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HURSTON, Zora Neale. Olualê Kossola, as palavras do último homem negro escravizado. Rio de Janeiro: Record: 2021. 240 pp.

HURSTON, Zora Neale. . Olualê Kossola, as palavras do último homem negro escravizado . Rio de Janeiro: Record: 2021. 240 pp.

Um velho é um remédio. Provérbio Malinke (Senegal)

Radical é tudo aquilo que possui raízes profundas. Raiz é metáfora importante para as populações negras da diáspora, pois diz sobre elos entre Américas e Áfricas, sobretudo a partir do tráfico de pessoas no Atlântico negro. Parece que ser diaspórico é estar sempre em busca de suas raízes. Mesmo que estas sejam raízes de orquídeas negras que, suspensas, se regeneram. O tráfico de pessoas no Atlântico foi, a meu ver, um dos crimes mais violentos que a história da humanidade já conheceu. A tortura, o massacre, a usurpação da mão de obra escravizada são sequelas que nos acompanham subjetivamente, espiritualmente. Zora Neale Hurston (2021HURSTON, Zora Neale. Olualê Kossola, as palavras do último homem negro escravizado. Rio de Janeiro: Record: 2021. 240 pp.) se pergunta sobre a vida de Kossola: como uma pessoa que viveu essas histórias consegue dormir com essas memórias sobre o travesseiro? (:74) Diante de um apagamento da nossa memória, nós não olhamos o suficiente para nosso passado e fabulamos muito pouco sobre ele.

As políticas de ações afirmativas têm imprimido sobre as Universidades brasileiras uma coloração extremamente radical. Dentre essas cores, poderíamos mencionar a inclusão de leituras de autoras e autores negras/os nas ementas das disciplinas lecionadas nos cursos. Mas não somente nesses espaços tais autoras e autores negras/os têm se feito presente. O mercado editorial negro vem crescendo vertiginosamente em nosso país e está atingindo leitores de diversas camadas sociais e econômicas. Ler autoras e autores negras/os permite que nos conectemos com nossa história, saibamos de onde viemos, entendamos sobre nós mesmos, e há um forte efeito “reparador”. Mesmo que essa “reparação” seja pequena diante do terror que foram e são os crimes cometidos contra a população negra, é com ela que podemos contar no momento. Isto porque não temos nem poder econômico, nem poder militar para pensar em alternativas mais condizentes com a pilhagem que nos foi direcionada durante todos esses anos. Talvez através da leitura e da consciência racial, como apostam muitos de nossos ativistas, consigamos alcançar algum passo em busca da liberdade.

Como parte dessa reparação subjetiva possível - ainda que travada por muitos limites - é que o livro Olualê Kossola: as palavras do último homem negro escravizado, de Zora Neale Hurston, chega ao Brasil. No contexto de celebração da presença negra em espaços antes negados, mas ainda duramente disputados, brindamos nossa existência fazendo clamar vozes que são insistentemente silenciadas. E se, como quer Audre Lorde (2020LORDE, Audre. 2020. Sou sua irmã: escritos reunidos. São Paulo: Ubu Editora.), fazemos parte de uma comunidade internacional de pessoas de cor, a narrativa de Kossola nos chega como a voz de um griô cuja história é basilar para entendermos o que foi a escravidão transatlântica.

Tendo vivido em Eatonville dos 3 aos 13 anos de idade, Zora Neale Hurston cresceu em uma cidade totalmente negra. Essa seria, assim, uma cidade fundada e gerida por pessoas negras, de forma que ela se constituísse como um condado autônomo com a sua Constituição local. O fato de ter vivido cercada de pessoas negras transparece em seus escritos e em sua postura quando, por exemplo, Zora descreve sua saída da cidade para estudar. Nessa ocasião, Hurston entrou em contato com o racismo. Este feito levou-a a refletir a respeito da forma como o racismo é algo externo ao sujeito (pg. 5), antecipando, assim, as teorias fanonianas vinte anos. Como figura importante do movimento Harlem Renaissence, Hurston tinha bons relacionamentos com a atriz Ethel Waters, com os poetas Langston Hughes e Countee Cullen. Chegou a criar com Hughes uma peça com atores negros que iriam além dos estereótipos. Lamentavelmente, por causa de conflitos entre eles, a peça não saiu do papel.

