Acessibilidade / Reportar erro

O oficial e o oficioso: objeto e regulação de conflitos nas Antilhas Francesas (1848-1850)

Resumos

A abolição da escravidão pela Governo Provisório da Segunda República francesa, em abril de 1848, redefiniu o espaço público nas colônias pela instauração de uma igualdade dos estatutos civil, político e "racial" entre os cidadãos da República. Este artigo examina as implicações desta decisão no contexto das Antilhas Francesas, em particular no que respeita à atribuição e registro de patrônimos pelos antigos escravos, e nas imbricações entre as novas relações jurídicas de trabalho e as velhas relações de dependência social. Discutem-se em seguida a formação e trajetória dos Júris Cantonais, instituição criada para administrar o novo regime civil e trabalhista nas colônias, bem como as ações civis e penais levadas a cabo pelos agentes neste novo contexto jurídico, ações nas quais se manifestam as aspirações contraditórias dos antigos escravos e de seus antigos senhores.

Colonialismo; Antilhas; República francesa; Relações de trabalho; Dependência; Liberdades civis


The abolition of slavery by the Provisional Government of the Second French Republic in April 1848 redefined public space in the colonies by establishing a statutory civil, political and 'racial' equality among the citizens of the Republic. This article examines the implications of this decision in the context of the French Antilles, particularly in relation to the attribution and registration of property by past slaves and the interplay between the new juridical relations of work and the old relations of social dependency. The article goes on to discuss the formation and history of the Cantonal Juries, an institution created to administrate the new civil and labour regime in the colonies, as well as the civil and criminal legal actions taken by agents in this new juridical context actions in which the conflicting aspirations of the past slaves and their old masters become clearly evident.

Colonialism; Antilles; French Republic; Work relations; Dependency; Civil liberties


ARTIGOS

O oficial e o oficioso: objeto e regulação de conflitos nas Antilhas Francesas (1848-1850)

Myriam Cottias

Myriam Cottias é pesquisadora do CNRS e professora do Centre de Recherches sur les Pouvoirs Locaux dans la Caraïbe, Université des Antilles et de la Guyane

RESUMO

A abolição da escravidão pela Governo Provisório da Segunda República francesa, em abril de 1848, redefiniu o espaço público nas colônias pela instauração de uma igualdade dos estatutos civil, político e "racial" entre os cidadãos da República. Este artigo examina as implicações desta decisão no contexto das Antilhas Francesas, em particular no que respeita à atribuição e registro de patrônimos pelos antigos escravos, e nas imbricações entre as novas relações jurídicas de trabalho e as velhas relações de dependência social. Discutem-se em seguida a formação e trajetória dos Júris Cantonais, instituição criada para administrar o novo regime civil e trabalhista nas colônias, bem como as ações civis e penais levadas a cabo pelos agentes neste novo contexto jurídico, ações nas quais se manifestam as aspirações contraditórias dos antigos escravos e de seus antigos senhores.

Palavras-chave: Colonialismo, Antilhas, República francesa, Relações de trabalho, Dependência, Liberdades civis

ABSTRACT

The abolition of slavery by the Provisional Government of the Second French Republic in April 1848 redefined public space in the colonies by establishing a statutory civil, political and 'racial' equality among the citizens of the Republic. This article examines the implications of this decision in the context of the French Antilles, particularly in relation to the attribution and registration of property by past slaves and the interplay between the new juridical relations of work and the old relations of social dependency. The article goes on to discuss the formation and history of the Cantonal Juries, an institution created to administrate the new civil and labour regime in the colonies, as well as the civil and criminal legal actions taken by agents in this new juridical context ­ actions in which the conflicting aspirations of the past slaves and their old masters become clearly evident.

Key words: Colonialism, Antilles, French Republic, Work relations, Dependency, Civil liberties

La mère: — J'avais rêvé d'un fils pour fermer les yeux de sa mère.

Le Rebelle: — J'ai choisi d'ouvrir sur un autre soleil les yeux de mon fils

(Aimé Césaire, Et les chiens se taisaient, 1956)* * A mãe: — Eu sonhara com um filho para fechar os olhos da mãe. /A rebelde: — Eu escolhi abrir sob um outro sol os olhos de meu filho. [N.T.]

A abolição da escravidão, decretada em 27 de abril de 1848 pelo Governo Provisório da Segunda República1 1 Promulgada em 23 de maio para a Martinica, em 27 de maio para Guadalupe, e em 10 de agosto para a Guiana Francesa, após o levante nas oficinas de escravos martinicanos. , remodelava o espaço público nas colônias francesas por meio da instauração da igualdade entre os cidadãos, criando uma horizontalidade de estatutos civis, políticos e "raciais" no cenário colonial2 2 O direito comum era aplicado ao conjunto das colônias francesas. Este artigo, entretanto, aborda mais particularmente, na análise os modos de apropriação do direito e as relações interindividuais complexas, o caso da Martinica, a propósito do qual a documentação conservada nos Archives Nationales e os testemunhos publicados são inegavelmente mais numerosos, e, na verdade, únicos, comparados aos das demais colônias da região. . Por meio da circular ministerial de 7 de maio de 1848 (que regulamentava a execução do decreto de 27 de abril), o governo atribuía, a todos os alforriados e a todos os que haviam nascido ou residiam nas colônias há pelo menos seis anos3 3 É interessante notar que "em 28 de março de 1848, o governo provisório da República promulga um decreto autorizando temporariamente o ministro da Justiça a conceder a naturalização a todos os estrangeiros que residem na França há pelo menos cinco anos" (Weil 2002:44). Ver, igualmente, Ministère des Finances 1942. , a cidadania francesa: "a partir do dia da libertação geral, os escravos se tornarão cidadãos franceses4 4 A cidadania francesa compreendia, de um lado, a condição de nacionalidade, e, de outro, o exercício dos direitos de cidadania dos indivíduos. Não há pois debate sobre a nacionalidade dos antigos escravos (Girollet 2000). , a fim de que nenhuma exceção ao princípio de liberdade e de igualdade social possa subsistir"5 5 Reciprocamente, a cidadania francesa é incompatível com a posse de escravos: "é interdito a todo francês a posse, a compra ou a venda de escravos, bem como a participação, seja direta, seja indireta, em qualquer atividade de tráfico ou exploração desse gênero. Toda infração a essas disposições acarretará a perda da qualidade de francês", precisa o decreto de abolição da escravidão. A equivalência entre liberdade, de um lado, nacionalidade e cidadania, de outro, era pois tornada imediatamente efetiva e executória (Artigo 8 do decreto relativo à abolição da escravidão e à organização da liberdade, Bulletin Officiel de la Martinique, 1848). .

As implicações da decisão política tomada pelo governo provisório eram imensas. Não apenas ela estabelecia uma cidadania similar para atores que se haviam desde sempre se enfrentado no plano civil, integrando-os à pátria mãe, mas parecia inverter as relações de dominação em nome da "fusão social". Os horizontes sociais e mentais dos antigos alforriados, bem como os dos antigos senhores, deviam se abrir uns aos outros, pois, "para os membros de uma mesma nação, não existe senão um só direito, o Direito comum — precisava o comissário geral, Perrinon** ** François-Auguste Perrinon (1812-1861), nasceu em Saint-Pierre da Martinica, em uma família mulata, e partiu jovem para a França onde fez seus estudos na Escola Politécnica. Militar e favorável ao abolicionismo, retorna à Martinica em 1837 e 1842; em 1848, faz parte da "Commission Schoelcher" (encarregada de elaborar modalidades de abolição da escravidão). Torna-se Comissário Geral da Martinica (de julho a novembro de 1848), e depois deputado de Guadalupe na Assembléia Legislativa (1849 e 1850). Com a mudança de regime, retira-se para St. Martin, onde se dedica à exploração de suas salinas, ali falecendo em 1861 [N.T]. , em 5 de junho de 1848, ao chegar à Martinica.

Poderiam esses novos predicados jurídicos, entretanto, submeter os laços sociais fundados sobre a dependência entre "senhores" e "escravos", e as práticas oficiosas, aquelas não apropriadas pelo direito? O julgamento pessoal tomava aqui o lugar do jurídico; manobras subterrâneas contrapunham-se ao caráter público da lei; as negociações e transações individuais substituíam a regra geral. Teria, assim, a vontade legalista da República os meios para transformar as práticas sobre as quais se apoiava o funcionamento complexo da sociedade colonial e as regras interindividuais de dominação?

Em 1848, o Direito comum é introduzido como mecanismo de regulação de relações sociais. Conseguiria entretanto a República transformar as formas de dominação? Poder-se-ia acreditar que sim, considerando a elaboração de instâncias jurisdicionais de mediação, como os júris cantonais e a vontade do governo de fazer com que fossem reconhecidos como referência para regrar os conflitos sociais por todos os atores envolvidos (Garcia Jr. 1989). É possível, por outro lado, duvidar disso, lendo esse conflito como um entre outros articulados por toda a complexidade da dependência: "Os negros perderam a cabeça!", escreveu em seu diário, em 30 de maio de 1849, Pierre Dessalles, um plantador da Martinica:

Uns pretendem que Bissette [um político de cor] teria dito que os proprietários não podiam mais expulsá-los de suas cabanas, que elas lhes pertenceriam. Outros dizem ter Bissette declarado que deveriam ficar com dois terços dos rendimentos. Alguns chegaram mesmo a afirmar que tinham direito aos três terços! Nosso velho negro Césaire disse a Adrien que tinha contas a acertar com ele, pois Bissette assegurara que devíamos dar-lhe dois terços brutos de todo o açúcar. "Tudo bem", respondeu Adrien, "no próximo sábado o júri cantonal vai resolver a questão. Volte para o seu canto e para o trabalho, ou te expulso do estabelecimento. Logo depois, outros três ou quatro vieram, individualmente, com a mesma reivindicação. Meu filho os denunciou ao juiz, que os convocou para o próximo sábado. Eles foram procurar Bissette, e voltarão com certeza humilhados. (de Frémont e Elisabeth 1984:30/5/1848)

A resposta de Adrien situa a questão: ela assinala as tensões que envolviam a criação de um espaço público, notadamente a fricção entre o Direito e sua prática. Ela sublinha, igualmente, pelo emprego do termo nègres, que, um ano após a abolição da escravidão, um proprietário parecia ainda ignorar a existência de uma preliminar ao estabelecimento do Direito: o reconhecimento da individualidade das pessoas pela atribuição de um antropônimo.

A partilha do nome: entre o oficial e o oficioso

Em todas as sociedades escravagistas, possuir um patrônimo era um apanágio da existência civil e, portanto, da liberdade. Na França, malgrado a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, os debates de 1792 sobre as municipalidades e a cidadania precisam que "os escravos não têm estado civil; apenas o homem livre têm uma cidade, uma pátria; apenas ele nasce, vive e morre cidadão" (Gohier, Archives Parlementaires, 19 de junho de 1792, apud Noriel 1993:5).

Ter um nome: uma aspiração dos alforriados pré-1848

Foi com a lei de 1831, que concedeu a gratuidade do registro da franquia que se colocou o problema da atribuição de um patrônimo àqueles "livres de fato", os quais apressaram-se a reivindicar que seu estatuto civil fosse reconhecido pela emissão de uma certidão de individualidade. Entre 1831 e 1848, esses libertos informais representam 59% do conjunto dos libertos registrados na Martinica, 41% em Gualalupe e 36% na Guiana. Esses novos libertos constituem então a metade da população "livre de cor " na Martinica6 6 Os dados para a Guiana e Guadalupe, que permitiriam estabelecer um resultado comparável, parecem inexistir. .Sob pressão desse novo dado social, que deslocava as linhas divisórias, a administração estabeleceu regras que tinham por objetivo sustentar em torno da classe dos "brancos" barreiras tão impermeáveis quanto possível.

