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Na linha: os Nambiquara e as linhas telegráficas* * Apresentei o texto que deu origem a este artigo no III Seminário Inovações Ameríndias no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/ UFRJ, em outubro de 2022. Agradeço aos comentários feitos na época, especialmente a Aparecida Vilaça, Oiara Bonilla, Nicole Soares-Pinto, Marta Amoroso e Leonardo Nascimento da Silva. Agradeço também as sugestões feitas pelos pareceristas anônimos que avaliaram o meu texto

On the Line: The Nambikwara and Telegraph Lines

En líena: Los Nambikwara y las líenas telegráficas

RESUMO

Este artigo pretende retomar o evento histórico da passagem das linhas telegráficas pelo território ocupado pelos povos Nambiquara, a partir do que eu proponho chamar de uma teoria das linhas formulada pelos grupos Nambiquara no contexto ritual. Minha intenção não é especular se o ritual de algum modo reproduz a imagem das linhas telegráficas ou das estradas que atravessaram o território nambiquara, originando-se de uma experiência histórica. Pretendo argumentar que, para os Nambiquara, a estrada, os fios telegráficos e as linhas usadas durante o ritual podem ser considerados condutores ontológicos a partir dos quais podemos refletir sobre a noção de transformação nesse contexto etnográfico. Minha hipótese é a de que essa teoria nambiquara das linhas deixa à mostra uma concepção de território na qual a mesma topografia constitui pessoas e lugares e tem sua expressão material nas linhas que atravessam o espaço e os corpos.

Palavras-chave:
Nambiquara; Linhas telegráficas; Ritual; Território; Corpo

ABSTRACT

The aim of this article is to explore the history of the passage of telegraph lines through the territory occupied by the Nambikwara peoples, based on what I propose to call a theory of lines, formulated by the Nambikwara groups in ritual contexts. My intention is not to speculate whether the ritual somehow reproduces the image of the telegraph lines and roads that crossed Nambikwara territory, originating in a historical experience. Rather, I intend to argue that, for the Nambikwara, roads, telegraph wires, and the lines used during rituals are ontological conductors through which we can reflect on the notion of transformation in this ethnographic context. My hypothesis is that the Nambikwara theory of lines shows a conception of territory in which topography constitutes people and places and has its material expression in the lines that cross spaces and bodies.

Keywords:
Nambikwara; telegraph lines; ritual; territory; body

RESUMEN

Este artículo pretende retomar el acontecimiento histórico del paso de las líneas telegráficas por el território ocupado por los pueblos Nambikwara, a partir de lo que propogno llamar una teoría de las líneas formulada por los grupos Nambikwara en el contexto ritual. Mi intención no es especular si el ritual reproduce de alguna manera la imagen de las líneas telegráficas o de los caminos que atravesaban el território Nambikwara, originados en una experiencia histórica. Mi inténción es argumentar que, para los Nambikwara, la carretera, los cables del telégrafo y las líneas utilizadas durante el ritual pueden considerase conductores ontológicos a partir de los cuales podemos reflexionar sobre la noción de transformación en este contexto etnográfico. Mi hipótesis es que esta teoría Nambikwara de las líneas muestra una concepción del territorio en la que la misma topografía constituye personas y lugares y tiene su expresión material en las líneas que atraviesan el espacio y los cuerpos.

Palavras clave:
Nambikwara; líenas telegráficas; ritual; territorio; cuerpo

Introdução

Em Tristes Trópicos, Lévi-Strauss descreve sua passagem pelo território ocupado pelos grupos Nambiquara evocando a imagem de uma paisagem desoladora. Uma selva homogênea do tamanho da França quase inexplorada, cruzada, de um lado a outro, por uma linha telegráfica. “Quem vive na linha de Rondon facilmente se imaginaria na Lua”, ele diz, acrescentando em seguida que:

A pista sumariamente desmatada que a acompanha - a “picada” -fornece o único ponto de referência em setecentos quilômetros, pois, se excetuarmos alguns reconhecimentos feitos pela Comissão Rondon ao norte e ao sul, o desconhecido principia nas duas beiras da “picada”, supondo que seu traçado seja ele próprio indistinguível da selva. É verdade que há o fio; mas este, que perdeu a utilidade logo depois de instalado, está frouxo entre os postes que não são substituídos quando desabam de podres, vítimas dos cupins ou dos índios que confundem o zumbido característico de uma linha telegráfica com o de uma colmeia de abelhas selvagens trabalhando. Em certos lugares o fio se arrasta no chão; ou foi pendurado com displicência nos arbustos próximos. Por mais espantoso que pareça, a linha aumenta, mais do que desmente, a desolação do local (Lévi-Strauss 1996LÉVI-STRAUSS, Claude. 1996 [1955]. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras.:256).

Na visão de Lévi-Strauss, a linha telegráfica e o caminho desmatado na floresta não são suficientes para demarcar limites ou criar descontinuidades na paisagem, são traços borrados quase indistinguíveis de um todo homogêneo. A sensação de desolação, aumentada pela presença da linha telegráfica nesse contexto, é traduzida pela imagem de um traço externo à paisagem que não é suficiente para alterá-la ou para estabelecer descontinuidades que lhe confiram algum sentido. O desconhecido permanece.

Pretendo retomar o evento histórico da passagem das linhas telegráficas pelo território ocupado pelos povos Nambiquara, iniciado cerca de vinte anos antes da viagem de Lévi-Strauss por esta região, a partir do que eu proponho chamar de uma teoria das linhas formulada pelos grupos Nambiquara no contexto ritual. Minha intenção não é especular se o ritual de algum modo reproduz a imagem das linhas telegráficas ou das estradas que atravessaram o território nambiquara, originando-se de uma experiência histórica. Pretendo argumentar que, para os Nambiquara, a estrada, os fios telegráficos e as linhas usadas durante o ritual podem ser considerados condutores ontológicos1 1 Por “condutores ontológicos” refiro-me ao meio ou suporte que processa o trânsito entre diferentes mundos que são, em muitas cosmologias ameríndias, concebidos como transformações ontológicas ou corporais (Lima 1996, e Viveiros de Castro 1996). Sobre a ideia dos colares e dos documentos como condutores ontológicos entre os Mamaindê ver respectivamente Miller (2015, 2018). a partir dos quais podemos refletir sobre a noção de transformação nesse contexto etnográfico.

Minha hipótese é a de que essa teoria nambiquara das linhas deixa à mostra uma concepção de território na qual a mesma topografia constitui pessoas e lugares e tem sua expressão material nas linhas que atravessam o espaço e os corpos. Nesse sentido, a linha, suspensa nos postes ou marcada no chão da floresta, não liga pontos fixos em um território homogêneo, não estabelece fronteiras ou limites predeterminados, mas sugere uma outra concepção do espaço que é irredutível ao espaço geométrico.