Zora Hurston foi aluna do antropólogo Franz Boas e a obra em tela foi produzida antes dessa formação. Na sequência, a autora publicou Barracoon (1931), Mules and Men (1935) e Tell my Horse: Voodoo and Life in Haiti and Jamaica (1938). Estas obras foram produzidas a partir de pesquisas em comunidades negras nos Estados Unidos e nas ilhas do Caribe. Zora apresenta originalidade em seu trabalho e levanta questões que serão postas pela Antropologia pós-moderna anos depois. Como exemplo, temos o tratamento que a autora dá à escrita antropológica, bem como a indistinção entre “nós” e “eles”. Mesmo sendo conhecida atualmente como uma grande expoente da literatura norte-americana do século XIX nos EUA, Zora permaneceu esquecida por muitos anos. Em vida, ela não foi reconhecida por seu trabalho, não tendo sido remunerada por suas produções como merecia e enterrada como indigente. Em 1960, Alice Walker resgata seu trabalho a fim de torná-lo conhecido pelo público norte-americano. No Brasil, ela tem sido aos poucos inserida nas ementas das disciplinas das Ciências Sociais, mas ainda é pouco lida.

A obra Olualê Kossola: as palavras do último homem negro escravizado foi o produto de uma série de entrevistas realizadas por Zora Neale Hurston, em 1927, com o sobrevivente do último navio negreiro para os Estados Unidos. Kossola, conhecido como Cudjo Lewis, foi mantido escravizado por cinco anos e meio no Alabama, tendo sido libertado em 1865. Incentivada por Charlotte Osgood Mason, uma mulher branca que era benfeitora de vários artistas do Renascimento do Harlem, Hurston teve sua viagem financiada para escrever este livro. Na altura, já era autora de algumas obras que, no entanto, ainda não a haviam projetado como escritora. Mason queria ver a autonomia financeira de Hurston e a incentivou alguns anos depois a publicar Olualê Kossola, bem como Mules and Men (Mulas e Homens). O livro é dividido em 12 capítulos.

Cada um deles narra os encontros de Zora Neale Hurston com Kossola em sua casa. A escuta atenta de Zora, como ela mesma diz, buscava responder a questões que eram dela. A narrativa imponente de Kossola, contudo, acaba dando o tom da história. A presença de Hurston é bastante delicada, de escuta atenta e de intervenções pontuais. Kossola, por sua vez, narra aquilo que considera pertinente, dando ao livro a força de uma narrativa que surpreende Zora Neale Hurston em vários aspectos. O diálogo entre eles mostra o abismo entre um escravizado liberto vindo diretamente do continente africano e uma mulher negra norte-americana livre. Talvez suas diferenças tenham mais do que um continente de distância. Zora Neale Hurston quer manter a linguagem de Kossola tal como transcrita e esta é uma opção estética e política que pode nos conectar com Lélia Gonzalez e sua argumentação sobre o pretoguês. Optar por publicar o livro com as falas de Kossola o mais próximo possível de sua oralidade atrasou muito a publicação do livro, já que as editoras da época não consideravam essa opção uma saída estética desejável.

Logo no início do livro, Kossola conta sobre seu avô, argumentando que em África não se sabe nada da história de um indivíduo isolado, mas sim a partir da narrativa de sua linhagem. Este é um tema que diz sobre noções de pessoa e sobre construções de narrativas endógenas, ou seja, não se trata de um indivíduo isolado, mas sim de uma pessoa que existe em relação à sua ascendência. Kossola segue com uma narrativa importante sobre rituais de iniciação masculina, que foram interrompidos por causa de sua captura. Essa ruptura impede Kossola de ser um adulto pleno na concepção africana. Mais um tema em que os estudos antropológicos se debruçam há alguns anos. O narrador fala ainda de seu casamento com sua esposa e de seus filhos em território americano. Anuncia as estratégias para a compra de terreno, já que o retorno à África parece impossível. Fala do desterro, das dificuldades de reconstrução e da saudade do território natal.