Essas regras retomam aquelas da ordem, datada de 24 de junho de 1773, que proibia às "pessoas de cor" portar outros nomes além daqueles tirados ou do idioma africano ou de sua ocupação. Em 1836, assim, aparece uma circular sobre a atribuição de patronímicos que vai de encontro à lei de 24 de abril de 1833 (que garantia a igualdade civil e política das "pessoas livres de cor" e dos "brancos"). Ao mesmo tempo em que detalha os procedimentos para a declaração das alforrias, a circular afirma em seu artigo quarto que a dita declaração "não poderá conter patronímicos conhecidos por pertencer a famílias existentes, a não ser sob condição de consentimento expresso e por escrito de todos os membros desta família"; mais adiante, determina que as famílias podem reclamar os nomes adotados pelos alforriados. Estabelece igualmente o campo de possibilidades para os prenomes, que devem ser extraídos do calendário gregoriano ou história antiga. Os alforriados nascidos de relações extramaritais de colonos com escravas não podiam reivindicar oficialmente sua história familiar, e estavam autorizados a registrar unicamente a genealogia materna (a não ser que fossem reconhecidos pelo pai).

A ordem de 1836 impunha também que fossem indicados "o sexo, os nomes usuais, a casta, a idade e a profissão do escravo; os patronímicos e os prenomes que lhes deveriam ser dados". Até então, com efeito, as indicações individuais que constavam nas certidões de alforria dependiam das preocupações de exatidão dos administradores. Algum tempo mais tarde, o patrônimo é indicado obrigatoriamente entre parênteses: Michel (Aratus), Marie-Anne (Octavie), Anne (Dolabella), Etienne (Andromède)...

De 1831 a 1847, "demandas de adição de nomes" foram formuladas por novos alforriados, em número restrito, todavia, em razão do peso administrativo dos procedimentos. Era necessário, com efeito, escrever numerosas cartas e reunir grande quantidade de documentos: certidão de nascimento, atestado de pobreza (para isenção dos encargos), explicação da origem do nome e, sendo este o de uma pessoa viva, a certidão de nascimento e o consentimento desta última, bem como a adesão dos filhos maiores de idade ao projeto. Os que superavam esses obstáculos eram artesãos autônomos, costureiras e comerciantes — uma classe um pouco privilegiada que, nos textos, insiste sobre a importância do nome. Em 7 de março de 1846, por exemplo, o Sieur Gustave reivindica a adição de um nome e justifica da seguinte maneira sua escolha. Ele fora escravo de um Sieur Lacour, da comuna do Saint-Esprit, que o alforriara em 1833, e "é do nome de Lacour que deriva o de Lacoumé" (em crioulo, "mestre Lacour"), que ele deseja adotar. Geralmente, o único desejo expresso é o de "portar legalmente um nome mais ou menos similar ao que é habitualmente dado" à pessoa. Em 31 de maio de 1844, Mademoiselle Léocadie indica que demanda o nome de Forsans, mas precisa "pouco importa o nome que será concedido, Fordyer se preferirem. O essencial é que ele lhe seja concedido legalmente".

O nome que marca o estatuto civil em uma sociedade ainda escravagista é importante. Em dezembro de 1834, é assim inscrita, no registro das certidões de alforria da comuna do Lamentin, uma demanda de retificação de nome. Os "nomes verdadeiros", reclama-se, são Louis Iryer e não Louis Irger, Louis Silvère e não Louise Silvery, Louis Grennade e não Louis Pennade. A identificação permitia esquecer a matrícula portada sob a escravidão, permitia à pessoa emergir do nada (Zonabend 1980).

Ter um nome: o contrato social da emancipação

A individualidade por meio de aquisição de patronímicos é afirmada como base do novo contrato social posto pela Segunda República7 7 "De resto, seria indispensável fazer com que os funcionários do estado-civil procedessem a um registro geral da população emancipada, tomando como ponto de partida os registros-matrícula existentes, e conferindo nomes aos indivíduos e famílias como se fez até hoje no sistema de alforria parcial, de acordo com uma ordem de 29 de abril de 1836" (Circular ministerial de 7 de maio de 1848). . Em uma sessão do mês de junho de 1848, "o comissário geral da República especifica que os nomes patronímicos dos novos libertos figurem em seu título de liberdade, juntamente com o qual se lhes entregará um exemplar do decreto de 27 de abril portando sobre a abolição da escravidão". A premiliminar a todo estabelecimento do direito era, com efeito, a possibilidade de identificar, reconhecer a cada um uma individualidade que lhe permitisse, em troca, exercer o direito. Nessa relação de reciprocidade estabelecida, pois, cada indivíduo era ao mesmo tempo sujeito do direito (enquanto receptor das leis) e autor do direito (na medida em que podia acionar a justiça)8 8 A atribuição de um nome permitia também o acesso a um estado civil outrora reservado apenas aos indivíduos livres. Se houve debates para saber se as certidões de estado civil deveriam ser entregues individualmente ou por família, aceitou-se sem maior discussão que essas certidões fossem pagas em benefício dos funcionários municipais .

Desde a promulgação oficial da emancipação, quando da chegada do comissário geral da República à Martinica, assim como à Guadalupe, vê-se posta a questão da atribuição dos patrônimos. Com efeito, no funcionamento do estado de direito, ela constitui um problema prático: de um lado, é necessário estabelecer a base de cidadãos ativos, quer dizer, de homens, chamados a votar graças à instauração da igualdade civil e política com a metrópole; de outro, esses últimos eram também chamados a participar das novas instâncias de conciliação instauradas pela República sob a forma dos júris cantonais.

A abolição da escravidão em 1848 acelerou, assim, de modo exponencial, o processo de registro das identidades masculinas. Deveriam ser repertoriados 25.800 homens em Guadalupe, 21.525 na Martinica e 4.902 na Guiana, por uma administração cujo efetivo mantivera-se inalterado. Faltavam o tempo e as forças para uma boa aplicação da lei, ao mesmo tempo em que a vontade de receber um patrônimo não era compartilhada por toda a população, pouco habituada a buscar individualmente o acesso às esferas de poder9 9 O custo de 2F50, inicialmente previsto, foi anulado. . Se, aos olhos do comissário da República, a atribuição de um nome deveria permitir o desaparecimento de "todo embaraçoso resquício de escravidão", para o adido do prefeito de Saint-Pierre, Pory-Papy (um homem de cor), era, por outro lado, crucial respeitar a vontade de ser ou não identificado. "Não existem mais, na Martinica", diz ele, "senão cidadãos inteiramente admitidos em benefício do Direito comum; ninguém tem o direito de vir distribuir-lhes nomes fora das formas prescritas pela lei [...]. [É preciso] facilitar os procedimentos para aqueles que julguem bom fazê-lo [...]. Todo outro meio de proceder seria extra-legal e é por conseguinte uma forma de distinção que relembra o jugo da escravidão. Os novos cidadãos usufruem como os antigos das vantagens da igualdade; não cabe pegá-los [...] e distribuir-lhes nomes como se faria a um rebanho"10 10 Sessão do Conselho Privado, 15 de junho de 1848. . O procedimento foi pois lento, e, em 28 de maio de 1849, o magistrado enviado para inspecionar os júris cantonais, que devia verificar as listas eleitorais, constata, ocasional ou frequentemente segundo as comunas, a falta de nomes patronímicos. Paralelamente, a apropriação do nome patronímico pelos "novos alforriados" é fraca: ele nota que quase todos os lavradores ignoram-no, sendo necessário antes procurar identificá-los pela idade, prenome e nome do estabelecimento onde trabalham. Segundo ele, a maior parte dos novos alforriados ainda não responde se chamado pelo patrônimo, o qual, com certeza, não tem utilidade nas relações cotidianas11 11 Gérard Noiriel (1993:14) descreve o mesmo processo entre as classes populares na Alsácia-Lorena e entre os judeus; ver também um belo texto de Priska Degras (1995:75). .

Um nome sem significação?

Por outro lado, a ordem de 1836 é mantida e suas disposições reafirmadas na circular ministerial de 29 de janeiro de 1858. Nesse quadro, a escolha do nome cabe ao indíviduo ou ao funcionário da comuna. Relata Edmond du Hailly, em 1863:

A maior parte deles se dobra ao bom gosto dos funcionários da prefeitura. Se acontece de tal funcionário ser versado em história romana, fará reviver em seu registro a raça dos Brutus, Othon, Numa Pompilius. Por vezes, suas preferências se traduzem por um grande nome dos tempos modernos: se for um gourmet, criará um Vatel; dançarino, um Vestis. Montaigne, Sully, Nelson e uma centena de outros adquirem assim uma descendência negra. Alguns nomes brotam diretamente da fantasia desses padrinhos oficiais: outros, como Tinom [em crioulo, petit homme], por exemplo, são tomados do patoá crioulo e recordam seus estranhos diminutivos. Alguns alforriados, enfim, se limitam a conservar os nomes de suas mães, e se batizam bravamente Rosine ou Emilia. (du Hailly 1863:862).

O novo patrônimo era em seguida fixado em uma carteira, assinada pelo prefeito.

Será com o censo da população tributável em 1855 que a administração conseguirá conferir nomes patronímicos à quase totalidade dos novos alforriados12 12 Despacho ministerial: "Aprovação do modo seguido na Martinica para concessão de nomes patronímicos: instruções para a confecção desses documentos em tripla expedição". Paris, 29 de maio de 1858. , provocando temores no seio dessa população, que via nisso o retorno da escravidão, pois, a cada dia, o capataz registrava os escravos ausentes. Quatro anos mais tarde, em 1º de janeiro de 1859, os registros de individualidade são definitivamente fechados, e foi assim que uma parte da população, pequena segudo a estimativa da administração, acabou sem obter patrônimo oficial (Bulletin Oficiel de la Martinique, 1858). O registro de individualidades perdurou, entretanto, de maneira irregular, poucas pessoas conseguindo acesso ao complicado procedimento junto ao Conselho de Estado para obter uma adição de nome. Em 28 de agosto de 1848, na Guiana, a Demoiselle Catherine, dita Laura, e o Sieur Charles-Etienne, seu irmão, foram autorizados a juntar a seus prenomes o sobrenome Croizé; em 21 de março de 1850, o Sieur Marcele, na Martinica, foi autorizado a portar o nome de Hurard. Eles foram os únicos.