Os Nambiquara

O termo Nambiquara é usado desde o início do século XX para designar os diversos grupos que ocupavam a região que atualmente compreende o noroeste do estado do Mato Grosso e as adjacências do estado de Rondônia. Estes grupos apresentavam importantes diferenças linguísticas, apesar de falarem línguas da família nambiquara, e mantinham relações de troca e de guerra entre si e também com outros grupos indígenas da região, como os Paresi, grupo falante de uma língua aruak situado ao sudeste do território Nambiquara, e os Cinta-Larga e Suruí, falantes de línguas tupi situados ao norte.

A partir do séc. XVIII, os grupos Nambiquara do Vale do Guaporé estabeleceram relações com negros escravizados que fugiam do trabalho nas minas de ouro da região e se refugiavam em quilombos. Todas essas relações constituíram um contexto etnográfico regional complexo que ainda necessita ser devidamente descrito e analisado.

Realizei meu trabalho de campo com os Mamaindê, um grupo localizado no norte do território habitado pelos Nambiquara, na Terra Indígena do Vale do Guaporé. Atualmente o extenso território que fora tradicionalmente ocupado por diversos grupos Nambiquara, alguns já extintos, está dividido em nove Terras Indígenas não contínuas e de tamanhos variados. O meu argumento neste trabalho se baseia nos dados etnográficos que reuni durante a minha pesquisa de campo com os Mamaindê e também em etnografias escritas sobre outros grupos Nambiquara.

Os caminhos dos espíritos: a festa do dono dos porcos

Quando fazia trabalho de campo com os Wasusu, um grupo Nambiquara do sul do Vale do Guaporé, Marcelo Fiorini (1997FIORINI, Marcelo O. 1997. Embodied names; construing Nambikwara personhood through naming practices. Dissertação de Mestrado, New York University.) perguntou a um antigo funcionário da Funai o que ele havia visto de mais estranho entre os Nambiquara. A resposta foi a descrição de um acontecimento que ele presenciara na década de 1980 em uma aldeia dos Negarotê, situada no norte do Vale do Guaporé, a alguns quilômetros de distância da aldeia mamaindê onde realizei minha pesquisa no início dos anos 2000. Naquela ocasião, ele atuava como chefe do posto da Funai e chegou na aldeia sem avisar. Deparou-se com o local coberto por fios de nylon e de algodão que saíam do pátio central, onde os mortos eram enterrados, e entravam em todas as casas localizadas ao redor desse pátio.

No final da década de 1980, Alba Figueroa realizou uma pesquisa com os Negarotê. O acontecimento mencionado pelo chefe do posto da Funai a Marcelo Fiorini lhe foi descrito por um jovem negarotê como a “festa do dono dos porcos”. Tratava-se de um ritual realizado na época da seca, tempo de derrubada e de queimada de novas roças. Ele ilustrou sua descrição do ritual com um desenho cuja imagem indicava uma aldeia circular. De uma pequena cabana no centro saíam fios de algodão suspensos por pedaços de madeira fincados ao solo. Os fios seguiam até as casas ao redor do pátio central e também conectavam as casas e a cabana no centro da aldeia à outra pequena cabana localizada na roça. O emaranhado de linhas de algodão suspensas ligava a aldeia à roça e era chamado de “o caminho de yamakdu” (figura 1).

Figura 1
Desenho do caminho de yamakdu (Figueroa 1989FIGUEROA, Alba L.G. 1989. Comunicação intercultural em saúde: subsídios para uma ação social em educação indígena. Dissertação de Mestrado, USP, São Paulo. :78)

De acordo com os Mamaindê, yamakdu2 2 O termo yamakdu é provavelmente derivado do termo yamaka com o qual os Paresi (grupo falante de uma língua aruaque) designam as suas flautas sagradas (ver Costa 1985). é um termo que designa um coletivo de espíritos relacionados ao ancestral mítico de mesmo nome que deu origem às plantas cultivadas e que se transformou nas flautas tocadas durante o ritual de abertura de novas roças. O termo designa também o “dono dos porcos”, um tipo de espírito que mantém os porcos presos dentro de um buraco ou caverna, liberando-os durante a estação chuvosa quando determinados frutos amadurecem. No ritual descrito por Figueroa, através das linhas de algodão com as quais os Negarotê conectavam as casas à roça, tais espíritos chegavam à aldeia para consumir a comida que havia sido preparada pelas mulheres e deixada no pátio central. Enquanto os espíritos estavam na aldeia, as mulheres e as crianças pequenas deveriam permanecer dentro de suas casas, expostas ao aroma de resinas atiradas em pequenas fogueiras.

Quando esteve, em 1907, em uma aldeia nambiquara da região do Vale do Juruena, Rondon (1922RONDON, Cândido Mariano da Silva. 1922. “Conferências realizadas em 1910 no Rio de Janeiro e São Paulo”. CLTEMTA, Publicação 68, Rio de Janeiro, typ. Lenzinger:32-33) observou que a aldeia era composta por uma casa grande e outras duas menores, ambas com formato semiesférico e cobertas de palha. Em uma das casas menores ele encontrou flautas de taquara que, segundo ele, eram semelhantes às dos Paresi. Alguns anos mais tarde Roquette-Pinto esteve com os Nambiquara seguindo o trajeto das linhas telegráficas. Ele também descreveu as aldeias nambiquara tendo um formato circular, com o terreiro em frente às casas “irrepreensivelmente limpo”, e acrescentou que “a marcha circular, que faz(ia) o chão da aldeia no meio do cerrado, toma(va) a feição de uma estrela, mercê dos trilhos que partem de sua circunferência” (Roquette-Pinto 1975ROQUETTE-PINTO, Edgar. 1975 [1917]. Rondônia. 6. ed. São Paulo: Editora Nacional.:164-165, o grifo é meu). No pátio central situava-se a casa das flautas, local destinado a guardar estes instrumentos feitos de taquara, cuja visão era interditada às mulheres.

Atualmente, as aldeias mamaindê e negarotê não possuem mais a casa das flautas, embora haja menção a este tipo de construção nessas aldeias na década de 1960 (Aytai 1964AYTAI, Desidério. 1964. “Os cantores da Floresta; notas etnográficas sobre os índios Mamaindê”. Revista da Universidade Católica de Campinas, 10 (25-26):24-34.:32). Os Mamaindê dizem que deixaram de guardar as flautas na aldeia desde que o contato com os brancos se intensificou. No entanto, as festas das flautas continuam a ser realizadas, especialmente na estação seca, quando são abertas novas roças.

O ritual envolvendo as flautas, cuja visão era interditada às mulheres, foi mencionado por Lévi-Strauss (1948LÉVI-STRAUSS, Claude. 1996 [1955]. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras.:104), que esteve com bandos nambiquara em 1938, por David Price (1972PRICE, David. 1972. Nambikwara society, Tese de Doutorado, University of Chicago.) que estudou os grupos nambiquara da chapada dos Parecis na década de 1970, e por Lima e Mangin (1981LIMA, T.M.E de B & MANGIN, J.P.J. 1981. “Relatório de identificação Nambikwara, Mamaindê, Negarotê”. Brasília: Arquivo Funai (proc.3.3/67/81):48) que estiveram com os Mamaindê na década de 1980. Todos estes autores relacionaram de algum modo o ritual das flautas à abertura de novas roças. No entanto, nenhum desses relatos menciona a prática de colocar linhas de algodão ligando a aldeia à roça. É interessante notar, contudo, a semelhança entre a imagem das linhas de algodão suspensas, desenhadas pelo jovem nagarotê para indicar o caminho dos espíritos, e a descrição das trilhas no chão da aldeia circular dos Nambiquara visitada por Roquette-Pinto e que, segundo ele, davam à aldeia no cerrado um formato de estrela.

