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A integridade olímpica: disputas sobre virilidade, elegibilidade esportiva e proteção social na Rio 2016

Integridad olímpica: disputas sobre virilidad, elegibilidad deportiva y protección social en Río 2016

Olympic integrity: disputes over virility, eligibility, and social protection in the Rio 2016 Olympics

Resumo

Seguindo uma cena do atletismo nos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, iremos esmiuçar relações institucionais, científicas e morais que permeiam a regulação esportiva da elegibilidade feminina no alto rendimento, observando com atenção as imbricações multissituadas da categoria integridade. Nesse contexto analisado, o corpo sexuado aparece como lugar privilegiado de inscrição social, especialmente o corpo feminino que apresenta alguma variação de intersexualidade. Acompanharemos parte dessa experiência esportiva, que envolveu a vitória da sul-africana Caster Semenya nos 800 metros feminino, para refletir sobre um modo particular e efetivo de gestão dos corpos e das populações na vida contemporânea. Utilizando cada vez mais recursos técnicos e saberes hormonais, sem abandonar memórias e estratégias de um passado colonial, as entidades esportivas atuais legitimam ou debilitam atletas para proteger a categoria feminina. Com isso, tecem os próprios limites que esses corpos - sexuados e atléticos - conseguem pertencer ao movimento olímpico, materializar virilidade e visibilizar masculinidade feminina.

Palavras-chave:
Integridade; Intersexualidade; Regulação esportiva; Virilidade; Masculinidade feminina

Resumen

Siguiendo una escena del atletismo en los Juegos Olímpicos de 2016, en Río de Janeiro, escudriñaremos relaciones institucionales, científicas y morales que permean la regulación deportiva de la elegibilidad femenina en alto rendimiento, acompañando las imbricaciones multisituadas de la categoría integridad. En este contexto analizado, el cuerpo sexuado aparece como un lugar privilegiado de inscripción social, especialmente el cuerpo femenino que presenta alguna variante de intersexualidad. Seguiremos parte de esta experiencia deportiva, que supuso la victoria de la sudafricana Caster Semenya en los 800 metros femeninos, con el objetivo de comprender un modo particular y eficaz de gestión de los cuerpos y las poblaciones en la vida contemporánea. Utilizando cada vez más recursos técnicos y conocimientos hormonales, sin abandonar memorias y estrategias de un pasado colonial, las entidades deportivas legitiman o debilitan a las atletas para proteger la categoría femenina. Con ello, trazan los propios limites que estos cuerpos - sexuados y atléticos - logran para pertenecer al movimiento olímpico, materializar virilidad y visibilizar la masculinidad femenina.

Palabras clave:
Integridad; Intersexualidad; Regulación deportiva; Virilidad; Masculinidad femenina

Abstract

Taking as our point of analysis the Olympic Games in Rio de Janeiro in 2016, we will scrutinize the institutional, scientific and moral relations that permeated the regulation of female eligibility in elite sports, looking closely at integrity as a multi-situated, imbricated category. In the context under analysis, the sexed body appears as a privileged place of social inscription, with the female body that presents some variation of intersexuality being seen as especially problematic. We follow part of the Olympic sporting experience involving the victory of Caster Semenya (South Africa) in the women’s 800 meter race. We seek to reflect upon a particular and effective mode of management of bodies and populations in contemporary life. With the increasing use of technical resources and hormonal knowledge -- and without abandoning the memories and strategies of a colonial past -- sport entities legitimate or exclude athletes participation in the name of protecting women’s sports. Ultimately, they weave the limits that these sexed and athletic bodies must stay within in order to belong to the Olympic movement, materializing virility and making female masculinity visible.

Keywords:
Integrity; Intersexuality; Sports regulation; Virility; Female masculinity

Introdução

Sete anos separam a primeira vitória da sul-africana Caster Semenya em uma competição de alto nível internacional de sua medalha de ouro durante os Jogos Olímpicos, em 2016, no Rio de Janeiro. Foram sete anos excruciantes, de coberturas midiáticas às regulações institucionais, que podem ser transmutados na cena da final dos 800 metros da categoria feminina. Era um sábado à noite, no fim de agosto, quando a prova aconteceu no Estádio Olímpico Nilton Santos. A última modalidade da noite, uma das mais esperadas no atletismo, foi precedida pela premiação do pódio dos 100 m masculino, em que Usain Bolt abocanhava o ouro olímpico pela terceira vez consecutiva. As oito atletas finalistas participaram dias antes de provas eliminatórias e semifinais, algumas competindo em outras categorias, antes da prova derradeira. Estavam há pelo menos quinze dias imersas no mundo competitivo, desde a abertura da Rio 2016. 1 1 Este artigo é uma versão resumida, mas adensada do primeiro capítulo da minha tese de doutorado (Pires 2020b). Ele só chegou na versão atual pelos comentários indispensáveis estabelecidos em conversas diversas nesses últimos três anos. Primeiramente, no ST03 “Dispositivos socioquímicos no capitalismo tecnocientífico: substâncias, corpos e agenciamentos (im)possíveis” da VIII REACT de 2021, coordenado por Cíntia Engel, Rosana Castro e Rogério Azize. Depois, no grupo de orientação da minha supervisora de pós-doutorado, professora Jane Russo (IMS/UERJ), com leituras cuidadosas de Marina Nucci e Fernanda Loureiro. Além disso, tive um retorno individual e dedicado de Lux Lima e Nathalia Gonçales. Agradeço imensamente a oportunidade de conversar, me inspirar e refletir academicamente com cada um de vocês.

Nesse contexto Sebastian Coe, 2 2 Coe é ex-atleta britânico, medalhista olímpico, com recorde mundial estabelecido nos 800 metros e 1500 metros. Ele também detém inúmeras condecorações, alcançando o posto de “Barão” através de um par vitalício em 2000, além de uma Ordem Olímpica pela realização dos Jogos Olímpicos de Londres em 2012. presidente desde 2015 da World Athletics (antiga Associação Internacional de Federações de Atletismo, em inglês IAAF), retoma um assunto espinhoso. Comenta com a imprensa após uma reunião do conselho da entidade durante os Jogos: “Nós estamos surpresos com a decisão da CAS, e acho que o Comitê Olímpico Internacional (COI) também, mas vamos olhar novamente para esse assunto e levá-lo à CAS em algum momento do ano que vem” ( The Guardian 11 de agosto de 2016THE GUARDIAN. 11 de agosto de 2016. “Sebastian Coe indicates IAAF will challenge female testosterone ruling”. Disponível em:Disponível em: https://www.theguardian.com/sport/2016/aug/11/caster-semenya-sebastian-coe-iaaf-cas-testosterone-olympics . Acesso em 07/10/2022.
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). A surpresa ocorreu com a suspensão da resolução de “hiperandrogenismo”, em 2015, pela Corte Arbitral do Esporte, na Suíça ( CAS 2015CAS. 24 de julho de 2015. “CAS 2014/A/3759 Dutee Chand v. Athletics Federation of India (AFI) & The International Association of Athletics Federations (IAAF) - INTERIM ARBITRAL AWARD”. Disponível em: https://encurtador.com.br/msyUY Acesso em 07/10/2022.
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). O tribunal internacional interrompeu a política que possibilitou que Caster Semenya, entre outras atletas com variações intersexuais, 3 3 A intersexualidade é um termo guarda-chuva que condensa um conjunto de variações biológicas que não se enquadram nas definições binárias típicas do que significa ter um corpo masculino ou feminino. Tais variações aparecem na composição genética e/ou cromossômica, expressando-se em alterações nas taxas hormonais, na funcionalidade do aparelho reprodutor, na aparência da genitália, além de mudanças nas características sexuais secundárias, como tamanho das mamas, quantidade e distribuição de pelos, gordura corporal, proporcionalidade da forma corporal, timbre da voz, capacidade de oxigenação, entre outros marcadores. São variações que, na maior parte dos casos, não acarretam um risco de vida, mas são usualmente medicalizadas e corrigidas. Para saber mais sobre a gestão da intersexualidade em contextos biomédicos, ver OHCHR ( 2019) e Vieira et al. ( 2021). pudesse competir livre de restrições clínicas e administrativas durante os Jogos de 2016.

A resolução de hiperandrogenismo citada compõe uma extensa lista de regulações esportivas que buscam proteger, ao longo do tempo, a elegibilidade feminina com a finalidade de garantir uma equidade competitiva, o que chamam no mundo esportivo de “level playing field”, isto é, “jogar no mesmo patamar”. Ao longo da história do esporte internacional, muitas versões de investigação, testagem e controle do corpo feminino foram implementadas para atingir este objetivo ( Pires 2021aPIRES, Barbara Gomes. 2021a. “Pânicos de gênero, tecnologias de corpo: regulações da feminilidade no esporte”. Revista Estudos Feministas, v. 29 (2):e79320.). Grosseiramente, essas políticas institucionais se fundamentam ora em expectativas sexuais, ora em pânicos generificados ( Rubin 2017RUBIN, Gayle. 2017. Políticas do Sexo. São Paulo: UBU.), compartilhados em outros cenários do campo social, onde a implementação da justiça ou da proteção influi com a validação normativa dos modelos de corpo, desejo e reconhecimento social. 4 4 Uso a qualificação do “corpo sexuado” pensando nas possibilidades de encarnação da humanidade dentro de uma sistematização de incomensurabilidade dos sexos ( Laqueur 2001), especialmente no sentido proposto por Judith Butler em Problemas de Gênero ( 2008) e Corpos que Importam ( 2019), ou seja, como linguagens e tecnicalidades fundamentam os modos de significação e, consequentemente, as materialidades do corpo físico, em uma matriz normativa que inscreve de maneira performativa as formas hegemônicas de masculinidade e feminilidade.

Com a estrondosa aparição de Semenya em nível internacional, quando conquista o ouro nos 800 metros do Campeonato Mundial de Atletismo de 2009, com a melhor marca do ano, a atleta, na época com 18 anos de idade, foi submetida a um árduo processo de “verificação de gênero”, a caracterização do período para os antigos testes sexuais. O ambiente midiático que cobria o evento, instigado por sua capacidade atlética e aparência física andrógena, escrevia, por exemplo, que Caster “possui uma estrutura muscular excepcionalmente desenvolvida e uma voz profunda, com tempos cronometrados que enganam sua juventude” ( Kessel 2009KESSEL, Anna. 19 de agosto de 2009. “Gold medal athlete Caster Semenya told to prove she is a woman”. Disponível em: https://www.theguardian.com/sport/2009/aug/19/caster-semenya-gender-verification-test . Acesso em 07/10/2022.
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). A atleta não apareceu na coletiva de imprensa depois da prova. Seu tempo de 1:55.45 foi considerado a melhor marca do ano, mas não estava nem entre os dez melhores tempos de uma temporada desde que a modalidade foi permitida para as mulheres, em 1976. Ainda assim, ninguém esperou para comparar e avaliar os resultados antes de acusá-la de não ser “100 por cento mulher” ( Doyle 2013DOYLE, Jennifer. 2013. “Dirt off her shoulders”. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, 19 (4):419-433.).

