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Lélia Gonzalez e seu lugar na antropologia brasileira: “cumé que fica?”

Lélia Gonzalez y su lugar en la antropología brasileña: “cumé que fica?”

Lélia Gonzalez and her place in Brazilian Anthropology: “cumé que fica?”

Resumo

Este é um estudo bibliográfico inserido numa pesquisa mais ampla com a intelectualidade negra dos anos 1970 e 1980, na qual expresso também minha experiência pessoal e coletiva. O foco é a obra e a trajetória de Lélia Gonzalez (1935-1994) e sua relação com a antropologia, com falas e escritas insurgentes, retomada como disputa epistemológica, no contexto das ações afirmativas. A matéria-prima está constituída por um acervo de textos originais e republicados - ensaios, artigos, entrevistas, discursos - e algumas imagens publicadas de arquivos pessoais da autora ativista.

Palavras-chave:
Intelectualidade negra; Antropologia; Disputa epistemológica; Lélia Gonzalez

Resumen

Este es un estudio bibliográfico dentro de una investigación más amplia sobre la intelectualidad negra de los años 1970 y 1980, en la cual expreso también mi experiencia personal y colectiva. El enfoque es la obra y trayectoria de Lélia Gonzalez (1935-1994) y su relación con la antropología, con conversaciones y escrituras insurgentes retomadas como disputa epistemológica en el contexto de acciones afirmativas. La materia prima está constituida por una colección de textos originales y republicados -ensayos, artículos, entrevistas, discursos- y algunas imágenes publicadas de archivos personales de la autora activista.

Palabras clave:
intelectualidad negra; antropología; disputa epistemológica; Lélia Gonzalez

Abstract

This bibliographic review, itself part of a wider research on black intellectuals from 1970- 1980, reports on my collective and personal experience. It focues on Lélia Gonzalez’s (1935-1994) oeuvre and trajectory and her relationship with anthropology, with written and insurgent speeches that are recaptured as an epistemological dispute in the context of affirmative actions. It is based on a collection of original and republished texts: essays, articles, interviews, speeches, and some images from personal files of the activist author.

Keywords:
Black Intellectually; Anthropology; Epistemological Dispute; Lélia Gonzalez

Nas universidades públicas brasileiras, no que concerne à composição étnico-racial do corpo docente e gestor, há uma supremacia branca que não se resume às corporeidades. Nos programas de pós-graduação e nas sociedades científicas, podemos observar o mesmo predomínio. Por sua vez, em face das ações afirmativas e da localização das universidades mais recentes, o corpo discente está mais plural em termos étnico-raciais.

Antes da discussão e da implementação das ações afirmativas no país, sobretudo na modalidade das cotas raciais, militantes do movimento negro acadêmico (Ratts 2009RATTS, Alex. 2009. “Encruzilhadas por todo percurso: individualidade e coletividade no movimento negro de base acadêmica”. In: Amauri Mendes Pereira & Joselina Silva (orgs.), Movimento Negro Brasileiro: escritos sobre os sentidos de democracia e justiça social no Brasil. Belo Horizonte: Nandyala. pp. 81-108.) ou universitário (Silva 2018SILVA, Sandra Martins da. 2018. O GTAR (Grupo de Trabalhos André Rebouças) na Universidade Federal Fluminense: memória social, intelectuais negros e a universidade pública (1975/1995). Dissertação de Mestrado em História Comparada, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) demandam a leitura, a pesquisa e a escrita com os textos de autoria negra. O debate se amplia e se qualifica na atualidade deixando explícita a existência de uma disputa epistemológica.

É neste ponto que situo o interesse na obra e na trajetória de Lélia Gonzalez (1935-1994), que desde a década de 1970 tornou-se partícipe de processos cujo resultado é a reorganização de alguns movimentos (negro e feminista) e criação de outros (mulheres negras), com significativa produção acerca de relações raciais, gênero, sexualidade e diáspora africana. No começo dos anos 1990, a autora vive um período de grave enfermidade (diabetes mellitus) e, após sua morte, passa por um apagamento de suas referências nos circuitos acadêmicos hegemônicos, particularmente nas ciências humanas e sociais.1 1 NA SEGUNDA METADE DO MENCIONADO DECÊNIO, CURSO O DOUTORADO EM ANTROPOLOGIA NUMA UNIVERSIDADE NO CENTRO-SUL DO PAÍS. TENDO UM ORIENTADOR NEGRO, LEIO AUTORIAS REFLEXAS, MAS POUCAS MULHERES. NA VIRADA DO SÉCULO XXI, NOS EVENTOS E NAS PUBLICAÇÕES ANTROPOLÓGICAS, RARAMENTE O NOME DE LÉLIA GONZALEZ É ACIONADO, A NÃO SER PELA MILITÂNCIA NEGRA, ESPECIALMENTE AS MULHERES.

A proposta impressa neste artigo é apontar a conexão entre o “tornar-se negra” e o saber-fazer antropológico da acadêmica-militante, para além das formações iniciais e interesses que parecem díspares, como filosofia, história, geografia e psicanálise, e que envolvem a participação nos movimentos sociais, a reorientação de observações, leituras, ensino e escrita; a tematização de raça, sexo e classe, racismo, sexismo e elitismo, pondo em relevo mulheres negras e expressões culturais afro-brasileiras.

Trata-se de um estudo bibliográfico inserido numa pesquisa mais ampla com a intelectualidade negra dos anos 1970 e 1980, na qual incorporo uma parte da minha experiência. O foco é a relação da obra e da trajetória de Lélia Gonzalez com as ciências sociais, particularmente com a antropologia, retomadas enquanto parte de uma política do conhecimento no contexto das ações afirmativas. A matéria-prima é constituída por um conjunto de textos originais e republicados - ensaios, artigos, entrevistas, discursos - e algumas imagens disponibilizadas de arquivos pessoais da intelectual-ativista. Lanço mão da sua voz por meio de várias citações.

No tocante a este quadro, me considero partícipe da construção de uma abordagem do pensamento negro. Este artigo não contém somente uma reclamação ou a intenção de preencher uma lacuna. É uma procura e um posicionamento.

Uma kizomba numa epígrafe

Antes de apresentar alguns pontos do pensamento de Lélia Gonzalez que se situam no escopo científico em pauta, retorno a uma questão lançada por ela, no ensaio Racismo e sexismo na cultura brasileira (Gonzalez 1983), apresentado no Grupo de Trabalho Temas e problemas da população negra, no IV Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), realizado em outubro de 1980.

O texto inicia com uma longa epígrafe intitulada Cumé que a gente fica? escrita com bastante coloquialidade e com teor de metalinguagem. A autora alude a uma “festa” em que um grupo de brancos chama pessoas negras (“a gente”) para estarem presentes na divulgação de um livro sobre questões negras e/ou raciais (“um livro sobre a gente”). Os primeiros (“gente fina, educada e viajada”) convidam os segundos (o “crioléu”, a “negrada”) para sentar-se à mesa, mas não é possível, não cabe. Seguem com seus discursos (“e mais discursos”) sobre opressão, discriminação e exploração, mostrando para as pessoas negras que conheciam o que elas viviam (“eles sabiam mais da gente do que a gente”). A certa altura, uma “neguinha” com o microfone reclama da “festa”. Um branco se enerva e agride “um crioulo” que tomou o microfone para confrontar os brancos. O burburinho se torna zoada, por causa da “negrada ignorante e mal-educada”. Armou-se uma “quizumba” (festa, kizomba, na língua kimbundo). Sabendo do contexto do texto, fica uma pergunta: a quem e a que essa epígrafe se refere?

Elizabeth Viana (2006VIANA, Elizabeth do Espírito Santo. 2006. Relações raciais, gênero e movimentos sociais: o pensamento de Lélia Gonzalez (1970-1990). Dissertação de Mestrado em História Comparada, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro. ) referindo-se a este trecho, afirma que nele é possível “acompanhar, de um lado, seu aprofundamento teórico e, de outro, seu amadurecimento político” (:161) e joga luz sobre a emergência de intelectuais militantes nas universidades. Pedro Ambra (2019AMBRA, Pedro. 2019. “O lugar e a fala: a psicanálise contra o racismo em Lélia Gonzalez”. Sig: revista de psicanálise, Porto Alegre, v. 8, n. 14:85-101, jan./jun.) ao tratar de lugar de fala e a psicanálise com foco em ensaios de Gonzalez, também se debruça sobre a epígrafe, mas não circunscreve como acadêmico o conflito racial e de gênero nela contido. Taina Silva Santos (2019SANTOS, Taina A. da Silva. 2019. “Nós viemos para bagunçar os lugares da mesa: Uma reflexão sobre a luta por cotas nas universidades estaduais paulistas, em PARTICULAR na Unicamp”. Revista do Coletivo Negro com Práticas Pedagógicas em Africanidades (ConeppA), Campinas, v. 1, n. 1:14-16, mar.) conduz a interpretação deste trecho para o debate e o confronto nas universidades brasileiras no tocante às cotas raciais e mais detidamente na Unicamp. Para tanto, se remete à “festa” transformada em “quizumba”, quando da tomada da voz pela militância negra diante das “tentativas de desqualificação e silenciamento” (:15). Considero esses apontamentos, mas repito a indagação: a quem e a que essa epígrafe se refere?

Apresentando trabalho no mesmo GT da Anpocs, João Baptista Borges Pereira, antropólogo da Universidade de São Paulo (USP), estudioso das relações raciais, manifesta várias vezes seu incômodo e discordância diante da militância - “[...] especialistas ou ideólogos, em especial negros, preocupados em revisar tópicos da história do Brasil, enquanto compartilhada ou mesmo feita pelo negro” (1981:67) - sem nomear ou referenciar ninguém, indicando que são revisionistas e fazem uso de conceitos sem rigor científico, a exemplo de “quilombo”. Tematizando comunidades negras rurais, projeta algumas pesquisas que orienta em distintos estados e regiões da federação (devidamente identificadas em termos de autoria e localização) como se recobrissem o território nacional. Referindo-se à crítica dos estudos feitos na USP, enuncia que “a situação do negro é, em princípio, problematizada dentro de uma dimensão científica e não de espaços sociais” (1981:71). Invertendo sentidos, enfatiza: “como nem sempre há correspondência entre os dois níveis, o problema do negro, enquanto problema social, corre o risco de ser colocado em segundo plano e, com isto, o negro passa a ser apenas um objeto de estudos” (1981:71).