Um dos aspectos trazidos pelo livro é a constatação da responsabilidade que nossos “irmãos” africanos do Reino de Daomé têm na disseminação do tráfico de pessoas para as Américas. Não se trata aqui de evitar criar uma narrativa idílica na qual haveria exclusivamente vilões brancos e vítimas negras; ou tampouco de justificar a escravidão por ter sido ela concebida também pelos africanos. Qualquer uma das opções seria reduzir a complexidade desta história que envolve relações de poder. Tomar as pessoas do continente apenas como vítimas do processo reduz aquilo que deve ser realmente combatido: a engrenagem colonial. Esta, embora esteja direcionada contra as pessoas não brancas, tem entre elas colaboradores desta engrenagem que são muitas vezes também pessoas de cor. É importante que entendamos isso: que nos processos coloniais - ainda em curso (Bispo 2015BISPO, Nêgo. 2015. Colonização, quilombos: modos e significados. Brasília: INCTI.) - existem pessoas negras que estarão do lado da engrenagem da opressão a fim de ganhar com ela alguma vantagem. Ter essa consciência nos permite compreender qual política podemos apoiar, já que, como nos diz Lélia Gonzalez (1981GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. Mulherio, São Paulo, ano I, nº 3, 1981, p. 4, existem mulheres e pessoas negras que estão contra pautas emancipatórias. Talvez esta seja uma leitura difícil, mas muito necessária para o nosso povo negro. Importa ainda destacar que, embora nossos “irmãos” africanos tenham colaborado com essa empreitada vendendo cativos, o tratamento dado aos escravizados do Atlântico Negro foi completamente distinto ao tratatamento que o cativo em África possuía. Os requintes de crueldade e de dezumanização encontrados desde então são de outra ordem jamais antes vista nas formas de servidão em África. Inuagurando assim um período onde o cativo passa a ser coisa.

O livro traz ainda aspectos relevantes de debates sobre a história oral e pode ser um complemento em sala de aula ao texto já tão utilizado de Hambate Bâ, “A tradição viva”, de 2010, (que, a propósito, é posterior à obra de Hurston), colorindo ainda mais os métodos e as técnicas que podem e devem ser utilizados para pesquisa entre a população negra brasileira. Poderá também engajar pesquisadoras e pesquisadores do Brasil a realizarem trabalhos que escutem com profundidade pessoas que falam de si e que trazem elementos históricos em sua própria existência, dando contribuições metodológicas às pesquisas brasileiras. Assim, a Oratura de Hurston dialoga com a escrevivência de Conceição Evaristo, já que narra histórias que têm em si a morada do saber. Como nos diz Tierno Boukar (Apud, Hampate Bâ, 2010HAMPATE BÂ, Amadou. 2010. “A tradição viva”. In: História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. 2. ed. Brasília: Unesco.), o saber está imbuído nas pessoas. A escrita, por sua vez, seria somente a impressão deste saber no papel. Com esse espírito, enraizado em solo firme, vê-se uma mudança acontecer vagarosamente. Sei que tanto otimismo talvez esteja longe de nossa condição real, mas é preciso respirar um pouco da força que antropólogas como Zora Neale Hurston traz para nosso terreno através de sua escrita.

Referências bibliográficas

  • BISPO, Nêgo. 2015. Colonização, quilombos: modos e significados Brasília: INCTI.
  • HAMPATE BÂ, Amadou. 2010. “A tradição viva”. In: História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África 2. ed. Brasília: Unesco.
  • HURSTON, Zora Neale. Olualê Kossola, as palavras do último homem negro escravizado Rio de Janeiro: Record: 2021. 240 pp.
  • GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. Mulherio, São Paulo, ano I, nº 3, 1981, p. 4
  • LORDE, Audre. 2020. Sou sua irmã: escritos reunidos São Paulo: Ubu Editora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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