Em outros registros de comunicação, vazaram informações privadas e sigilosas sobre sua vida, corpo e saúde. 5 5 Uma análise cuidadosa dessa cobertura midiática no início da investigação de Caster Semenya, refletindo sobre a controvérsia do “controle da feminilidade no esporte” com os discursos generificados e as preocupações de antidopagem, foi descrita primeiramente por Silveira e Vaz ( 2014). Apenas no jornal britânico The Guardian, durante o segundo semestre de 2009, encontramos sessenta e sete matérias publicadas sobre a atleta. O mote da cobertura midiática era de que Caster teria “o triplo de testosterona que o normal” para a categoria feminina ( BBC 2009BBC. 25 de agosto de 2009. “Semenya tem o triplo de testosterona que o normal, indicam testes”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2009/08/090825_semenya_testoterona_cq . Acesso em 07/10/2022.
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). Outros jornais passaram a explicar para os leitores o que significava ser “hermafrodita” ( Jamieson 2009JAMIESON, Alastair. 20 de agosto de 2009. “Caster Semenya gender row: what is a hermaphrodite?”. Disponível em: https://www.telegraph.co.uk/news/health/news/6060027/caster-semenya-gender-row-what-is-a-hermaphrodite.html?form=zznr6 . Acesso em 07/10/2022.
https://www.telegraph.co.uk/news/health/...
). Sem saber qual o diagnóstico exato que os testes sexuais atribuíram à Semenya, os meios de comunicação especularam sobre a aparência de sua genitália e a capacidade dos seus funcionamentos reprodutivos. Enquanto os gestores da World Athletics vetavam a atleta das competições por onze meses, os gestores do atletismo sul-africano afirmavam que “se não deixássemos ela correr, estaríamos confirmando para nós mesmos que a garota não é normal” ( Chaudhry 2009CHAUDHRY, Serena. 19 de setembro de 2009. “South Africa athletics chief says lied about Semenya tests”. Disponível em: https://www.reuters.com/article/idinindia-42572920090919 . Acesso em 07/10/2022.
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).

No geral, a mídia, junto com parte dos gestores esportivos da época, registrava com afinco as marcas corporais e as vantagens esportivas que se fundamentam em signos de uma verdade sexuada ( Foucault 1980FOUCAULT, Michel. 1980. Herculine Barbin: Being the Recently Discovered Memoirs of a Nineteenth-Century French Hermaphrodite. New York: Pantheon Books.). Para os sujeitos em questão, era uma inscrição corporal e esportiva que só poderia ser masculina. Desde então, inúmeras análises foram feitas com o objetivo de resolver a controvérsia de Caster na elegibilidade feminina. Sua performance esportiva foi avaliada em minúcias, sua identidade de gênero foi questionada por muitos, mas principalmente seu corpo foi escrutinado publicamente e investigado com as técnicas mais invasivas e os discursos mais humilhantes. 6 6 O emaranhado regulatório no mundo esportivo marca mais alguns do que outros com seus valores e racionalidades baseadas em exclusão normativa. A investigação e a espetacularização dessas regulações que envolvem maneiras humilhantes de lidar com a codificação biológica passam pela gramática do risco. Eu me inspiro nas discussões de María Elvira Díaz-Benítez sobre o gênero da humilhação, um ato e um sentimento que se desdobram em e se constituem “por meio de outros múltiplos atos e emoções” ( 2019:53). Aqui a humilhação se encontra em um enquadramento cultural marcado por estratégias de risco, crise e segurança para a manutenção do sistema de sexo/gênero que compõe o mundo esportivo. Semenya se tornou um “problema” dentro e fora do mundo esportivo.

Com a repercussão da história de Semenya, as entidades regulatórias se mobilizaram para controlar mais detidamente outros casos de atletas com variações de intersexualidade, atualizando suas políticas para elegibilidade da categoria feminina em 2011, 2018 e 2019 com a World Athletics, mas também em 2012COI. 2012. “Regulations on Female Hyperandrogenism, London”. Disponível em: https://stillmed.olympic.org/documents/commissions_pdffiles/medical_commission/2012-06-22-ioc-regulations-on-female-hyperandrogenism-eng.pdf . Acesso em 15/12/2022.
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e 2015COI. 2015. “Consensus Meeting on Sex Reassignment and Hyperandrogenism”. Disponível em: https://stillmed.olympic.org/documents/commissions_pdffiles/medical_commission/2015-11_ioc_consensus_meeting_on_sex_reassignment_and_hyperandrogenism-en.pdf . Acesso em 15/12/2022.
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com o Comitê Olímpico Internacional (COI), entre outras federações esportivas. 7 7 O escopo documental deste artigo se restringe ao momento de pesquisa e escrita da tese, defendida em fevereiro de 2020, de modo que toda a atualização regulatória estabelecida pelas entidades esportivas desde então não foi sistematizada nem acrescida ao material analisado. Nesse contexto regulatório, o enquadramento científico, médico e social importa. As ciências que informam tais regulações estão circunscritas ao processo mais dilatado de suposição, compreensão e tradução da realidade. Na época da primeira regulação pós-Semenya, o documento de elegibilidade indicava que existiam “alguns casos raros de jovens atletas” afetadas por “hiperandrogenismo” que competiam em provas no atletismo e, se não fossem diagnosticadas ou fossem negligenciadas em seus atendimentos, aprofundariam um “risco de saúde” ( World Athletics 2011WORLD ATHLETICS. 2011. “Regulations Governing Eligibility of Females with Hyperandrogenism to Compete in Women’s Competition”. Disponível em: https://encurtador.com.br/eqILZ Acesso em 15/12/2022.
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:1).

Quando determinavam tais “condições”, as entidades descreviam que essas atletas poderiam exibir “traços masculinos” e teriam uma “capacidade atlética incomum em relação às competidoras” ( World Athletics 2011WORLD ATHLETICS. 2011. “Regulations Governing Eligibility of Females with Hyperandrogenism to Compete in Women’s Competition”. Disponível em: https://encurtador.com.br/eqILZ Acesso em 15/12/2022.
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:1). Para cientistas e gestores esportivos, esta constatação é um raciocínio lógico. Como homens e mulheres experimentam níveis diferenciados de hormônios androgênicos ao longo da vida, com “maior desenvolvimento muscular” e “aumento de força” no caso masculino, a fim de reconhecer e proteger essas diferenças sexuais específicas de aptidão e performance, seria necessário respeitar a “essência” das classificações sexuais de forma binária (:1-2).

Nesse esquema de desenvolvimento do corpo e de classificação do sexo, pessoas com variações de intersexualidade só podem estar em um ponto do dimorfismo sexual, sendo reconhecidas como homens ou mulheres para fins esportivos ( Fausto-Sterling 2020FAUSTO-STERLING, Anne. 2020. Sexing the Body: Gender Politics and the Construction of Sexuality. Updated Edition. New York: Basic Books.). Atualmente, o marcador biológico que materializa mais fielmente essa distinção binária é o hormônio esteroidal “testosterona”. Dentro dos estudos da ciência e tecnologia, o hormônio sintetiza uma longa trajetória de medicalização da vida social pautada no conhecimento endócrino ( Rohden 2008ROHDEN, Fabíola. 2008. “O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos”. História, Ciências, Saúde, v. 15:133-152.). Ao longo do século XX, o “sonho da testosterona” ( Hoberman 2005HOBERMAN, John. 2005. Testosterone Dreams: Rejuvenation, Aphrodisia, Doping. Berkeley: University of California Press.) aglutina desejos e comportamentos, especialmente quando atrelados a uma expectativa de superioridade, poder e controle. No esporte, confunde-se com o uso medicamentoso de substâncias andrógenas e anabolizantes, culminando em uma gestão da pureza esportiva segundo a suspeição do corpo atlético em um controle minucioso da dopagem.

Tal cenário, nas últimas décadas, marca uma intensificação e padronização dos métodos de inspeção e regulação da licitude dos corpos atléticos ( Heggie 2017HEGGIE, Vanessa. 2017. “Subjective Sex: science, medicine and sex tests in sports”. In: Eric Anderson & Ann Travers (eds.), Transgender Athletes in Competitive Sport. New York: Routledge .; Pieper 2016PIEPER, Lindsay. 2016. Sex Testing: Gender Policing in Women’s Sports. Urbana: University of Illinois Press.; Silveira 2013SILVEIRA, Viviane Teixeira. 2013. Tecnologias e a mulher atleta: novas possibilidades de corpos e sexualidades no esporte contemporâneo. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.; Karkazis et al. 2012KARKAZIS, Katrina et al. 2012. “Out of Bounds: A Critique of the New Policies on Hyperandrogenism in Elite”. The American Journal of Bioethics, n. 12 (7):3-16.; Devide & Votre 2005DEVIDE, Fabiano Pries & VOTRE, Sebastião Josué. 2005. “Doping e mulheres nos esportes”. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 27, n. 1:123-138.). Em relação aos protocolos voltados para a categoria feminina, as entidades também definiram taxas rígidas de normalidade hormonal. Esse acúmulo de técnicas e saberes hormonais no esporte entrecruza aspectos variados de uma produção regulatória e científica internacional. As entidades passam então a financiar pesquisas para determinar as médias de testosterona livre e total no plasma sanguíneo em suas modalidades, tentando destrinchar diferenças de performance esportiva entre homens e mulheres, ao mesmo tempo em que acionam esses mesmos especialistas e pesquisadores em suas defesas institucionais na Corte Arbitral do Esporte.

Em suma, a circulação desses conhecimentos científicos transmite uma tecnicalidade que importa para a validade das regulações esportivas. Nos documentos analisados, fala-se de garantir a confidencialidade, o anonimato e o consentimento das atletas investigadas. Tudo seria feito com dignidade. As entidades esportivas não queriam retomar as inspeções sexuais que macularam a década de 1960 ( Pieper 2016PIEPER, Lindsay. 2016. Sex Testing: Gender Policing in Women’s Sports. Urbana: University of Illinois Press.; Henne 2014HENNE, Kathryn. 2014. “The Emergence of Moral Technopreneurialism in Sport: Techniques in Anti-Doping Regulation, 1966-1976”. The International Journal of the History of Sport, 31(8):884-901.), a identidade de gênero de uma atleta não seria questionada, o trabalho de investigação deveria ser feito para proteger a “justiça” na categoria feminina ( World Athletics 2011WORLD ATHLETICS. 2011. “Regulations Governing Eligibility of Females with Hyperandrogenism to Compete in Women’s Competition”. Disponível em: https://encurtador.com.br/eqILZ Acesso em 15/12/2022.
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:2). Contudo, historicamente, essa unidade a ser protegida foi representada por mulheres cujas marcas da virilidade, da heterossexualidade e da capacidade atlética não desestruturavam a masculinidade como o lugar de excelência e essência esportiva. Nas entranhas morais da justificativa institucional para os testes sexuais, caso a categoria feminina não fosse tutelada e inspecionada, caso as atletas com variações de intersexualidade não passassem por correções corporais para evitar “fraudes” e “riscos de saúde”, nenhuma mulher de verdade teria a oportunidade de competir com justiça e render atleticamente.

Os atributos hormonais

O percurso regulatório da elegibilidade feminina transita entre técnicas, saberes e moralidades. Há uma mobilização de estratégias antigas, pautadas na mensuração de funcionalidades reprodutivas e sexuais e na qualificação de habilidades generificadas, que se firma com a regulação de corpos considerados à margem do grupo social ou da unidade imaginada a ser protegida. Como essa relação pode ser mais bem ilustrada no esporte? Voltemos para 2016 com a cena olímpica. Naquele contexto, a ansiedade em controlar a performance e o corpo de Caster seguia por muitos anos. Parte significativa da cobertura midiática enfatizava que ela quebraria os recordes mundial e olímpico da prova que persistiam à época por mais de quarenta anos.