Em continuação, utilizando-se objetivamente de uma linguagem acadêmica, ressalta que “a situação do negro, mesmo sendo socialmente problematizada, continua sendo problematizada de fora para dentro” e racializa: “tudo é feito a partir de parâmetros ideológico-políticos tendo como referencial o mundo dos brancos ou um sistema sociopolítico ideal ou idealizado” (1981:72). Na sequência, destaca um dos lados: “até que ponto um estudioso branco, mesmo treinado para tal, consegue se colocar no lugar do outro, quando o outro é um negro?” (1981:72). Por fim, de maneira no mínimo incongruente, sem destacar os orientandos e partícipes negros dos debates, entrevê que “para a compreensão mais justa do problema do negro no Brasil [será frutífera] a ascensão do intelectual preto à cena da pesquisa e da reflexão científicas” (1981:72). Em outra comunicação que se detém sobre o cenário paulista, marca mais uma vez a militância, sem distinguir o estatuto acadêmico desse discurso: “É um grupo reconhecido - e que se reconhece - como espécie de ‘elite negra’ e de onde saem os ideólogos ou arregimentadores de consciências políticas do negro!” (1983:101).

Cabe lembrar brevemente alguns nomes vinculados às universidades paulistas e fluminenses que compunham o cenário e a temporalidade em que as questões negras e raciais eram postas não somente pela intelectualidade branca. O registro do GT da IV Reunião Anual da Anpocs traz apenas o arquivo das comunicações de Carlos Benedito Rodrigues da Silva e Peter Fry, ambos da Unicamp.2 2 Disponível em: https://www.anpocs.com/index.php/4d-encontro-anual-1980/gt-5. Acesso em 10/01/2022. O cientista político da Universidade da Califórnia - Los Angeles (UCLA) que residiu no Brasil, Pierre-Michel Fontaine (1985FONTAINE, Pierre-Michel (org.). 1985. Race, Class, and Power in Brazil. Los Angeles: Center for Afro-American Studies, UCLA. pp. 01-10.), destaca dois núcleos de estudos do período: o Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes, com o sociólogo José Maria Nunes Pereira e o historiador Joel Rufino dos Santos (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e o referido GT da Anpocs. Fontaine prossegue evidenciando Carlos Hasenbalg do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Lélia Gonzalez da Pontifícia Universidade Católica do Rio do Janeiro (PUC-Rio) e João Baptista Borges Pereira (USP) como “os principais animadores do grupo, fundado em 1979” (:03). O CEAA foi fundado em 1973 e por todo o ano seguinte abriga reuniões com integrantes que dão origem ao movimento negro no Rio de Janeiro (Gonzalez 1982a). Em 1975, no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense (ICHF/UFF), um conjunto de estudantes negras e negros forma o Grupo de Trabalho André Rebouças, que passa a realizar “semanas de estudos sobre o negro na formação social brasileira”. Nas três primeiras, além de Fry, Hasenbalg e Borges Pereira, colaboraram Manuel Nunes Pereira, Juana Elbein dos Santos, Maria Maia Berriel (UFF) da antropologia, o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira (USP), além da historiadora Beatriz Nascimento (Silva 2018).3 3 Borges Pereira (1981) apresentou trabalho no evento do GTAR com um conteúdo semelhante à comunicação feita na Anpocs. Além dos nomes listados, havia outros pesquisadores em universidades de São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro e Niterói e também eventos (Simpósio na SBPC e Quinzena do Negro/USP, ambos realizados em São Paulo em 1977).

Trazer a lume estes nomes não redunda em desnovelar as contendas teóricas e políticas de então. Seja por aproximação ou divergência, é relevante situar o lugar de Lélia Gonzalez nesse rol de questões e personas, relativas ao campo em questão. Todavia, retomo a expressão por ela usada, para não esquecer a pertinência e a insurgência da intelectual-ativista: “cumé que a gente fica?”

Nomeações e o saber-fazer antropológico de Lélia Gonzalez

Lélia de Almeida (1935-1994)4 4 Os dados biográficos vêm dos seguintes estudos: Barreto (2005); Viana (2006); Ratts & Rios (2010); Carneiro (2014). nasce em Belo Horizonte e migra com a família, ainda criança, para o Rio de Janeiro, residindo em áreas populares. Tem um percurso de vida pouco comum às jovens negras de famílias trabalhadoras. Estudou no Colégio Pedro II, graduou-se em Filosofia (licenciada em 1960 e bacharel em 1961) e igualmente em História e Geografia (licenciada em 1963) pela antiga Universidade do Estado da Guanabara (atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Foi professora em alguns colégios e também nas Faculdades Integradas Estácio de Sá, na Universidade Gama Filho e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Após a morte traumática do marido e colega de graduação em Filosofia, Luiz Carlos Gonzalez, em 1965, Lélia adota efetivamente o sobrenome hispânico em homenagem àquele que era um questionador do processo de embranquecimento pelo qual ela passava: “[...] essa pessoa demonstrou uma solidariedade extraordinária em nível de casamento e, por outro lado, dentro dessa solidariedade ele foi a primeira pessoa a me questionar com relação ao meu próprio branqueamento” (Gonzalez citada em Viana 2006VIANA, Elizabeth do Espírito Santo. 2006. Relações raciais, gênero e movimentos sociais: o pensamento de Lélia Gonzalez (1970-1990). Dissertação de Mestrado em História Comparada, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro. :52). Ainda no plano pessoal, perde sua mãe, Urcinda Seraphina de Almeida, de ascendência indígena.

Nos primeiros anos da década de 1970, participa de reuniões acerca do marxismo, tendo à frente o militante comunista Leandro Penna, o que desperta a atenção dos agentes militares. Paulatinamente, Lélia Gonzalez passa por mais alguns percursos que a levariam a se tornar a intelectual-ativista de renome nacional e internacional. No ano de 1974, se integra a reuniões de pessoas negras, jovens e adultas, no Teatro Opinião e posteriormente no Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes. Dessa aglutinação crescente se formam grupos com atuação em Niterói e Rio de Janeiro, com interfaces políticas, acadêmicas e culturais.

Antes de publicar acerca das questões negras e raciais, Lélia Gonzalez exerce uma singular atividade de ensino relativa ao horizonte em vista: o curso “Cultura Negra no Brasil”, realizado inicialmente em 1976 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Os temas vão da “unicidade da cultura negra” à religião, à estética e às artes plásticas, passando por conceitos de cultura, identidade, linguagem e arte; expressões culturais (“samba, carnaval e futebol”); religião (umbanda e candomblé); diáspora africana; e “o negro na literatura”. Em parte significativa, a bibliografia é de antropologia e áreas afins: Roger Bastide, Juana Elbein dos Santos, Edison Carneiro (um dos poucos autores negros) - e o sociólogo Octávio Ianni (Machado; Silva; Baudoin & Carrilho, 2019MACHADO, Juliana; SILVA, Rubia L.; BAUDOIN, Tanja & CARRILHO, Ulisses (orgs.). 2019. Hospedando Lélia Gonzalez (1935-1994). Rio de Janeiro: Escola de Artes Visuais do Parque Lage.:68-69).

No detalhamento do curso, os temas são mais delineados e entremeados: cultura e linguagem; culturas africanas no Brasil; identidade em face do novo espaço cultural (resistência e integração); o negro no Brasil moderno; racismo enquanto discurso de exclusão; arte-linguagem-psicanálise; presença negra na cultura brasileira; religião e folclore; arte “erudita” e “popular”. A bibliografia é ampliada e, além das autorias referidas, inclui Câmara Cascudo, Gilberto Freire, Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda, Claude Lévi-Strauss, Ruth Landes, Arthur Ramos, Nina Rodrigues, Freud, Lacan e, por último, uma menção a Manuel Querino, negro, sem indicação de obra (Machado; Silva; Baudoin & Carrilho. 2019MACHADO, Juliana; SILVA, Rubia L.; BAUDOIN, Tanja & CARRILHO, Ulisses (orgs.). 2019. Hospedando Lélia Gonzalez (1935-1994). Rio de Janeiro: Escola de Artes Visuais do Parque Lage.: 70-71).

Além de fazer parte de sua “virada negra”, a realização do curso traz indícios de uma “virada antropológica” de Lélia Gonzalez. Em artigo relativo à proposta didática, a professora expõe algumas problematizações:

[O curso] visa desenvolver um trabalho de reflexão crítica que possibilite a designação do lugar do negro na cultura brasileira. E ao tentar apostar para tal lugar, ele pretende também trazer a sua contribuição no sentido de que o próprio negro se situe e assuma a si e aos seus antepassados enquanto presença marcante na nossa realidade cultural (Gonzalez 1977 citada em Machado; Silva; Baudoin & Carrilho, 2019MACHADO, Juliana; SILVA, Rubia L.; BAUDOIN, Tanja & CARRILHO, Ulisses (orgs.). 2019. Hospedando Lélia Gonzalez (1935-1994). Rio de Janeiro: Escola de Artes Visuais do Parque Lage.:75).5 5 GONZALEZ, Lélia. A presença negra na cultura brasileira. 1977. GAM-Galeria de Arte Moderna, Rio de Janeiro, n. 37, mar. 1977. Acervo Memória Lage. Republicado em Machado; Silva; Baudoin & Carrilho. 2019, p. 74-75.

A autora registra que os estudos com as culturas negras ainda ficam nas mãos de especialistas que portam um discurso dominante de exclusão, estereotipagem e folclorização.6 6 Cabe notar que parte significativa da intelectualidade negra em atuação no período tinha ou passa a ter uma proximidade com expressões culturais e artísticas negras: movimento soul, samba e religiões de matriz africana. Gonzalez participou da criação da Escola de Samba Quilombo em 1978 e, por sua vez, um dos sambas-enredo foi composto a partir da produção da intelectualidade negra, com ela incluída. No entanto, pontua: “Vale notar que o excluído sempre aponta para o discurso que o exclui” (Gonzalez 1977 citada em Machado; Silva; Baudoin & Carrilho. 2019MACHADO, Juliana; SILVA, Rubia L.; BAUDOIN, Tanja & CARRILHO, Ulisses (orgs.). 2019. Hospedando Lélia Gonzalez (1935-1994). Rio de Janeiro: Escola de Artes Visuais do Parque Lage.:75).