As mulheres, como tampouco as crianças, não foram excluídas do processo de individualidade pela resolução de 21 de outubro de 184813 13 "Artigo 1: Será emitida uma certidão especial para constatar, por meio da adição de nomes patronímicos, a individualidade de cada novo cidadão, sem exceção de idade, sexo ou parentesco. [...]. Artigo 2: [...] Ao mesmo tempo que os novos cidadãos receberão os extratos a eles concernentes, ser-lhes-á concedido sem custos um exemplar do decreto de 28 de abril de 1848, referente à abolição da escravidão". , mas a implantação das novas instituições teve repercussões sexistas. A legislação sobre o organização do sufrágio universal e a justiça dos conflitos trabalhistas era, com efeito, sexuada. E essa imposição de uma forma institucional que excluía as mulheres as impelia a uma marginalidade contrária às práticas locais e às condições históricas, nas quais os papéis econômicos de homens e mulheres eram largamente intercambiáveis. Enquanto o discurso universalista estabelecia uma igual liberdade para todos os membros da sociedade, as mulheres não tinham, de fato, se beneficiado com o reconhecimento de sua individualidade. Se, entre 1830 e 1846, 41% das mulheres a reivindicaram, em comparação a 24% dos homens, a situação se inverte com a emancipação. Os efeitos perversos da lei persistiram por muito tempo. Em 1852, as acusadas pelas desordens de Sainte-Marie são designadas, à diferença dos homens, apenas por seus prenomes. Há Celeste, lavradora, e Magdelonnette, lavradora — que protesta porque "diz-se que as mulheres não podem votar e (que) todavia, as mulheres béqués ["brancas", da classe dos colonos] vão ao presbitério votar"14 14 Archives Nationales, Section d'Outre-Mer (ANSOM), Carton 165, Dossier 1518. . Em 1864, passados dezesseis anos do Ato de Emancipação, de 44 certidões de individualidade registradas no Lamentin, 57% concernem homens. Muitas das mulheres que não contraíam uniões legítimas, ou daquelas que não eram legitimadas pelo casamento de seus pais, permaneceram sem patrônimos e adicionaram novos prenomes aos antigos para conferir a si mesmas uma identidade no momento da declaração de nascimento de seus filhos. Por exemplo: Lorette Calixte, Adélaïde Antiphate ou, ainda, Cécile Germaine. O confronto com uma lógica administrativa não pertinente em sua vida cotidiana as conduzia a "bricolar", no sentido de Roger Bastide, uma identidade exigida pelas regras de registro da população.

O direito à prova dos usos

Os modos de apropriação desse "direito comum", saído do Ato de Emancipação e da elaboração de uma sociedade igualitária, foram múltiplos. Segundo os atores, certos atos administrativos faziam sentido, na terminologia de Max Weber (1971[1956]:4), outros não. Se os antigos senhores, como os antigos libertos de cor, alforriados antes de 1848, circunscreviam parcialmente o termo em uma quadro legalista, mais ou menos rígido, os "novos libertos" delineavam, por suas reivindicações, notadamente nas situações de conflito, sua própria definição do direito. Nesse período de ajuste das relações sociais, duas concepções se defrontavam. Elas retomavam, entretanto, as antigas linhas de fratura civis pois os emissários da República encorajavam a preeminência do direito positivo

Direito pelo trabalho e virtudes cidadãs

Preocupados com a estabilidade social e econômica, os comissários da República se esforçaram, de fato, em informar à população recentemente alforriada de seus direitos e deveres, em termos que tornassem essas duas noções equivalentes. Se eles confirmavam que os lavradores se haviam tornado cidadãos franceses e, a esse título, tinham todos os direitos de que gozam estes últimos, tais direitos não eram especificados. Em troca, seus deveres — dos quais "o primeiro e o mais santo de todos é o trabalho" — eram longamente comentados. A figura do "bom cidadão", esboçada desde o início das campanhas abolicionistas (sobre este período, ver Debbasch 1977), é então consolidada. Ela remete a três valores congruentes com o contexto de moralização geral da sociedade francesa: a "Família" — patriarcal —, a "Propriedade" e, sobretudo, o "Trabalho", cuja função curativa permitia à classe laboriosa merecer a liberdade.

A correlação entre liberdade e trabalho é estabelecida firmemente desde a promulgação do decreto de Emancipação nas Antilhas Francesas. Dos 14 decretos publicados ao mesmo tempo que o da emancipação geral, cinco referiam-se ao trabalho e à vadiagem. Os representantes do Estado nas colônias martelavam sem descanso aos novos alforriados: "É preciso clamar: Viva a França! Viva o trabalho!", exclama Perrinon — o que fazia com que os escravos comentassem: "ennique travail quica soti dans bouche li"15 15 "Ele só fala de trabalho". . Em cada vila, eles passavam horas explicando a nova legislação e as vantagens da profissão de lavrador, pois "a escravidão desonrou o trabalho nas colônias" e "é preciso apagar por todos os meios possíveis o caráter degradante com que a servidão marcou a agricultura, [e] as recompensas dadas aos melhores trabalhadores se juntarão ainda à feliz influência da liberdade sobre os costumes"16 16 5º decreto acompanhando o decreto de Emancipação geral. .

Desde julho de 1848, todavia, produz-se um deslizamento conceitual. A Emancipação pela Segunda República franqueva o acesso ao direito comum que compreendia um direito ao trabalho cuja concretização o Estado deveria assegurar, graças, por exemplo, à criação das Oficinas Nacionais, instituídos na metrópole em nome da fraternidade para solucionar o problema do desemprego dos trabalhadores, mas imediatamente interpretadas nas Antilhas como uma nova medida de coerção. Rapidamente, o direito ao trabalho vê-se substituído ao direito pelo trabalho (o segundo termo dando acesso ao primeiro), que atinge em 1852 seu ponto de estrangulamento com uma resolução do Diretor do Interior que promulga, nas colônias, o decreto napoleônico sobre o regime das cadernetas e a vadiagem (Bulletin Officiel de la Martinique, 9 de outubro de 1852)17 17 O texto é completado em 20 de maio de 1854 por uma resolução do Governador da Martinica, o Conde de Gueydon. .

O direito ao trabalho, dever do Estado diante do cidadão, rapidamente metamorfoseou-se, para o cidadão colonial recentemente alforriado, em dever de trabalhar. Sob a forma de "associações" que não eram fourierianas senão nominalmente (Jennings 2000)18 18 Ver a discussão da concepção de associação por Louis Blanc em L'Atelier. Organe Spécial de la Classe Laborieuse, outubro de 1847 e, sobretudo, o contrato de associação operária publicado no mesmo volume, cujos termos afastam-se grandemente do modelo proposto por Perrinon. , antigos senhores e antigos escravos se ligavam agora por contratos, favoráveis aos primeiros. Embora desde o mês de junho de 1848, Perrinon tenha redigido modelos de contrato de associações que se pretendiam eqüitativos19 19 "Eu fui em geral compreendido, as convenções foram imediatamente feitas na base de um modelo de contrato de associação que eu pudera estabelecer para disseminar na colônia [...]. Até o presente, é a associação assim regulamentada que prevalesce em todas as explorações açucareiras, e se prefere a partilha na base de um terço do bruto sobre aquela na base da metade do líquido [...]. A associação tem todas as minhas simpatias: é por esta via, fecunda em resultados generosos, que espero obter o aperfeiçoamento dos trabalhos agrícolas, o incremento dos produtos, o desenvolvimento das inteligências pela emulação. Regrada pelo modelo de contrato que adotei, a associação atende convenientemente aos dois interesses implicados; ela é em tudo preferível ao salário, cujo pagamento seria ademais impossível nas presentes condições financeiras da colônia [...]" (Carta de Perrinon ao ministro da Marinha e das Colônias, Macouba, 10 de Julho de 1848; ANSOM Carton 46, Dossier 464). , esses contratos foram repetidamente interpretados a favor dos proprietários, notadamente nos casos de ausência não justificada do trabalhador. Se Perrinon previa que "cada associado receberá uma parte proporcional ao número de dias de trabalho que terá fornecido à sociedade", Pierre Dessalles, por sua vez, inscreveu em seu contrato de associação que as faltas não consentidas deveriam ser pagas, em dinheiro, no dobro do valor de uma jornada de trabalho. Além disso, as jornadas de trabalho são de nove horas; nos sábados, domingos e dias festivos, não se trabalha. O proprietário deve alocar uma roça e uma cabana a cada trabalhador (homem e mulher) que esteja incluído no contrato da associação; o trabalhador tem direito a um terço do produto bruto ou a metade do açucar, "entregue em espécie ao passo que é fabricado"20 20 Artigo 14 do contrato da associação de Nouvelle Cité (de Frémont e Elisabeth, 1984:341). . O proprietário, por sua vez, fornece as terras para a unidade produtiva, os edifícios para o beneficiamento do açucar, as cabanas dos trabalhadores, os utensílios e instrumentos agrícolas21 21 Artigo 2 do contrato da associação de Nouvelle Cité (de Frémont e Elisabeth, 1984:340). . Sob sua responsabilidade estão os custos de assistência médica e remédios, assim como aqueles devidos a ferimentos incorridos durante a jornada de trabalho. Em 1848, cerca de 60% dos trabalhadores rurais da Martinica encontravam-se sob este tipo de contrato22 22 Balanço das viagens de Perrinon... (Tomich 1995). .

Direito de propriedade e interdependência social

Malgrado as críticas circunstanciais, os antigos senhores estavam de acordo com esta política, que defendia sua propriedade segundo o direito positivo. Todavia, sua relação com o direito continuava a ocultar laços de interdependência (Elias 1985; 1991) fundados sobre modos de proximidade e familiaridade com seus "antigos escravos"23 23 Sobre essas questões, ver, entre outros, o importante trabalho de Sigaud (1996), que mostra como as relações de interdependência conservaram-se nas configurações do séc. XX. .Se eles constatavam que "o proprietário não é mais senhor em sua própria casa", é porque "os lavradores percorrem seu estabelecimento, atravessam suas plantações, devastam suas canas, cantam, batem tambores, quando querem e o quanto querem, sem preocupar-se com o repouso das pessoas; não se pede nenhuma permissão" (Le Commercial, 1º de julho de 1848 — ênfases minhas). Os senhores utilizaram-se do direito positivo para manter um quadro de dependência fundado sobre relações personalizadas. Segundo sua avaliação de seu interesse — material ou afetivo —, referiam-se à nova legislação ou optavam por um quadro mais tradicional. De um lado, Pierre Dessalles relata que "um de seus antigos escravos veio pedir-lhe que conseguisse um médico para sua esposa, e ele respondeu dizendo que não podia mais comprometer qualquer valor, por menor que fosse, mas que — se os trabalhadores atuais quisessem garantir o pagamento da visita do médico — ele mandaria chamá-lo", concluindo, "eles querem conservar da escravidão o que lhes convém, e recusam todos os encargos da liberdade" (de Frémont e Elisabeth 1984:14/6/1848). Quando dos conflitos, assim, os proprietáriosa afirmavam que nada deviam aos antigos escravos, "nem cabana nem terra, e que esses não tinham nada a fazer senão retirarem-se das propriedades de seus antigos senhores" (de Frémont e Elisabeth 1984:5/6/1848)24 24 Ou ainda: "todo lavrador que não tenha chegado a um acordo com o proprietário, deve abandonar a propriedade quando lhe for assim indicado" ( Le Commercial, 1º de julho de 1848). . De outro lado, anunciam, eventualmente, novas propostas. Dão "um boi e violões para que [os trabalhadores] pareçam satisfeitos (de Frémont e Elisabeth 1984:14/6/1848). Mudam de idéia diante do choro das mulheres25 25 "Duas negras, às quais Louis Littée ordenara retirarem-se do estabelecimento, vieram me procurar e choraram tanto que fiz a besteira de atendê-las" (de Frémont e Elisabeth 1984:25/7/1848). . Reconsideram sua decisão se os trabalhadores vêm desculpar-se publicamente26 26 "Os oito trabalhadores que eu despejaria hoje vieram reconhecer seus erros e pedir para fazer parte da Associação; eu perdoei tudo" (de Frémont e Elisabeth 1984:29/7/1848). .