Ao afirmar tal suposição, os jornalistas esportivos lembravam que o primeiro recorde foi obtido pela tcheca Jarmila Kratochvílová em 1983, com tempo de 1:53.28, sendo o recorde mundial mais antigo no atletismo, enquanto o segundo, o recorde olímpico, foi estabelecido pela soviética Nadezhda Olizarenko em 1980 com tempo de 1:53.43. Então, quando Caster arranca nos 200 metros finais da prova, as falas dos jornalistas, as convicções dos gestores e as expectativas dos telespectadores se traduzem em uma certeza compartilhada de que ela desmantelaria todos os recordes anteriores. Era uma sensação de que o poder da testosterona endógena, naturalmente aumentada no corpo de uma atleta com variação intersexual, destronaria o poder da testosterona exógena, versão sintética presente em anabolizantes variados comumente usados durante a Guerra Fria. Mas não foi o que aconteceu. Semenya venceu, com fôlego, mas com tempo de 1:55.28. 8 8 É possível ver a cobertura esportiva descrita neste link: http://sportv.globo.com/olimpiadas/videos/v/caster-semenya-e-ouro-nos-800m-rasos-feminino-da-rio-2016/5250405/

A narração que progride na cobertura do SportTV, canal pago de TV por assinatura ligado ao Grupo Globo, retoma palavras que compõem esse imaginário de predominância masculina no esporte através de uma vantagem hormonal. “Ela está inteira”, diziam. Apontavam que Caster vinha de oito vitórias consecutivas na temporada - “ela não sabe o que é perder”. A ideia de “liderança”, de que Semenya estava “tranquila”, podendo “ter feito até um pouco mais forte” ou “batido um recorde”, se entrelaça com outras frases sobre a necessidade de Caster “suspender remédios que controlavam a produção de testosterona de forma natural diferentemente da Kratochvílová em 1983 e Olizarenko em 1980, que usavam testosterona sintética de primeiríssima geração, aquela quase vinda das cavernas, utilizada por algumas soviéticas”. Ora, a compreensão de ritmo, acelerar, ganhar vantagem, assumir a ponta e a facilidade com que a performance atlética se desenvolve - eles diziam, “pareceu um treino” - estavam intimamente ligadas a esse fundo essencializante de masculinidade, marcado pela potência, a intenção e a virilidade - do que vem “das cavernas” em tempos primórdios - e assim dita as concepções e os limites do que se torna esportivamente viável para atletas mulheres.

Esses signos de masculinidade hegemônica que convergem em filtros sociais de distinção sexuada ( Connell & Messerschmidt 2013CONNELL, Raewyn & MESSERSCHMIDT, James. 2013. “Masculinidade Hegemônica: repensando o conceito”. Estudos Feministas, v. 21, n. 1:241-282.; Bourdieu 2007BOURDIEU, Pierre. 2007. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk.), maneiras de segmentar o corpo e a performance de uma atleta com variação intersexual, informam a todo momento a busca de estabilidade desse emaranhado regulatório que trabalha com a constante classificação e hierarquização do dimorfismo sexual que sustenta o mundo esportivo. Para a institucionalidade atlética, a “competição justa e significativa” no esporte ( World Athletics 2018WORLD ATHLETICS. 2018. “Eligibility Regulations for the Female Classification [Athletes with Differences of Sex Development]”. Disponível em: https://encurtador.com.br/huv17 Acesso em 15/12/2022.
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, 2019WORLD ATHLETICS. 2019. “Eligibility Regulations for the Female Classification [Athletes with Differences of Sex Development]”. Disponível em: https://encurtador.com.br/fgoIR Acesso em 15/12/2022.
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) somente ocorre quando a “integridade da categoria feminina” ( CAS 2019CAS. 1 de maio de 2019. “Media Release - CAS ARBITRATION: Caster Semenya, Athletics South Africa (ASA) and International Association of Athletics Federations (IAAF) Decision”. Disponível em: https://www.tas-cas.org/fileadmin/user_upload/media_release_semenya_asa_iaaf_decision.pdf . Acesso em 07/10/2022.
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), baseada na distinção de sexo e gênero, continua a operar sem ruídos. O horizonte esportivo se fez tradicionalmente binário, de tal forma que não tolera as ambiguidades que são materializadas pelos corpos “dissonantes” ( Camargo 2016CAMARGO, Wagner Xavier. 2016. “Dilemas insurgentes no esporte: as práticas esportivas dissonantes”. Movimento, v. 22, n. 4:1337-1350.; Goellner 2016GOELLNER, Silvana. 2016. “Jogos Olímpicos: a generificação de corpos performantes”. Revista USP, n. 108:29-38.). A performance de Caster na Rio 2016, mesmo sem a quebra de recordes, antecipa essa expectativa generificada que está incorporada nas classificações e nos controles esportivos.

A dificuldade ética de cobrir ou analisar a história regulatória de Caster Semenya se concentra nesse apagamento sistemático das vinculações sociais e morais, que modulam as expectativas generificadas, com as discussões de tecnicalidades e cientificismos que traduziriam sem mediações ou interesses o conhecimento hormonal em justiça esportiva. Precisamos, na verdade, contextualizar ( Haraway 1995HARAWAY, Donna. 1995. “Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, n. 5:7-41.). Recuperar que o debate da elegibilidade e da justiça esportiva na categoria feminina sempre esteve atravessado pelo que chamo de desejo de integridade. Em outras palavras, lembrar que as regulações esportivas que se utilizam das codificações biológicas e tecnicalidades científicas estão estruturadas em unidades morais e institucionais que associam historicamente a capacidade atlética à virilidade.

Desta forma, a feminilidade está frequentemente apequenada no contexto do desempenho esportivo. Seus atributos corporais e sociais são diminuídos em face do desejo do anabolismo, da força muscular, que se vincula ao poder da síntese androgênica. Como resume Lucas Tramontano (2017TRAMONTANO, Lucas. 2017. Testosterona: as múltiplas faces de uma molécula. Tese de Doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.) em outro contexto de consumo hormonal, a testosterona age como uma metonímia dos androgênios. Todas as possibilidades virilizantes e anabólicas são reduzidas simplesmente à testosterona, aglutinando a ação de outros hormônios esteroidais com sua potência simbólica, ao mesmo tempo em que também reafirma a masculinização da molécula. Por isso, na cena descrita da vitória de Semenya, a musculatura, a voz, a roupa, a vitória, a facilidade do desempenho esportivo, todos esses signos aparecem como materializações da força da testosterona e corroboram discursos tanto oficiais quanto populares, a substância como um hormônio unicamente masculino que garante a superioridade atlética da sul-africana na categoria feminina.

Na continuidade da cena descrita, Semenya comemora a vitória com sua tradicional celebração de “cobra” e mantém o fair play esportivo ao cumprimentar suas adversárias. Primeiro, abraça fortemente a segunda colocada, Francine Niyonsaba, do Burundi. Acena ao público, dança e aperta a mão de Kate Grace, última colocada, representante dos Estados Unidos. Quando o frame da câmera retorna de Niyonsaba para Semenya, ela está andando até duas competidoras abraçadas, que não se movem com sua chegada ( Figura 1), então dá um aperto com as mãos nos braços de cada uma e continua até cumprimentar a atleta Maryna Arzamasava, da Bielorrússia, que está exaurida no chão do Estádio, acalmando sua respiração aos poucos. Mais além, comemora com o público. A câmera abre o enquadramento e também filma Margaret Wambui, do Quênia, terceira colocada da prova. Um pouco depois, as três atletas com pódio correm pelo Estádio Olímpico enroladas nas bandeiras de seus países e interagem mais uma vez com o público presente no evento. 9 9 Enquanto acompanhava a disputa atlética direto do Estádio Olímpico Nilton Santos, uma matéria em particular foi significativa para me conectar com o impacto dessa cena narrada após a prova, o artigo de opinião “The ignorance aimed at Caster Semenya flies in the face of the Olympic spirit”, escrito por Katrina Karkazis, em 23 de agosto de 2016, para o jornal The Guardian.

Figura 1.
Final dos 800 m feminino na Rio 2016.

Corpo, performance e integridade em tramas coloniais

Em entrevista após a prova, a britânica Lynsey Sharp, que abraça a canadense Melissa Bishop na foto, destaca alguns aspectos que intensificam esse emaranhado regulatório para além de concepções, especulações e definições em torno do sexo, dos marcadores biológicos (como a testosterona) e do gênero. Podemos dizer que a composição da integridade debatida até agora no mundo esportivo, especialmente a disputa pela elegibilidade na categoria feminina, navega em históricos imperiais e tramas coloniais. Marcadores como raça e nacionalidade aparecem com robustez nesse processo de regulação biopolítica ( Foucault 2011FOUCAULT, Michel. 2011. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Edições Graal.) do corpo sexuado no esporte.

A britânica, chorando durante a entrevista, declara que Caster estava “anos luz à frente” das outras competidoras ( Blair 2016BLAIR, Olivia. 22 de agosto de 2016. “Rio 2016: Team GB athlete Lynsey Sharp defends her Caster Semenya comments”. Disponível em: https://www.independent.co.uk/news/people/rio-2016-caster-semenya-team-gb-athlete-lynsey-sharp-comments-olympics-hyperandrogenism-a7203386.html . Acesso em 14/10/2022.
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). Sua insatisfação foi, em parte, amparada por dúvidas instigadas pela World Athletics, na figura de seu presidente, que reafirmava durante os Jogos: “é preciso lembrar que são seres humanos [as atletas com variações de intersexualidade], é um assunto sensível, são atletas, filhas, irmãs, precisamos ser muito claros sobre isso. Trataremos com sensibilidade. Vamos voltar à CAS, temos as pessoas certas tratando disso” ( The Guardian, 11 de agosto de 2016THE GUARDIAN. 11 de agosto de 2016. “Sebastian Coe indicates IAAF will challenge female testosterone ruling”. Disponível em:Disponível em: https://www.theguardian.com/sport/2016/aug/11/caster-semenya-sebastian-coe-iaaf-cas-testosterone-olympics . Acesso em 07/10/2022.
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, inserção minha). Então, quando Sharp reclama que todos perceberam como a prova tinha sido emotiva, porque as atletas sem pódio sabiam como as outras se sentiam, ela apenas ratificou seu pertencimento à instituição de atletismo internacional, em detrimento das atletas africanas com variações intersexuais.

Continua a dizer para a imprensa que a situação “está fora de nosso controle, mas confiamos nas pessoas que estão no topo para resolver o problema” ( The Guardian 21 de agosto de 2016THE GUARDIAN. “Tearful Lynsey Sharp says rule change makes racing Caster Semenya difficult”. 21 de agosto de 2016. Disponível em: https://www.theguardian.com/sport/2016/aug/21/lynsey-sharp-caster-semenya-rio-2016-olympics . Acesso em 07/10/2022.
https://www.theguardian.com/sport/2016/a...
). Além disso, afirma, “o público também podia ver como é difícil com a mudança de regra, mas tudo o que podemos fazer é dar o nosso melhor” ( The Guardian, 21 de agosto de 2016THE GUARDIAN. “Tearful Lynsey Sharp says rule change makes racing Caster Semenya difficult”. 21 de agosto de 2016. Disponível em: https://www.theguardian.com/sport/2016/aug/21/lynsey-sharp-caster-semenya-rio-2016-olympics . Acesso em 07/10/2022.
https://www.theguardian.com/sport/2016/a...
). Essa aglutinação do espectador atento com o sofrimento das atletas, em solo olímpico, e a instituição da modalidade reforçando a necessidade de modificar as regras de elegibilidade para garantir a justiça na categoria feminina conectam valores e passados que estão além da regulação do sexo, do gênero ou da feminilidade no esporte.

De certo modo, estas são as categorias mais operantes na regulação, já que elas justificam as tecnicalidades e os cientificismos que marcam o corpo sexuado, mas estão a todo momento se relacionando com outras categorias relevantes para a manutenção de qualquer regime classificatório na vida contemporânea. A polonesa Joanna Jóźwik, quinta colocada na prova, também diz em entrevista após a prova que se sente “como uma medalhista de prata” ( Critchley 2016CRITCHLEY, Mark. 22 de agosto de 2016. “Rio 2016: Fifth-placed Joanna Jozwik 'feels like silver medallist' after 800m defeat to Caster Semenya”. Disponível em: https://www.independent.co.uk/sport/olympics/rio-2016-joanna-jozwik-caster-semenya-800m-hyperandrogenism-a7203731.html . Acesso em 14/10/2022.
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). A corredora enfatiza que se sente orgulhosa de ser “a primeira europeia na competição e a segunda branca” ( Critchley 2016CRITCHLEY, Mark. 22 de agosto de 2016. “Rio 2016: Fifth-placed Joanna Jozwik 'feels like silver medallist' after 800m defeat to Caster Semenya”. Disponível em: https://www.independent.co.uk/sport/olympics/rio-2016-joanna-jozwik-caster-semenya-800m-hyperandrogenism-a7203731.html . Acesso em 14/10/2022.
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). Ainda explica que estava triste por Melissa Bishop, a quarta colocada na prova, porque a atleta tinha melhorado seu tempo de prova e “deveria ser a medalhista de ouro” ( Critchley 2016CRITCHLEY, Mark. 22 de agosto de 2016. “Rio 2016: Fifth-placed Joanna Jozwik 'feels like silver medallist' after 800m defeat to Caster Semenya”. Disponível em: https://www.independent.co.uk/sport/olympics/rio-2016-joanna-jozwik-caster-semenya-800m-hyperandrogenism-a7203731.html . Acesso em 14/10/2022.
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).