Gonzalez retoma o processo de desumanização das sociedades e culturas provenientes da diáspora, reduzindo o trabalho negro ao braçal, ideário que marca a educação e o comportamento de parte da população negra. Em contraponto, lista revoltas e resistências nas artes, religião, estruturas sociais e parentesco. A autora traz um conjunto de questões que, no meu entendimento, extrapola as pretensões postas no curso e passam a orientar leituras e estudos da intelectual-ativista para a cultura numa perspectiva antropológica:

Até que ponto o negro resistiu ao processo de aculturação? Até que ponto a violência da escravidão o submeteu? De que maneira os diferentes povos das diferentes culturas africanas se defrontaram com a nova realidade que lhes foi imposta? Qual a significação cultural de Benin, Oyó, Ifé, Abeokutá, Congo, Angola Luanda? De que maneira as diferentes falas culturais conseguiram manter sua identidade e marcar sua contribuição na nova realidade cultural? De que maneira as lutas internas pela África repercutiram nas relações estabelecidas a partir da diáspora? Até que ponto o discurso do senhor submeteu ou foi submetido pelo escravo? Até que ponto o retorno do recalcado se fez sentir na cultura brasileira? (Gonzalez 1977 citada em Machado; Silva; Baudoin & Carrilho. 2019MACHADO, Juliana; SILVA, Rubia L.; BAUDOIN, Tanja & CARRILHO, Ulisses (orgs.). 2019. Hospedando Lélia Gonzalez (1935-1994). Rio de Janeiro: Escola de Artes Visuais do Parque Lage.:75). 7 7 Lélia Gonzalez utiliza criticamente termos do paradigma culturalista. Logo após é publicada no Brasil a tradução de A interpretação das culturas, de Clifford Geertz (1978), marca do paradigma hermenêutico ou da antropologia interpretativa. No escopo deste artigo não cabe cotejar a produção subsequente da autora em face dessas balizas tornadas dominantes no pensamento antropológico com as quais ela demonstra ter propriedade.

É importante trazer a lume o relato da autora (1982a) que aponta mais uma vez o interesse por estas questões no curso que teve mais duas edições e as possibilidades de agregação que foram se dando:

Além do curso teórico (que em seguida se articulou com outros dois: um, de danças afro-brasileiras e, outro, de capoeira), que visava analisar as instituições e os valores culturais negros, assim como sua presença na formação cultural brasileira, o espaço da escola também foi aberto para a expressão viva de artistas e intelectuais negros (:40).

Tendo em mente a inflexão na trajetória de Lélia Gonzalez e os processos subsequentes, é perceptível que seu saber-fazer antropológico não está limitado à sua formação inicial (filosofia, história e geografia), à atuação primeira em escolas e universidades e à tradução de compêndios filosóficos.8 8 Neste sentido, relembro que a formação e os trabalhos iniciais de Audre Lorde são na área de biblioteconomia (library, em inglês). Sendo esta autora muito cuidadosa com suas apresentações, raramente indicou a profissão primeira e pela qual é pouco reconhecida. Diante do contato com a obra publicada, vejo que sua nomeação enquanto antropóloga está nas notas de vários ensaios, textos de divulgação científica e intervenção e, igualmente, entrevistas. É possível inferir que a auto e alter-identificação confluem para a indicação enquanto acadêmica e/ou militante, mas, predominantemente, enquanto pertencente ao horizonte antropológico:

Antropóloga, do MCU [sic] e da [Escola de Samba] Quilombo. Jornal O Pasquim (Gonzalez 1979b)

Antropóloga e militante do movimento negro. Folhetim, Folha de São Paulo (Gonzalez 1981GONZALEZ, Lélia. 1981. “Mulher Negra”. Mulherio, São Paulo, Ano 1, n. 3:8-9, set.-out.)

Socióloga, professora de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Folha de São Paulo (Gonzalez 1983GONZALEZ, Lélia. 1983. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Ciências Sociais, Hoje. São Paulo: Anpocs. pp. 223-244.).

Lélia de Almeida Gonzalez é conhecida militante do movimento negro e do movimento das mulheres. Professora de Antropologia e de Cultura Popular Brasileira, licenciada em Filosofia e História e mestre em Comunicação. Lélia escreveu vários artigos sobre o racismo e participou de conferências e seminários, no Brasil e no Exterior, sobre o negro e a mulher (Gonzalez & Hasenbalg 1982:07).9 9 Nos textos acessíveis (entrevistas e textos biográficos) não foi encontrada uma documentação que apresentasse entrada ou efetivação da pós-graduação em Comunicação ou em Antropologia.

Lélia Gonzalez é antropóloga e militante ativa dos movimentos negro e feminista do Rio de Janeiro. Mulherio (Gonzalez 1982c:03).

Lélia Gonzalez is professor of Afro-Brazilian studies of the Visual Arts School for the State of Rio de Janeiro and professor of popular Brazilian Culture in the department of arts, Catholic University, Rio de Janeiro. She is the co-author, with Carlos Hasenbalg, of Lugar de negro (1982) (Fontaine 1985FONTAINE, Pierre-Michel (org.). 1985. Race, Class, and Power in Brazil. Los Angeles: Center for Afro-American Studies, UCLA. pp. 01-10.:08).

Texto da antropóloga especializada em folclore (Giganti citado em Gonzalez 1987GONZALEZ, Lélia. 1987. Festas populares no Brasil. Rio de Janeiro: Index.:09).

Antropóloga, diretora do Planetário da Cidade do Rio de Janeiro, leciona na PUC/RJ. Membro do Conselho Nacional da Mulher, é Vice-Presidente da Associação Internacional do Festival Pan-africano de Artes e Culturas (Senegal) e do Congresso Mundial de Intelectuais Negros (Estados Unidos). Autora de Festas Populares no Brasil (1987). (Gonzalez 1988aGONZALEZ, Lélia. 1988a. “Por un feminismo afrolatinoamericano”. Revista Isis Internacional, MUDAR/DAWN, Santiago, v. IX:133-141, junio.).

Antropóloga, membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, Rio de Janeiro (Gonzalez 1988bGONZALEZ, Lélia. 1988b. “A categoria político-cultural de amefricanidade”. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93:69-82, jan.-jun.).

É uma militante, professora, antropóloga, de méritos excepcionais. Jornal do MNU (Gonzalez 1991GONZALEZ, Lélia. 1991. Entrevista. Jornal do MNU, n. 19:09-10, maio-jul.:09).

Sociologist. Professor at the Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro, Ms. Gonzalez is a co-founder of the Unified Black Movement of Brazil. In 1981GONZALEZ, Lélia. 1981. “Mulher Negra”. Mulherio, São Paulo, Ano 1, n. 3:8-9, set.-out., as a cultural and political activist, she became the first African Brazilian Woman elected “Woman of the Year” by the National Council of Women of Brazil (Gonzalez 1995:499)

Vale notar que, desde a apresentação para o público brasileiro ou estrangeiro, e para outros circuitos (a chamada “grande imprensa”), sua identificação de ofício é ressaltada. É possível compreender Lélia Gonzalez enquanto cientista social/antropóloga sem precisar encaixá-la em fronteiras disciplinares. O que permite esse delineamento não são suas nomeações e sim o que lhes dá fundamentação: temáticas e conceituações referentes à sociedade e à cultura brasileiras calcadas no capitalismo-racista-patriarcal e eurocêntrico; a crítica da colonização, do colonialismo e a proposição da descolonização a partir de um ponto de vista amefricano ou afro-latino-americano; o interesse em expressões culturais da diáspora africana; a formulação da “tríplice discriminação” de raça, sexo e classe; a correlação entre racismo e sexismo, sempre com foco nas mulheres negras. Além disso, sua incursão pela psicanálise agregava questões da linguagem em interface com a cultura, a exemplo da recriação da expressão Améfrica Ladina em Amefricanidade, e do uso de categorias lacanianas para entender o racismo e o sexismo brasileiros.10 10 Desde 1977, ela passa a integrar o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, sendo anunciada com destaque na imprensa, na matéria “Os filhos de Lacan” (JB, 24/01/1977), que divulga um curso de formação em psicanálise do qual ela é uma das professoras. Esse cabedal aparece em alguns ensaios, desde suas preocupações com o uso de categorias lacanianas para entender determinados vieses da cultura brasileira, do racismo e do sexismo.

Outra questão que interponho é se havia abertura para uma estudiosa-militante como ela nos espaços acadêmicos concernentes às suas áreas de interesse. Nos anos 1970, raras pessoas negras se formavam nas primeiras pós-graduações stricto sensu em antropologia do país, situadas em quatro universidades de dois estados do Sudeste e do Distrito Federal - UFRJ, USP, Unicamp e UnB. Uma delas é o congolês Kabengele Munanga que, logo após o doutoramento em 1977, se redireciona de pesquisador das sociedades e artes africanas para estudioso das relações raciais, tornando-se também negro e intelectual-ativista (Jaime & Lima 2013JAIME, Pedro & LIMA, Ari. 2013. “Da África ao Brasil: entrevista com o prof. Kabengele Munanga”. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 56, n. 1:507-551.). Na década seguinte, Marlene de Oliveira Cunha (1986CUNHA, Marlene de Oliveira. 1986. Em busca de um espaço: a linguagem gestual no candomblé de Angola. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade de São Paulo.), proveniente do Grupo de Trabalho André Rebouças da Universidade Federal Fluminense, conclui o mestrado sobre corpo e gestual no candomblé de nação angola, cujo lócus de trabalho de campo são terreiros de sua vivência familiar em São Gonçalo. Ambos fazem seus cursos na Universidade de São Paulo, com orientação de João Batista Borges Pereira.

Lélia Gonzalez é contemporânea de intelectuais negras e negros que a antecedem e têm processos distintos no que diz respeito à carreira de estudo universitária: é o caso de Clóvis Moura (1925-2003), que cursa direito e tem recepção como historiador e sociólogo, e de Eduardo de Oliveira e Oliveira (1923-1980), graduado em ciências sociais e mestrando em sociologia. Por sua vez, Beatriz Nascimento (1942-1995), historiadora, e Oliveira e Oliveira não concluíram os cursos de mestrado que faziam (ela inicialmente na UFF e, depois, na UFRJ; ele na USP). Nestes poucos exemplos residem algumas questões acerca da trajetória intelectual, mas não necessariamente acadêmica, da militância que pauta a temática racial do ponto de vista “de dentro” e a relação entre movimento negro e a universidade nos anos 1970 e 1980, particularmente nas ciências sociais (Rios 2009RIOS, Flavia. 2009. “Movimento negro brasileiro nas Ciências Sociais (1950-2000)”. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 12, n. 2:263-274, jul./dez.).