Os laços de dependência manifestos nesses diferentes exemplos estavam articulados a um antigo sistema de dons e contra-dons, material e simbólico. No Caribe das plantations, os escravos e os trabalhadores habituaram-se a receber de seus senhores cuidados e presentes. Para o Carnaval, "doei um carneiro e garrafas de vinho", diz Pierre Dessalles; ou ainda, por ocasião do batismo do filho de um senhor, "os escravos domésticos, a exemplos dos senhores, regozijaram-se, beberam, comeram e cantaram até as três da madrugada" (de Frémont e Elisabeth 1984:5/7/1837). Reciprocamente, os contra-dons simbólicos dos escravos e dos novos alforriados são a cada vez anotados pelo senhor. Ao nascimento do filho deste, "os negros se apressam a apresentar(-lhe) seus respeitos". Em 1849, na manhã de 1º de janeiro, o senhor fez com que fossem tocados os violões e timbales, enquanto "seus antigos escravos vinham um por um lhe desejar feliz ano novo". Ao longo de todo o período servil, a deferência e submissão foram trocadas por "generosidades" e "gentilezas", segundo a escolha de uns e outros.

Era também habitual solicitar aos senhores o serviços de arbitrar conflitos interpessoais — como no caso de Nicaise, abandonado por Victorine, que foi por sua vez punida, açoitada e repreendida pelo senhor. Dívidas financeiras conservavam-se também ao longo do tempo, fundadas sobre uma dívida moral. Nicaise faz constar assim em seu testamento que ele "doa e lega à Srta. Elmire Thomasine dois hectares de terra, comprados do M. Dessalles, pai, e 432 francos, que me são devidos por seus filhos. M. Dessalles terá o usufruto dessa terra e desta soma até que lhe apraza remetê-los à mencionada Elmire Thomasine". Saturnin, filho ilegítimo presumido de Pierre Dessalles, recebe como presente uma casa em Gros-Morne, comprada por seu pai, que "se reserva o usufruto da mesma (pois) Saturnin e sua esposa lá permanecerão com ele e ali estabelecerão um pequeno comércio" (de Frémont e Elisabeth 1984: 27/12/1850).

Esses diferentes elementos organizados em sistema tornam inextrincáveis as relações entre "senhores" e "escravos", ou entre "proprietários" e "novos alforriados", relações incompreensíveis para um observador desprovido da memória da dependência, isto é, das dívidas, dos dons e contradons, dos serviços prestados e dos "amores ilegítimos", que existiam entre os membros das sociedades coloniais. A Emancipação modifica pouca coisa nessas trocas.

Direito de uso e apropriação da liberdade

Esse espaço restrito das relações de dominação explica que os novos alforriados oponham, ao direito objetivo descrito pelos comissários da República, um direito que se apóia nos hábitos de vida e nos costumes instaurados durante o período da escravidão27 27 "O negro, habituado a dispor de sua cabana e sua roça, via estes quase como sua propriedade. Graças a esses hábitos, as oficinas não debandavam, os negros permaneciam em seus estabelecimentos" ( L'Atelier, 313). . Assim, se existe nos campos uma reivindicação essencial, esta é a do propriedade das terras e cabanas alocadas aos escravos pelos senhores. Numerosos rumores circulavam a esse respeito, formando para os novos alforriados, como mostrou Arlette Farge (1988), um quadro de expressão do político. Essas requisições — feitas de justiça e legitimidade, escutava-se nas plantações — consistiam nas primeiras e mais imediatas demandas dos novos alforriados, sempre formulada em nome de seu próprio passado no estabelecimento: este justificava, a seus olhos, seu direito de propriedade sobre uma terra que, segundo Pory-Papy, tinham regado com seu suor, ao mesmo tempo em que territorializava sua identidade28 28 "Fiz uma observação essencial, a saber, a de que os novos cidadãos apegam-se quase sempre ao lugar onde nasceram, e de que, por causa desse sentimento, emigrações e mudanças de profissão são casos excepcionais. Existiam geralmente nos trabalhadores pretensões muito fortes à posse das cabanas e das roças. Persuadidos de seu direito de propriedade, recusavam-se a abandonar os lugares a que estavam habituados, e acreditavam poder continuar usufruindo deles sem ser obrigados a estabelecer um arranjo com o verdadeiro proprietário. Esses amores pela cabana e pelo solo de costume cria aqui um contraste singular com o que ocorre nas colônias inglesas, quando da emancipação. Ao contrário dos lavradores ingleses, os nossos não estão nada dispostos a desertar do campo e afluir às cidades; em geral, resistem a deixar o estabelecimento onde estavam precedentemente empregados" (Perrinon, 10 de julho de 1848, ANSOM, Carton 46, Dossier 464). .

Quando da Emancipação, os novos alforriados refutaram firmemente o direito de propriedade positivo29 29 Curiosamente, a reflexão abolicionista tinha já deixado entrever possíveis correções ao direito positivo, pela via da noção de "reparação" devida a título de retratação pela escravidão, nas palavras de Arago. Em nome da humanidade e da moral, a propriedade fora questionada, notadamente por Victor Schoelcher em 1834, Bissette "pela reparação da violência física e moral que ele exercera contra ele"; não se tratava mais de uma indenização "repartida igualmente entre colonos desapossados de seus escravos e os próprios escravos", segundo a proposição de Victor Schoelcher (subsecretário de Estado e presidente da Commission d'abolition de l'esclavage) em 1848 (ver Girollet 2000:270-271). Sobre a lei de 1846: em 22 de agosto de 1846, o relator do projeto de decreto concernente aos terrenos a serem concedidos aos escravos faz a leitura de seu relatório: Artigo 1º: A obrigação imposta aos senhores de colocar à disposição de seus escravos terras apropriadas à lavoura entrará em vigor a partir da promulgação do presente decreto, conforme às disposições seguintes. Artigo 2: Estão excluídos do direito à distribuição de terras apenas os escravos que constam nos censos como domésticos, empregados nas aldeias e burgos, ou alocados à navegação ou atividades não-agrícolas. Artigo 3: O terreno cujo usufruto será concedido ao escravo deverá ser apropriado para a agricultura e possuir uma extensão de, no mínimo, • nos estabelecimentos açucareiros, 6 ares • nos estabelecimentos cafeicultoras e dedicadas à cultura de gêneros alimentícios, 4 ares • nos estabelecimentos dedicados à produção de víveres, 3 ares Todo escravo, maior de 14 anos, terá direito a esta extensão de terreno, sem que o senhor possa deduzir dela o que terá dado a outros escravos que sejam parte da mesma família; essa quantidade deve ser aumentada em um quinto para cada criança com mais de quatro anos. . Em 23 de junho de 1848, conta Dessalles, "a negra Suzon declarou que incendiaria as cabanas se os negros não se entendessem comigo, pois as cabanas não me pertenciam" (de Frémont e Elisabeth 1984). Segundo eles, a liberdade permitia uma nova gestão do trabalho e novas relações com os proprietários, que marcavam que os limites da autoridade tradicional haviam sido alcançados. Exprimiam assim seu "senso de liberdade"30 30 A expressão serviu de título a um livro sobre essas questões (McGlynn e Drescher 1992). na discussão dos contratos estabelecidos com o proprietário: tornavam-se agentes verdadeiros de sua liberdade na negociação de cláusulas que não aceitavam (Tomich 1995; ver Scott 1994 sobre a situação em Cuba). Afirmavam-se como interlocutores em face do proprietário e adotavam formas coletivas de expressão que eram percebidas como uma novidade. Se, durante todo o período da escravidão, a divisão no seio do grupo de escravos é que era sublinhada, após a Emancipação é a ação coletiva que passa a ser descrita, notadamente pelos proprietários: o conjunto da oficina chega atrasado, o conjunto das mulheres se recusa a trabalhar durante a noite nos períodos de roulaison (pico), o conjunto da oficina opõe-se à expedição dos açúcares de um estabelecimento, ou defende seu trabalho impedindo a chegada de diaristas contratados pelo senhor para o corte da cana. Os escravos se transformavam então, nas relações administrativas assim como nos textos dos proprietários, em uma multidão inquieta e inquietante, refletindo os temores que habitam todos os atores da cena colonial desde que seus quadros de referência foram desarranjados: aos júris cantonais caberia definir novos quadros.

Os júris cantonais, ou a falência da igualdade

Com o objetivo de, com efeito, reabsorver essas tensões e chegar a um acordo mútuo entre proprietários e trabalhadores, Victor Shoelcher, presidente da Comissão de Abolição da Escravidão, preconizara a instituição de júris cantonais, que foi finalmente decretada pelo governo provisório em 27 de abril de 1848. "Nas colônias onde a escravidão é abolida pelo decreto deste dia, será estabelecida em cada jurisdição um júri composto de seis membros, sediado, em audiência pública, na sede do cantão, presidido pelo juiz de paz" (Artigo 1º). Com base no modelo dos prud'hommes*** ** * Magistrado eleito para um tribunal especializado, dito Conseil de Prud'hommes, para decidir sobre litígios derivados do contrato de trabalho [N.T.] instituídos em 28 de março de 1806, em Lyon, para resolver as pequenas diferenças que apareciam cotidianamente na indústria da seda, os júris cantonais reuniam, em bases paritárias31 31 O que foi obtido na metrópole apenas em 1848 (Baffos 1908). , "os cidadãos que possuem ou exercem uma indústria e os trabalhadores industriais ou agrícolas". Eles eram designados por sorteio entre os homens inscritos nas listas eleitorais que satisfizessem os critérios de idade, nacionalidade e residência, e tinham a obrigação de reunir-se duas vezes por semana, recebendo um honorário de 2 francos por cada dia de sessão.

Os júris cantonais possuíam uma dupla atribuição, já que tinham competência em matéria civil sobre todas as contestações sobre a execução dos acordos (Artigo 5) e, em matéria penal, sobre "todo fato que tenda a perturbar a ordem e o trabalho nos ateliês, canteiros, ou lojas, todas as faltas graves dos proprietários ou chefes de indústria e dos operários ou trabalhadores uns em relação aos outros" (Artigo 7)32 32 Em Guadalupe, o procurador-geral propõe, em 10 de agosto de 1848, "estender a competência do júri cantonal em matéria penal, confiando-lhe, de um lado, a repressão da vadiagem [...]; de outro, todas as contravenções possíveis, até as penalidades máximas [...]. A outra modificação proposta pelo mesmo magistrado consistia em substituir, como punição nos casos de condenação por vadiagem e perturbação da ordem ou do trabalho, a multa pela condenação ao ateliê disciplinar" (Commission coloniale, "Première note sur les jurys cantonaux", janeiro de 1849. . Orgão de gestão de conflitos cotidianos, essa instituição tinha por objetivo resolver os antagonismos pela conciliação, no seio de uma instância local, mais acessível a atores sociais pouco habituados ao direito positivo e frequentemente incapazes de se exprimir em francês. Acolhendo as queixas de uns e outros, os júris cantonais procediam de uma justiça da oralidade33 33 Os júris cantonais tratavam, com efeito, de acordos feitos oralmente assim como daqueles estabelecidos por escrito. Para uma análise precisa dessa questão, ver os trabalhos de Scott (1994) e, especialmente, Scott e Zeuske (2002). , cujos traços não foram conservados senão nos relatórios administrativos e em menções pessoais de proprietários.