O corte racial não é inócuo, ao contrário, este comentário encarna a constituição regulatória da elegibilidade feminina no esporte. Na entrevista, a atleta mantém o raciocínio de fomentar uma narrativa de injustiça através de distinções hierárquicas ao pontuar que “as três atletas que estão no pódio geram muita controvérsia” ( Critchley 2016CRITCHLEY, Mark. 22 de agosto de 2016. “Rio 2016: Fifth-placed Joanna Jozwik 'feels like silver medallist' after 800m defeat to Caster Semenya”. Disponível em: https://www.independent.co.uk/sport/olympics/rio-2016-joanna-jozwik-caster-semenya-800m-hyperandrogenism-a7203731.html . Acesso em 14/10/2022.
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). As três atletas que ganharam a prova eram africanas, mulheres pretas com uma expressão de gênero fora do padrão de uma feminilidade hegemônica, isto é, branca, delicada e heterossexual ( Carrera 2020CARRERA, Fernanda. 2020. “A raça e o gênero da estética e dos afetos: algoritmização do racismo e do sexismo em bancos contemporâneos de imagens digitais”. Matrizes, 14 (2):217-240.; Butler 2019BUTLER, Judith. 2019. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: n-1 edições.; Gonzalez 1984GONZALEZ, Lélia. 1984. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje, 2:223-244.), representando países sem tanta liderança na governança internacional do atletismo. 10 10 O Comitê Executivo atual da World Athletics possui oito representantes: o presidente Sebastian Coe (Reino Unido), o vice-presidente sênior Serguei Bubka (Ucrânia), os vice-presidentes Mohammed bin Nawwaf Al Saud (Arábia Saudita), Geoff Gardner (Ilha Norfolk) e Ximena Restrepo (Colômbia), além dos membros Hasan Arat (Turquia), Abby Hoffman (Canadá) e Sunil Sabharwal (Estados Unidos e Hungria). Disponível em: https://worldathletics.org/about-iaaf/structure/executive-board. Acesso em 14/10/2022. Para a polonesa, “é um pouco estranho que as autoridades não façam nada a respeito disso”, já que as “colegas têm um nível de testosterona muito alto, semelhante ao de um homem, e é por isso que elas se parecem e correm desse jeito” ( Critchley 2016CRITCHLEY, Mark. 22 de agosto de 2016. “Rio 2016: Fifth-placed Joanna Jozwik 'feels like silver medallist' after 800m defeat to Caster Semenya”. Disponível em: https://www.independent.co.uk/sport/olympics/rio-2016-joanna-jozwik-caster-semenya-800m-hyperandrogenism-a7203731.html . Acesso em 14/10/2022.
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).

Essa espetacularização imperialista no seio de um evento global desnuda a continuidade de políticas coloniais e raciais antigas. Em conjunto com modelos de normalidade sobre sexo, gênero e sexualidade, os dispositivos raciais ainda subjazem a toda e qualquer construção contemporânea em que a identidade, a soberania e o reconhecimento estão em disputa. No que tange à constituição do corpo africano, existem referências que resgatam o conflito racial em discursos nacionais, notadamente em situações (pós-)coloniais ( Mbembe 2018MBEMBE, Achille. 2018. A Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições.; Oyěwùmí 2021OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. 2021. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.). Anne McClintock, em Couro Imperial ( 2010MCCLINTOCK, Anne. 2010. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Editora da Unicamp.), também investiga como esses conflitos raciais e discursos nacionais seguem repetidamente o mesmo padrão ao circunscreverem e qualificarem marginalidade a alguém - tornando-a mais ou menos perigosa - na medida em que distingue, segrega, invisibiliza, violenta, para depois reintegrar com um novo status (:49). No caso do corpo feminino em tessitura, através de uma obsessão vitoriana com a domesticidade e o progresso da mercadoria ou através de uma obsessão contemporânea com a justiça e a integridade meritocrática, esses parâmetros valorativos policiam e reordenam os limites do que será legítimo (e legível) em cada época.

Outros pesquisadores em estudos sul-africanos, como Brenna Munro (2010MUNRO, Brenna. 2010. “Caster Semenya: Gods and Monsters”. Safundi, v. 11 (4).) e Neville Hoad (2010HOAD, Neville. 2010. “‘Run, Caster Semenya, Run!’: Nativism and the Translations of Gender Variance”. Safundi, v. 11 (4).), apontam que a história da África do Sul foi marcada em nível internacional por escândalos, apropriações e violências, citando especialmente a vida de Sara Baartman. Estes trabalhos nos auxiliam a reconhecer, para além da recente memória do período de apartheid, que a construção histórica da ideia de nação sul-africana costurou-se ao longo do tempo com narrativas sobre corpo, sexualidade, exploração, miscigenação e estigma. Neste registro conflituoso, Sara “Saartjie” Baartman, conhecida no contexto colonial como “Hottentot Venus” ou “Vênus Negra”, acabou expropriada. Nascida no final do século XVIII na antiga Colônia do Cabo Holandesa, hoje inserida na província do Cabo Oriental, na África do Sul, de linhagem Khoi, Baartman foi levada para o Reino Unido em 1810 para ser exibida em atrações de freak show.

A imaginação colonial da época, enraizada em concepções raciais cujo “excesso” era exposto para o exercício da curiosidade e do controle social, esparrama-se nas situações humilhantes de exibição pública do corpo de Baartman ( Qureshi 2011QURESHI, Sadiah. 2011. Peoples on Parade: Exhibitions, Empire, and Anthropology in Nineteenth-Century Britain. Chicago: University of Chicago Press.). Mesmo com a aprovação do “Ato contra o Comércio de Escravos” pelo Parlamento britânico em 1807, Sara continuava sendo exibida, vendida, deslocada por diversas partes da Europa e mantida em condições de escravidão. Sua história termina em 1815, na França, apenas cinco anos depois de chegar ao Reino Unido, com seu corpo sendo dissecado e examinado por diversos cientistas a fim de corroborar teorias evolucionistas vigentes na época, entre eles o famoso naturalista e zoologista Georges Cuvier.

Muito do que foi narrado sobre a vida de Sara Baartman se conecta com a extrapolação de eventos, documentos e descrições - principalmente visuais - de perspectivas racistas acerca da civilidade de certos humanos, construções científicas e sociais que dominaram fortemente tanto o século XVIII quanto o século XIX ( Burton 2013BURTON, Antoinette. 2013. “Western encounters with sex and bodies in non-European cultures, 1500-1750”. In: Kate Fisher & Sarah Toulalan (eds.), The Routledge History of Sex and the Body: 1500 to the Present. New York: Routledge. p. 511-525.; Bowler 2009BOWLER, Peter J. 2009. “Biology and Human Nature”. In: Peter J. Bowler & John V. Pickstone (orgs.), The Cambridge History of Science. Volume 6: The Modern Biological and Earth Sciences. Cambridge: Cambridge University Press. p. 563-582.). Seus restos mortais ficaram expostos, ao longo de cento e cinquenta anos, no Muséum d’Angers e posteriormente no Musée de l’Homme, na França. A negociação estabelecida pela África do Sul para a retomada de seu corpo e de sua memória é um capítulo à parte dentro de uma profunda discussão colonial. Seu corpo negro africano - considerado excessivo em suas partes corporais e feminilidades “selvagens” - foi a antítese construída e reforçada do corpo branco europeu - preservado como o modelo a ser perseguido a partir de uma feminilidade civilizada, graciosa e doméstica ( Mahomed & Dhai 2019MAHOMED, S. & DHAI, A. 2019. “Global injustice in sport: The Caster Semenya ordeal - prejudice, discrimination and racial bias”. South African Medical Journal, v. 109, n. 8.; Fausto-Sterling 2000FAUSTO-STERLING, Anne. 2000. “Gender, Race, and Nation: The Comparative Anatomy of ‘Hottentot’ Women in Europe, 1815-1817”. In: Londa Schiebinger (ed.), Feminism and the Body. Oxford: Oxford University Press.).

Essas associações nacionalistas e imperiais que envolvem o questionamento da biologia e da identidade sexual de Semenya evocam uma memória de violências coloniais e traumas raciais coletivos, como o sequestro e manejo espúrio de Baartman no século XIX, cortando fundo a história de construção de nação e cidadania da África do Sul ( Munro 2010MUNRO, Brenna. 2010. “Caster Semenya: Gods and Monsters”. Safundi, v. 11 (4).). Em ambos os casos, especialistas de várias disciplinas, empresários/gestores e o público em geral conseguiram transformar o excesso presumido de seus corpos em imperfeição, isto é, as partes e as funcionalidades corporais tanto de Baartman como de Semenya foram registradas, comparadas e reconhecidas publicamente com suspeição e inferioridade diante do modelo de sexo, raça e sexualidade que caracteriza as normas culturais de cada época.

Articulando um pouco mais a cena, mas em outra variação, segundo bell hooks (2015hooks, bell. 2015. Black Looks: Race and Representation. New York: Routledge .), o olhar [ gaze] também pode manifestar criticamente a materialização das experiências de desigualdade em torno da representação racial. Ao ecoar a exibição pública de Sara, Caster também foi escrutinada visualmente com o auxílio das técnicas médicas mais recentes e dos protocolos científicos mais hormonais, seu corpo foi esmiuçado em suas diferenças biológicas consideradas excessivamente masculinas e viris para ser apreendido na chave atlética da feminilidade. Esta chave, por sua vez, nunca foi materializada sem outros eixos de significação, como a raça, a nacionalidade ou a sexualidade.

Ainda assim, hooks sugere que o olhar também funciona como uma “contramemória” (:116), abrindo espaço para o conhecimento e a interrogação do presente ao mesmo tempo em que se inventa um futuro. Nesta interpretação, o olhar também seria um lugar de resistência. Então, quando Caster olha com cuidado após a prova, cumprimenta as atletas garantindo o fair play, expressa palavras de apoio ou acolhe o silêncio quando se faz necessário, ela cultiva uma “conscientização” sobre essa desigualdade da memória e da representação racial de tal forma que politiza as relações desse olhar, aprendendo “a olhar de uma certa maneira para resistir”, bem no meio de uma cena olímpica na qual a violência contra seu corpo e sua identidade se perpetuava ao longo do tempo (:116).

Ao acionar a raça e a nacionalidade como uma acusação de injustiça, a polonesa Joanna Jóźwik torce mais um nó nesse emaranhado regulatório e, certamente, civilizatório que tece boa parte da construção discursiva da pessoa moderna. Essa acusação contemporânea reverbera histórias de violências coloniais como a de Sara Baartman. Em outra entrevista durante a Rio 2016, as atletas africanas com pódio, Semenya, Niyonsaba e Wambui, são questionadas pela imprensa se a federação de atletismo solicitou que todas suprimissem seus níveis naturais de testosterona e, em caso positivo, quais seriam os efeitos desses tratamentos. Elas conversam entre si e Wambui responde: “Vamos nos concentrar na performance coletiva de hoje, não vamos debater nenhuma medicação” ( Bull 2016BULL, Andy. 21 de agosto de 2016. “Caster Semenya wins Olympic gold but faces more scrutiny as IAAF presses case”. Disponível em: https://www.theguardian.com/sport/2016/aug/21/caster-semenya-wins-gold-but-faces-scrutiny . Acesso em 14/10/2022.
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). Logo em seguida, Semenya faz coro - “desculpe, amigo, hoje é só sobre a performance, não estamos aqui para falar sobre a IAAF [atual World Athletics], não estamos aqui para falar sobre especulação, hoje será só sobre a performance” - mas eventualmente esquece sua usual discrição com o assunto e dispara durante a coletiva de imprensa:

Eu acho que é sobre amar uns aos outros. É sobre não discriminar as pessoas. Não é sobre notar como as pessoas são, suas aparências, como elas falam, como elas correm, não se trata de ser musculosa. É tudo sobre o esporte. Quando você sai do seu apartamento e pensa sobre como quer se apresentar, você não pensa em como sua adversária se parece. Então eu acho que o meu conselho para todos é apenas “vá lá e se divirta” ( Bull 2016BULL, Andy. 21 de agosto de 2016. “Caster Semenya wins Olympic gold but faces more scrutiny as IAAF presses case”. Disponível em: https://www.theguardian.com/sport/2016/aug/21/caster-semenya-wins-gold-but-faces-scrutiny . Acesso em 14/10/2022.
https://www.theguardian.com/sport/2016/a...
).

