitamente elas começaram a descobrir coisas que os lingüistas antropólogos jamais tinham notado. Isso tem sido tremendamente rico para o andamento das pesquisas baseadas em um vasto espectro de línguas; e, de fato, creio que o grande progresso - especialmente na década de 80 - deveu-se a isso. Assim, perspectivas completamente novas surgiram na lingüística chinesa, aborígine, românica e germânica, as quais foram estudadas de modo muito mais profundo do que tinham sido antes. Descobertas ainda estão sendo feitas em todos os lugares. Assim como novas coisas estão sendo descobertas sobre o inglês o tempo todo.

Bruna Franchetto

Você diria, então, que Syntactic Structures (1957) e Aspects of the Theory of Syntax (1965) tinham uma perspectiva anglocêntrica?

Noam Chomsky

Aqui, novamente, existe uma espécie de acidente histórico. Como mencionei anteriormente, eu não tenho credenciais profissionais, e parte dessa falta faz com que eu não esteja falando com você em português, como a maior parte dos meus colegas estaria fazendo. Não tenho um conhecimento extenso de línguas, de modo que eu utilizo os materiais que conheço. Por outro lado, mesmo Syntactic Structures e Aspects of the Theory... não estavam baseados no inglês. A primeira gramática gerativa extensiva foi efetivamente do hebraico, como já mencionei. A primeira grande sintaxe em gramática gerativa - que apareceu no final da década de 50, ao mesmo tempo que Syntactic Structures e usando os mesmos modelos - foi do Hidatsa, uma língua indígena americana, elaborada por Hugh Matthews, que era meu colega no MIT. Logo, a primeira grande gramática gerativa foi a gramática hidatsa. E assim continuou. Meu departamento, por exemplo, é um centro - talvez mundial - da lingüística aborígine australiana. De fato, tudo que se possa imaginar é estudado no MIT. Assim, se há muita influência anglocêntrica, é apenas devido à minha história pessoal, mas o mesmo não se aplica ao campo - e, é claro, sempre se busca o espectro mais amplo possível de línguas.

Carlos Fausto

Vamos voltar à sua história intelectual. Como você obteve o emprego no MIT?

Noam Chomsky

Eu o obtive através do Laboratório de Pesquisa em Eletrônica. Quando terminei meus quatro anos como bolsista em Harvard, em 1955, existiam poucos departamentos de lingüística. Eu era de qualquer forma "incontratável" e não tinha nenhuma intenção especial de permanecer no mundo acadêmico. O trabalho que eu estava fazendo era impublicável. O calhamaço que eu tinha escrito, com cerca de 800 ou 900 páginas, intitulado Logical Structure of Linguistic Theory, Carol (minha mulher) e eu imprimimos naquilo que se chamava na época um hectógrafo. Fizemos cerca de trinta cópias, apenas para os amigos. Era impossível imaginar isso sendo publicado. Mais ou menos nessa época fui contratado pelo Laboratório de Pesquisa em Eletrônica do MIT. Na verdade, fui contratado para trabalhar em um programa de tradução automatizada, com a utilização de computadores. Quando o diretor do laboratório me entrevistou para o emprego, disse-lhe diretamente que não acreditava que aquele fosse um projeto sensato e que não pretendia trabalhar nele. Mas que, caso ele quisesse me pagar, eu não objetaria, e poderia então trabalhar em coisas nas quais eu estava interessado - e conversamos sobre elas, e ele ficou um tanto intrigado.

Carlos Fausto

Esse programa de tradução não era mantido com verbas militares?

Noam Chomsky

Esse foi um período no qual um grande volume de dinheiro militar, dinheiro do Pentágono, estava chovendo nas universidades. As pessoas de esquerda confundem-se muito em relação a isso. Trata-se de uma época em que as universidades estavam mais livres, porque o Pentágono não se importava com o que se estava trabalhando. Eles apenas proviam a ciência básica e a tecnologia do futuro. Eles pagavam os custos que as corporações privadas não queriam bancar. Eles queriam que o público pagasse os custos do desenvolvimento de computadores e da eletrônica e tudo o mais que viria em seguida com a engenharia genética e as telecomunicações. Espera-se que o público pague os custos e, então, quando o projeto funciona, ele é transferido para as corporações privadas e estas obtêm o lucro. E o MIT era um dos canais através dos quais isso se processava. Assim, eles basicamente não tomavam conta do que você estava fazendo, desde que fosse ciência e tecnologia. Como resultado, o Laboratório de Pesquisa em Eletrônica deu origem a novos departamentos.