O trabalho de professora-militante, pouco detalhado nos registros consultados, emerge na crítica a posturas docentes, a conteúdos e recursos didáticos no que concerne às dimensões étnico-raciais:

Estamos cansados de saber que nem na escola, nem nos livros onde mandam a gente estudar, não se fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro, do índio na nossa formação histórica e cultural. Na verdade, o que se faz é folclorizar todos eles. E o que é que fica? A impressão de que só homens, os homens brancos, social e economicamente privilegiados, foram os únicos a construir este país. A essa mentira tripla dá-se o nome de sexismo, racismo e elitismo (Gonzalez 1982cGONZALEZ, Lélia & HASENBALG, Carlos. 1982. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero .).11 11 Ainda nesse foco, ela aponta a visão esquemática e estereotipada das crianças negras como “indisciplinadas” e a implicação dessa postura na evasão escolar (Gonzalez; Lima & Rios 2020:39).

A autora prossegue evidenciando que esses problemas se estendem ao âmbito universitário: “há também o problema de que na escola a gente aprende aquelas baboseiras sobre os índios e os negros, na própria universidade o problema do negro não é tratado nos seus devidos termos” (Gonzalez 2020GONZALEZ, Lélia (aut.); RIOS, Flavia & LIMA, Márcia (orgs.). 2020. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar.:320).

Lélia Gonzalez: falas e escritas de uma intelectual ativista negra nas ciências sociais

Lélia Gonzalez se reorienta em termos de observação, escrita e ativismo no tocante à sociedade brasileira, com uma visão ao mesmo tempo crítica e propositiva no horizonte científico em apreciação, áreas que comportam quase todos os temas de seus trabalhos.

Seus principais ensaios vieram a público entre 1978 e 1988 - entre a abertura política e a data do centenário da Abolição e da promulgação da Constituição Federal. Vários textos provêm de comunicações apresentadas em eventos nacionais e internacionais ligados à perspectiva em tela, o que é possível de captar em um quadro sinóptico.

Quadro 01
Lélia Gonzalez: comunicações apresentadas em eventos nacionais e internacionais

É preciso ressaltar que os centros de estudos latino-americanos, afro-asiáticos e africanos não estão circunscritos às ciências sociais, mas abrigam uma parte significativa de antropólogos e sociólogos que têm estudos nesse circuito. Alguns eventos são diretamente relacionados ao campo em pauta: a reunião anual da Anpocs e o seminário na UnB. Neste último estão em destaque as presenças dos sociólogos João Gabriel Lima Cruz Teixeira (coordenador) e Carlos Hasenbalg (Iuperj), de Marcos Terena (Assuntos Indígenas do Ministério da Cultura), das antropólogas Lia Zanotta Machado (UnB) e Lélia Gonzalez (PUC-Rio), a única que participa de duas mesas (Teixeira 1986). Ciente de sua posição, na discussão sobre a cidadania feminina ela adianta sua “estratégia de jogo” e discorre sobre dois aspectos fundamentais: os afetos e as violências que marcam pessoas, famílias e comunidades negras e a corporeidade (estereótipos, a exemplo da hipersexualização). Na exposição acerca da “questão étnica” (leia-se também racial), a autora desnovela várias faces dos processos históricos e sociais vincados pelo racismo, particularmente no pós-abolição.

Mais um quadro joga luz sobre uma produção não extensa de capítulos inseridos em coletâneas, mas que permite posicionar a autora em circuitos nacionais e internacionais, concernentes ao âmbito científico em questão.

Quadro 02
Lélia Gonzalez: capítulos publicados em coletâneas

Nos anos 1970, vários pesquisadores negros radicados nos Estados Unidos iniciavam seus estudos no Brasil: o ganense Anani Dzidzienyo, o cientista político haitiano Pierre-Michel Fontaine, os estadunidenses J. Michael Turner e Michael Mitchell. Em um dos eventos, com resultados transformados em livro, é perceptível a trama de abordagens reflexas. A coletânea Race, class and power in Brazil é fruto de evento homônimo organizado pelo cientista político Pierre-Michel Fontaine (1985), composto por historiadores, antropólogos, sociólogos e cientistas políticos dos Estados Unidos (acima mencionados) e do Brasil (Carlos Hasenbalg, Nelson do Valle e Silva e Lélia Gonzalez), sendo esta a única mulher presente.

Na introdução, Fontaine (1985FONTAINE, Pierre-Michel (org.). 1985. Race, Class, and Power in Brazil. Los Angeles: Center for Afro-American Studies, UCLA. pp. 01-10.) comenta aproximações entre os artigos de Dzidzienyo, Mitchell e Gonzalez que detectam a proeminência do centro-sul na organização negra (:04). Mitchell identifica no Brasil duas aglutinações da juventude negra, uma de estudantes universitários (em várias das grandes cidades) e outra do movimento denominado Black Soul, também apontados por Gonzalez em seu paper (:07). O organizador ressalta a importância da visada política das relações raciais no Brasil e destaca a análise acerca do Movimento Negro Unificado, elaborada pela autora, que lista organizações anteriores, como a Frente Negra Brasileira (FNB) e Teatro Experimental do Negro (TEN).

No artigo “Brown into Black: Changing Racial Attitudes of Afro-Brazilian Students”, Michael Turner (1985TURNER, Jerry Michael. 1985. “Brown into Black: Changing Racial Attitudes of Afro-Brazilian Students”. In: Pierre-Michel Fontaine (org.), Race, Class, and Power in Brazil. Los Angeles: Center for Afro-American Studies/University of California. pp. 73-94.) faz uma nota acerca dos debates relativos à raça e à classe no país, referindo-se a trabalhos de Florestan Fernandes e Octavio Ianni, apontando que Lélia Gonzalez e as técnicas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Lucia E. G. Oliveira, Rosa M. Porcaro e Tereza C. N. Araújo (1985OLIVEIRA, Lucia Elena Garcia de; PORCARO, Rosa Maria & ARAÚJO, Tereza Cristina Nascimento. 1985. O lugar do negro na força de trabalho. Rio de Janeiro: IBGE.) acrescentaram as questões relativas a sexo, com foco na mulher negra. Gonzalez e Tereza C. N. Araújo desenvolveram um projeto de pesquisa intitulado “Mulher negra: proposta de articulação entre raça, classe e sexo”, apoiado pela Ford Foundation (Turner 1985:88; Carneiro 2014CARNEIRO, Sueli. 2014. Lélia Gonzalez: o feminismo negro no palco da história. Brasília: Abravídeo.:71).

Do quadro acima, mais duas obras merecem comentários. Formada em sociologia e ciência política, Madel Luz aglutinou as sociólogas Anette Goldberg, Celina Albano, Jacqueline Pitanguy e as antropólogas Paula Monteiro e Lélia Gonzalez. A organizadora informa acerca dos estudos que reuniu: “são reflexões, geralmente baseadas em pesquisa, sobre a condição feminina nas sociedades capitalistas e, em especial, na sociedade brasileira” (Luz 1982b:07). A notação final de Luz é elucidativa da forma como se vê o trabalho de quem transita na academia e na militância: “procurou-se fugir à propaganda, ao panfletário” (:08). Trata-se de uma retórica comum em que o saber-fazer militante é considerado um saber “menor” (Carneiro 2005CARNEIRO, Sueli. 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de Doutorado em Filosofia da Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo.).

A coletânea editada pelo etnólogo Carlos Moore, então visitante no Departamento de Sociologia e Antropologia da Florida Internacional University (FIU), é advinda do evento I Conference on Negritude, Ethnicity and Afro Cultures in the Americas, realizada em Miami, de 26 a 28 de fevereiro em 1987, em homenagem ao poeta e estadista Aimé Cesaire, com a presença de profissionais de projeção internacional das áreas de história, relações públicas, sociologia, ciência política, antropologia, literatura, e intelectuais a exemplo de Abdias Nascimento, Manuel Zapata Olivella, Maya Angelou, Léopold Sédar Senghor e o próprio Aimé Cesaire. Lélia Gonzalez participou da seção temática “Mulheres africanas nas Américas e o processo de mudança”.

Lugar de Negro (Gonzalez & Hasenbalg 1982GONZALEZ, Lélia & HASENBALG, Carlos. 1982. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero .) é feito em parceria com um dos principais pesquisadores das desigualdades raciais e sociais do país e no qual assumem individualmente as duas partes do livro. Gonzalez faz um relato circunstanciado com documentos do movimento negro e pontuado por variações coloquiais e afro-brasileiras da linguagem. O premiado Festas Populares no Brasil (Gonzalez 1987) se refere a um conjunto de expressões bastante conhecidas no território nacional. No capítulo dedicado às culturas afro-brasileiras são abordados afoxés, maracatus, congadas. Em determinados trechos, a matriz africana ou africana-brasileira é anunciada:

[...] os procedimentos dinâmicos de interpretação cultural adaptaram o folguedo ao universo simbólico do povo brasileiro, recriando-o a partir de seus diversos componentes culturais. É nesse sentido que podemos afirmar ser o bumba-meu-boi um auto popular afro-luso-americano com presença manifesta na extensão territorial do país e, em consequência, na diversidade de termos que o designam [...] (Gonzalez 1987GONZALEZ, Lélia. 1987. Festas populares no Brasil. Rio de Janeiro: Index.:60).

No caso do carnaval, Gonzalez discorre sobre manifestações encontradas em terras fluminenses, baianas, pernambucanas e outras, atenta às diversas matrizes culturais e destacando a presença negra no caso do samba carioca nos morros e nas escolas. À diferença do que se conhece de sua obra, é um texto escrito sem tanta pessoalidade.

Um terceiro e último quadro possibilita ver o conjunto das publicações em periódicos quase todos com interface acadêmica-militante: Mudar/Dawn - Red de Mujeres por un Desarrollo Alternativo (sul-americana); Afrodiáspora - Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, tendo à frente Abdias Nascimento; Carta - gabinete do senador Darcy Ribeiro.

Quadro 03
Lélia Gonzalez: artigos publicados em periódicos

Na década de 1980 são editados os primeiros livros de autoras negras com formação acadêmica: o referido Lugar de Negro (Gonzalez & Hasenbalg 1982GONZALEZ, Lélia & HASENBALG, Carlos. 1982. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero .); Tornar-se negro, de Neuza Santos Sousa (1983SOUSA, Neuza Santos. 1983. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal. ); Mulher negra / Política governamental e a mulher (Carneiro; Santos & Costa 1985CARNEIRO, Sueli; SANTOS, Thereza & COSTA, Albertina Gordo de Oliveira. 1985. Mulher negra / Política governamental e a mulher. São Paulo: Nobel/Conselho Estadual da Condição Feminina. ) e Negro e cultura no Brasil (Lopes; Siqueira & Nascimento 1987LOPES, Helena Theodoro; SIQUEIRA, José Jorge & NASCIMENTO, Maria Beatriz. 1987. Negro e cultura no Brasil: pequena enciclopédia da cultura brasileira. Rio de Janeiro: Unibrade/Unesco.).