O apelo de Semenya à diversão não discriminatória carrega uma marca moral - do esporte como espaço de afeto e distinção não hierárquica - que existe no próprio ideal olímpico ( COI 2021COI. 2021. “Olympic Charter”. Disponível em: https://stillmed.olympics.com/media/document%20library/olympicorg/general/en-olympic-charter.pdf . Acesso em 02/02/2023.
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; Guttmann 1992GUTTMANN, Allen. 1992. The Olympics: A History of the Modern Games. Urbana: University of Illinois Press.). Torna-se explícito o conflito da representação esportiva e da proteção social quando os valores mais positivos do esporte são trazidos à tona em um momento de escrutínio institucional e constrangimento público. Os efeitos das interações conflituosas dessas falas, ações e imagens são evidentes. Mas vale situar essa cena olímpica em uma escala de sedimentação da diferença mais abrangente, já que o esporte aparece como lugar estratégico de subjetivação e controle social ( Elias & Dunning 1986ELIAS, Norbert & DUNNING, Eric. 1986. Quest for Excitement: Sport and Leisure in the Civilizing Process. Oxford: Basil Blackwell.). Em outras palavras, em um cenário de distinção e regulação dos corpos, tensões e afetos, o esporte aparece como vetor de análise privilegiada, pois facilitaria o funcionamento do “saber social incorporado”, o que Norbert Elias ( 1990ELIAS, Norbert. 1990. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.) e posteriormente Pierre Bourdieu chamaram de habitus (1983BOURDIEU, Pierre. 1983. “O Campo Científico”. In: Renato Ortiz (org.), Pierre Bourdieu. São Paulo: Editora Ática. p. 122-155.).

O desejo de integridade no esporte

A chave interpretativa dos estudos esportivos nas ciências sociais se concentra na maneira com que os afetos, os corpos e as subjetividades são modulados em uma realidade moderna em que há ordenamento e disciplinarização dos padrões, sensibilidades e condutas ( Bourdieu 2003BOURDIEU, Pierre. 2003. “Como se pode ser desportista?”. In: Pierre Bourdieu, Questões de Sociologia. Lisboa: Fim de Século Edições. p. 181-204.). Significa dizer que não há esporte sem uma consequente mobilização, classificação e discriminação do social enquanto entorno constitutivo. Podemos enfatizar também que a institucionalização do esporte não opera somente com as técnicas corporais ( Mauss 2003MAUSS, Marcel. 2003. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac e Naify.) conformando o que se aprende e se ensina de atos, hábitos e representações baseados em tradições próprias, antes disso, há uma gestão do corpo que se desenvolve segundo processos alargados de sujeição e regulação com fins de normalização social. Assim, o tal “processo civilizador” de incorporação social se exprime desde o controle social a partir de uma regulação variada de costumes, técnicas e gostos, até o autocontrole através de uma crescente racionalização e psicologização das condutas individuais.

Contudo, alguns sujeitos, condutas e corpos mobilizam mais regulação normativa do que outros. Essa especificidade de controle populacional se expressa com a noção de “governamentalidade” presente nas publicações de Michel Foucault. Cada regime de poder, dentro do registro da biopolítica, articula e regula o corpo, a saúde e a normalidade de maneira distinta ( Foucault 2011FOUCAULT, Michel. 2011. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Edições Graal., 2008aFOUCAULT, Michel. 2008a. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.). Neste rastro, aparecem corpos que não sabem se cuidar, que ameaçam, que sofrem, que destoam do ordenamento social desejado e, portanto, precisam de tutela ou de pedagogização. Segundo esse funcionamento social, há todo um emaranhado de práticas e saberes em que tanto a segurança quanto a administração racionalizam cada vez mais os modos de governo dessas populações ( Foucault 2008bFOUCAULT, Michel. 2008b. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes .).

Assim, o esporte enquanto vetor privilegiado de ordenamento social espraia sua funcionalidade e seu valor para além da prática esportiva. Entendendo esta racionalidade, notamos a incorporação do que deve ser tolerado, de uma regulação minuciosa de afetos, impulsos e comportamentos em roupagens de lazer, em que a interdependência e a diferenciação seriam dois projetos comuns em uma realidade de controle do bem-estar e da violência. Por isso, em um regime de distinção operando através da visibilidade e da invisibilidade de corpos, condutas e sensibilidades, a performance se torna um marcador imprescindível de estratificação e distribuição de “cultura” - pensada como um campo de produção de inteligibilidade, segundo normas, moralidades e regulações específicas, em determinado tempo e local.

Precisamente por isso, na gestão da performance esportiva constituída pela generificação e racialização dos corpos atléticos, as instituições esportivas precisam invisibilizar, ou em alguns casos corrigir, o aspecto nodal que ameaça o interior dessa representação olímpica: a virilidade exacerbada em corpos femininos. 11 11 Outro artigo pioneiro na discussão nacional articulando a temática dos testes de feminilidade estabelecidos pelas entidades esportivas na medida em que se preocupam e desejam controlar os efeitos da testosterona (sintética, no caso) em corpos de mulheres foi desenvolvido por Lessa e Votre ( 2013). É uma relação conflituosa. Especialmente porque, quando pensamos em mulheres e homens, costumamos relacionar com naturalidade a presença de gônadas com funcionalidades sexuais e reprodutivas que conformam tipos específicos de sujeitos, ou seja, os ovários representando a geração e a maternidade a partir do grupo “mulheres”, ou os testículos representando a potência e a virilidade a partir do grupo “homens”. Ainda assim, sabemos que esse encadeamento grosseiro de corpos biológicos, funcionalidades sexuais e reprodutivas, capacidades generificadas e identidades não é uniforme.

As possibilidades de variações biológicas são factuais, como se expressam nas condições de intersexualidade, mais além, sabemos que mulheres e homens (e pessoas não binárias) se desenvolvem social, corporal e psicologicamente sem se restringirem às suas capacidades reprodutivas ( McKinnon 2021MCKINNON, Susan. 2021. Genética neoliberal: Uma crítica antropológica da psicologia evolucionista. São Paulo: Ubu Editora.; Fausto-Sterling 2020FAUSTO-STERLING, Anne. 2020. Sexing the Body: Gender Politics and the Construction of Sexuality. Updated Edition. New York: Basic Books.; Butler 2008BUTLER, Judith. 2008. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Logo, o grande dilema está em como (des)vinculamos o significado de determinados atributos sociais de identidades supostamente estáveis e, mais profundamente, de pedaços de funcionalidades biológicas. Já que a testosterona existe em todos os corpos, com diferenças em taxas de normalidade que são atribuídas, definidas e modificadas ao longo do tempo segundo critérios clínicos e sociais, por que só reconhecemos os efeitos orgânicos e simbólicos da virilidade em corpos masculinos?

O “sonho da testosterona”, como John Hoberman caracteriza em seu livro (2005HOBERMAN, John. 2005. Testosterone Dreams: Rejuvenation, Aphrodisia, Doping. Berkeley: University of California Press.), consiste em fantasias de rejuvenescimento hormonal, intensidade sexual, performance sobre-humana, readequação de gênero, entre outros propósitos, desde que a substância foi sintetizada em 1935. A partir do momento que foi difundida enquanto terapia hormonal para várias “deficiências”, seus consumos e usos paralelos deslocaram a ideia da normalização e do cuidado para um aprimoramento mais intenso dessas qualidades masculinas supostamente latentes que eram então desgastadas pelo envelhecimento, pela guerra, pelo cansaço da produtividade, pela readequação moral das práticas sexuais ou pelos ajustes corporais com a determinação de uma identidade de gênero. Nesta transição hormonal, impulsionada por avanços informacionais, técnicos e científicos do século XX, a busca por um corpo viril representa um ideal da masculinidade moderna ( Preciado 2018PRECIADO, Paul. 2018. Testo Yonqui. São Paulo: n-1 edições .; Tramontano 2017TRAMONTANO, Lucas. 2017. Testosterona: as múltiplas faces de uma molécula. Tese de Doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.; Oudshoorn 1994OUDSHOORN, Nelly. 1994. Beyond the Natural Body: an archaeology of sex hormones. London: Routledge.).

A testosterona aglutina a capacidade biológica de desenvolver uma musculatura vigorosa, forte e atlética que aprofunda, por sua vez, a capilarização moderna desse antigo arquétipo masculino ( Mosse 1996MOSSE, George. 1996. The Image of Man: the creation of modern masculinity. New York: Oxford University Press.). Quando há algum tipo de impedimento fisiológico, suplementa-se a substância, que se torna cada vez mais uma reposição medicamentosa fundamental para modelar capacidades androgênicas e cuidar de qualidades masculinas supostamente inatas do corpo orgânico, como a própria musculatura. Nesta lógica, os hormônios e seus medicamentos amplificaram uma conformação corporal biológica e culturalmente determinada. Contudo, os diagnósticos, as reposições e seus usos off-label não são estanques nem consensuados ( Jordan-Young & Karkazis 2019JORDAN-YOUNG, Rebecca & KARKAZIS, Katrina. 2019. Testosterone: an unauthorized biography. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.; Tramontano & Russo 2015TRAMONTANO, Lucas & RUSSO, Jane. 2015. “O diagnóstico de Deficiência Androgênica do Envelhecimento Masculino e os (des)caminhos do desejo sexual masculino”. Mediações - Revista de Ciências Sociais, v. 20, n. 1.).

Isto significa dizer que a testosterona não desvela, amplia ou recupera características do corpo masculino que estavam enfraquecidas, envelhecidas ou adoecidas. Ela é um hormônio que está presente em qualquer corpo. Sendo um hormônio esteroidal, possui funções androgênicas, mas não somente, já que as substâncias esteroides também atuam com a regulação do metabolismo lipídico, a homeostase, a imunidade, o auxílio do fluxo sanguíneo arterial, o desenvolvimento ósseo e muscular, a inibição ou incitação de neurotransmissores, entre outras funções ( Kleine & Rossmanith 2016KLEINE, Bernhard & ROSSMANITH, Winfried G. 2016. Hormones and the Endocrine System: Textbook of Endocrinology. Cham, Suíça: Springer International Publishing.). Indo mais a fundo, sabemos que a testosterona não é sequer a molécula com maior ação andrógena, mas o DHT, seu metabólito mais ativo ( Nieschlag; Behre & Nieschlag 2012NIESCHLAG, Eberhard; BEHRE, Hermann & NIESCHLAG, Susan (eds.). 2012. Testosterone: Action, Deficiency, Substitution (4th ed.). Cambridge/New York: Cambridge University Press.). Contudo, nessa habitual redução científica e popular do funcionamento hormonal, outros hormônios com acionamentos anabólicos, como somatotropina (GH), são esquecidos pela generificação da testosterona. O que sobra é a contínua vinculação do simbolismo de virilidade da substância com uma materialidade específica.