Os Mamaindê nunca mencionaram a prática de colocar, nessas ocasiões, linhas de algodão ligando as casas à roça, como no ritual observado entre os Negarotê. No entanto, insistiam que os espíritos que participavam desses rituais traziam para a aldeia miçangas em troca da comida recebida durante a festa. As miçangas eram usadas para fazer colares que enfeitavam principalmente as crianças pequenas.

Se no ritual realizado pelos Negarotê as linhas de algodão suspensas por galhos eram descritas como caminhos através dos quais os espíritos chegavam à aldeia, para os Mamaindê, como veremos, as miçangas trazidas pelos espíritos são colocadas em linhas com as quais eles fazem colares. Esses colares também são descritos como caminhos, mas estão localizados nos corpos das pessoas, constituindo elementos centrais na prática de cura xamânica. Nesse caso, marca-se, ainda, uma diferença de perspectivas: o que o xamã enxerga como um colar de contas pretas as pessoas comuns veem como uma linha de algodão.

As linhas e os colares

Os Mamaindê dizem que, além dos enfeites visíveis, possuem também enfeites internos que só o xamã é capaz de enxergar e de tornar visíveis durante as sessões de cura. Ambos são chamados genericamente de wasain’du (coisa, material) e não são concebidos como enfeites distintos. O que torna um enfeite visível ou invisível não é uma característica intrínseca a ele, mas a capacidade visual do observador. Do ponto de vista do xamã, um ser capaz de adotar múltiplos pontos de vista, o corpo humano se revela sempre devidamente ornamentado com muitas voltas de colar de contas pretas feitas do coco de tucum ao redor do pescoço, do tronco, da cintura e dos pulsos, mesmo que a pessoa não esteja usando nenhum enfeite externamente.

Além dos colares, o xamã também enxerga versões reduzidas de determinados animais situados em partes específicas dos corpos. No dente, ele vê uma oncinha que é responsável pela vontade de comer carne. No peito, ele vê uma cigarrinha, responsável pela pulsação do coração. Próximo ao ombro, ele enxerga um pequeno beija-flor que, dizem, é responsável pela vontade de beber chicha doce. Assim como os colares, esses animais também são chamados de wasain’du (coisa) e ambos são associados à noção de espírito (yuaptidu).

Durante o sono esses animais costumam sair do corpo carregando consigo os colares que são ditos seus caminhos. É por esses colares-caminhos que eles podem voltar ao corpo quando a pessoa acorda e, assim, retoma a capacidade de sentir fome, sede e o seu coração volta a pulsar de modo mais intenso. Durante as sessões de cura, o xamã costuma retirar colares de dentro do corpo dos doentes. Mas, como eu disse, o que ele enxerga como um colar as pessoas comuns enxergam como uma linha de algodão.

Os Mamaindê descrevem essa linha-colar como aquilo que nos dá um rumo, o sentido de direção, a memória, a capacidade de reconhecer os parentes e o caminho de volta para a aldeia e também como aquilo que nos faz sonhar. Sem essa linha-colar ficamos perdidos, doentes, afirmam os Mamaindê. A doença é assim concebida como uma perda ou troca de linhas-colares com outros seres que também possuem suas próprias linhas-colares. Portanto, o tipo de linha-colar que se tem indica o tipo de gente que se é a partir do amplo espectro de humanidade característico das cosmologias ameríndias, indicando também os caminhos pelos quais esses seres transitam.3 3 Para uma descrição mais detalhada da linha-colar dos Mamaindê, ver Miller (2018).

Grande parte das doenças que afetam os Mamaindê costuma ser descrita pelo xamã como uma troca de linhas com outros tipos de seres durante o sonho, o que faz com que a pessoa afetada passe a segui-los, deixando de reconhecer os seus próprios parentes aos quais ela passa a enxergar como “bichos”. Também se diz, nesses casos, que a pessoa se casa com os seres que se apoderaram de seus enfeites. A doença é, portanto, um processo de transformação que pode ser descrito como uma troca de enfeites com outros seres e também, o que é importante para o meu argumento aqui, como uma troca de caminhos pelos quais esses seres transitam.

O mesmo perigo que envolve o deslocamento do espírito do corpo durante o sonho também envolve o deslocamento da pessoa para longe da aldeia. Os Mamaindê costumam recomendar a quem se afasta muito da aldeia para ir à roça ou para caçar que use pelo menos uma volta de colar ao redor do pescoço. Assim, a pessoa evita o risco de ser capturada por outros seres, o que a faria perder o rumo, seguindo outros caminhos.

Gostaria de chamar a atenção para a diferença de perspectivas marcada pelos Mamaindê quando se fala dos caminhos: do ponto de vista humano, os caminhos dos espíritos são linhas de algodão. Do ponto de vista do xamã, e dos espíritos, essas linhas-caminhos são colares. Desse modo, os mesmos caminhos que atravessam o território - seja na forma de linhas de algodão suspensas por onde passam os espíritos, como no ritual descrito pelos Negarotê, seja como caminhos/trilhas no solo por onde transitam as pessoas, como descreveu Roquette-Pinto - também atravessam os corpos, na forma de colares. A mesma topografia constitui pessoas e lugares e tem sua expressão material nas linhas que atravessam o espaço e os corpos.

Imagens do xamã: transformação como troca de caminhos

Os xamãs mamaindê costumam usar constantemente muitas voltas de colar de contas pretas ao redor do pescoço e estão sempre mais enfeitados do que as outras pessoas. Esses enfeites são dados a eles pelos espíritos dos mortos e pelo xamã que o iniciou nas técnicas do xamanismo. De posse dos enfeites dos espíritos dos mortos, o xamã passa a ver o mundo dos espíritos e a ver os Mamaindê como os mortos os veem. É justamente por compartilhar a perspectiva dos espíritos dos mortos que o xamã só enxerga corpos enfeitados. Desse modo, como demonstrei em trabalhos anteriores (Miller 2015MILLER, Joana. 2015. “Carteira de alteridade: transformações mamaindê (Nambiquara)”. Mana. Estudos de Antropologia Social 21 (3):553-585., 2018MILLER, Joana. 2018. As coisas: os enfeites corporais e a noção de pessoa entre os Mamaindê (Nambiquara). Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj.), os enfeites do xamã são índices das relações que ele estabelece com os espíritos dos mortos, que o tornam um ser múltiplo e diferente de si mesmo, capaz de adotar outros pontos de vista.