Mike Dillinger

Como era o MIT nessa época?

Noam Chomsky

Foi em grande medida uma escola de engenharia; mas devido a esse financiamento e a outras mudanças que ocorreram, tornou-se uma universidade com perfil científico geral. Por exemplo, o departamento de biologia, o departamento das ciências do cérebro, lingüística e muitos outros campos surgiram a partir do laboratório de eletrônica, onde havia financiamento excedente para fazer praticamente todo tipo de coisa. Muitos campos de pesquisa surgiram daí. O diretor na época era Jerome Weisner, que se tornou posteriormente conselheiro científico de Kennedy. Ele estava interessado apenas no desenvolvimento da ciência. Muitas das coisas que ele financiou se revelaram loucuras, mas algumas frutificaram. Se você olhar para a universidade hoje, muitos dos seus principais departamentos têm suas raízes naquela época. De qualquer modo, foi dessa maneira que a gramática gerativa entrou na vida acadêmica. E então, finalmente, começamos um programa e formamos estudantes e eles foram para outros lugares e tiveram a mesma experiência. De fato, isso ainda está ocorrendo. As pessoas sempre estão tentando encontrar uma colocação fora dos esquemas, onde existem estruturas fortes de poder - e gradualmente conseguem e os estudantes ficam interessados e isso se espalha. Atualmente, ocorre o mesmo em todos os lugares do mundo. Foi assim que a gramática gerativa foi absorvida pela academia.

Mike Dillinger

Dada a série de diferenças entre a lingüística contemporânea e a biologia e a física contemporâneas, para tomar dois exemplos, quais dessas diferenças você chamaria de necessárias e quais você qualificaria de acidentais? E dentre as diferenças acidentais, com qual você acredita que deveríamos lidar primeiro para aproximar mais a lingüística das ciências naturais?

Noam Chomsky

É interessante que a questão mencione a física e não acredito que isso seja um acidente. Quase toda a filosofia e a história da ciência se referem à física, o que é uma péssima escolha. A física difere muito das outras ciências, e isso ocorre por várias razões. Por um lado, a física é fundamental; não se levantam questões sobre seus fundamentos, ao contrário, ela própria fornece os fundamentos. Assim, o tipo de questão que você elabora a respeito da química, da biologia e da psicologia - questões do tipo: "elas são reais?" - não surge a respeito da física. Costumava-se fazê-lo séculos atrás, mas nos últimos séculos aceitou-se simplesmente que o que a física nos diz são regras fundamentais; dessa forma, não se colocam questões sobre elas. Essa é uma diferença entre a física e todas as outras ciências, inclusive a química. Até mais ou menos a década de 30, a química era freqüentemente encarada como um dispositivo de cálculo, porque não se podia relacioná-la à física, e os mesmos tipos de questões que são postas hoje sobre as ciências cognitivas eram feitas sobre a química. Mas não a física, já que esta é fundamental. A outra razão pela qual a física é um mal exemplo é que ela se limita a questões extremamente simples. Logo que um problema fica muito complexo, ele é passado adiante. Assim, se o hélio é muito complicado de estudar, deixemos ele para os químicos. A física só estuda coisas muito simples. Esse é um dos motivos pelos quais ela obtém progressos efetivos. Ela alcança resultados muito profundos, mas a respeito de coisas extremamente simples. Tão logo qualquer nível de complexidade é atingido, há o deslocamento para uma das ciências específicas. Agora, na química você não tem esse tipo de luxo. É preciso lidar com o nível de complexidade com o qual você se depara; então, se a química vê uma molécula orgânica, não pode dizer que isso é muito complicado, e deixá-la para outros estudarem.

Mike Dillinger

E esta seria uma similaridade com a lingüística?

Noam Chomsky

Penso que existe uma similaridade entre a química, a biologia, a geologia e a lingüística. A diferença é que elas estão estudando diferentes sistemas específicos.

Mike Dillinger

Dessa forma, a diferença reside apenas no objeto de estudo?