Essa relação aprofunda a concepção de “masculinidade hegemônica”, descrita por Raewyn Connell e James Messerschmidt (2013CONNELL, Raewyn & MESSERSCHMIDT, James. 2013. “Masculinidade Hegemônica: repensando o conceito”. Estudos Feministas, v. 21, n. 1:241-282.), isto é, uma masculinidade que existe a partir das ambivalências e tensões com outras formas de masculinidade, consideradas menos hegemônicas ou subordinadas, além de outras formas de feminilidade, consideradas menos legítimas ou até desacreditadas. Essa relacionalidade entre os sistemas de produção de gênero que qualificam e diferenciam as pessoas pode até não corresponder “verdadeiramente à vida de nenhum homem real”, mas nos ajuda a expressar modelos “e em vários sentidos, ideais, fantasias e desejos muito difundidos” (:253). Por isso, a testosterona é significativa para nossa reflexão sobre saberes hormonais, regulações esportivas e definições de elegibilidade feminina.

A substância reforça a imaginação e o desejo em torno da virilidade. Mantém a vinculação de corpos masculinos, funcionalidades biológicas e atributos sociais. De modo geral, a construção de qualquer corpo sexuado passa por disputas que lembram essas definições de “hegemonia” na masculinidade mais ou menos legítima, acionando saberes do biológico, políticas de desejo e regimes de governo. Jack J. Halberstam também contribui para nossa análise com seu livro Female Masculinity (1998HALBERSTAM, Jack J. 1998. Female Masculinity. Durham: Duke University Press.), reforçando que a masculinidade hegemônica pode ser produzida tanto por corpos masculinos quanto por corpos femininos. Em outras palavras, para o autor, os corpos sexuados que produzem masculinidade (mesmo em sua versão hegemônica) não são necessariamente de “homens”.

O ponto crucial dessas leituras é justamente a ligação persistente entre a virilidade e o corpo sexuado masculino. À medida que apagamos a ação diversificada da testosterona em corpos femininos, trans, não binários e intersexo, reforçamos a vinculação de atributos sociais (a virilização como força, velocidade e potência) com capacidades biológicas (a possibilidade da musculosidade) que mantêm o status político da masculinidade como o único detentor da excelência atlética. Por isso, não se trata de uma mudança apenas no debate sobre a “naturalização” do corpo sexuado em seus processos discursivos, mas de permitir que outros corpos existam materialmente ao ocuparem aspectos biológicos e culturais da masculinidade e/ou feminilidade.

Neste sentido, a manutenção de tais hierarquias generificadas, que aparece como uma racionalidade estruturante do mundo esportivo, seria fruto desses posicionamentos morais que contaminam ao mesmo tempo que constituem as regulações do sexo/gênero em corporalidades “essencialmente” distintas. Precisamos considerar, portanto, como reconhecer que a virilidade existe em outras encarnações corporais que não são estruturadas pela masculinidade hegemônica? Ou melhor, como visibilizar a virilidade em um corpo marcado pela masculinidade feminina ( Halberstam 1998HALBERSTAM, Jack J. 1998. Female Masculinity. Durham: Duke University Press.)?

Seguindo o raciocínio, o campo discursivo do esporte, através de suas racionalidades e instituições, se constrói de maneira que não é possível refletir sobre performance atlética sem falar da performatividade de gênero ( Butler 2008BUTLER, Judith. 2008. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). As afetações, as imagens e as palavras que compõem a cena dos 800 metros da categoria feminina na Rio 2016 existem em uma sujeição imaginada e fomentada pela composição valorativa e desigual do dimorfismo sexual. Como desenvolveu detidamente Judith Butler em Corpos que importam ( 2019BUTLER, Judith. 2019. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: n-1 edições.), há todo o enquadramento cultural de inteligibilidade que se constitui ao circunscrever o que vive fora do domínio de sujeição a fim de delimitar seu espaço de identificação e, com isso, a capacidade de cada um de reivindicar a possibilidade de autonomia, integridade e vida digna.

Voltando um pouco, os Jogos Olímpicos foram reconstruídos no final do século XIX através de uma promessa humanista em que pesava o esforço de “criar um mundo melhor e mais pacífico pela prática esportiva, sem discriminação de qualquer tipo, com um espírito de amizade, solidariedade e fair play” (IOC cf. Olympic values). 12 12 Para um maior detalhamento do que é, quais são os valores e como se organiza o Movimento Olímpico, ver o seguinte link: https://olympics.com/ioc/olympic-values. Acesso em 09/03/2023. Acompanhando essa memória, a busca de proteger a integridade da categoria feminina ressoa com tal promessa de humanização, já que se espera manter uma coesão do movimento e do espírito olímpico na medida em que se assegura a governança dessa unidade imaginada esportiva, construída através de uma socialização masculinista e aristocrática ( Guttmann 1992GUTTMANN, Allen. 1992. The Olympics: A History of the Modern Games. Urbana: University of Illinois Press.; Boykoff 2016BOYKOFF, Jules. 2016. Power Games: A Political History of the Olympics. Londres: Verso.; Pires 2021PIRES, Barbara Gomes. 2021b. “PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press . 296 pp.”. Mana, v. 27, n. 1:e271800.a). Assim, quando o corpo político das entidades esportivas está ameaçado, especialmente com essa inversão de significados entre feminilidade, masculinidade e virilidade que sustenta o manejo classificatório e regulatório dos corpos sexuados no esporte, aumenta-se o escrutínio no corpo atlético de atletas “dissonantes” ( Camargo 2016CAMARGO, Wagner Xavier. 2016. “Dilemas insurgentes no esporte: as práticas esportivas dissonantes”. Movimento, v. 22, n. 4:1337-1350.; Goellner 2016GOELLNER, Silvana. 2016. “Jogos Olímpicos: a generificação de corpos performantes”. Revista USP, n. 108:29-38.).

Em Pureza e Perigo ( 2012DOUGLAS, Mary. 2012. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva.), Mary Douglas anunciava a partir de outro recorte etnográfico que “os limites ameaçados do corpo político estariam bem refletidos” na “preocupação pela integridade, unidade e pureza do corpo físico” (:153). Traçando uma ligação conceitual entre estes dois cenários, percebemos, então, que há uma disputa política e moral em torno da completude ou da inviolabilidade desse desejo de integridade imaginado e encarnado como norma. Podemos aventar que essa disputa normativa se apresenta como um dos motivos que mantêm, no encontro das cenas humilhantes, coberturas invasivas e práticas irreversíveis de testagens sexuais, esse histórico antigo de investigações como violações necessárias e constrangimentos eficazes para proteger tanto a integridade unitária do corpo esportivo como para afastar a virilidade da categoria feminina.

A debilidade como proteção esportiva

Como revelar mais caminhos dessas ligações antigas e perigosas? Em 2013, um grupo de médicos e cientistas vinculados às entidades esportivas, como a World Athletics, publica um artigo científico em que justificam ao mesmo tempo em que apresentam os tipos de intervenção cujas atletas “hiperandrogênicas” são submetidas no escopo das testagens sexuais. No documento, consideram as variações intersexuais como “anormalidades” que afligem o mundo esportivo desde os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936 ( Fénichel et al. 2013FÉNICHEL, Patrick et al. 2013. “Molecular Diagnosis of 5α-Reductase Deficiency in 4 Elite Young Female Athletes Through Hormonal Screening for Hyperandrogenism”. J Clin Endocrinol Metab, 98 (6).:E1055). Passam a descrever como atenderam e trataram quatro jovens atletas de “regiões montanhosas ou rurais de países em desenvolvimento” que foram investigadas na véspera dos Jogos Olímpicos de Londres em 2012 (:E1056). Ao retratá-las, os autores registram que nunca menstruaram, tinham altas concentrações de testosterona endógena, eram musculosas, não possuíam seios grandes, não apresentavam comportamento sexual masculino, contudo, tinham o clitóris aumentado. As atletas foram avaliadas segundo escalas médicas e critérios clínicos a fim de mensurar a virilização do corpo, técnicas usadas cotidianamente em ambientes hospitalares, como a classificação de Prader para identificar o nível de maturação sexual ( Pires 2015PIRES, Barbara Gomes. 2015. Distinções do Desenvolvimento Sexual: percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro. ; Costa 2014COSTA, Anacely Guimarães. 2014. Fé Cega, Faca Amolada: reflexões acerca da assistência médico-cirúrgica à intersexualidade na cidade do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.; Fausto-Sterling 2020FAUSTO-STERLING, Anne. 2020. Sexing the Body: Gender Politics and the Construction of Sexuality. Updated Edition. New York: Basic Books.). O encaminhamento terapêutico realizado foi o seguinte:

Embora deixar gônadas masculinas em pacientes SRD5A2 não apresente nenhum risco à saúde, cada atleta foi informada de que a gonadectomia provavelmente diminuiria sua performance esportiva, mas permitiria que continuassem praticando esportes de alto rendimento na categoria feminina. Assim, propusemos uma clitoroplastia parcial com gonadectomia bilateral, seguida de uma vaginoplastia feminizante e terapia de reposição de estrogênio, com a qual as 4 atletas concordaram após consentimento informado sobre os procedimentos médicos e cirúrgicos. As autoridades esportivas permitiram que elas continuassem competindo na categoria feminina um ano após a gonadectomia. ( Fénichel et al. 2013FÉNICHEL, Patrick et al. 2013. “Molecular Diagnosis of 5α-Reductase Deficiency in 4 Elite Young Female Athletes Through Hormonal Screening for Hyperandrogenism”. J Clin Endocrinol Metab, 98 (6).:E1057).

Os autores concluem o artigo científico afirmando que a questão principal das regulações esportivas seria antes de tudo uma ação para “proteger a saúde, a privacidade, a integridade e os direitos” das pacientes enquanto também “mantém definições rígidas de justiça para todas as mulheres” (:E1058). Não obstante a declaração dos cientistas, parece-me incontestável pela gravidade, o alcance e a irreversibilidade do procedimento cirúrgico indicado que essas práticas médicas não intencionam a manutenção da integridade física e psicológica das atletas investigadas, ou mesmo quaisquer direitos à saúde, ao consentimento ou à privacidade, já que seus dados médicos são costumeiramente vazados, noticiados e debatidos tanto por cientistas quanto pelos gestores envolvidos com este tipo de regulação esportiva.

Proponho realinhar esta justificativa com o objetivo de ilustrar que tais manejos médicos, científicos e regulatórios no esporte contemporâneo compõem, assim como os tratamentos precoces em crianças intersexo sem risco de vida ( Corrêa 2004CORRÊA, Mariza. 2004. “Fantasias corporais”. In: Adriana Piscitelli; Maria Filomena Gregori & Sérgio Carrara (orgs.), Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond. p. 173-181.; Knauth & Machado 2013KNAUTH, Daniela Riva & MACHADO, Paula Sandrine. 2013. “‘Corrigir, prevenir, fazer corpo’: a circuncisão masculina como estratégia de prevenção do HIV/AIDS e as intervenções cirúrgicas em crianças intersex”. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 14:229-241.; Vieira et al. 2021VIEIRA, Amiel; GUIMARÃES COSTA, Anacely; GOMES PIRES, Barbara & CORTEZ, Marina. 2021. “Intersexualidade: desafios de gênero”. Revista Periódicus, v. 1, n. 16:01-20.), mais um regime de mutilação corporal da modernidade. Além disso, o caráter salvacionista das intervenções médicas que aparece na publicação científica enquadra essas atletas (e seus países) em um modelo de atraso civilizatório - logo, territórios hierarquizados por gênero, raça e nacionalidade - onde a única saída seria consentir em uma tutela médica que se baseia na correção clínica e cirúrgica para alcançar a justiça esportiva.

A proposta de cirurgia feminizante, com clitoroplastia e vaginoplastia, somente reforça o caráter mutilatório desses protocolos médico-esportivos agindo como processos civilizadores. São procedimentos acima de tudo estéticos que não alteram nem mitigam as supostas vantagens hormonais que modulariam o rendimento esportivo de atletas “hiperandrogênicas”. Essas regulações esportivas se assemelham aos mecanismos de soberania que reiteram e legitimam violentamente o poder do corpo social na figura dos Estados-nações. Dito de outra maneira, sabemos que as corporalidades “atípicas” que se expressam nas condições de intersexualidade desestabilizam o imaginário classificatório e a formulação de integridade que compõem o campo de possibilidade e legitimidade do esporte contemporâneo, marcado pelo dimorfismo sexual do humanismo e pelo valor da virilidade como essência e excelência da masculinidade hegemônica.