A imagem do xamã como um ser cujo corpo é repleto de enfeites ou linhas invisíveis aos olhos das pessoas comuns não é exclusiva dos Mamaindê. Menciono aqui o exemplo dos Waiãpi, grupo falante de uma língua tupi da Guiana. Segundo a antropóloga Dominique Gallois, o xamã waiãpi

[S]e apresenta como um homem vistoso, fartamente decorado com fieiras de miçangas [...]. Tem o tronco envolto por finos fios de algodão que, partindo em todas as direções, o ligam com os mestres dos animais, nas árvores, no rio, nas pedras, nas montanhas; em seus punhos mantém amarrados fios que o ligam às queixadas, habitantes do final-da-terra (Gallois 1996GALLOIS, Dominique. 1996. “Xamanismo Waiãpi: nos caminhos invisíveis, a relação i-paie”.In: Esther. J. M. Langdon (org.), Xamanismo no Brasil: Novas perspectivas. Florianópolis: Ed. da UFSC. :41).

Os finos fios que ligam o xamã aos donos dos animais são descritos pelos Waiãpi como semelhantes aos fios de uma teia de aranha. É por meio desses fios que os donos disponibilizam (afrouxando os fios) ou regulam (puxando-os) seus xerimbabos. Em sentido inverso, é através desses mesmos fios que uma criatura pode voltar à sua morada, junto do seu dono. Deste modo, os fios podem ser descritos como caminhos (Oliveira 2012OLIVEIRA, Joana Cabral. 2012. Entre plantas e palavras. Modos de constituição de saberes entre os Wajãpi (AP). Tese de Doutorado, USP.:116).

De acordo com os Waiãpi, os caminhos permitem também que o princípio vital da pessoa possa se deslocar, seguindo para a aldeia dos mortos no céu ou percorrendo o mundo sem se perder durante o sono. Assim, o xamanismo waiãpi foi definido como um controle do movimento. A ação do xamã e dos “donos” está intimamente ligada à manipulação e ao conhecimento desses caminhos que cruzam os diversos domínios do universo e pelos quais diferentes tipos de seres podem transitar (Gallois 1996GALLOIS, Dominique. 1996. “Xamanismo Waiãpi: nos caminhos invisíveis, a relação i-paie”.In: Esther. J. M. Langdon (org.), Xamanismo no Brasil: Novas perspectivas. Florianópolis: Ed. da UFSC. :43).

De certo modo, o mesmo pode ser dito do xamanismo mamaindê: de posse dos colares dos espíritos dos mortos, o xamã se torna capaz de ver os vivos como os mortos os veem, enxergando seus corpos sempre enfeitados. Da perspectiva dos espíritos dos mortos, como vimos, esses colares são caminhos por onde os espíritos transitam. Assim, se o xamã waiãpi, tal como descrito por Gallois, pode ser definido por sua capacidade de enxergar os caminhos invisíveis pelos quais transitam outros seres, para os Mamaindê, o xamã é definido por sua capacidade de enxergar as linhas-colares que constituem os corpos particulares de cada espécie de sujeito com os quais ele se relaciona e que correspondem também aos caminhos pelos quais eles se movimentam.

Fiorini (2000 FIORINI, Marcelo O. 2000. The silencing of the names: identity and alterity in ana Amazonian society. Tese de Doutorado, New York University.:88-93) registrou um mito contado pelos Wasusu (um grupo Nambiquara do sul do Vale do Guaporé) em que a descrição do xamã também está relacionada aos fios/caminhos concebidos, neste caso, como partes de seu próprio corpo. Conta o mito que, no início dos tempos, havia um poderoso xamã, chamado de Gavião Real, que mantinha todos os animais presos em um buraco. Ele era o único que sabia como caçar soprando fumaça de tabaco sobre o buraco e flechando o animal que saía de dentro dele, provendo de carne toda a aldeia. Por este motivo, o xamã também é considerado o “dono” dos animais. O mito descreve como os animais saíram do buraco e passaram a viver na floresta, no mesmo momento em que as pessoas se transformaram em animais. A partir desse evento narrado pelo mito, ficou difícil caçar os animais que agora vivem espalhados pela floresta.

Registrei um mito semelhante entre os Mamaindê (Miller 2018MILLER, Joana. 2018. As coisas: os enfeites corporais e a noção de pessoa entre os Mamaindê (Nambiquara). Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj.:281-284). No entanto, o mito wasusu narra um episódio singular, que não me foi contato pelos Mamaindê, em que as linhas-caminhos são também partes do corpo do ancestral mítico. Depois de uma série de eventos que se seguiram à saída dos animais do buraco no qual eram mantidos pelo xamã, a sua esposa e o seu filho começaram a sentir falta de pessoas com as quais pudessem conviver. Assim, o xamã Gavião Real fez surgir, esticando certas partes de seu próprio corpo, um forte cordão que atravessava a aldeia ligando todas as casas entre si. À medida que as pessoas passaram a se mover por esse cordão, entrando e saindo das casas, esses fios-caminhos que as ligavam ao corpo do xamã foram danificados e o xamã começou a morrer. A morte do xamã provocou a queda do céu e o mundo se constituiu de diferentes patamares. Até então, não havia nada acima do céu, diz o mito. Após a sua morte, o xamã Gavião Real passou a viver na caverna dos jaguares, onde, até hoje, é possível ouvir o som de todos os animais.

A concepção do universo como composto por patamares ou por caminhos invisíveis também é formulada pelos Desana, grupo de língua tukano do Alto Rio Negro, que afirmam que, “Para o mestre dos animais, a terra inteira é uma enorme teia de aranha horizontal, de formato hexagonal, cuja estrutura simboliza a rede de caminhos prescritos sobre os quais os homens e os animais precisam se mover e da qual não devem sair” (Reichel-Dolmatoff 1996REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo. 1996. The Forest Within: The World-View of the Tukanoan Amazonian Indias. Tones: Themis Books.:42) Os xamãs e o “mestre dos animais” são capazes de enxergar esses caminhos invisíveis por onde transitam todos os seres.

Davi Kopenawa, xamã yanomami, descreve a sua visão dos espíritos xapiripë enfatizando os caminhos pelos quais eles se movem que também são associados aos fios das teias de aranha. Segundo ele, esses caminhos cobrem toda a floresta e continuam para além dela, cobrindo o mundo inteiro:

Os xapiri nunca se deslocam na floresta como nós. Descem até nós por caminhos resplandecentes de luz, cobertos de penugem branca tão finas quanto os fios das teias de aranha warea koxiki que flutuam no ar. Esses caminhos se ramificam para todos os lados, como os que saem de nossas casas. Sua rede cobre toda a nossa floresta. Eles se bifurcam, se cruzam e até se superpõem, para muito além dela, por toda a vasta terra a que chamamos urihi a pree ou urihi a pata, e que os brancos chamam de mundo inteiro. Foram abertos pelos antigos xamãs que os fizeram dançar muito antes de nós, desde o primeiro tempo. Os xapiri, para quem tudo é perto, vêm por esses caminhos um atrás do outro, com muita leveza, suspensos nas alturas. Então é possível vê-los cintilar nessa luminosidade lunar, na qual seus enfeites de penas tremulam, flutuando devagar no ritmo de seus passos. Suas imagens são mesmo magníficas! Alguns desses caminhos são bem largos como suas estradas à noite salpicadas de luzes de faróis de carros, e os mais reluzentes são os dos espíritos mais antigos (Kopenawa & Albert 2015KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: Palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.:115-116).