Era ainda necessário que, no plano jurídico, os trabalhadores fossem autorizados a manifestar seu desacordo quando o artigo 1781 do Código Civil precisava ainda que "as afirmações do senhor devem ser acreditadas sob palavra34 34 "[...] quanto à quota dos penhores, quanto ao pagamento dos salários do ano transcorrido, e quanto aos adiantamentos para o ano corrente". Este artigo foi revogado na metrópole pela lei de 2 de agosto de 1868. . Em uma sociedade marcada por relações de servidão, o termo de "senhor" tinha ressonâncias mais fortes que na metrópole, e ficou claro para o governo, que exaltava a igualdade, a fusão e o esquecimento do passado, que ele não podia ser conservado: em nome da escravidão, ele é ab-rogado do Artigo 6 do decreto que instituía os júris cantonais — mas apenas nas colônias, que passavam assim a constituir exceção no conjunto francês. Na metrópole, com efeito, esse artigo se manteve, a despeito de repúdios como o do jornal de Charles Fourier, L'Atelier. Organe spécial de la classe laborieuse. Enquanto o legislador republicano, mais tarde imperial, esforçava-se para incluir os novos alforriados no direito comum, trabalhadores e serviçais viam-se dele excluídos, e com o apoio de certos deputados coloniais. Em 1850, Bissette da Martinica, antigo homem de cor condenado ao ferrete e à deportação em 1823, e Henri Wallon, Secretário da Comissão de Abolição da Escravidão35 35 Na ilha da Reunião, não foram instituídos júris cantonais e, na sessão de 17 de outubro de 1848, o procurador-geral exprime o lamento de que o artigo 1781 do Código Civil tenha sido suprimido, pois "essa supressão pareceu-lhe injusta para os colonos" (Commission Coloniale, "Deuxième note sur les jurys cantonaux", novembro de 1849). , recusam-se a votar por sua revogação.

Situados na linha dos juízes de paz — juízes conciliadores encarregados, desde o século XVIII36 36 Ver a ordem de MM. Les général et intendant, sobre a resolução da assembléia geral concernente ao estabelecimento das municipalidades, de 19 de dezembro de 1789; a carta de S.E. o Governador interino da Martinica, a um comissário civil de paróquia sobre os assuntos religiosos, de 22 de agosto de 1811; e a lei sobre o regime legislativo das colônias, de 24 de abril de 1833. , de encerrar, por meio da mediação, os litígios entre particulares — a competência dos júris cantonais para determinar as sentenças era limitada: as penalidades não podiam ultrapassar, nas ações civis, os 300F, e, nas ações penais, de 500 a 1000F, ou mesmo 3000F; para além desses valores, as instâncias superiores eram chamadas a decidir.

Nos textos, a criação dessa instância estatal consagrava um lugar privilegiado de expressão de tensões37 37 Sobre questões similares no contexto argentino, ver Fradkin 1999. , um espaço de "liberdade positiva" (Cottereau 1992:244). O Estado organizava um quadro de confiança para sujeitos que eram assim solicitados a regrar por meio dele seus conflitos cotidianos, sujeitos estes que estavam acostumados à vontade do senhor e à sua exigência de obediência cega e passiva. Para o Governo Provisório, as questões em jogo eram, com efeito, numerosas. De um lado, tratava-se de controlar os sentimentos da população: de lutar contra a desconfiança face à autoridade, de sufocar as paixões mútuas de proprietários e trabalhadores, de "esvaziar o mais frequentemente irrupções de suscetibilidade e de amor-próprio que podiam emergir à simples lembrança da qualidade de antigo mestre ou escravo", de trasmutar a experiência social dessas populações instaurando um "grande tribunal de família". De outro lado, era necessário manter, a qualquer preço, o equilíbrio econômico, regulamentando o trabalho. Percorrendo, por vezes, mais de 16km a pé, os lavradores chamados a participar dos júris cumpriam sua função gravemente, com uma assiduidade que devia calar todas as calúnias levantadas a seu respeito — relatam os juízes de paz em 1848 (Gazette officielle de la Guadaloupe, 51 e 52, 15 e 20 de setembro de 1848). Quanto aos proprietários, as autoridades municipais os designavam, o mais das vezes, dentre os mais influentes de sua classe, falseando assim as regras de eqüidade.

As ações civis, ou as aspirações dos novos alforriados

Formalmente, a nova ordem igualitarista proporcionava aos indivíduos a possibilidade de constituir seus interesses individuais e coletivos, e de fazer com que fossem reconhecidos como tais (Garcia 1989:164), sobretudo em matéria civil. Tratando dos litígios trabalhistas, esses casos exprimiam, em negativo, as recriminações dos proprietários e as aspirações das populações recentemente alforriadas, as quais se colocaram majoritariamente na posição de reclamante desde a instauração dos júris cantonais. No curso do primeiro ano de existência civil, em Trinidad, eles apresentaram queixa em 57% dos casos; depois, entre 1848 e 1850, em 60% dos casos registrados em Trinidad, 70% em Fort-de-Saint-Pierre e 61,5% no Mouillage (Adélaïde-Merlande 1973:50). No total, em cinco dos oito cantões da Martinica, as demandas emanaram principalmente dos trabalhadores38 38 Em Saint-Esprit, no Marin e nas Anses d'Arlets, foram os proprietários os autores das ações ( Rapport du magistrat délégué à l'inspection des jurys cantonaux de la Martinique, 28 de maio de 1849). .

As demandas dos trabalhadores remetiam a sua experiência social do trabalho e às modificações que esperavam39 39 Um pequeno número de conflitos pessoais é, em Trinidad, levado a julgamento. Eliza, lavradora em Saint-Marie, reclama a usurpação de sua cabana pelo Compadre Taillis, também lavrador. Um grupo de lavradores se queixa de Placide, Laguerre e outros por não cumprirem as cláusulas do contrato e os acionam por perdas e danos. .Em Trinidad, 76% delas referem-se a demandas salariais e, em outros cantões, ao usufruto da cabana e das roças que permitiria, a seus olhos, romper a relação de subordinação ao antigo senhor. Nas audiências, eles vêm portanto reivindicar, em geral em grupo, essa regulação das relações sociais como um elemento essencial para seu estatuto de cidadãos livres40 40 "Minha viagem do dia 18 forneceu-me a prova do prestígio de que goza o salário aos olhos do trabalhador; com essa modalidade, nenhuma incerteza, nenhuma discussão, nenhuma má-vontade; o objetivo é concreto, basta algumas horas para alcançá-lo, a boa vontade de todos os dias é estimulada por esta potente isca. Uma preferência extremamente marcada existe por esta modalidade em face da associação, cujos resultados são mais distantes, menos determinados, menos concretos para a imaginação e, ainda que mais vantajosos, suscitam menos confiança aos novos alforriados" (Carta de Perrinon ao ministro da Marinha e das Colônias, Fort-de-France, 19 de agosto de 1848; ANSOM, Carton 46, Dossier 464). .

A noção de "confiança" e seu contrário, a "desconfiança", explicam, por si mesmas, a maior parte dos casos julgados por iniciativa dos lavradores. O sistema de associação, que tinha a preferência tanto do Governo Provisório como (após alguma hesitação) dos proprietários, obrigava à manutenção de relações organizadas ao modo do tempo da escravidão. Fora da eleição de um conselho de prud'hommes para servirem de intermediários entre o proprietário e os trabalhadores e (eventualmente) a assinatura conjunta de um contrato diante do tabelião, o processo de trabalho não só permanecia o mesmo como, além disso, não garantia a propriedade da cabana e das roças tradicionais. Ora, indagavam-se os trabalhadores diante dos tribunais, como acreditar em uma partilha equitativa e garantida dos produtos em um terço ou um quarto, quando a relação de troca parecia tão desigual, e quando a economia de subsistência elaborada durante a escravidão via-se ameaçada pelo direito de propriedade dos antigos senhores? As colheitas de mandioca ou de bananas, plantadas antes da Abolição, ou antes da assinatura dos contratos de associação, eram reclamadas pelos lavradores. Discussões derrisórias, mas simbolicamente significativas, eternizavam-se para saber se os frutos pendentes nas árvores pertenciam aos senhores ou aos novos alforriados41 41 "O direito de propriedade sobre os frutos e colheitas pendentes nos ramos e raízes adquiridos dos alforriados em virtude do artigo 2º. ('os proprietários não poderão privar os alforriados dos frutos e colheitas') do decreto de 27 de abril sobre a repressão da vadiagem e da mendicância deve ser limitado aos frutos que tiverem brotado antes do Ato de Emancipação, e não deve ser perpetuado e estendido às novas plantações. As razões dessa decisão derivam do caráter puramente transitório da disposição pré-citada, e das consequências funestas que acarretaria para a agricultura e a livre disposição das terras, a permissão concedida aos trabalhadores de retornar indefinidamente aos estabelecimentos que teriam deixado ou dos quais teriam sido expelidos para colher ou cultivar os produtos de suas antigas roças" ("Première note sur les jurys cantonaux", 31 de janeiro de 1849. Ver também Adélaïde-Merlande 1973). , enquanto outros tinham de decidir se um trabalhador casado podia receber a esposa em sua cabana quando esta não participava do contrato de associação feito com o senhor...

Diante das aspirações sociais dos novos alforriados, os proprietários, por sua vez, vinham buscar a confirmação, em matéria civil, de seu direito de propriedade e de sua posição de autoridade nesse novo quadro jurídico. Denunciando o abandono do trabalho pelos trabalhadores (36% das queixas), ou a má execução dos contratos (27%), eles demandavam sua expulsão em 50% das ações. Não parece que o tribunal tenha exigido deles precisar as queixas trazidas sem a apresentação de provas — ao contrário daquela levantada contra Bastienne, que é repreendido por "ter perdido 33 dias de trabalho de um total de 56"42 42 Caso julgado em 19 de maio de 1849. . Na maioria das vezes, as queixas dos proprietários resultavam de uma longa história em que os trabalhadores haviam tentado se fazer ouvir. Em 5 de maio de 1849, La Disette e outros lavradores de Pierre Dessalles são julgados por "abandono do trabalho", mas a descrição do conflito pelo proprietário revela uma algo muito diferente. Havia semanas, os lavradores estavam descontentes com o preço que lhes havia sido pago pelo açúcar, aspiravam a uma partilha das terras (que deveria ser feita por intermédio de Bisette) e, enfim, desejavam a confirmação da propriedade de suas cabanas. Frente a isso, o proprietário se queixa continuamente da lentidão do trabalho, mas sublinha, no dia seguinte à violenta altercação que provoca a intimação da oficina, que "os negros de apresentaram ao trabalho"43 43 O ateliê não comparece ao trabalho apenas dois dias após o julgamento e, a despeito disso, o proprietário lhes pagou "a jornada que lhes era devida"... : a acusação levantada junto ao júri cantonal era portanto falsa. Resumir assim o conflito permitia, em troca, atingir dois objetivos: de um lado, ser escutado pelos juízes de paz encarregados pelo governo de garantir a estabilidade econômica; de outro, reestabelecer sua relação de autoridade, obrigando os novos alforriados a aceitar as condições de vida e de trabalho.

As ações penais, ou a preservação da dependência

As ações penais ilustram ainda mais claramente essa utilização do direito. Elas reúnem todos os conflitos que ameaçavam diretamente a relação de autoridade e podiam engendrar o que era considerado como desorganização social. Definido pelo artigo 7 do decreto, tratavam-se de disputas, de falta de respeito, de desobediência, de palavras grosseiras, de injúrias verbais e outros fatos da mesma natureza44 44 Rapport du magistrat délégué à l'inspection des jurys cantonaux de la Martinique, 28 de maio de 1849, p. 83. . Sob esta rubrica, são julgados, na Martinica, 61 casos entre 1848 e 1850, todos sob demanda dos proprietários representados pelo Ministério Público; um na Guiana; em Cayenne, nos primeiros meses de 1848; e nenhum em Guadalupe.