Noam Chomsky

Não, existem outras diferenças também. Por exemplo, no caso da lingüística - felizmente - você tem constrangimentos éticos. Comparemos, digamos, o estudo da linguagem ao estudo da visão, que é próximo. Se você quer estudar a visão humana, você pode torturar gatos. Talvez eles não devessem fazê-lo, mas as pessoas consentem em torturar gatos e macacos. Assim, pode-se colocar eletrodos nos cérebros, tirar amostras deste, e fazer todo tipo de coisas, e aprender muito sobre o sistema visual dos gatos e macacos dessa maneira. Acontece que o sistema visual dos seres humanos, provavelmente, não é muito diferente daquele dos gatos e macacos, e, assim, aprende-se algo a respeito dos seres humanos. Por outro lado, você não coloca eletrodos em seres humanos. As pessoas o fizeram, incidentalmente; algumas das coisas feitas não faz muito tempo eram, de fato, espantosas. Talvez o exemplo mais famoso, embora esteja esquecido, seja o do campo da ginecologia, que foi desenvolvido por cientistas famosos nos Estados Unidos no final do século XIX - seus retratos espalham-se pelas paredes da Escola de Medicina de Harvard -, os quais torturavam mulheres negras e imigrantes irlandesas, operando-as repetidas vezes. E esses experimentos foram repetidos, e aprendeu-se muito com eles. OK, isso foi há um século e é uma parte da história que foi bastante reprimida. Agora não se faz mais isso (pelo menos eu espero que não). Assim, quando você estuda a linguagem, você não pode colocar eletrodos nos centros da linguagem e tirar pedaços destes, e não existe nenhum outro organismo que possua um órgão similar. Pode-se aprender sobre o sistema visual humano observando gatos e macacos, mas nenhum outro organismo tem algo semelhante ao sistema lingüístico humano. Não é possível aprender nada estudando outros organismos. Bem, essa é uma diferença. Isso significa que os estudos devem ser muito mais indiretos, você não pode fazer experimentação direta. Em qualquer outro caso, exceto a linguagem, existe experimentação direta, senão em seres humanos, ao menos em organismos similares. Mas com a linguagem é diferente, e isso a torna mais difícil e de certo modo mais interessante. Excetuando-se essa diferença, não considero a lingüística muito diferente da química. De fato, se olharmos para a história da lingüística e para a história da química, perceberemos que elas caminham quase paralelas. A química moderna começa aproximadamente em 1650, quando tem início o estudo de estruturas complexas a partir do que, hoje, é considerado um ponto de vista moderno; a lingüística moderna começa mais ou menos na mesma época com a Gramática de Port Royal. Tanto a química quanto a lingüística estão estudando como se obtêm estruturas complexas a partir de coisas simples; elas estão voltadas para estruturas complexas distintas, mas as questões são paralelas.

Mike Dillinger

Nas outras ciências naturais existe uma distinção padrão entre teorias estáticas e cinemáticas como, por exemplo, entre anatomia e fisiologia no caso das ciências biológicas. Onde a física postula diferentes teorias do mesmo objeto, a lingüística parece postular diferentes objetos de estudo; como a gramática, o parser e o dispositivo de aquisição de linguagem (LAD). Você acha que essa é uma diferença necessária?

Noam Chomsky

Bem, efetivamente não concordo que essa seja uma diferença. A gramática é apenas o output do dispositivo de aquisição de linguagem. Este último corresponde ao estado inicial da faculdade da linguagem, e a gramática é um estado que esta alcança. O parser - se é que existe, o que não é tão óbvio - é um dispositivo que dá acesso à gramática. Por exemplo, ao analisar o português, o parser acessa um conhecimento diferente daquele que é acessado quando analisa o inglês. Assim, de algum modo, ele está acessando a gramática que contém todo o conhecimento, o sistema cognitivo, e está usando outras propriedades. Quando você acessa um sistema de conhecimento para atribuir estruturas a sentenças, você está usando a memória e estratégias de vários tipos, e assim o parser é algo que tem a gramática no seu cerne e várias coisas mais. Pode-se dizer o mesmo a respeito de alguém que esteja estudando o braço, alguém que esteja estudando, vamos dizer, como eu alcanço algo. Nesse caso, está-se usando a biologia humana, mas a partir de alguns dos seus aspectos específicos, e o parser está estudando alguns aspectos particulares da maneira como a linguagem é usada. O dispositivo de aquisição de linguagem é justamente o tópico central da linguagem. Qual é a natureza da faculdade da linguagem? Esse é o tópico da gramática universal.