O que eu gostaria de enfatizar aqui é que, em ambos os casos, o conhecimento xamânico consiste na capacidade de enxergar os múltiplos caminhos que constituem os corpos e o espaço e que só podem ser tornados visíveis na medida em que o xamã é capaz de estabelecer relações com outras espécies de sujeitos. Nesse sentido, a transformação, geralmente descrita para os povos ameríndios como um processo de mudança corporal (Viveiros de Castro 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 2 (2):114:144.; Lima 1996LIMA, Tania S. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 2 (2):21-47., 2002LIMA, Tania S. 2002. “O que é um corpo?”. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, 22 (1):9-20.; Vilaça 2000VILAÇA, Aparecida. 2000. “O que significa tornar-se Outro? Xamanismo e contato interétnico na Amazônia”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.15, n. 44:56-72.), também pode ser descrita como uma mudança ou troca de caminhos por onde diversos seres transitam, ou seja, como um deslocamento no espaço.

É interessante notar que o mito wasusu mencionado acima descreve precisamente o surgimento de uma descontinuidade no espaço, que passa a ser composto por diferentes patamares a partir do rompimento das linhas-caminhos, concebidas como extensões do corpo de um xamã mítico. O que eu quero sugerir, portanto, é que mudanças na constituição do corpo e deslocamentos no espaço são modos de transformação que indicam uma continuidade entre corpo e espaço, na medida em que ambos se constituem como posições relacionais e não como atributos substantivos (Viveiros de Castro 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 2 (2):114:144.; Lima 1996LIMA, Tania S. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 2 (2):21-47., 2002LIMA, Tania S. 2002. “O que é um corpo?”. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, 22 (1):9-20.).

Território: caminhos, trilhas, linhas

Boa parte das etnografias sobre os povos ameríndios vem demonstrando que a noção de território como uma totalidade homogênea é estranha ao pensamento desses povos (ver Descola 2005DESCOLA, Philippe. 2005. Par-delà nature et culture. Paris: Éditions Gallimard.). Se, por um lado, os estudos de etnobotânica já apontaram que a Amazônia é uma floresta antropogênica, questionando a imagem de uma selva monótona e intocada (Balée 1994BALÉE, William. 1994. Footprints of the forest. Ka’apor Ethnobotany - the historical ecology of plant utilization by Amazonian people. New York: Columbia University Press.), por outro lado, as etnografias dos povos dessa região vêm demonstrando que o que chamamos de “natureza” não é, neste caso, um objeto a ser socializado, mas o sujeito de uma relação social, na medida em que é possível atribuir a condição de sujeito a outros seres e objetos não humanos (Descola 2005DESCOLA, Philippe. 2005. Par-delà nature et culture. Paris: Éditions Gallimard.; Viveiros de Castro 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 2 (2):114:144.; Kohn 2013KOHN, Eduardo. 2013. How Forests Think: Toward an Anthropology Beyond the Human. Berkeley: University of California Press.).4 4 Noções como as de território, lugar, terra e paisagem voltaram recentemente a ser objeto de reflexão dos americanistas que vêm propondo retomá-las a partir de uma crítica etnográfica, enfatizando “os modos indígenas de viver e habitar n/a T/ terra” (Soares-Pinto 2017). Esses trabalhos tem se debruçado sobre “o que os povos indígenas nos dizem sobre o que é a terra e quais as composições espaço-temporais produzem e são produzidas com a terra” (Otero & Lewandowski 2019:7). Noções como espaço, terra, território são cotejadas para além das categorias administrativas que cercam o debate sobre a territorialidade.

Ao refletir sobre a relação entre caça e território para os Awa-Guajá, grupo de caçadores-coletores nômades, Garcia (2012GARCIA, Uirá 2012. “Ka’á Watá, andar na floresta: caça e território em um grupo tupi da amazônia”. Mediações - Revista de Ciências Sociais, 17 (1):172-190.) argumenta que é o movimento que produz o território. Para este povo de língua tupi do Maranhão, o termo “harakwaha” seria a objetificação da ideia de território e poderia ser traduzido como “meu lugar”, “meu domínio”, e refere-se também a um conjunto de sítios, cada um com sua história. O termo designa, portanto, um lugar e as relações estabelecidas entre diversos tipos de seres que o habitam. São espaços onde a ação, a história e a memória coletiva estão inscritas. Harakwaha é, assim, transformado por quem o ocupa e refeito em diversas situações. “Repleto de trilhas, um harakwhá é conhecido intimamente; em cada caminhada o território é varrido, e novas informações produzidas” (Garcia 2012GARCIA, Uirá 2012. “Ka’á Watá, andar na floresta: caça e território em um grupo tupi da amazônia”. Mediações - Revista de Ciências Sociais, 17 (1):172-190.:181). Não sendo concebido como algo fixo ou restrito à ocupação humana, a noção guajá que se aproxima da noção de território enfatiza precisamente a mobilidade e a não fixidez.

Para os Waiãpi, mencionados anteriormente, os caminhos e as trilhas na floresta também são atravessados por diferentes agências. Ao descrever o estado -awyry, traduzido como “loucura”, “estar perdido”, “andar em círculos”, Oliveira (2012OLIVEIRA, Joana Cabral. 2012. Entre plantas e palavras. Modos de constituição de saberes entre os Wajãpi (AP). Tese de Doutorado, USP.:118-119) menciona o relato de uma jovem que se perdeu na floresta e descreveu a experiência de ter ficado “enrolada nos caminhos”. Tal acontecimento teria sido provocado pelo espírito das águas que, atraído pelo cheiro do seu sangue menstrual, enrolou-a nos caminhos como faz uma sucuri. Neste caso, a descrição da jovem waiãpi não deve ser entendida como uma alegoria metafórica. O interessante em tal relato é que a noção de mobilidade que caracteriza algumas concepções indígenas do espaço não se limita a indicar apenas a condição daqueles que o ocupam e o atravessam com suas agências. No caso descrito por Oliveira, perder-se na floresta, ou “andar em círculos”, é ser, de certo modo, envolto pelo espaço, causando o estado de confusão perceptiva descrito como -awyry. Não há, portanto, um ponto fixo a partir do qual é possível definir o movimento. Os caminhos formados por aqueles que se deslocam na floresta também podem afetá-los e envolvê-los, transformando-os.