Como em matéria civil, as queixas dos senhores repousavam sobre histórias longas que, na maioria, eram resumidas diante do júri sob a forma da acusação de "faltas graves" e "insultos". A banalidade dos fatos reprovados pode causar surpresa, uma vez que a violência da servidão fora sempre acompanhada de expressões brutais de desconsideração de todos os indivíduos (das quais apenas os termos mais aceitáveis foram transcritos nos textos) que, segundo os relatórios administrativos, muito marcaram a memória dos novos libertos: "Notei principalmente, entre os novos alforriados, o esquecimento dos golpes e do rigor do regime que lhes era precedentemente aplicado, mas a lembrança viva e completa das injúrias que receberam e das injustiças de que foram vítima"45 45 Viagem do comissário às comunas do norte, 25 de julho de 1848. .

Se os escravos/novos alforriados eram tratados de "imbecis" ou "negros" (o que equivalia a tratá-los de escravos), os senhores/proprietários, por sua vez, eram ditos "ladrões" e "assassinos". A "insolência" denunciada pelo senhor durante a escravidão continua a caracterizar a manifestação das idéias, opiniões, desejos, e mesmo de oposição da parte dos lavradores, mas as modalidades de afirmação da hieraquia social haviam mudado. Com a Emancipação, a palavra do alforriado era formalmente posta em pé de igualdade com a do senhor. Enquanto que, durante a escravidão, o senhor detinha os meios de soterrar qualquer contestação, por menor que fosse (pois "eu sou o senhor", escreve Dessalles em 1º de janeiro de 1839), pelo chicote ou pela estaca46 46 Do diário de P. Dessalles (de Frémont e Elisabeth 1984): "Avinet deu uma de insolente e rebelde esta manhã; fiz com que lhe aplicassem a chibata" (29/11/1839); "Josephine deu uma de insolente; queria deixar o trabalho mais cedo. Mandei prendê-la nas três estacas" (15/03/1840). "Césaire foi insolente e entreteve más intenções, mandei lhe darem alguns golpes de chibata (02/031841). , depois da Emancipação as desavenças deveriam ser mediadas pela lei.

A convocação perante o júri cantonal era pois consequência de um longo processo de disputa que tinha as mesmas razões que os conflitos julgados em matéria civil: propriedade das terras e cabanas, tamanho das roças, partilha do açúcar. Todavia, um outro elemento misturava-se aqui: o da verbalização da contestação da autoridade. A recusa de um tesoureiro que não conviesse a uma oficina, de práticas que evocavam a escravidão47 47 Em todos os estabelecimentos da Martinica, relata Perrinon, "pecava-se na assiduidade ao trabalho. Os dias e horas combinados não eram integralmente cumpridos pelos trabalhadores associados. A subordinação a um gerente os incomodava, assim com a submissão às chamadas: viam, nessas formalidades, reminiscências da escravidão" (Perrinon, 21 de outubro de 1848 [ANSOM, Carton 46, Dossier 464]). ou de ordens judiciais consideradas excessivas, beirava a revolta aos olhos dos proprietáros, e se exprimia em "gritos e afirmações injuriosas", em ameaças "de puxar a faca", em cenas paroxísticas em que trabalhadores parodiavam os castigos pela chibata... Era esse questionamento extremo de seu poder que os proprietários levavam à arbitragem do júri. Os atores do conflito tinham também sua importância. Duas categorias de trabalhadores se destacam. Elas reagrupavam aqueles que, tendo já feito balançar as compartimentações sociais da dependência, logravam obter acesso à palavra.

As mulheres foram chamadas a comparecer em número considerável. Constituindo entre a metade e dois terços das oficinas, formaram 35% dos indivíduos citados por proprietários com os quais mantinham relações particulares. No estabelecimento de Pierre Dessalles, chamavam-se Man, Josephine ou Bastienne, e ocupavam uma posição privilegiada nas relações de intermediação entre o grupo dos senhores/proprietários e o dos trabalhadores. Joséphine era conhecida por suas repetidas insolências, ao ponto de o senhor considerá-la louca, e Man participava das estratégias sexuais desenvolvidas por certas mulheres para encontrar uma solução pessoal para os males da escravidão (Cottias 2001). Durante algum tempo, ela viveu com o antigo tesoureiro e tirava vantagens disso publicamente48 48 "Soube que M. de Gaalon andava atrás de uma jovem negra chamada Jeannine: ele quebrou assim sua promessa, pois, ao chegar à minha casa, declarou que buscava suas amantes fora do estabelecimento" (de Frémont e Elisabeth 1984:20/4/1844). : a dependência tinha uma dimensão sexual. Em uma ordem colonial onde o estatuto civil e "racial" determinava os direitos e deveres de cada um, a utilização da sexualidade dava às mulheres a possibilidade de transgredir esta ordem, permitindo-lhes sobretudo exprimir-se com maior liberdade.

O acesso à palavra, aos insultos, às "faltas" e às ameaças era facilitado para uma segunda categoria de trabalhadores: o dos operários especializados ou os representantes dos prud'hommes do estabelecimento. A história de Césaire é, a esse respeito, instrutiva. Nascido no estabelecimento, teve sempre a confiança do senhor durante o período da escravidão, fosse no plano do trabalho, fosse como intermediário entre os senhores e as mulheres escravas, e essa posição privilegiada o conduziu à representante dos trabalhadores enquanto prud'homme do estabelecimento. Casou-se em 11 de janeiro de 1840, com mulher de boa reputação. Desde a emancipação, porém, viu-se a frente do movimento reivindicatório que o conduzirá ao júri cantonal por duas vezes. Em 9 de outubro de 1848, em particular, é ele que, após ter discutido o tamanho das roças, após ter se oposto a que as ausências dos trabalhadores fossem registradas, e após pedir a saída do tesoureiro, incentiva os trabalhadores à paralisação. É por isso condenado a uma multa de 40 francos.

Diante dos júris cantonais, pois, duas práticas e duas lógicas se defrontavam. Para os trabalhadores, tratava-se de fazer ouvir suas aspirações e portanto de reclamar a igualdade; já os senhores, dirigiam-se a essa instância para reestabelecer uma relação de força favorável e, assim, manter a dependência dos novos alforriados.

"Os trabalhadores sempre estarão errados, os proprietários sempre certos": a força do preconceito

Um ano após a criação dos júris cantonais, os relatórios dos magistrados encarregados de sua inspeção, na Martinica49 49 Nenhum arquivo similar parece ter sido conservado nem em Guadalupe nem na Guiana. (em 28 de maio de 1849) e na Guiana, insistem sobre o mal funcionamento da instituição. Sublinham que as listas eleitorais são constituídas sobre bases não rigorosas: são desatualizadas e frequentemente não trazem o patrônimo dos novos alforriados, e nem mesmo são exatas quanto à profissão dos cidadãos. Na maior parte dos burgos, não há pois senão uma única urna, reunindo as duas categorias de cidadãos chamadas a participar, às vezes aberta aos quatro ventos e suscitando fraudes. As notificações administrativas de convocação aos tribunais tampouco chegam aos interessados e, além disso, "o tribunal é arbitrariamente composto e não oferece nenhuma garantia de imparcialidade"50 50 Rapport du magistrat délégué à l'inspection des jurys cantonaux de la Martinique, 28 de maio de 1849, p. 52. . Em Trinidad, nenhuma sessão respeita as regras de paridade social, durante todo o período. Geralmente, há mais proprietários que lavradores no júri, e, comparados aos primeiros, estes últimos são mais tímidos ao tomar a palavra — em crioulo, que é traduzido para o juiz de paz pelos proprietários ou artesãos. Não havia como esquecer a desigualdade social.

As condenações marcavam, por sua vez, os limites da transformação do espaço social e a conservação de um preconceito de ordem "racial". Aos senhores, estava associada a "civilização"; aos escravos, o obscurantismo. Mesmo sendo esse atraso atribuído, pelos abolicionistas, ao sistema da escravidão, não era menos verdade, segundo eles próprios, ser necessário conter e controlar as pulsões das populações chamadas à Liberdade. Não dizia Perrinon "que a autoridade deve lhes explicar a lei e fazer com que a obedeçam, a fim de proteger a liberdade de todos; que, ao cabo de uma transformação social tão profunda como esta, ela não poderia abandonar os proprietários à sorte da ação civil que todo cidadão pode iniciar"51 51 Carta de Perrinon ao ministro da Marinha e das Colônias, Fort-de-France, 19 de agosto de 1848 (ANSOM, Carton 46, Dossier 464). ? A despeito do igualitarismo republicano, o acesso deles ao direito devia ser controlado, e a capacidade dos trabalhadores de apreciação de seu "legítimo direito" não lhes era reconhecida pelos agentes do Estado.

Em nome da propriedade e do equilíbrio, os republicanos preservaram a hierarquia social das colônias. Mais de um terço das demandas dos lavradores é rejeitado, o que não ocorre com nenhuma das demandas dos proprietários. Em matéria civil, as demandas salariais não são nunca atendidas, enquanto que, em matéria penal, todas as demandas de despejo o são. Singularmente, a conciliação é obtida uma única vez. 29% dos proprietários são condenados a multas que vão de 95 centavos a 99F05; no caso dos lavradores, elas vão de 8 francos (para uma só pessoa) a 13 mil francos (para todo uma oficin a). Como a jornada de trabalho era estimada em 1 franco para os adultos e 50 centavos para as crianças, essas penalizações eram inaplicáveis e provocavam, segundo os relatórios, o desaparecimento dos condenados nos campos da Martinica. É preciso entretanto notar que, uma vez confirmada sua posição de autoridade pelos júris cantonais, as relações entre senhores e trabalhadores continuava sob o modo anterior. Algum tempo após sua condenação, os trabalhadores de Pierre Dessalles pedem para retornar à associação, o que ele sempre aceita. No máximo, o senhor concedia-lhes um dia de descanso e esperava que os trabalhadores se arrependessem. A vida normativa retomava seu passo.

Em tal situação, apenas o sentimento de injustiça — da impossibilidade em aceder aos meios para fazer reconhecer suas expectativas — dominava, provocando acessos impotentes de raiva, como o de um lavrador que, participando do júri de Fort-de-France, exclama em plena sessão: "os trabalhadores estarão sempre errados, os proprietários sempre certos!". Devido a essa desconfiança dos novos alforriados, que foi se gestando pouco a pouco, a transformação do espaço social se fez acompanhar de lutas sem ressonância nos júris cantonais. Entre o segundo semestre de 1848 e o quarto semestre de 1850, 348 julgamentos são realizados na Martinica (para uma população de 122 mil pessoas, das quais, em 1847, 60% eram escravos). Esse número caiu até chegar a zero em 1850. 65,8% dos casos foram julgados no decorrer do primeiro ano de regime civil (ver também Adélaïde-Merlande 1973). Os administradores concluem disso que "as relações entre os proprietários dão ensejo apenas a raras contestações. Essas, quando surgem, são o mais das vezes reguladas pela intermediação oficiosa de influências salutares"52 52 Carta do Governador-Geral ao Ministro da Marinha e das Colônias, Fort-de-France, 23 de outubro de 1850. .