Afinando mais esta relação, compreendemos também que a crise representativa dentro da modernidade só existe, por sua vez, porque as “formações e as transformações do corpo individual estão intimamente relacionadas com as constituições de integridade através das quais a sociedade, assim como seu corpo político, se mantém” ainda hoje ( Stryker & Sullivan 2009STRYKER, Susan & SULLIVAN, Nikki. 2009. “King's member, Queen's body: transsexual surgery, self-demand amputation and the somatechnics of sovereign power”. In: Nikki Sullivan & Samantha Murray (eds.), Somatechnics: Queering the Technologisation of Bodies. Farnham/Burlington: Ashgate Publishing. p. 49-63.:52). Como vimos ao longo do artigo, a integridade que arbitra essa unidade política e regulatória do esporte parece ser distinta, em sua moralidade e intenção, da integridade corporal pleiteada pelos movimentos sociais contemporâneos ligados à vivência da intersexualidade ou aos direitos sexuais e reprodutivos de forma geral.

Esmiuçando os tipos de integridade em disputa no mundo esportivo, podemos organizar mais francamente seus passados, desejos e funcionamentos. Significa dizer que a garantia de integridade corporal pleiteada pelos ativismos - da preservação do corpo intersexo, do respeito por sua autonomia, da não intervenção precoce ou do acesso à saúde através do consentimento plenamente esclarecido - complexifica a ficção de integridade esportiva que fomenta a regulação do corpo político dessas entidades. Enquanto os movimentos sociais lutam por manter o corpo biológico com variação intersexual completo, as práticas médicas, os saberes hormonais e as regulações esportivas atuam para integrar social e esportivamente na medida em que mutilam as corporalidades atípicas.

São integridades que foram imaginadas e manufaturadas com contrastes, ainda que possam se encontrar em um lugar comum na busca por direitos, com um lado preservando uma classificação esportiva binária e com o outro lado costurando o acesso à saúde e ao esporte da pessoa com variação intersexual. Para Susan Stryker e Nikki Sullivan, citadas anteriormente, essa disputa seria tautológica em si mesma, já que qualquer encarnação da vida moderna com base em um corpo político depende de algum modo desses saberes e práticas normativas que produzem despedaçamento e incompletude (:61). Ainda assim, o reconhecimento do corpo íntegro, do corpo elegível, do corpo esportivo só persiste a partir do momento em que se debilita o que transborda - material e simbolicamente - do modelo normativo de existência da vida digna.

Jasbir Puar, em The Right to Maim (2017PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press .), propõe a concepção de um “direito à mutilação” como uma nova forma de regulação biopolítica, do “fazer viver” moderno através dos cálculos, mecanismos, das distribuições, técnicas disciplinares e tecnologias de poder que constituem a própria vida, do corpo à população. Em outras palavras, para a autora, essa prática mutilatória surgiu mais recentemente como uma nova estratégia de governamentalidade dentro do regime da colonialidade - Puar destrincha a situação da ocupação israelense em territórios palestinos a partir de uma extensiva e minuciosa ação militar - ao se construir através de uma contínua gestão da “capacidade” e da “debilidade” como experiências violadoras que conformam nações, infraestruturas e corporalidades. Um funcionamento biopolítico que é tomado, no limite da sua interpretação etnográfica, como uma estratégia de “não deixar morrer”. 13 13 Para entender mais detidamente as reflexões em torno da debilidade que Puar propõe, ver minha resenha para seu livro na revista Mana, em Pires ( 2021b).

Essa debilidade cotidiana que é exprimida, acentuada e gerida pelas estruturas geopolíticas contemporâneas surge tanto como uma construção identitária da deficiência mensurada e protegida institucionalmente em várias escalas de governo quanto como estratégias e acionamentos humanitários para a manutenção de uma determinada população em estado constante de vulnerabilidade social. Neste artigo, aciono especificamente a percepção da debilitação do corpo atlético com variação intersexual que se perpetua no esporte dentro de um estado de cronicidade ao ser descapacitado de suas funcionalidades biológicas porque é tomado como excessivo para um corpo tipicamente feminino. Por isso, o objetivo final desse manejo biopolítico não seria o banimento esportivo da atleta “hiperandrogênica”, uma definitiva exclusão competitiva como se aventa nos casos mais extremos e controversos das regulações, na verdade, se espera uma reintegração esportiva através da debilidade sociomédica e da administração crônica do corpo intersexo. 14 14 Partes dos parágrafos anteriores foram publicados, em outra versão menos desenvolvida, no artigo “‘Integridade’ e ‘Debilidade’ como gestão das variações intersexuais no esporte de alto rendimento” ( Pires 2018), que compõe o livro Intersexo coordenado pela ex-desembargadora Maria Berenice Dias.

Infelizmente, esse gerenciamento não se aplica mais à Caster. Depois de participar dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, sem nenhum tipo de medicação para diminuir seus níveis de testosterona endógena, Semenya foi banida de competir em sua modalidade favorita, os 800 metros, com base nas últimas atualizações regulatórias da World Athletics que restringem as provas de 400 metros até uma milha para atletas que possuem determinadas condições de intersexualidade ( World Athletics 2018WORLD ATHLETICS. 2018. “Eligibility Regulations for the Female Classification [Athletes with Differences of Sex Development]”. Disponível em: https://encurtador.com.br/huv17 Acesso em 15/12/2022.
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, 2019WORLD ATHLETICS. 2019. “Eligibility Regulations for the Female Classification [Athletes with Differences of Sex Development]”. Disponível em: https://encurtador.com.br/fgoIR Acesso em 15/12/2022.
https://encurtador.com.br/fgoIR...
). A continuidade de sua história, dentro e fora da pista de atletismo, exemplifica de forma precisa as situações mais extremas e controversas das regulações esportivas para a elegibilidade feminina, já que o caminho que sobra depois das investigações, violações e judicializações será unicamente o da exclusão competitiva de quem decide não se conformar. 15 15 Para saber mais sobre esse banimento esportivo de Semenya em sua luta em cortes esportivas e jurídicas para retomar sua elegibilidade, ver o capítulo sete de Pires ( 2020b).

Histórias esportivas como a de Caster Semenya no alto rendimento apontam para processos de investigação, incitação e racionalidade que são comuns ao desenvolvimento moderno do Estado-nação, pesando formas de dominação social alimentadas por disputas entre ciências, regulações e direitos. No caso em cena, a categoria integridade costuma ser porosa porque emerge de um desejo eminentemente moral, ainda que funcione objetivamente como justificativa jurídica e institucional de protocolos científicos de testagens sexuais. O problema esportivo, no fim, não seria nem a classificação de Caster na categoria feminina, mas os limites da incorporação política e social do corpo sexuado no esporte. A integridade, na dualidade remontada pelos processos de debilitação ou de completude do corpo atlético, desvela os variados modos de sujeição e controle social imaginados por instituições, saberes e movimentos.

Em outra escala, em uma aba na área de governança no site do COI, chamada “integrity”, o movimento olímpico reafirma o comprometimento institucional da entidade com a integridade necessária às organizações, ao esporte e à proteção para os atletas “limpos”. Na racionalidade corporativa das práticas atuais mais adequadas para gestão, essa versão da integridade esportiva precisa ser reiterada como uma luta global contra o doping, contra a corrupção, a favor da transparência, da responsabilidade e da boa governança. Possivelmente porque “integridade implica credibilidade”, um dos pilares da Agenda Olímpica 2020, o movimento olímpico atua antecipando “novas tendências” para “se ajustar às novas situações da melhor maneira possível” (COI cf. integrity).

Mas essa (auto)regulação progride por vários caminhos. Por exemplo, a remodelagem do nome e da marca da federação atlética internacional de “International Association of Athletics Federations” para “World Athletics”, estabelecida em 2019. À primeira vista podemos especular que essa mudança seria apenas mais uma tentativa de modernização de uma instituição centenária com a finalidade de capturar o engajamento de gerações mais novas e, portanto, a continuidade da modalidade esportiva. Contudo, uma reestruturação deste nível se desenvolve, segundo esses critérios compartilhados de avaliação da gestão corporativa, porque as entidades também estão integradas a uma rede política, técnica e moral de um corpo social imaginado como mais íntegro.

Foi um rebranding organizado pelo britânico Sebastian Coe depois do escândalo de corrupção articulado pelo ex-presidente senegalês Lamine Diack, que ocupou a presidência da federação internacional de atletismo durante dezesseis anos. O antigo mandatário da entidade parece ter sido responsável por situações de extorsão, manipulação, fraudes e desvios - um relatório produzido por uma comissão independente da Agência Mundial Antidoping (WADA) constata que Diack criou uma “estrutura de governança ilegítima” com a finalidade de organizar e permitir que “a conspiração e a corrupção” tomassem conta da instituição. 16 16 O documento da WADA pode ser encontrado no seguinte link: https://web.archive.org/web/20160121075247/ https://wada-main-prod.s3.amazonaws.com/resources/files/wada_independent_commission_report_2_2016_en.pdf Foi neste cenário que Coe - ordenado Barão de Ranmore nos anos 2000 - assumiu a entidade. Em 2014, quando anunciou sua candidatura para o cargo de presidente da instituição, publicou um manifesto chamado “Growing Athletics in a New Age”. Na proposta, além de indicar a necessidade de mudança e reforma, de descentralização e empoderamento, bem como reforçar o crescimento comercial do atletismo, afirma a importância de melhorar a confiança e a integridade dentro da entidade porque “nossas ações devem ter como objetivo proteger as ambições da grande maioria dos atletas limpos” ( Athletics Weekly 2014ATHLETICS WEEKLY. 03 de dezembro de 2014. “Seb Coe reveals IAAF presidential campaign manifesto”. Disponível em: https://athleticsweekly.com/featured/seb-coe-reveals-iaaf-presidential-campaign-manifesto-14278/ . Acesso em 20/12/2022.
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).

O economista Michael Power, em artigo chamado “From Risk Society to Audit Society” (1997POWER, Michael. 1997. “From risk society to audit society”. Soziale Systeme, 3 (1):3-21.), argumenta que no núcleo do processo contemporâneo de “auditoria” das instituições e corporações está presente um sistema de gestão que foi sempre concebido como uma “oportunidade” para a aprendizagem organizacional, para a reestruturação de crises e para o cumprimento de fins sociais desejáveis. Em suas palavras, Power desenvolve que:

Nos termos de Beck, as “fissuras e lacunas” entre a racionalidade científica e o social se remendam no sistema de gestão que é uma “promessa de segurança”. Auditoria aparece como um estilo de resposta regulatória que restaura a missão da regulação, isto é, produz sinais politicamente importantes de controle e conformidade. Os casos de auditoria médica, ambiental e derivativos sugerem como a criação interna de um sistema de gerenciamento se tornou um estilo particular de gerenciamento de risco. A ambivalência do que as auditorias produzem, como seu baixo-custo (em relação à inspeção), torna-se uma atração tanto para os reguladores quanto para os auditores, uma vez que a cadeia de “controle de controle” fragmenta a responsabilidade. As auditorias são geralmente assuntos privados e a autoauditoria local raramente gera uma maior transparência e participação. Além disso, a auditoria não é apenas um dispositivo de monitoramento neutro em uma cadeia de controle, mas atua como um próximo elo da cadeia para torná-la possível.