Nesse sentido, os Guajá afirmam que a caça a determinados animais pode ser vista, da ótica da presa, como uma invasão do seu harakwaha. Eles dizem que para os macacos guariba, por exemplo, os caçadores são madeireiros que vieram matá-los (Garcia 2012GARCIA, Uirá 2012. “Ka’á Watá, andar na floresta: caça e território em um grupo tupi da amazônia”. Mediações - Revista de Ciências Sociais, 17 (1):172-190.:184). O tema da caça que resvala na guerra foi explorado por Lima (1996LIMA, Tania S. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 2 (2):21-47.) em sua bela descrição da caça às queixadas feita pelos Yudja. O perigo da caça em muitos casos implica ter que abandonar as trilhas conhecidas pelo caçador que, ao seguir o rastro do animal, acaba tomando outros caminhos, o que, como vimos, pode dar início a um processo de transformação. Tudo se passa como se, ao seguir outros caminhos, deslocando-se no espaço, a pessoa corresse o risco de se transformar naquilo que ela está perseguindo e, assim, o espaço se transforma junto com ela.

Os Mamaindê contam uma história que ilustra bem a percepção da transformação como uma troca de caminhos. Eles dizem que, certa vez, um jovem que saiu para caçar, ao avistar um macaco coatá, ele atirou em sua direção, mas não o atingiu. Pouco tempo depois, ele ouviu novamente o barulho do macaco vindo de outra direção. Seguindo o som do animal, ele atirou novamente, mas não o matou. O fato se repetiu várias vezes até que ele se deu conta de que estava perdido, havia seguido outro caminho, já não sabia mais voltar para a aldeia. Quando ele finalmente retornou para junto dos seus parentes estava muito doente e não os reconhecia mais. Foi preciso que o xamã cantasse por muitas noites seguidas, retirando do seu corpo a linha-colar deixada pelo macaco coatá e colocando uma nova linha-colar em seu lugar.5 5 A linha do macaco coatá é descrita pelo xamã mamaindê como semelhante a uma teia de aranha, diferentemente da linha dos Mamaindê, que é feita de algodão. A transformação, neste caso, é concebida como uma troca de caminhos que, do ponto de vista do xamã, equivale a uma troca de colares-linhas.

Se, como sugeriu Garcia para os Guajá, é o movimento que produz o território, o espaço é definido por quem o ocupa, o que inclui seres humanos e não humanos. Desse modo, as trilhas-caminhos, atravessadas por agências diversas, são constitutivas deste espaço eminentemente instável, na medida em que também são feitas e refeitas a cada caminhada. O mesmo vale para a noção mamaindê de corpo que, envolto por linhas-colares, também é, do ponto de vista do xamã, atravessado por caminhos pelos quais os espíritos se locomovem.

É possível sugerir aqui um contraste interessante entre a imagem das linhas telegráficas que atravessavam o território dos Nambiquara, mencionada por Lévi-Strauss em Tristes Trópicos, e aquela evocada pelos próprios Nambiquara. Para Lévi-Strauss, a selva habitada pelos grupos Nambiquara se apresentava como uma totalidade homogênea na qual as trilhas e as linhas telegráficas não eram suficientes para demarcar limites. Para os Nambiquara, assim como para outros povos ameríndios, as trilhas não delimitam o espaço, elas são o espaço. Como vimos, para os Mamaindê, as linhas-caminhos que atravessam o espaço e os corpos não são concebidas como inscrições em uma totalidade previamente definida, elas criam o espaço e os corpos na medida em que os transformam.

A percepção do espaço atual como um emaranhado de caminhos semelhante ao que foi desenhado pelo jovem negarotê para descrever a festa do dono dos porcos fica particularmente evidente no mito wasusu ao qual eu já me referi. Este mito descreve um tempo em que os animais eram mantidos presos em um buraco. O que o mito conta é justamente como o mundo atual foi criado a partir da saída dos animais do buraco, evento que produziu uma multiplicidade de caminhos pelos quais os animais passaram a se movimentar. O surgimento dos caminhos na floresta corresponde ao surgimento de descontinuidades no espaço e nos corpos e também ao surgimento do próprio movimento.

De acordo com o mito, no início dos tempos, era sempre dia. O sol nunca se punha.6 6 Segundo os Mamaindê, nesse tempo, o sol ficava sempre no meio do céu e eles assavam carne ao sol, não havia o fogo doméstico. As pessoas nunca tinham visto as sombras de seus corpos projetadas no solo. É interessante notar que a descrição desse tempo enfatiza justamente a ausência do movimento e também do próprio tempo: o sol estava sempre parado no meio do céu e não havia, portanto, a alternância entre o dia e a noite. Sem o movimento do sol, os corpos não projetavam suas sombras no solo.7 7 Viveiros de Castro (2006) ressaltou a ambiguidade transespecífica que caracteriza os seres mitológicos e observou que “o mito se reporta a um estado caracterizado pela perfeita transparência, na qual as dimensões espiritual e corporal de cada ser ainda não se eclipsavam umas às outras. O mito descreve justamente como esse estado de transparência foi suplantado por uma relativa opacidade em que corpo e alma passaram a funcionar alternadamente como figura e fundo em relação um ao outro”. É interessante pensar nessa imagem de corpos que não projetam sombras como um estado de transparência que impede a duplicação de uma imagem. No caso do mito wasusu, esse estado de transparência originária dos corpos equivale a um estado de imobilidade no espaço.

O estado de imobilidade originário que caracteriza esse tempo mítico é descrito ainda como um tempo em que todos os animais viviam presos em um buraco. Havia apenas uma única trilha que levava o xamã, “dono dos animais”, a esse local. Um mundo sem movimento é imaginado, assim, como uma única trilha. O mito conta que, para capturar um animal, bastava que o xamã soprasse a fumaça do tabaco sobre o buraco fazendo aparecer o animal desejado. Para isso, ele permanecia sentado, imóvel, esperando o animal sair para atingi-lo com a flecha apropriada. A caça era, portanto, descrita como uma captura sem movimento que não produzia novas trilhas na floresta, na medida em que os animais eram atingidos logo que saíam do buraco e não deixavam rastros.8 8 É interessante notar que esta caça sem movimento descrita nas versões do mito wasusu e mamaindê contrasta precisamente com a noção de mobilidade e de não fixidez que caracteriza a relação atual entre caça e território, tal como concebida pelos Guajá mencionados acima.

O que o mito nos conta é precisamente como os animais escaparam do buraco espalhando-se pela floresta e criando, assim, descontinuidades no espaço. O que, até então, era uma única trilha torna-se uma multiplicidade de trilhas produzidas pelo movimento dos animais pela floresta. Na versão wasusu do mito, esse espaço desdobra-se ainda em diferentes patamares, quando, como já mencionei, os fios-caminhos que ligavam o corpo do xamã mítico a todas as casas da aldeia se rompem.

Segue-se, então, uma série de acontecimentos que criam descontinuidades no tempo e no espaço: uma escuridão toma conta do mundo e o que antes era um dia eterno passa a ser uma noite interminável. Naquele momento as pessoas começaram a se transformar em animais, pois não conseguiam mais encontrar o caminho que as levava de volta para a aldeia, ou seja, a impossibilidade de percorrer o mesmo caminho de volta para a aldeia produziu novos deslocamentos no espaço que são descritos como transformações corporais. Foi somente quando o xamã fez surgir o sol novamente, movimentando a cabeça do seu filho em direção ao leste e depois ao oeste, que passaram a existir o dia e a noite.9 9 Noto que é o movimento corporal (da cabeça) que ocasiona o movimento de outro corpo (o Sol), estabelecendo a descontinuidade. Parece que, além da relação corpo-espaço, o mito anuncia uma relação entre corpo-tempo. Agradeço ao parecerista por esta observação.