Os júris cantonais não lograram alterar senão furtiva e marginalmente a gramática da dependência. Esta evoluiu, do ponto de vista econômico, devido aos "desvios" — para retomar a noção de Edouard Glissant — utilizados pela população alforriada dos campos. Sob pressão de constantes contestações, os proprietários, calculando na base do mal menor, assinam contrados de meação com alguns de seus trabalhadores. Na plantação de Pierre Dessalles, Césaire é o primeiro — juntamente com La Disette, ambos comissários dos trabalhadores — a tornar-se meeiro. Por meio de um ato assinado em cartório, Césaire passa a possuir 2 hectares, que trabalha com sua esposa. Um ano depois, o número de meeiros decuplicou-se. Essa forma econômica, por mais satisfatória que fosse quanto à posse da terra, mantinha contudo, sob o ângulo inter-individual, a memória da dependência entre antigos senhores e escravos. O espaço público era finalmente reduzido às antigas relações de sujeição. Entre 1848 e 1850, assiste-se, com efeito, ao fracasso da reconversão das relações de dominação por meio do exercício da legalidade em uma instância de proximidade, gerando uma desconfiança tenaz perante a Lei e uma incredulidade permanente frente ao Direito. Com efeito, o distanciamento e mediação entre o estabelecimento e a esfera pública por agentes neutros não foi realizável no seio dos júris cantonais: as reivindicações dos novos alforriados não apenas eram rejeitadas, mas também tornadas ilegítimas pelos representantes do Estado. Os "novos alforriados" eram devolvidos à condição de "antigos escravos"53 53 Para uma discussão desses termos, ver Meillassoux 1986. ,e era contra esta vergonha que protestava a Rebelde de Aimé Césaire.