Mike Dillinger

Gostaria de desenvolver uma parte dessa argumentação: você propôs recentemente que a linguagem está "embutida em" e "fornece instruções" para sistemas de performance. Como a natureza da distinção competência/performance mudou sob as hipóteses minimalistas?

Noam Chomsky

De modo algum. Isso é apenas uma metáfora; é exatamente o mesmo de antes. A dicotomia entre competência e performance é uma diferença conceitual que não se pode questionar. Há vários debates a respeito disso, mas não fazem o menor sentido. Existe uma diferença de categoria entre o que você sabe e o que você faz. Não são a mesma coisa. O que você faz depende do que você sabe. A competência é justamente o que você sabe. A performance é o que você faz com isso. Você simplesmente não pode escapar dessa distinção, e ela é hoje idêntica ao que era antes. A questão é como ela opera. Por exemplo, como o sistema de conhecimento, qualquer que seja ele, interage com os órgão articulatórios, por exemplo? Essa questão tem sido estudada por cinqüenta anos e é a mesma questão de sempre.

Carlos Fausto

A questão sobre competência e performance pode ser colocada em um quadro evolutivo. Se a faculdade da linguagem evoluiu em um meio no qual a sociabilidade e a plasticidade comportamental tinham crescentes vantagens seletivas, ela não deveria exibir todas as idiossincrasias da evolução, em vez de elegância, discrição e economia?

Noam Chomsky

O programa minimalista coloca essa questão de uma maneira diferente, peculiar, e talvez até desprovida de sentido. Ele te diz simplesmente para olhar para as especificações do design. Imagine uma criatura que tenha todas as nossas capacidades, mas não a linguagem. Então, imagine um primata vagando há 100 mil anos e que fosse como nós: o mesmo sistema perceptivo, o mesmo sistema articulatório, as mesmas esperanças, mesmos medos, tudo, enfim, mas que não tivesse linguagem. Suponha, agora, que você seja um superengenheiro e lhe digam: "OK, coloque um órgão de linguagem nessa coisa, que será usado pelos outros órgãos. Você tem permissão para fazê-lo perfeito". Bem, o programa minimalista pergunta em que medida a linguagem se aproxima disso. Aqui, incidentalmente, existe um ponto em relação ao qual eu efetivamente discordo de Steven Pinker: a maior parte de seu livro The Language Instinct parece-me correta, mas no que se refere à evolução, eu penso que ele se confunde. É possível, por tudo que sabemos, que a história da evolução da linguagem não seja tão diferente da que acabei de sugerir. Pode ser que a linguagem se assemelhe mais a um floco de neve do que ao pescoço de uma girafa: ela tem a forma que tem porque esse é o modo que a natureza é. Se algo é inserido, tem de se defrontar com essas condições, e acaba se tornando um floco de neve. Não por seleção natural. O pescoço da girafa presumivelmente tornou-se mais longo através da seleção. Bem, nós não sabemos qual linguagem é: não existe nada na biologia nem na teoria da evolução que nos diga isso. Se o conto de fadas que acabo de narrar se mostrar, de fato, mais ou menos preciso - por exemplo, que uma chuva de raios cósmicos acarretou uma mutação que levou a uma certa reorganização do cérebro e que o órgão da linguagem fosse inserido com um design perfeito -, não há nada na biologia que nos diga que isso está errado. De fato, muito do que se compreende na biologia é semelhante a isso. Se você é um biólogo e está escrevendo um artigo para um jornal científico sobre evolução, a hipótese (ou hipótese nula) inicial é a de que não houve seleção. Você deve fornecer um argumento para mostrar que houve seleção, porque as coisas que são compreendidas, em grande medida, acontecem porque essa é a maneira pela qual a bioquímica trabalha. Se você pega determinadas proteínas, vamos dizer, elas não são mais selecionadas do que os flocos de neve. Isso é simplesmente o que acontece sob condições particulares de complexidade, e não sabemos até onde isso vai. Tão logo ultrapassamos as estruturas simples, está-se simplesmente no espaço cósmico. Assim, essa é a única diferença. O programa minimalista está perguntando, justamente, se nós não obtivemos, por algum estranho fato biológico, algo como um design perfeito para um sistema que precisa adequar-se a certas especificações para poder, em absoluto, funcionar.

Tradução: Kátia Maria Pereira de Almeida

Revisão técnica: Carlos Fausto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Out 1997
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