Conta-se, ainda, que essas pessoas que viraram animais não tinham caudas e haviam perdido a capacidade de falar, emitindo apenas os sons dos animais. Elas decidiram, então, roubar a enorme cauda da preguiça. Cada uma pegou um pedaço e é por isso que atualmente a preguiça não tem rabo e os animais têm rabos de tamanhos diferentes. É interessante notar que a imagem de um caminho ou linha contínua que dá origem a um emaranhado de caminhos-linhas distintos é central para descrever a série de transformações no espaço e nos corpos narradas no mito. Como demonstrou Lévi-Strauss nas Mitológicas, os mitos de origem ameríndios contam a história da passagem de um estado contínuo, que ele associa à Natureza, a estados descontínuos dos quais a Cultura emerge. Os rituais seriam uma forma de recriar esse estado de continuidade originária aproximando descontinuidades. De acordo com essa relação entre mito e rito proposta por Lévi-Strauss, Fausto (2022FAUSTO, Carlos. 2022. “The continuous is a jungle: the poetics of small intervals in indigenous Amazonia”. Cahiers d’Anthropologie Sociale, n. 20:29-52.) argumenta a favor de uma estética ameríndia expressa através de um regime de pequenos intervalos que produzem variações por meio de diferenças mínimas (Fausto 2022FAUSTO, Carlos. 2022. “The continuous is a jungle: the poetics of small intervals in indigenous Amazonia”. Cahiers d’Anthropologie Sociale, n. 20:29-52.).

Nesse sentido, os colares usados pelos Mamaindê são uma boa imagem do que Fausto chama de uma “estética amazônica”. Os colares de contas pretas feitas do coco do tucum (yalikdu) são os enfeites prototípicos dos Mamaindê e podem ser feitos de contas de diferentes tamanhos. Os mais valorizados são aqueles cujas contas são minúsculas, de modo que para se fazerem algumas voltas de colar é preciso produzir centenas de contas que são cuidadosamente perfuradas e lixadas. Ao serem colocadas enfileiradas encobrindo a linha, essas contas dão a impressão de formar uma única linha preta que envolve os corpos das pessoas. O intervalo entre as contas é quase imperceptível.

Como vimos, esses colares são componentes da pessoa e associados à noção de espírito. Assim, a doença é descrita como uma perda ou troca de colares-linhas com outros tipos de seres que possuem suas próprias linhas-colares, o que equivale a um deslocamento do espírito do corpo. Mas o que as pessoas comuns enxergam como uma linha de algodão, o xamã enxerga como um colar de contas pretas. Durante as sessões de cura, o xamã retira do corpo dos doentes os colares rompidos ou deixados por outras espécies e coloca novos colares em seu lugar. Ao fazer isso, ele mostra a todos o corpo em seu estado de transparência originário descrito no mito, quando corpo e alma não se eclipsavam. Revelando, durante as sessões de cura, que os corpos estão sempre enfeitados e que o que as pessoas comuns veem como uma linha de algodão é um colar de minúsculas contas pretas, o xamã mamaindê, de certo modo, recria a continuidade a partir de intervalos mínimos, como notou Fausto (2022FAUSTO, Carlos. 2022. “The continuous is a jungle: the poetics of small intervals in indigenous Amazonia”. Cahiers d’Anthropologie Sociale, n. 20:29-52.). Portanto, se os rituais recriam continuidades atualizando o tempo mítico, no caso dos Mamaindê marca-se também uma continuidade entre o espaço e os corpos, ambos atravessados por colares-caminhos que só podem ser tornados visíveis na medida em que o xamã mobiliza a perspectiva de Outros.

A diferença entre a linha e o colar, de certo modo, indica a relação entre corpo e espaço a partir de uma perspectiva xamânica, pois se a linha de algodão é descrita como um caminho, ela é, do ponto de vista do xamã, um colar, ou seja, um enfeite corporal. Os caminhos, nesse caso, atravessam e constituem simultaneamente o espaço e o corpo, na medida em que os transformam. São caminhos pelos quais transitam os espíritos, como na festa de Yamakdu mencionada acima, mas são também colares que constituem o corpo singular de uma espécie de sujeito. Podendo ser roubados, trocados ou rompidos, os colares constituem a pessoa, já que são precisamente aquilo que permite a sua transformação.

A relação entre contínuo e descontínuo, cuja imagem privilegiada são as linhas-colares, também é formulada como um rompimento ou fragmentação a partir de uma continuidade originária. O processo de transformação desencadeado pela doença é, como vimos, concebido como uma troca ou um rompimento de linhas-colares que cabe ao xamã restituir: ele retira a linha-colar deixada pela espécie agressora e coloca uma nova linha em seu lugar ou refaz as linhas-colares rompidas, o que permite que a pessoa afetada volte a saber quem ela realmente é, quem são os seus verdadeiros parentes. Neste caso, a relação entre continuidade e descontinuidade é imaginada não apenas como uma distinção entre uma linha de algodão contínua e um colar de contas pretas, mas como um rompimento ou fragmentação de linhas-colares contínuas que devem ser constantemente refeitas pelo xamã para que a pessoa doente não seja desfeita.10 10 O que sugeri chamar aqui de uma teoria nambiquara das linhas descreve um conjunto de transformações de um mesmo fenômeno, ou seja, uma estrutura. A partir de uma abordagem distinta, Ingold (2007:59-60), em “Lines. A Brief History”, propõe uma antropologia comparativa das linhas. Lançando-se nessa empreitada, ele estabelece uma distinção entre o traço e a linha. O traço é uma marca deixada na superfície e a linha, por sua vez, tem a capacidade de criar uma superfície. A partir da análise da pintura corporal dos Shipibo-Conibo da Amazônia peruana, este autor mostra como os traços podem se transformar em linhas e vice-versa, fazendo e desfazendo superfícies. Pretendo desenvolver esta ideia futuramente.

Outros caminhos: as linhas telegráficas e as estradas (o fio e a “picada”)

No início do século XX o território tradicionalmente ocupado pelos Nambiquara foi atravessado por outras linhas. Como parte de projeto de desenvolvimento nacional e de ocupação do interior do país, o Estado brasileiro criou a Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas. O então oficial do Exército Candido Mariano da Silva Rondon foi designado para comandar a comissão que ficou conhecida como Comissão Rondon.