Quando lembramos que os Comitês Olímpicos Nacionais já ultrapassam os países-membros das Nações Unidas, em 206 a 193 ( Boykoff 2016BOYKOFF, Jules. 2016. Power Games: A Political History of the Olympics. Londres: Verso.), entendemos melhor como essas regulações esportivas, ora preocupadas com boas práticas corporativas, ora consumidas com testagens sexuais, complexificam as formas de governo hoje estabelecidas. Como destaquei em outro artigo sobre o legado de uma investigação de feminilidade ( Pires 2020aPIRES, Barbara Gomes. 2020a. “O legado das regulações esportivas. Diagnóstico e consentimento na elegibilidade da categoria feminina”. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 35:283-307.), no caso do gerenciamento securitário da categoria feminina, o risco é a norma, pois surge com a urgência de desmantelar a “dimensão da ambiguidade ou da incerteza” que é inerente ao corpo biológico no mundo esportivo (:290). Assim, “a expectativa do risco se embaralha com a gestão do presente e não apenas com as projeções imaginativas para o futuro” (:291). De tal forma que a busca pela estabilidade do corpo esportivo passa pela antecipação desses modos de controlar institucionalmente os limites da feminilidade e também dispersar a responsabilidade do dano, ou melhor, da debilitação crônica do corpo de atletas com variações de intersexualidade que esgarçam a norma.

Em suma, a regulação esportiva que resgata a noção de integridade que investigamos até agora se relaciona com uma certa imaginação moral que deseja completude, coerência e estabilidade do corpo sexuado, logo, utiliza-se das minúcias científicas, administrativas e morais da debilidade como um tipo de inclusão normativa. Essa estratégia se impõe a partir da materialização técnica e somática ( Preciado 2018PRECIADO, Paul. 2018. Testo Yonqui. São Paulo: n-1 edições .) de um corpo atlético desejável. Neste cenário, os ruídos entre unidade, elegibilidade e autonomia não deixam de ser um nódulo central no processo contínuo de “governo dos corpos” que constitui historicamente o esporte de alto rendimento. Dentro dessas racionalidades que se tornam manejos normativos, o gênero, a raça, a nacionalidade e outros marcadores sociais da diferença trazem à tona, com a observação de um pódio olímpico, como essas diferenças são operadas enquanto hierarquias que alteram, por sua vez, as possibilidades de um corpo ser mais legível e consequentemente de ser reconhecido como capaz de render atleticamente e salvaguardar um mérito esportivo.

A tentativa de garantir um “patamar de jogo igualitário” [ level playing field] se solidifica na categoria feminina com a proteção do binarismo de sexo e gênero, mas também com a purificação dessa elegibilidade a partir de critérios morais que se perpetuam pela linguagem da técnica e do cientificismo. O corpo atlético, aquele corpo que pode ser elegível na categoria feminina, foi encarnado nessa produção histórica e institucional da masculinidade como excelência esportiva e da virilidade como potência biológica de um só tipo de corporalidade. A categoria “mulher” no esporte engloba, portanto, mais do que capacidades atléticas de corpos femininos, ela foi imaginada e desfiada ao longo do tempo enclausurando as possibilidades de uma performance excepcional na categoria feminina e tutelando pelo controle e pela correção os corpos dissidentes que alargaram o horizonte esportivo dessas posições sociais tão naturalizadas.

A “proteção” da categoria feminina não abandona, então, a ânsia normativa de hierarquizar e integrar através do sexo/gênero. A constituição desses testes e protocolos regulatórios se vincula aos ideais normativos e às expectativas generificadas, racializadas e nacionalistas que fundamentam a possibilidade de sujeição e reconhecimento social nas sociedades contemporâneas. Esse emaranhado regulatório exemplifica uma estratégica institucional de debilitação que, em outros cenários, consideraríamos crime de mutilação. Mas como há um rastro de institucionalidade que valida historicamente tais práticas, as entidades esportivas arriscam a privacidade, a saúde e a dignidade das atletas, ao mesmo tempo em que escrutinam seus corpos publicamente, com efeitos permanentes e distendidos, para legitimar suas maneiras técnicas, políticas e somáticas de fazer sujeitos.

Nesta interseção de normalidades hormonais, rendimentos esportivos e desejos de integridade, o esporte é palco notável para compreender as mais recentes disputas biopolíticas de classificação dos corpos e gestão das populações. Com o passado ainda presente das investigações sexuais, não só mensuramos, pesquisamos e especificamos as diferenças biológicas na performance atlética de homens e mulheres em alguma modalidade esportiva de alto rendimento, na verdade, persistimos com a atualização das relações e dos efeitos dessas diferenças biossociais na experiência desigual de assujeitamento, elegibilidade e regulação em que corpos masculinos e femininos são inscritos para enfim serem (re)integrados no mundo olímpico.

Referências

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Notas

  • 1
    Este artigo é uma versão resumida, mas adensada do primeiro capítulo da minha tese de doutorado (Pires 2020b). Ele só chegou na versão atual pelos comentários indispensáveis estabelecidos em conversas diversas nesses últimos três anos. Primeiramente, no ST03 “Dispositivos socioquímicos no capitalismo tecnocientífico: substâncias, corpos e agenciamentos (im)possíveis” da VIII REACT de 2021, coordenado por Cíntia Engel, Rosana Castro e Rogério Azize. Depois, no grupo de orientação da minha supervisora de pós-doutorado, professora Jane Russo (IMS/UERJ), com leituras cuidadosas de Marina Nucci e Fernanda Loureiro. Além disso, tive um retorno individual e dedicado de Lux Lima e Nathalia Gonçales. Agradeço imensamente a oportunidade de conversar, me inspirar e refletir academicamente com cada um de vocês.
  • 2
    Coe é ex-atleta britânico, medalhista olímpico, com recorde mundial estabelecido nos 800 metros e 1500 metros. Ele também detém inúmeras condecorações, alcançando o posto de “Barão” através de um par vitalício em 2000, além de uma Ordem Olímpica pela realização dos Jogos Olímpicos de Londres em 2012.
  • 3
    A intersexualidade é um termo guarda-chuva que condensa um conjunto de variações biológicas que não se enquadram nas definições binárias típicas do que significa ter um corpo masculino ou feminino. Tais variações aparecem na composição genética e/ou cromossômica, expressando-se em alterações nas taxas hormonais, na funcionalidade do aparelho reprodutor, na aparência da genitália, além de mudanças nas características sexuais secundárias, como tamanho das mamas, quantidade e distribuição de pelos, gordura corporal, proporcionalidade da forma corporal, timbre da voz, capacidade de oxigenação, entre outros marcadores. São variações que, na maior parte dos casos, não acarretam um risco de vida, mas são usualmente medicalizadas e corrigidas. Para saber mais sobre a gestão da intersexualidade em contextos biomédicos, ver OHCHR ( 2019OHCHR. 2019. “Human Rights Violations Against Intersex People: A Background Note”. Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/documents/issues/discrimination/lgbt/backgroundnotehumanrightsviolationsagainstintersexpeople.pdf . Acesso em 15/12/2022.
    https://www.ohchr.org/sites/default/file...
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  • 4
    Uso a qualificação do “corpo sexuado” pensando nas possibilidades de encarnação da humanidade dentro de uma sistematização de incomensurabilidade dos sexos ( Laqueur 2001LAQUEUR, Thomas. 2001. Inventando o Sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará.), especialmente no sentido proposto por Judith Butler em Problemas de Gênero ( 2008BUTLER, Judith. 2008. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) e Corpos que Importam ( 2019BUTLER, Judith. 2019. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: n-1 edições.), ou seja, como linguagens e tecnicalidades fundamentam os modos de significação e, consequentemente, as materialidades do corpo físico, em uma matriz normativa que inscreve de maneira performativa as formas hegemônicas de masculinidade e feminilidade.
  • 5
    Uma análise cuidadosa dessa cobertura midiática no início da investigação de Caster Semenya, refletindo sobre a controvérsia do “controle da feminilidade no esporte” com os discursos generificados e as preocupações de antidopagem, foi descrita primeiramente por Silveira e Vaz ( 2014SILVEIRA, Viviane Teixeira & VAZ, Alexandre Fernandez. 2014. “Doping e controle de feminilidade no esporte”. Cadernos Pagu, n. 42:447-75.).
  • 6
    O emaranhado regulatório no mundo esportivo marca mais alguns do que outros com seus valores e racionalidades baseadas em exclusão normativa. A investigação e a espetacularização dessas regulações que envolvem maneiras humilhantes de lidar com a codificação biológica passam pela gramática do risco. Eu me inspiro nas discussões de María Elvira Díaz-Benítez sobre o gênero da humilhação, um ato e um sentimento que se desdobram em e se constituem “por meio de outros múltiplos atos e emoções” ( 2019DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira. 2019. “O Gênero da Humilhação: afetos, relações e complexos emocionais”. Horizontes Antropológicos, v. 25 (54).:53). Aqui a humilhação se encontra em um enquadramento cultural marcado por estratégias de risco, crise e segurança para a manutenção do sistema de sexo/gênero que compõe o mundo esportivo.
  • 7
    O escopo documental deste artigo se restringe ao momento de pesquisa e escrita da tese, defendida em fevereiro de 2020, de modo que toda a atualização regulatória estabelecida pelas entidades esportivas desde então não foi sistematizada nem acrescida ao material analisado.
  • 8
  • 9
    Enquanto acompanhava a disputa atlética direto do Estádio Olímpico Nilton Santos, uma matéria em particular foi significativa para me conectar com o impacto dessa cena narrada após a prova, o artigo de opinião “The ignorance aimed at Caster Semenya flies in the face of the Olympic spirit”, escrito por Katrina Karkazis, em 23 de agosto de 2016, para o jornal The Guardian.
  • 10
    O Comitê Executivo atual da World Athletics possui oito representantes: o presidente Sebastian Coe (Reino Unido), o vice-presidente sênior Serguei Bubka (Ucrânia), os vice-presidentes Mohammed bin Nawwaf Al Saud (Arábia Saudita), Geoff Gardner (Ilha Norfolk) e Ximena Restrepo (Colômbia), além dos membros Hasan Arat (Turquia), Abby Hoffman (Canadá) e Sunil Sabharwal (Estados Unidos e Hungria). Disponível em: https://worldathletics.org/about-iaaf/structure/executive-board. Acesso em 14/10/2022.
  • 11
    Outro artigo pioneiro na discussão nacional articulando a temática dos testes de feminilidade estabelecidos pelas entidades esportivas na medida em que se preocupam e desejam controlar os efeitos da testosterona (sintética, no caso) em corpos de mulheres foi desenvolvido por Lessa e Votre ( 2013LESSA, Patrícia & VOTRE, Sebastião Josué. 2013. “Carteira rosa: a tecnofabricação dos corpos sexuados nos testes de feminilidade na olímpiada de 1968”. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 35 (2):263-279.).
  • 12
    Para um maior detalhamento do que é, quais são os valores e como se organiza o Movimento Olímpico, ver o seguinte link: https://olympics.com/ioc/olympic-values. Acesso em 09/03/2023.
  • 13
    Para entender mais detidamente as reflexões em torno da debilidade que Puar propõe, ver minha resenha para seu livro na revista Mana, em Pires ( 2021bPIRES, Barbara Gomes. 2021b. “PUAR, Jasbir. 2017. The Right to Maim: Debility, Capacity, Disability. Durham: Duke University Press . 296 pp.”. Mana, v. 27, n. 1:e271800.).
  • 14
    Partes dos parágrafos anteriores foram publicados, em outra versão menos desenvolvida, no artigo “‘Integridade’ e ‘Debilidade’ como gestão das variações intersexuais no esporte de alto rendimento” ( Pires 2018PIRES, Barbara Gomes. 2018. “‘Integridade’ e ‘Debilidade’ como gestão das variações intersexuais no esporte de alto rendimento”. In: Maria Berenice Dias (coord.) & Fernanda Carvalho Leão Barreto (orgs.), Intersexo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil. p. 535-543.), que compõe o livro Intersexo coordenado pela ex-desembargadora Maria Berenice Dias.
  • 15
    Para saber mais sobre esse banimento esportivo de Semenya em sua luta em cortes esportivas e jurídicas para retomar sua elegibilidade, ver o capítulo sete de Pires ( 2020bPIRES, Barbara Gomes. 2020b. A Gestão da Integridade: corpo, sujeição e regulação das variações intersexuais no esporte de alto rendimento. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.).
  • 16

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Comeford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2023
  • Aceito
    08 Fev 2023
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