Gonzalez participa da formação dos movimentos negro, de mulheres/feministas e de mulheres negras. Publica vários artigos em jornais da militância “homossexual” (Lampião da Esquina), feminista (Mulherio), negra (Nzinga Informativo, Jornal do MNU, Maioria Falante, Raça e Classe) e sindicais (Cadernos Trabalhistas) (Freitas 2018FREITAS, Viviane G. 2018. “Mulheres negras e imprensa feminista: voz, interseccionalidade e cidadania”. Revista Compolítica, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3:146-169.). A maior parte desses trabalhos eram voltados para mulheres negras com diversificação no tema: pobreza, segregação, beleza, militância, resistência. Há ainda os textos que vêm a público em revistas de divulgação científica (Lua Nova, Humanidades) e da imprensa (Folha de São Paulo).

No Mulherio, Lélia Gonzalez é a única mulher negra integrante da equipe editorial, tendo apresentado uma pesquisa com dados de desigualdades de raça e sexo, escrito quatro artigos e concedido uma entrevista. Todas estas inserções são referentes à mulher negra. Dentre as antropólogas e sociólogas do grupo, estavam Mariza Corrêa, Suely Kofes, Ruth Cardoso, Eva Alterman Blay, Fúlvia Rosemberg e Heleieth Saffioti.

Obstáculos epistemológicos” para mulheres negras intelectuais-ativistas

Nesta seção do artigo, me detenho em alguns apontamentos de Lélia Gonzalez que indicam a disputa e as barreiras epistemológicas para a intelectualidade negra militante, particularmente a feminista. As citações são um tanto longas. Esta reflexão se encontra em um de seus primeiros trabalhos - Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher negra (Gonzalez; Lima & Rios 2020:25-44) - apresentado originalmente em 1979 na Latin American Studies Association (LASA). Após tecer uma argumentação sobre o processo histórico pós-abolição e os mecanismos que colocaram as mulheres negras em um patamar de inferiorização, incluindo exigências de “educação” e “boa aparência”, a autora elege como um ponto problemático a negação do racismo (e seus efeitos de gênero) e a situação social da população negra feminina:

O que se opera no Brasil não é apenas uma discriminação efetiva; em termos de representações mentais sociais que se reforçam e se reproduzem de diferentes maneiras, o que se observa é um racismo cultural que leva tanto algozes como vítimas a considerarem natural o fato de a mulher em geral e a negra em particular desempenharem papéis sociais desvalorizados em termos de população economicamente ativa (Gonzalez; Lima & Rios, 2020GONZALEZ, Lélia (aut.); RIOS, Flavia & LIMA, Márcia (orgs.). 2020. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar.:42).

Gonzalez prossegue, apresentando problemas na representação que a intelectualidade hegemônica faz das classes trabalhadoras e das comunidades, famílias e mulheres negras, mais uma vez se interpondo para tratar diretamente de uma abordagem da dimensão racial:

É interessante observar, nos textos feministas que tratam da questão das relações de dominação homem/mulher, da subordinação feminina, de suas tentativas de conscientização etc., como existe uma espécie de discurso comum com relação às mulheres das camadas pobres, do subproletariado, dos grupos oprimidos. Em termos de escritos brasileiros sobre o tema, percebe-se que a mulher negra, as famílias negras - que constituem a grande maioria dessas camadas - não são caracterizadas como tais. As categorias utilizadas são exatamente aquelas que neutralizam a questão da discriminação racial, do confinamento a que a comunidade negra está reduzida (Gonzalez; Lima & Rios 2020GONZALEZ, Lélia (aut.); RIOS, Flavia & LIMA, Márcia (orgs.). 2020. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar.:43).

A autora chama a atenção para o fato de que estas representações também são feitas por um segmento socialmente discriminado - as mulheres - e critica enfaticamente os movimentos feministas:

Por aí se vê o quanto as representações sociais manipuladas pelo racismo cultural também são internalizadas por um setor, também discriminado, que não se apercebe de que, no seu próprio discurso, estão presentes os velhos mecanismos do ideal de branqueamento, do mito da democracia racial. Nesse sentido, o atraso político dos movimentos feministas brasileiros é flagrante, na medida em que são liderados por mulheres brancas de classe média. [...] Aqui também se percebe a necessidade de tirar de cena a questão crucial: a libertação da mulher branca se tem feito às custas da exploração da mulher negra (Gonzalez; Lima & Rios 2020GONZALEZ, Lélia (aut.); RIOS, Flavia & LIMA, Márcia (orgs.). 2020. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar.:43).

Cabe lembrar que tais considerações são coetâneas da reorganização dos movimentos de mulheres e negros no país. No caso do jornal Mulherio, é notório que Lélia Gonzalez adentra um grupo para o qual tinha muitas ressalvas. Na sequência, a autora expõe mais um problema, que é a recusa ou a desqualificação do discurso negro como emotivo:

O espanto e/ou a indignação manifestados por diferentes setores feministas, quando é explicitada a superexploração da mulher negra, muitas vezes é exprimido de maneira a considerar o nosso discurso, de mulheres negras, como uma forma de revanchismo ou de cobrança. Outro tipo de resposta que também denota os efeitos do racismo cultural, de um lado, e do revanchismo, de outro, é aquele que considera a nossa fala como “emocional”. O que não se percebe é que, no momento em que denunciamos as múltiplas formas de exploração do povo negro, em geral, e da mulher negra, em particular, a emoção, por razões óbvias, está muito mais em quem nos ouve (Gonzalez; Lima & Rios 2020GONZALEZ, Lélia (aut.); RIOS, Flavia & LIMA, Márcia (orgs.). 2020. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar.:43).

Tratando do trabalho intelectual-militante, Beatriz Nascimento (1974NASCIMENTO, Beatriz. 1974. “Por uma história do homem negro”. Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, v. 68, n. 1:41-45.) caminha em passo semelhante: “Devemos fazer a nossa história, buscando nós mesmos, jogando nosso inconsciente, nossas frustrações, nossos complexos, estudando-os, não os negando” (:44). Em temporalidades e processos distintos, ambas buscaram a trilha da subjetividade psíquica para enfrentar temas raciais e correlatos.

Na sequência do ensaio, Gonzalez evidencia uma questão que perdura no âmbito acadêmico com sérias consequências para a inserção de pessoas negras na ciência, com implicações para quem assume a posição de ter voz própria e pública - a relação sujeito-objeto:

Na medida em que o racismo, enquanto discurso, situa-se entre os discursos de exclusão, o grupo por ele excluído é tratado como objeto e não como sujeito. Consequentemente, é infantilizado, não tem direito a voz própria, é falado por ele, e ele diz o que quer, caracteriza o excluído de acordo com seus interesses e seus valores. No momento em que o excluído assume a própria fala e se põe como sujeito, a reação de quem ouve só pode se dar nos níveis acima caracterizados. [...] Para nós, é importante ressaltar que emoção, subjetividade e outras atribuições dadas ao nosso discurso não implicam uma renúncia à razão, mas, ao contrário, num modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão (Gonzalez; Lima & Rios 2020GONZALEZ, Lélia (aut.); RIOS, Flavia & LIMA, Márcia (orgs.). 2020. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar.:43-44).

Estas reflexões da autora não estão restritas ao universo acadêmico, mas para ele são dirigidas, reiteradas e refletidas. Este ensaio, junto com “Racismo e sexismo na cultura brasileira” (1983), é um dos textos em que Gonzalez toca diretamente na disputa epistemológica, marcada por sujeitos com pertencimento de raça, gênero e classe.

Retornando a Collins (2019COLLINS, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro: Conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo.), ela apresenta várias barreiras ou “obstáculos epistemológicos”12 12 A noção de “obstáculo epistemológico” utilizada por Gonzalez (2020:31) é uma conhecida expressão de Eduardo de Oliveira e Oliveira. interpostos à trajetória de pessoas negras universitárias, sobretudo as mulheres e, mais ainda, as feministas. Retomo algumas que incidem no caso de Lélia Gonzalez, tendo cuidado com as transposições entre sociedades com diferenciadas diásporas negras. Dentre alguns aspectos estão a não separação entre “sujeito” e “objeto” e não levar em conta a subjetividade, inclusive a emotividade e a experiência vivida no trabalho científico. Outro ponto é a aproximação e a diferenciação entre conhecimento e sabedoria, esta última apreendida nas comunidades negras:

Essa distinção entre conhecimento e sabedoria, assim como o uso da experiência como o limite entre os dois têm sido fundamentais para a sobrevivência da mulher negra. No contexto das opressões interseccionais, a diferença é fundamental. Conhecimento sem sabedoria é suficiente para os poderosos, mas sabedoria é essencial para a sobrevivência dos subordinados (Collins 2019COLLINS, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro: Conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo.:411).

Mais de uma vez, Gonzalez insiste neste tema ao tratar das yalorixás, das mães e tias presentes nas espacialidades e culturas negras. Este aspecto se estende quando a autora tece considerações sobre as mulheres da diáspora africana nas Américas:

Sem contar que [as amefricanas] sabem mais de solidariedade do que de competição, de coletivismo do que de individualismo. Nesse contexto, há muito o que apreender (e refletir) com essas mulheres negras que, do abismo do seu anonimato, têm dado provas eloquentes de sabedoria (Gonzalez; Lima & Rios 2020GONZALEZ, Lélia (aut.); RIOS, Flavia & LIMA, Márcia (orgs.). 2020. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar.:269).

Nenhum tópico desses pode ser visto sem atenção aos contextos, às trajetórias e aos discursos. No entanto, se autorias negras estão fora dos debates científicos e, neste caso, se trata de Lélia Gonzalez na antropologia, é porque mecanismos existem e operam para deixar de fora da validação do conhecimento uma coletividade que ainda é tratada mais como objeto que sujeito (o que coloca em jogo teorias, metodologias, publicações, recursos, grupos e trânsitos nacionais e internacionais).

Leituras contemporâneas de Lélia Gonzalez: ciências sociais, antropologia e feminismo

Após seu falecimento, Lélia Gonzalez é referida basicamente pela militância negra (feminista e acadêmica). O principal artigo é escrito pela socióloga Luiza Bairros (2000BAIRROS, Luiza. 2000. “Lembrando Lélia Gonzalez (1935-1994)”. Afro-Ásia, Salvador, n. 23:347-368.), contendo, além de memórias, uma lista de trabalhos e referências. Duas dissertações são elaboradas na área de história. Raquel Barreto (2005BARRETO, Raquel. 2005. Enegrecendo o feminismo ou feminilizando a raça: narrativas de libertação em Ângela Davis e Lélia Gonzalez. Dissertação de Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.) faz uma justaposição do pensamento e dos percursos de Angela Davis e Lélia Gonzalez, enfatizando o imbricamento entre raça, gênero e classe que ambas elaboraram em seus escritos. Elizabeth Viana (2006VIANA, Elizabeth do Espírito Santo. 2006. Relações raciais, gênero e movimentos sociais: o pensamento de Lélia Gonzalez (1970-1990). Dissertação de Mestrado em História Comparada, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro. ), companheira de Lélia Gonzalez na militância negra feminista, articula relatos, estudos, documentações, reflexões sobre raça, gênero, nação e o pensamento social brasileiro.