Notas

Recebido em 5 de agosto de 2003

Aceito em 26 de junho de 2004

Tradução: Marcela Coelho de Souza

  • ADÉLAÏDE-MERLANDE, Jacques. 1973. "Les jurys cantonaux de Saint-Pierre, 1848-1851". Actes du colloque de Saint-Pierre.
  • BAFFOS, Robert. 1908. La prud'homie. Son évolution Paris: Arthur Rousseau Éditeur.
  • COTTEREAU, Alain. 1992. "'Esprit public' et capacité de juger. La stabilisation d'un espace public en France aux lendemains de la Révolution". Raisons Pratiques, 3:239-73.
  • COTTIAS, Myriam. 2001. "La séduction coloniale. Damnation et stratégies. Les Antilles, XVIIe-XIXe siècle". In: C. Dauphin e A. Farge (eds.). Séduction et sociétés. Approches historiques Paris: Seuil. pp. 125-40.
  • DE FRÉMONT, Henri, ELISABETH, Léo (eds.). 1984. La vie d'un colon à la Martinique au XIXe siècle. Journal de Pierre Dessalles 1785-1856. Fort-de-France: Désormeaux.
  • DEBBASCH, Yvan. 1977. "Le rapport au travail dans les projets d'affranchissement: l'exemple français (XVIII-XIXe)". Acte du XLIIe Congrès International des Américanistes, Vol. I. pp. 203-22.
  • DEGRAS, Priska. 1995. "Noms des pères, histoire du nom : Odono pour mémoire", Etudes créoles, XVIII(2).
  • MINISTÈRE DES FINANCES, Service national des statistiques, Direction de la statistique générale, Études Démographiques. Les naturalisations en France (1870-1940) Paris: Imprimerie nationale.
  • Du HAILLY (ed.). 1863. "Les Antilles françaises en 1863. Souvenirs et tableaux". Revue des Deux Mondes, 48: 855-80.
  • ELIAS, Norbert. 1985. Société de cour Paris: Flammarion.
  • ELIAS, Norbert. 1991. La société des individus Paris: Fayard.
  • FARGE, Arlette e REVEL, Jacques. 1988. Logiques de la foule. L'affaire des enlèvements d'enfants à Paris en 1750 Paris: Hachette.
  • FRADKIN, Raoul. 1999. "Représentations de la justice dans la campagne de Buenos Aires (1800-1830)". Etudes Rurales, 149-150: 125-46.
  • GARCIA Jr, Afrânio. 1989. Libres et assujettis. Marché du travail et modes de domination au Nordeste Paris: Editions de la Maison des Sciences de l'Homme.
  • GIROLLET, Anne. 2000. Victor Schoelcher, abolitionniste et républicain. Approche juridique et politique d'un fondateur de la République Paris: Karthala.
  • JENNINGS, Lawrence C. 2000. French anti-slavery. the movement for the abolition of slavery in France, 1802-1848 Cambridge: Cambridge University Press.
  • MC GLYNN, Franck e DRESCHER, Seymour (eds.). 1992. The meaning of freedom: economics, politics and culture after slavery Pittsburg: University of Pittsburgh Press.
  • MEILLASSOUX, Claude. 1986. Anthropologie de l'esclavage. Le ventre de fer et d'argent Paris: PUF.
  • NOIRIEL, Gérard. 1993. "L'identification des citoyens. Naissance de l'Etat Civil républicain". Genèses, 13.
  • SCOTT, Rebecca. 1994. "Defining the boundaries of Freedom in the World of Cane Cuba, Brazil and Louisiana after Emancipation". The American Historical Review, 99(1):81-89.
  • SCOTT, Rebecca e ZEUSKE, Michael. 2002. "Property inwriting, property on the ground: pigs, horses and citizenship in the aftermath of slavery, Cuba, 1880-1909". Comparative Studies in Society and History, 44:669-699.
  • SIGAUD, Lygia. 1996. "Le courage, la peur et la honte. Morale et économie dans les plantations sucrières du Nordeste brésilien". Genèses, 25: 72-90.
  • TOMICH, Dale. 1995. "Contested Terrains. Houses, Provisions Grounds and the Reconstruction of Labour in Post-Emancipation Martinique". In: M. Turner (ed.), From Chattel Slaves to Wage Slaves Kingston/Bloomington: Ian Randle Publishers/Indiana University Press.
  • WEBER, Max. 1971 [1956]. Economie et société Paris: Plon. Vol. I.
  • WEIL, Patrick. 2002. Qu'est-ce qu'un Français? Histoire de la nationalité française depuis la Révolution Paris: Grasset.
  • ZONABEND, Françoise. 1980. "Le nom de personne". L'Homme, XX(4):7-23.
  • 1
    Promulgada em 23 de maio para a Martinica, em 27 de maio para Guadalupe, e em 10 de agosto para a Guiana Francesa, após o levante nas oficinas de escravos martinicanos.
  • 2
    O direito comum era aplicado ao conjunto das colônias francesas. Este artigo, entretanto, aborda mais particularmente, na análise os modos de apropriação do direito e as relações interindividuais complexas, o caso da Martinica, a propósito do qual a documentação conservada nos Archives Nationales e os testemunhos publicados são inegavelmente mais numerosos, e, na verdade, únicos, comparados aos das demais colônias da região.
  • 3
    É interessante notar que "em 28 de março de 1848, o governo provisório da República promulga um decreto autorizando temporariamente o ministro da Justiça a conceder a naturalização a todos os estrangeiros que residem na França há pelo menos cinco anos" (Weil 2002:44). Ver, igualmente, Ministère des Finances 1942.
  • 4
    A cidadania francesa compreendia, de um lado, a condição de nacionalidade, e, de outro, o exercício dos direitos de cidadania dos indivíduos. Não há pois debate sobre a nacionalidade dos antigos escravos (Girollet 2000).
  • 5
    Reciprocamente, a cidadania francesa é incompatível com a posse de escravos: "é interdito a todo francês a posse, a compra ou a venda de escravos, bem como a participação, seja direta, seja indireta, em qualquer atividade de tráfico ou exploração desse gênero. Toda infração a essas disposições acarretará a perda da qualidade de francês", precisa o decreto de abolição da escravidão. A equivalência entre liberdade, de um lado, nacionalidade e cidadania, de outro, era pois tornada imediatamente efetiva e executória (Artigo 8 do decreto relativo à abolição da escravidão e à organização da liberdade,
    Bulletin Officiel de la Martinique, 1848).
  • 6
    Os dados para a Guiana e Guadalupe, que permitiriam estabelecer um resultado comparável, parecem inexistir.
  • 7
    "De resto, seria indispensável fazer com que os funcionários do estado-civil procedessem a um registro geral da população emancipada, tomando como ponto de partida os registros-matrícula existentes, e conferindo nomes aos indivíduos e famílias como se fez até hoje no sistema de alforria parcial, de acordo com uma ordem de 29 de abril de 1836" (Circular ministerial de 7 de maio de 1848).
  • 8
    A atribuição de um nome permitia também o acesso a um estado civil outrora reservado apenas aos indivíduos livres. Se houve debates para saber se as certidões de estado civil deveriam ser entregues individualmente ou por família, aceitou-se sem maior discussão que essas certidões fossem pagas em benefício dos funcionários municipais
  • 9
    O custo de 2F50, inicialmente previsto, foi anulado.
  • 10
    Sessão do Conselho Privado, 15 de junho de 1848.
  • 11
    Gérard Noiriel (1993:14) descreve o mesmo processo entre as classes populares na Alsácia-Lorena e entre os judeus; ver também um belo texto de Priska Degras (1995:75).
  • 12
    Despacho ministerial: "Aprovação do modo seguido na Martinica para concessão de nomes patronímicos: instruções para a confecção desses documentos em tripla expedição". Paris, 29 de maio de 1858.
  • 13
    "Artigo 1: Será emitida uma certidão especial para constatar, por meio da adição de nomes patronímicos, a individualidade de cada novo cidadão, sem exceção de idade, sexo ou parentesco. [...]. Artigo 2: [...] Ao mesmo tempo que os novos cidadãos receberão os extratos a eles concernentes, ser-lhes-á concedido sem custos um exemplar do decreto de 28 de abril de 1848, referente à abolição da escravidão".
  • 14
    Archives Nationales, Section d'Outre-Mer (ANSOM), Carton 165, Dossier 1518.
  • 15
    "Ele só fala de trabalho".
  • 16
    5º decreto acompanhando o decreto de Emancipação geral.
  • 17
    O texto é completado em 20 de maio de 1854 por uma resolução do Governador da Martinica, o Conde de Gueydon.
  • 18
    Ver a discussão da concepção de associação por Louis Blanc em
    L'Atelier. Organe Spécial de la Classe Laborieuse, outubro de 1847 e, sobretudo, o contrato de associação operária publicado no mesmo volume, cujos termos afastam-se grandemente do modelo proposto por Perrinon.
  • 19
    "Eu fui em geral compreendido, as convenções foram imediatamente feitas na base de um modelo de contrato de associação que eu pudera estabelecer para disseminar na colônia [...]. Até o presente, é a associação assim regulamentada que prevalesce em todas as explorações açucareiras, e se prefere a partilha na base de um terço do bruto sobre aquela na base da metade do líquido [...]. A associação tem todas as minhas simpatias: é por esta via, fecunda em resultados generosos, que espero obter o aperfeiçoamento dos trabalhos agrícolas, o incremento dos produtos, o desenvolvimento das inteligências pela emulação. Regrada pelo modelo de contrato que adotei, a associação atende convenientemente aos dois interesses implicados; ela é em tudo preferível ao salário, cujo pagamento seria ademais impossível nas presentes condições financeiras da colônia [...]" (Carta de Perrinon ao ministro da Marinha e das Colônias, Macouba, 10 de Julho de 1848; ANSOM Carton 46, Dossier 464).
  • 20
    Artigo 14 do contrato da associação de Nouvelle Cité (de Frémont e Elisabeth, 1984:341).
  • 21
    Artigo 2 do contrato da associação de Nouvelle Cité (de Frémont e Elisabeth, 1984:340).
  • 22
    Balanço das viagens de Perrinon... (Tomich 1995).
  • 23
    Sobre essas questões, ver, entre outros, o importante trabalho de Sigaud (1996), que mostra como as relações de interdependência conservaram-se nas configurações do séc. XX.
  • 24
    Ou ainda: "todo lavrador que não tenha chegado a um acordo com o proprietário, deve abandonar a propriedade quando lhe for assim indicado" (
    Le Commercial, 1º de julho de 1848).
  • 25
    "Duas negras, às quais Louis Littée ordenara retirarem-se do estabelecimento, vieram me procurar e choraram tanto que fiz a besteira de atendê-las" (de Frémont e Elisabeth 1984:25/7/1848).
  • 26
    "Os oito trabalhadores que eu despejaria hoje vieram reconhecer seus erros e pedir para fazer parte da Associação; eu perdoei tudo" (de Frémont e Elisabeth 1984:29/7/1848).
  • 27
    "O negro, habituado a dispor de sua cabana e sua roça, via estes quase como sua propriedade. Graças a esses hábitos, as oficinas não debandavam, os negros permaneciam em seus estabelecimentos" (
    L'Atelier, 313).
  • 28
    "Fiz uma observação essencial, a saber, a de que os novos cidadãos apegam-se quase sempre ao lugar onde nasceram, e de que, por causa desse sentimento, emigrações e mudanças de profissão são casos excepcionais. Existiam geralmente nos trabalhadores pretensões muito fortes à posse das cabanas e das roças. Persuadidos de seu direito de propriedade, recusavam-se a abandonar os lugares a que estavam habituados, e acreditavam poder continuar usufruindo deles sem ser obrigados a estabelecer um arranjo com o verdadeiro proprietário. Esses amores pela cabana e pelo solo de costume cria aqui um contraste singular com o que ocorre nas colônias inglesas, quando da emancipação. Ao contrário dos lavradores ingleses, os nossos não estão nada dispostos a desertar do campo e afluir às cidades; em geral, resistem a deixar o estabelecimento onde estavam precedentemente empregados" (Perrinon, 10 de julho de 1848, ANSOM, Carton 46, Dossier 464).
  • 29
    Curiosamente, a reflexão abolicionista tinha já deixado entrever possíveis correções ao direito positivo, pela via da noção de "reparação" devida a título de retratação pela escravidão, nas palavras de Arago. Em nome da humanidade e da moral, a propriedade fora questionada, notadamente por Victor Schoelcher em 1834, Bissette "pela reparação da violência física e moral que ele exercera contra ele"; não se tratava mais de uma indenização "repartida igualmente entre colonos desapossados de seus escravos e os próprios escravos", segundo a proposição de Victor Schoelcher (subsecretário de Estado e presidente da Commission d'abolition de l'esclavage) em 1848 (ver Girollet 2000:270-271).
    Sobre a lei de 1846: em 22 de agosto de 1846, o relator do projeto de decreto concernente aos terrenos a serem concedidos aos escravos faz a leitura de seu relatório:
    Artigo 1º: A obrigação imposta aos senhores de colocar à disposição de seus escravos terras apropriadas à lavoura entrará em vigor a partir da promulgação do presente decreto, conforme às disposições seguintes.
    Artigo 2: Estão excluídos do direito à distribuição de terras apenas os escravos que constam nos censos como domésticos, empregados nas aldeias e burgos, ou alocados à navegação ou atividades não-agrícolas.
    Artigo 3: O terreno cujo usufruto será concedido ao escravo deverá ser apropriado para a agricultura e possuir uma extensão de, no mínimo,
    • nos estabelecimentos açucareiros, 6 ares
    • nos estabelecimentos cafeicultoras e dedicadas à cultura de gêneros alimentícios, 4 ares
    • nos estabelecimentos dedicados à produção de víveres, 3 ares
    Todo escravo, maior de 14 anos, terá direito a esta extensão de terreno, sem que o senhor possa deduzir dela o que terá dado a outros escravos que sejam parte da mesma família; essa quantidade deve ser aumentada em um quinto para cada criança com mais de quatro anos.
  • 30
    A expressão serviu de título a um livro sobre essas questões (McGlynn e Drescher 1992).
  • 31
    O que foi obtido na metrópole apenas em 1848 (Baffos 1908).
  • 32
    Em Guadalupe, o procurador-geral propõe, em 10 de agosto de 1848, "estender a competência do júri cantonal em matéria penal, confiando-lhe, de um lado, a repressão da vadiagem [...]; de outro, todas as contravenções possíveis, até as penalidades máximas [...]. A outra modificação proposta pelo mesmo magistrado consistia em substituir, como punição nos casos de condenação por vadiagem e perturbação da ordem ou do trabalho, a multa pela condenação ao ateliê disciplinar" (Commission coloniale, "Première note sur les jurys cantonaux", janeiro de 1849.
  • 33
    Os júris cantonais tratavam, com efeito, de acordos feitos oralmente assim como daqueles estabelecidos por escrito. Para uma análise precisa dessa questão, ver os trabalhos de Scott (1994) e, especialmente, Scott e Zeuske (2002).
  • 34
    "[...] quanto à quota dos penhores, quanto ao pagamento dos salários do ano transcorrido, e quanto aos adiantamentos para o ano corrente". Este artigo foi revogado na metrópole pela lei de 2 de agosto de 1868.
  • 35
    Na ilha da Reunião, não foram instituídos júris cantonais e, na sessão de 17 de outubro de 1848, o procurador-geral exprime o lamento de que o artigo 1781 do Código Civil tenha sido suprimido, pois "essa supressão pareceu-lhe injusta para os colonos" (Commission Coloniale, "Deuxième note sur les jurys cantonaux", novembro de 1849).
  • 36
    Ver a ordem de
    MM. Les général et intendant, sobre a resolução da assembléia geral concernente ao estabelecimento das municipalidades, de 19 de dezembro de 1789; a carta de S.E. o Governador interino da Martinica, a um comissário civil de paróquia sobre os assuntos religiosos, de 22 de agosto de 1811; e a lei sobre o regime legislativo das colônias, de 24 de abril de 1833.
  • 37
    Sobre questões similares no contexto argentino, ver Fradkin 1999.
  • 38
    Em Saint-Esprit, no Marin e nas Anses d'Arlets, foram os proprietários os autores das ações (
    Rapport du magistrat délégué à l'inspection des jurys cantonaux de la Martinique, 28 de maio de 1849).
  • 39
    Um pequeno número de conflitos pessoais é, em Trinidad, levado a julgamento. Eliza, lavradora em Saint-Marie, reclama a usurpação de sua cabana pelo Compadre Taillis, também lavrador. Um grupo de lavradores se queixa de Placide, Laguerre e outros por não cumprirem as cláusulas do contrato e os acionam por perdas e danos.
  • 40
    "Minha viagem do dia 18 forneceu-me a prova do prestígio de que goza o salário aos olhos do trabalhador; com essa modalidade, nenhuma incerteza, nenhuma discussão, nenhuma má-vontade; o objetivo é concreto, basta algumas horas para alcançá-lo, a boa vontade de todos os dias é estimulada por esta potente isca. Uma preferência extremamente marcada existe por esta modalidade em face da associação, cujos resultados são mais distantes, menos determinados, menos concretos para a imaginação e, ainda que mais vantajosos, suscitam menos confiança aos novos alforriados" (Carta de Perrinon ao ministro da Marinha e das Colônias, Fort-de-France, 19 de agosto de 1848; ANSOM, Carton 46, Dossier 464).
  • 41
    "O direito de propriedade sobre os frutos e colheitas pendentes nos ramos e raízes adquiridos dos alforriados em virtude do artigo 2º. ('os proprietários não poderão privar os alforriados dos frutos e colheitas') do decreto de 27 de abril sobre a repressão da vadiagem e da mendicância deve ser limitado aos frutos que tiverem brotado antes do Ato de Emancipação, e não deve ser perpetuado e estendido às novas plantações. As razões dessa decisão derivam do caráter puramente transitório da disposição pré-citada, e das consequências funestas que acarretaria para a agricultura e a livre disposição das terras, a permissão concedida aos trabalhadores de retornar indefinidamente aos estabelecimentos que teriam deixado ou dos quais teriam sido expelidos para colher ou cultivar os produtos de suas antigas roças" ("Première note sur les jurys cantonaux", 31 de janeiro de 1849. Ver também Adélaïde-Merlande 1973).
  • 42
    Caso julgado em 19 de maio de 1849.
  • 43
    O ateliê não comparece ao trabalho apenas dois dias após o julgamento e, a despeito disso, o proprietário lhes pagou "a jornada que lhes era devida"...
  • 44
    Rapport du magistrat délégué à l'inspection des jurys cantonaux de la Martinique, 28 de maio de 1849, p. 83.
  • 45
    Viagem do comissário às comunas do norte, 25 de julho de 1848.
  • 46
    Do diário de P. Dessalles (de Frémont e Elisabeth 1984): "Avinet deu uma de insolente e rebelde esta manhã; fiz com que lhe aplicassem a chibata" (29/11/1839); "Josephine deu uma de insolente; queria deixar o trabalho mais cedo. Mandei prendê-la nas três estacas" (15/03/1840). "Césaire foi insolente e entreteve más intenções, mandei lhe darem alguns golpes de chibata (02/031841).
  • 47
    Em todos os estabelecimentos da Martinica, relata Perrinon, "pecava-se na assiduidade ao trabalho. Os dias e horas combinados não eram integralmente cumpridos pelos trabalhadores associados. A subordinação a um gerente os incomodava, assim com a submissão às chamadas: viam, nessas formalidades, reminiscências da escravidão" (Perrinon, 21 de outubro de 1848 [ANSOM, Carton 46, Dossier 464]).
  • 48
    "Soube que M. de Gaalon andava atrás de uma jovem negra chamada Jeannine: ele quebrou assim sua promessa, pois, ao chegar à minha casa, declarou que buscava suas amantes fora do estabelecimento" (de Frémont e Elisabeth 1984:20/4/1844).
  • 49
    Nenhum arquivo similar parece ter sido conservado nem em Guadalupe nem na Guiana.
  • 50
    Rapport du magistrat délégué à l'inspection des jurys cantonaux de la Martinique, 28 de maio de 1849, p. 52.
  • 51
    Carta de Perrinon ao ministro da Marinha e das Colônias, Fort-de-France, 19 de agosto de 1848 (ANSOM, Carton 46, Dossier 464).
  • 52
    Carta do Governador-Geral ao Ministro da Marinha e das Colônias, Fort-de-France, 23 de outubro de 1850.
  • 53
    Para uma discussão desses termos, ver Meillassoux 1986.
  • *
    A mãe: — Eu sonhara com um filho para fechar os olhos da mãe. /A rebelde: — Eu escolhi abrir sob um outro sol os olhos de meu filho. [N.T.]
  • **
    François-Auguste Perrinon (1812-1861), nasceu em Saint-Pierre da Martinica, em uma família mulata, e partiu jovem para a França onde fez seus estudos na Escola Politécnica. Militar e favorável ao abolicionismo, retorna à Martinica em 1837 e 1842; em 1848, faz parte da "Commission Schoelcher" (encarregada de elaborar modalidades de abolição da escravidão). Torna-se Comissário Geral da Martinica (de julho a novembro de 1848), e depois deputado de Guadalupe na Assembléia Legislativa (1849 e 1850). Com a mudança de regime, retira-se para St. Martin, onde se dedica à exploração de suas salinas, ali falecendo em 1861 [N.T].
  • ** *
    Magistrado eleito para um tribunal especializado, dito Conseil de Prud'hommes, para decidir sobre litígios derivados do contrato de trabalho [N.T.]
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Out 2004

    Histórico

    • Recebido
      05 Ago 2003
    • Aceito
      26 Jun 2004
    Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: revistamanappgas@gmail.com