Após esses primeiros trabalhos, diversas leituras entram em cena. Na segunda década do século XXI, alguns livros, capítulos ou artigos foram escritos acerca de Lélia Gonzalez por pessoas afeitas ao campo das ciências sociais e/ou do feminismo negro: uma biografia pelo antropólogo Alex Ratts e a socióloga Flavia Rios (2010RATTS, Alex & RIOS, Flavia. 2010. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro.) que têm outra produção (Rios & Ratts 2016); uma fotobiografia pela filósofa em educação Sueli Carneiro (2014CARNEIRO, Sueli. 2014. Lélia Gonzalez: o feminismo negro no palco da história. Brasília: Abravídeo.); artigos da historiadora Claudia Pons Cardoso (2014CARDOSO, Claudia Pons. 2014. “Amefricanizando o feminismo”. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3:965-986, set.-dez., 2018), assim como de Barreto (2007BARRETO, Raquel. 2007. “Aquela ‘neguinha’ atrevida: Lélia Gonzalez e o movimento negro brasileiro”. In: Daniel Aarão Reis & Jorge Ferreira (orgs.), Revolução e Democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. pp. 451-478.) e Viana (2010VIANA, Elizabeth do Espírito Santo. 2010. “Lélia Gonzalez e outras mulheres: Pensamento feminista negro, antirracismo e antissexismo”. Revista da ABPN, v. 1, n. 1:52-63, mar. -jun.). Duas coletâneas marcam a recepção recente da autora ativista: Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa, da União dos Coletivos Pan-africanos (2018) e Por um feminismo afro-latino-americano, organizada pelas sociólogas Márcia Lima e Flávia Rios (2020). No ano de 2019, o tema da reunião da Lasa foi Améfrica Ladina: Vinculando Mundos y Saberes, Tejiendo Esperanzas, tendo à frente a antropóloga colombiana Mara Viveros Vigoya. Para o evento foi elaborado o Dossiê “El pensamiento de Lélia Gonzalez: um legado y um horizonte” (Lasa 2019:41-74) que marca a reentrada de suas ideias em outra perspectiva e na escala transnacional (Andrews 2022ANDREWS, George. 2022. “A Short History of Afro-Latin America Studies (1890-2020)”. In: Bernd Reiter & S John Antón Ánchez (orgs.), Routledge Handbook of Afro-Latin American Studies. New York: Routledge. pp. 347-362.). No conjunto de textos há miradas antropológicas - Keisha-Khan Perry, Osmundo Pinho, Diana Gómez Correal - sociológicas -, Augustín Lao-Montes, Edilza Sotero, Flavia Rios, Juliana Góes - e históricas -, Claudia Pons Cardoso.

A insurgência (hooks & West 1991hooks, bell & WEST, Cornel. 1991. Breaking Bread: Insurgent Black Intellectual Life. Toronto: Between the Lines.) de Lélia Gonzalez se situa na construção da persona acadêmica-militante ou da intelectual orgânica, para ficar na expressão gramsciana por ela acionada, transitando entre os muros universitários e diversos espaços sociais; na linguagem que agrega ou alterna o formal e a coloquialidade; na participação e no reconhecimento em vários movimentos; no trânsito entre coletividades negras políticas e artísticas (a exemplo do MNU e da escola de samba Quilombo); e na crítica ao sexismo masculino no movimento negro.

Estudiosas têm estabelecido a ligação entre as ideias de Lélia Gonzalez e intelectuais ativistas negras do Brasil e dos Estados Unidos que se detêm na experiência de mulheres negras e antecipam a noção de interseccionalidade, ao apontarem a tríade raça, sexo e classe para tratar da subalternização de mulheres negras à semelhança de Beatriz Nascimento (2021), Angela Davis (2016DAVIS, Angela. 2016 [1981]. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo .) e Audre Lorde (2019LORDE, Audre. 2019 [1984]. Irmã outsider. Belo Horizonte: Autêntica.).

No caso de Lélia Gonzalez, assinalo o fato de esta ser e se posicionar constantemente como uma mulher, negra, proveniente da classe popular. Tal empreendimento acrescenta à reflexão acerca das propostas da primeira autora ao trazer a lume vários termos, expressões e reflexões em perspectiva interseccional, antes do termo ser cunhado (Rios & Ratts 2016RIOS, Flavia & RATTS, Alex. 2016. “A perspectiva interseccional de Lélia Gonzalez”. In: Sidney Chaloub & Ana Flávia Magalhães Pinto (orgs.), Pensadores negros - Pensadoras negras. Brasil, séculos XIX e XX. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço. pp. 387-403.): a ideia de “tríplice discriminação”, a correlação entre processos opressivos (racismo, sexismo, elitismo, mas também a segregação) e entre os movimentos (negro, de mulheres, de mulheres negras e “homossexual” (Gonzalez 2020).13 13 A noção de interseccionalidade tem várias acepções, inclusive no pensamento feminista negro do qual me aproximo resguardando as diferenciações de abordagem. Beatriz Nascimento (1976) escreveu o artigo “A mulher negra no mercado de trabalho”. Audre Lorde (2019) evidencia a correlação entre diferenças - idade, raça, sexo, classe -, entre opressões - racismo, sexismo, classismo, homofobia, etarismo -, e as identificações - mulher, negra, lésbica, feminista. Ainda nesse sentido, Angela Davis (2016) correlaciona raça, sexo e classe, mas não utiliza diretamente a noção (Souza 2022). Kimberle Crenshaw (1991), reconhecida por ter cunhado o termo, sendo jurista, utiliza-o para analisar e propor intervenções na situação de mulheres negras diante de vários tipos de violência.

No uso interpelador da linguagem estabelecida, Gonzalez pode ser justaposta a Gloria Anzaldúa (1987GONZALEZ, Lélia. 1987. Festas populares no Brasil. Rio de Janeiro: Index.) pela escrita (e fala) por vezes “indomável” e tramada entre fronteiras geográficas, acadêmicas e ativistas. Lélia tornou-se conhecida por usar em ensaios, artigos e entrevistas termos e expressões coloquiais e outras do português afro-brasileiro que ela denominava de pretuguês, diferindo completamente das formas de se exprimir no meio acadêmico que segue a norma do português brasileiro.

No mesmo movimento de tornar-se negra, ela faz esse deslocamento da linguagem em relação à sua formação anterior (Colégio Pedro II, Filosofia na Universidade da Guanabara), como rememora numa entrevista:

A partir daí fui transar o meu povo mesmo, ou seja, fui transar o candomblé, macumba, essas coisas que eu achava que eram primitivas. Manifestações culturais que eu, afinal de contas, com uma formação em filosofia, transando uma forma cultural ocidental tão sofisticada, claro que não podia olhar como coisas importantes (Gonzalez 2020GONZALEZ, Lélia (aut.); RIOS, Flavia & LIMA, Márcia (orgs.). 2020. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar.:287).

Além de negra/negro e preta/preto, Lélia utiliza epítetos raciais corriqueiros: negrada, negadinha, neguinho/neguinha, nega/nego, crioula/crioulo. Traz também termos de identificação racial e de gênero bastante particulares: “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc., mas se tornar negra é uma conquista)” (Gonzalez 1988cGONZALEZ, Lélia. 1988c “A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social”. Raça e Classe, Brasília, Ano 2, n. 5:2, nov./dez.:05). Gonzalez (1988a) põe em questão palavras e expressões de cunho semelhante em uso nos Estados Unidos: “A coletividade negra dos Estados Unidos aceitou e rejeitou uma série de termos de autoidentificação: ‘colored’, ‘negro’, ‘black’, ‘afro-american’, ‘african-american’” (:77). Na crítica às duas últimas formulações, a autora apresenta uma elaboração distinta:

As implicações políticas e culturais da categoria de amefricanidade (Amefricanity) são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ELA se manifesta: a América como um todo (Sul, Central, Norte e Insular) (Gonzalez 1988bGONZALEZ, Lélia. 1988b. “A categoria político-cultural de amefricanidade”. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93:69-82, jan.-jun.:77).

Acionando a ideia do teórico afrocêntrico Molefi Kete Asante de que toda linguagem é epistêmica, Lélia Gonzalez nos remete a uma geografia da episteme que envolve África, América e Caribe. Além dessas reflexões e proposições, a ideia de amefricanidade e de amefricana é uma das mais trabalhadas pela autora em alguns ensaios e vários textos de divulgação ou da imprensa militante (Gonzalez 1988b). Mais uma vez identifico essa geografia - pessoal, linguística e política - em Anzaldúa (1987ANZALDÚA, Gloria. 1987. Borderlands/La Frontera: La new mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books.) ao se posicionar e problematizar a fronteira / borderland, tema fulcral para a população chicana, e em Lorde (1984) com a ideia de sister ousider (a irmã “de fora”) e, posteriormente, a expressão outsider within, cunhada por Collins (2016COLLINS, Patricia Hill. 2016. “Aprendendo com a outsider within*: a significação sociológica do pensamento feminista negro”. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 01:99-127, jan.-abr ) para pensar o posicionamento de mulheres negras no espaço acadêmico.

A abordagem sugerida pelas experiências das outsiders within é de que os intelectuais aprendam a confiar em suas próprias biografias pessoais e culturais como fontes significativas de conhecimento. Ao contrário de abordagens que exigem submergir essas dimensões do self durante o processo de se tornar um cientista social objetivo, supostamente não enviesado, as outsiders within reintroduzem essas formas de conhecimento no procedimento de pesquisa (:123).

Na esteira dessas reflexões, considero relevante ler Lélia Gonzalez em correlação com teóricas-ativistas negras, a exemplo de Beatriz Nascimento, Luiza Bairros e Sueli Carneiro e várias outras de norte a sul do país. A primeira, contemporânea, com quem participou da construção dos movimentos negros e da elaboração de abordagens singulares das culturas negras na diáspora africana. As duas últimas enquanto companheiras de militância nos movimentos negro, feminista e de mulheres negras.

Uma digressão com direção: procurando Lélia, reencontrando Zora

Na virada para o século XXI, circulo entre a militância de São Paulo e Rio de Janeiro, com interesse em relações raciais e étnicas, mas ainda iniciante no tocante a gênero. Leio poucos textos de Lélia Gonzalez, acerca de quem escuto muitas evocações, por exemplo, de Abdias Nascimento. Para a coletividade militante-acadêmica, é relevante o jogo de espelhos com intelectuais-ativistas de várias gerações.

O artigo “Lembrando Lélia Gonzalez”, da socióloga Luiza Bairros (2000BAIRROS, Luiza. 2000. “Lembrando Lélia Gonzalez (1935-1994)”. Afro-Ásia, Salvador, n. 23:347-368.), foi efetivamente a porta de entrada para apreender mais sua trajetória e produção. A autora narra seu encontro com Gonzalez:

Conheci Lélia Gonzalez quando entrei para o Movimento Negro Unificado/MNU em 1979. Ela era membro da Comissão Executiva Nacional, e a todos surpreendia pelo comportamento ousado, a risada de corpo inteiro, o linguajar popular, bem ao modo do falar carioca, salpicado de expressões acadêmicas, que até permitia que nós, os militantes mais novos, entendêssemos o que é epistemologia! Na época não havia ninguém com a capacidade dela de pulverizar os argumentos racistas nos debates de que participávamos, de defender a legitimidade e a necessidade do movimento negro quando todos os setores autointitulados progressistas nos acusavam de divisionistas da luta popular (:342).

Impacto semelhante se deu no encontro com Lélia Gonzalez por parte da estudante de filosofia Sueli Carneiro (2004CARNEIRO, Sueli. 2004. Sueli Carneiro I (depoimento). Rio de Janeiro: PDOC/Fundação Getúlio Vargas (FGV). ), feminista, mais à frente fundadora de Geledés - Instituto da Mulher Negra e filósofa da educação:

E de fato, quando eu ouvi a Lélia Gonzalez, eu descobri o que eu queria ser quando crescesse [riso]. Politicamente, do ponto de vista político [sic]. Porque a Lélia veio resolver o pedaço que faltava em toda essa efervescência, de todo esse debate, e que era fundamental para minha experiência pessoal, para minhas inquietações. Que era como pensar a questão de gênero, pensar a questão específica da mulher negra no contexto da luta racial. E quando eu ouvi a Lélia, parecia que ela estava dentro do meu cérebro organizando, entrando no meu cérebro e organizando tudo que me inquietava, tudo que eu sentia, que eu não conseguia formular, que eu não conseguia organizar, parece que ela botou ordem na casa. E a partir daquele dia eu sabia perfeitamente o que é que eu iria fazer, que eu iria construir a minha militância articulando as duas questões de gênero e de raça (:04).

Ambas ressaltam a habilidade de Lélia Gonzalez para a formulação de ideias nos três âmbitos de intervenção - negro, feminista e de mulheres negras - e a correlação entre raça, sexo e classe no movimento de mulheres e nos estudos de gênero. Era uma intelectual ativista, uma semelhante, que as impelia a prosseguir.

Em outra temporalidade e circunstância, conheço Carneiro e Bairros. A primeira, na ocasião em que presto colaboração a um projeto de Geledés - Instituto da Mulher Negra e em diversos encontros. A segunda, em Brasília, à frente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e eu numa consultoria para o Ministério da Educação e Cultura (MEC). No III Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as, realizado em setembro de 2004, em São Luís, na Universidade Federal do Maranhão, participo do Grupo de Trabalho “Intelectuais e artistas negros/as” e do minicurso “Intelectuais ativistas, gênero e territorialidade: Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento com Flavia Rios e Adriana de Cássia Moreira”. Em seguida, a convite de Luiza Bairros, fui inserido em uma das mesas da Semana Lélia Gonzalez que aconteceu em outubro do mesmo ano, organizada pelo escritório da Fundação Cultural Palmares no Rio de Janeiro.

Nesse mesmo contexto e período, encontro Kwasi Konadu, professor de história africana e estudos da diáspora da Colgate University, Estados Unidos, jamaicano, neto de ganenses, que ministra um curso com esses temas para o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da universidade em que trabalho. Em uma de nossas conversas, ele me pergunta se conheço a antropóloga afro-americana Zora Neale Hurston. Diante da minha negativa, me envia posteriormente o livro I Love Myself When I Am Laughing... A Zora Neale Hurston Reader editado por Alice Walker (1979WALKER, Alice (Ed.). 1979. I love myself when I am laughing… New York, Old Westbury,). Volta e meia folheio a coletânea, leio alguns textos, fazendo correlações com seu orientador, Franz Boas, até inseri-la numa disciplina sobre teorias clássicas e em outra acerca de relações raciais no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do qual participo. Demoro a relê-la, até reencontrá-la traduzida e comentada na atual movimentação por epistemologias negras nos circuitos antropológicos que passam por cursos regulares (graduação e pós-graduação) e extensão e por traduções.14 14 Em Ayé: Revista de Antropologia, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. O nº 01, vol. 01, de 2019 tem por título Fire!!! Textos escolhidos de Zora N. Hurston. Gonzalez e Hurston têm sido abordadas em estudos e em alguns cursos correlacionadas a mais personas desse âmbito: aos haitianos Antenor Firmin e Jean Price-Mars, aos baianos Manuel Querino e Edison Carneiro, à bailarina estadunidense Katherine Durham e ao colombiano Manuel Zapata Olivella, dentre mais nomes.15 15 Caso do curso “Vozes negras na antropologia”, ministrado por Messias Basques e Denise Costa. Disponível em: https://www.vozesnegras.com/ Acesso em 10/01/2022.

Zora Hurston reflete acerca do entendimento diverso da autoidentificação enquanto negra (:180-184) e aponta agudamente o desinteresse, por exemplo, dos editores brancos pelas coletividades e narrativas negras (1979:200-205). Com raras exceções, o mesmo se dá no Brasil, sobretudo com as editoras acadêmicas no período entre 1970 e 1990.

Duas considerações de Alice Walker (2021WALKER, Alice. 2021. Em busca dos jardins de nossas mães. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo .) acerca de Zora Hurston me vêm à mente quando penso em Lélia Gonzalez, no sentido de como observar e retratar uma observadora - inquieta, mas não incerta, desafiadora, mas não dispersa:

Esse foi o primeiro indício de qualidade que considero a mais característica da obra de Zora: saúde racial; uma visão das pessoas negras como seres humanos completos, complexos, plenos, uma noção que está ausente em boa parte da literatura e da escrita de pessoas negras. [...] O orgulho que Zora sentia do povo negro era tão evidente naquela pseudo década de vinte negra que deixava outros negros desconfiados e talvez desconfortáveis (afinal, eles ainda estavam apaixonados por coisas europeias). Zora estava interessada na África, no Haiti, na Jamaica e - em busca de alguma diversidade racial (indígenas) - em Honduras (:82:83).

Longe de ter uma apreensão sintética dos ditos e escritos de Lélia Gonzalez, percebo a interpretação da realidade social das coletividades negras em sua multiplicidade e complexidade por meio de representações variadas da linguagem, entre o popular e os filtros teóricos, pontuadas pela subjetividade, a indignação, a ira e o afeto. Além disso, com um lastro de escalas e situações que incidem na visão de mundo de quem a lê.

Formulando ideias nos anos 1970 e seguintes, época de autovalorização negra, Gonzalez, provavelmente, incomoda mais o público masculino negro que o feminino, mais o branco que o negro e o feminismo de maioria branca, sobretudo ao reiterar imagens incômodas da situação da mulher negra, dos espaços segregados, do racismo, do sexismo e da violência policial, mas também representações de expressões culturais negras que têm sua dimensão política: blocos afro, movimento soul, escolas de samba e outras.

E a antropóloga negra, “cumé que fica?”16 16 Esta expressão foi extraída do título do artigo “E a trabalhadora negra, cumé que fica? (Gonzalez 1982d), escrita para o Mulherio.

Na segunda metade da década de 1990, Lélia Gonzalez raramente é citada em textos de relatos ou levantamento bibliográficos de autoras das ciências sociais (antropologia e sociologia), vinculadas aos estudos de raça, gênero ou mulheres (Corrêa 1996CORRÊA, Mariza. 1996. “Sobre a invenção da mulata”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 6-7:35-50., 1997; Schwarcz 1999SCHWARCZ, Lilia M. 1999. “Questão racial e etnicidade”. In: Sergio Miceli (org.), O que ler na Ciências Sociais (1970-1995). Vol. 1 - Antropologia. São Paulo: Sumaré . pp. 267-322.; Heilborn & Sorj, 1999HEILBORN, Maria Luiza & SORJ, Bila. 1999. “Estudos de gênero no Brasil”. In: Sergio Miceli (org.), O que ler na Ciências Sociais (1970-1995). Vol. 2 - Sociologia. São Paulo: Sumaré. pp. 183-221.). No entanto, não cabe no escopo deste artigo um arrazoado maior dessa problemática, na qual insiro também minha participação nesses circuitos, as lembranças de eventos nesse lastro de tempo e as rarefeitas autorias negras.

Transitando na pós-graduação, trabalhando com o pensamento de autoras, observo por parte das elites das ciências humanas, situadas em determinadas instituições, associações e comissão editorial de publicações, uma recusa composta por obstáculos para reconhecer o pensamento da intelectualidade negra ativista, especialmente das mulheres (Collins 2019COLLINS, Patricia Hill. 2019. Pensamento feminista negro: Conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo.; Carneiro 2005CARNEIRO, Sueli. 2005. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de Doutorado em Filosofia da Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo.). Com raras exceções, muitas vezes masculinas e/ou estrangeiras, as autorias e as teorias negro-africanas não têm espaço e, desta forma, não são apresentadas adequadamente em suas correlações, diferenciações e contradições. Algumas coletâneas publicizadas entre meados da década em menção e a seguinte merecem nota por trazerem as reflexões teórico-políticas de autoras-ativistas negras (Munanga 1996MUNANGA, Kabengele (org.). 1996. Estratégias políticas de combate à discriminação racial. São Paulo: Edusp.; Guimarães & Huntley, 1999GUIMARÃES, Antonio Sérgio & HUNTLEY, Lynn (orgs.). 1999. Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34.) ou por elas organizadas (Werneck, Mendonça & White, 2000WERNECK, Jurema; MENDONÇA, Maisa & WHITE, Evelyn (orgs.). 2000. O livro de saúde das mulheres negras. Rio de Janeiro: Pallas. ).

Essa objeção é constitutiva da modernidade-colonial científica na qual, há pouco mais de cem anos, a diferença étnica e racial era apresentada em exposições ditas universais, que mostravam avanços técnicos, mas não as condições violentas de sua captação e produção. Uma ciência de homens brancos, quadro de nascimento da antropologia, obviamente bastante questionado “de fora e de dentro”. Todavia, o colonialismo, interligado com racismo e sexismo, continua em operação. Os mecanismos desse emparedamento, ao mesmo tempo são desvelados e recriados: leituras em determinadas línguas colonizadoras, modelo - quase único - de escrita acadêmica, constituição de áreas de pesquisa como se não tivessem a ver com racialidade, etnicidade e poder e, da mesma forma, as orientações.

A entrada de corporeidades negras e indígenas, corpos que pensam, através de ações afirmativas nas universidades, move as barreiras epistêmicas. No entanto, a curto prazo, não vislumbro o enegrecimento do corpo docente na antropologia, sobretudo na pós-graduação e, por extensão, nas associações científicas, ainda que, eventualmente, algumas pessoas negras participem desses circuitos por demanda e mobilização coletiva. Tenho dúvidas se a fronteira entre sujeito/objeto e subjetividade/objetividade está superada ou não é efetivamente abordada, porque quase somente um lado se racializa e o faz com a pesquisa, o campo e a escrita, e o outro não o faz e se mantém com pouco ou nenhum deslocamento teórico-político. Indago qual teoria antropológica tem à frente autorias negras ou indígenas, para além dos limites das áreas de relações raciais, estudos de gênero ou etnologia indígena.

O interesse acadêmico-político na trajetória e na obra de Lélia Gonzalez está em franca expansão nas áreas de psicologia, psicanálise, direito, políticas públicas, história e, compreensivelmente, antropologia e sociologia (Rios 2022RIOS, Flavia. 2022. “Lélia Gonzalez, a intelectual afro-latin american”. In: Bernd Reiter & John Antón Sánchez (orgs.), Routledge Handbook of Afro-Latin American Studies. New York: Routledge . pp. 422-437.). O pensamento da autora é visto na perspectiva decolonial, enquanto precursora, sem pares e sem antecedentes (Hollanda 2020HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). 2020. “Introdução”. In: Heloisa Buarque de Hollanda, Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. pp. 12-38.). Porém, no movimento negro e de mulheres negras cabe fazer uma breve nominata em que reverberam as presenças de Ana Célia Silva (BA), Mundinha Araújo (MA), Diva Moreira (MG), Vera Triumpho (RS), Neusa Pereira (RJ), Elizabeth Viana (RJ), Pedrina de Deus (RJ), além das citadas Luiza Bairros (BA/RS) e Sueli Carneiro (SP).

Sua crítica à colonização e ao colonialismo antecede a constituição do campo da decolonialidade, ao qual pode ser aproximada com algumas mediações (Cardoso 2014CARDOSO, Claudia Pons. 2014. “Amefricanizando o feminismo”. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3:965-986, set.-dez.). Neste cenário, há uma crescente busca por autorias negras, sem que isto implique o reconhecimento de linhagens do pensamento negro em que Lélia Gonzalez se insere, ao menos, a partir de Aimé Cesaire, que ela destaca como um dos fundadores do movimento da negritude, poeta, político, “atuante no processo de descolonização” e com quem teve contato direto (Gonzalez 2020:272), Frantz Fanon com referência a Condenados da terra e a Peles negras e máscaras brancas, mas, sobretudo pelo trabalho com a dimensão psíquica do colonizado em face do colonizador (Gonzalez 2020:76, 130, 142), e Abdias Nascimento, companheiro de militância negra e partidária, poeta e pensador, conhecido particularmente pelos livros O negro revoltado e O genocídio do negro brasileiro: processo de um negro mascarado (Gonzalez 2020:133, 136).

Tendo em vista a distinção que Archie Mafeje (2020MAFEJE, Archie. 2020. “Um comentário sobre Antropologia e África”. Ayé: Revista de Antropologia, v. 4, n. 1:58-76. ) faz entre “estudos africanos” realizados por euro-americanos e “antropologia africana”, reivindicação dos africanos, Lélia Gonzalez é contemporânea de estudos africanos e afro-brasileiros realizados em sua maior parte por homens euro-americanos e europeus e coetânea da propugnação de um trabalho acadêmico feito, como se diz recentemente, “de dentro”. No entanto, a autora não chega a propor uma antropologia negra, negro-africana ou diaspórica, mas é possível entrever que lança as bases para esta formulação.

Considerando que a antropologia não é feita somente por antropólogos/as com formação acadêmica, estamos diante de uma pensadora-ativista que pode ser lida não somente como produtora de um discurso “específico”, mas sim de uma perspectiva antropológica, a exemplo de mais intelectuais ativistas entre os anos 1970 e 1990 que se debruçaram sobre as questões raciais, negras e africanas. Nesse processo, prefiguro reparações epistêmicas: mais autorias e epistemologias negras nos cursos de Ciências Sociais/Antropologia, das disciplinas eletivas às obrigatórias (teóricas e metodológicas), reinserindo Lélia Gonzalez no lugar onde exerceu observação, estudo, ensino, intervenção e escrita. Continuo indagando: “cumé que a gente fica”?

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  • WALKER, Alice. 2021. Em busca dos jardins de nossas mães Rio de Janeiro: Bazar do Tempo .
  • WERNECK, Jurema; MENDONÇA, Maisa & WHITE, Evelyn (orgs.). 2000. O livro de saúde das mulheres negras Rio de Janeiro: Pallas.
  • 1
    NA SEGUNDA METADE DO MENCIONADO DECÊNIO, CURSO O DOUTORADO EM ANTROPOLOGIA NUMA UNIVERSIDADE NO CENTRO-SUL DO PAÍS. TENDO UM ORIENTADOR NEGRO, LEIO AUTORIAS REFLEXAS, MAS POUCAS MULHERES. NA VIRADA DO SÉCULO XXI, NOS EVENTOS E NAS PUBLICAÇÕES ANTROPOLÓGICAS, RARAMENTE O NOME DE LÉLIA GONZALEZ É ACIONADO, A NÃO SER PELA MILITÂNCIA NEGRA, ESPECIALMENTE AS MULHERES.
  • 2
    Disponível em: https://www.anpocs.com/index.php/4d-encontro-anual-1980/gt-5. Acesso em 10/01/2022.
  • 3
    Borges Pereira (1981) apresentou trabalho no evento do GTAR com um conteúdo semelhante à comunicação feita na Anpocs. Além dos nomes listados, havia outros pesquisadores em universidades de São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro e Niterói e também eventos (Simpósio na SBPC e Quinzena do Negro/USP, ambos realizados em São Paulo em 1977).
  • 4
    Os dados biográficos vêm dos seguintes estudos: Barreto (2005); Viana (2006); Ratts & Rios (2010); Carneiro (2014).
  • 5
    GONZALEZ, Lélia. A presença negra na cultura brasileira. 1977. GAM-Galeria de Arte Moderna, Rio de Janeiro, n. 37, mar. 1977. Acervo Memória Lage. Republicado em Machado; Silva; Baudoin & Carrilho. 2019, p. 74-75.
  • 6
    Cabe notar que parte significativa da intelectualidade negra em atuação no período tinha ou passa a ter uma proximidade com expressões culturais e artísticas negras: movimento soul, samba e religiões de matriz africana. Gonzalez participou da criação da Escola de Samba Quilombo em 1978 e, por sua vez, um dos sambas-enredo foi composto a partir da produção da intelectualidade negra, com ela incluída.
  • 7
    Lélia Gonzalez utiliza criticamente termos do paradigma culturalista. Logo após é publicada no Brasil a tradução de A interpretação das culturas, de Clifford Geertz (1978), marca do paradigma hermenêutico ou da antropologia interpretativa. No escopo deste artigo não cabe cotejar a produção subsequente da autora em face dessas balizas tornadas dominantes no pensamento antropológico com as quais ela demonstra ter propriedade.
  • 8
    Neste sentido, relembro que a formação e os trabalhos iniciais de Audre Lorde são na área de biblioteconomia (library, em inglês). Sendo esta autora muito cuidadosa com suas apresentações, raramente indicou a profissão primeira e pela qual é pouco reconhecida.
  • 9
    Nos textos acessíveis (entrevistas e textos biográficos) não foi encontrada uma documentação que apresentasse entrada ou efetivação da pós-graduação em Comunicação ou em Antropologia.
  • 10
    Desde 1977, ela passa a integrar o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, sendo anunciada com destaque na imprensa, na matéria “Os filhos de Lacan” (JB, 24/01/1977), que divulga um curso de formação em psicanálise do qual ela é uma das professoras. Esse cabedal aparece em alguns ensaios, desde suas preocupações com o uso de categorias lacanianas para entender determinados vieses da cultura brasileira, do racismo e do sexismo.
  • 11
    Ainda nesse foco, ela aponta a visão esquemática e estereotipada das crianças negras como “indisciplinadas” e a implicação dessa postura na evasão escolar (Gonzalez; Lima & Rios 2020:39).
  • 12
    A noção de “obstáculo epistemológico” utilizada por Gonzalez (2020:31) é uma conhecida expressão de Eduardo de Oliveira e Oliveira.
  • 13
    A noção de interseccionalidade tem várias acepções, inclusive no pensamento feminista negro do qual me aproximo resguardando as diferenciações de abordagem. Beatriz Nascimento (1976) escreveu o artigo “A mulher negra no mercado de trabalho”. Audre Lorde (2019) evidencia a correlação entre diferenças - idade, raça, sexo, classe -, entre opressões - racismo, sexismo, classismo, homofobia, etarismo -, e as identificações - mulher, negra, lésbica, feminista. Ainda nesse sentido, Angela Davis (2016) correlaciona raça, sexo e classe, mas não utiliza diretamente a noção (Souza 2022). Kimberle Crenshaw (1991), reconhecida por ter cunhado o termo, sendo jurista, utiliza-o para analisar e propor intervenções na situação de mulheres negras diante de vários tipos de violência.
  • 14
    Em Ayé: Revista de Antropologia, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. O nº 01, vol. 01, de 2019 tem por título Fire!!! Textos escolhidos de Zora N. Hurston.
  • 15
    Caso do curso “Vozes negras na antropologia”, ministrado por Messias Basques e Denise Costa. Disponível em: https://www.vozesnegras.com/ Acesso em 10/01/2022.
  • 16
    Esta expressão foi extraída do título do artigo “E a trabalhadora negra, cumé que fica? (Gonzalez 1982d), escrita para o Mulherio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2022
  • Aceito
    09 Nov 2022
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