Filho de mãe descendente de índios Terena e Bororo e de pai descendente de portugueses, Candido Mariano da Silva Rondon é retratado como uma espécie de herói civilizador nacional. Referido na historiografia oficial como “desbravador dos sertões”, “pai protetor dos índios”, autor do lema “morrer, se preciso for, matar, jamais”, Rondon é um personagem importante para uma certa versão da história da constituição da nação brasileira. A construção de cerca de 1.800 quilômetros de linhas telegráficas que atravessaram o inóspito interior do país e que ganhou ares de uma grande epopeia e, posteriormente, a sua atuação como diretor do Serviço de Proteção aos Índios, órgão criado pelo Estado brasileiro para “pacificar” os povos indígenas, transformando-os em trabalhadores nacionais, foram seus grandes feitos.11 11 Para maiores informações sobre a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas, o regime tutelar e a criação do Serviço de Proteção aos Índios, ver Antonio Carlos de Souza Lima (1995).

Em 1907 a Comissão Rondon iniciou a primeira expedição ao Vale do Juruena, território tradicionalmente ocupado pelos grupos Nambiquara, para estabelecer o trajeto da linha telegráfica que ligaria os atuais estados de Mato Grosso e Rondônia. De acordo com Diacon (2006DIACON, Todd. 2006. Rondon: o Marechal da floresta. São Paulo: Companhia das Letras.:28) a Comissão construiu, ao todo, dezesseis estações telegráficas e trinta e duas pontes, explorando aproximadamente 4 mil quilômetros no território de Mato Grosso, mapeando, em muitos casos pela primeira vez, boa parte das terras desse estado.

Através de novos caminhos abertos na mata foram erguidos postes por onde passavam os fios do telégrafo e foram construídos postos telegráficos em diferentes regiões do território habitado pelos Nambiquara (figura 2). Cada posto abrigava os aparelhos do telégrafo que eram operados por militares da Comissão Rondon. Os postos telegráficos eram usados também como locais de armazenamento das provisões que alimentavam os funcionários do telégrafo e suas famílias, funcionando, ainda, como entrepostos comerciais (figura 3).

Figura 2
Aprumandoos postes para a linha telegráfica. Fotógrafo não identificado (Lasmar 2011LASMAR, Denise Portugal. 2011. O acervo imagético da Comissão Rondon: no Museu do Índio 1890-1938. Rio de Janeiro: Museu do Índio (Publicação Avulsa do Museu do Índio, 3).: 33)

Figura 3
Estaçãode Juruena (Lasmar 2011LASMAR, Denise Portugal. 2011. O acervo imagético da Comissão Rondon: no Museu do Índio 1890-1938. Rio de Janeiro: Museu do Índio (Publicação Avulsa do Museu do Índio, 3).: 109)

Desde 1909 alguns grupos Nambiquara passaram a frequentar de modo intermitente os postos telegráficos em busca de panelas, facas, machados e outros objetos que eram oferecidos a eles como parte de uma estratégia de “pacificação” (figura 4).12 12 Não posso deixar de notar que a linha do telégrafo saía justamente de dentro dos postos onde estavam armazenadas as mercadorias dos brancos. Essa imagem se repete nas festas do dono dos porcos, descritas pelos Negarotê, em que os espíritos chegavam nas aldeias através de linhas suspensas que entravam em todas as casas conectando-as também a outra maloquinha na roça. Mesmo sem colocar linhas suspensas na aldeia, os Mamaindê, como vimos, enfatizavam que nessas ocasiões rituais os espíritos yamakdu traziam miçangas em troca da comida recebida. As miçangas eram usadas para fazer colares que envolviam seus corpos.

Figura 4
Osquatro primeiros Nambiquara que foram ao encontro de Rondon no rio Juruena (Lasmar, 2011LASMAR, Denise Portugal. 2011. O acervo imagético da Comissão Rondon: no Museu do Índio 1890-1938. Rio de Janeiro: Museu do Índio (Publicação Avulsa do Museu do Índio, 3).: 333)

Foi seguindo o trajeto das linhas telegráficas e a infraestrutura criada para mantê-las que Roquette-Pinto realizou a primeira expedição científica à Serra do Norte, em 1912. Alguns anos depois, em 1938, Lévi-Strauss seguiu o caminho aberto pela linha do telégrafo e encontrou-se com alguns bandos nambiquara que acampavam nas proximidades das estações telegráficas. Nesse período, a rota das estradas que acompanhavam as linhas telegráficas já havia permitido a entrada de missionários católicos e protestantes nessa região.

As relações dos Nambiquara com os funcionários da Comissão Rondon eram marcadas por um clima de tensão e de hostilidade. Este era o grupo indígena mais temido da região, considerado um dos mais selvagens e perigosos e também o mais resistente às tentativas de “atração” e de “pacificação”. Notícias de ataques dos Kabixi, termo pejorativo atribuído aos grupos Nambiquara na época, aos vilarejos próximos do Guaporé circulavam rapidamente. Os conflitos entre os Nambiquara e os funcionários da Comissão foram se intensificando progressivamente. Segundo Lévi-Strauss (1996LÉVI-STRAUSS, Claude. 1996 [1955]. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras.:247), em 1925 alguns homens da Comissão desapareceram após serem convidados a conhecer as aldeias nambiquara. Em 1933 seis missionários protestantes americanos que haviam se instalado perto da estação telegráfica do Juruena foram mortos pelos Nambiquara como retaliação após a morte de um indígena que havia sido medicado por um missionário que, segundo os Nambiquara, o teria envenenado. Além dos conflitos com os funcionários da Comissão Rondon e com os missionários, os Nambiquara também derrubavam os postes que sustentavam os fios do telégrafo e tornavam-se uma ameaça constante àqueles que atravessavam seu território.

Entre 1907 e 1910, Rondon contou com o auxílio dos índios Paresi, grupo de língua aruaque que tinha como vizinhos ao noroeste os Nambiquara. Considerados por Rondon como um povo dócil, pacífico e “civilizado”, em contraste com outros povos indígenas da região, os Paresi foram contratados como guias e acompanharam os funcionários da Comissão em sua passagem pelo território dos temidos Nambiquara. Uma parte deste grupo indígena logo se tornou importante aliada da Comissão Rondon, tendo sido convencida a viver nas estações telegráficas onde, além de se alfabetizar em português nas escolas das estações, aprendia o código Morse para exercer a função de telegrafista. Foram as famílias formadas pelos descendentes dos Paresi as últimas a deixarem os Postos telegráficos quando eles já estavam em desuso na década de 1940.

A Comissão Rondon foi extinta em 1930 e a escassez de investimentos por parte do Estado brasileiro para manter os postos telegráficos e os funcionários que lá viviam fez com que aqueles que permaneceram na região ficassem entregues à própria sorte. Ironicamente, o surgimento da comunicação por rádio, por volta de 1922, coincidiu com a finalização da construção das linhas telegráficas.

A passagem das linhas telegráficas pelo interior do país produziu transformações importantes nas relações entre os grupos indígenas desta região e entre eles e os brancos. Nesse período, os Paresi, por exemplo, viviam em um regime de escravidão nos seringais. Segundo Machado (1994MACHADO, M. F. R. 1994. Índios de Rondon. Rondon e as linhas telegráficas na visão dos sobreviventes Wáimare e Kaxíniti, grupos Paresi. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional.), que estudou a relação dos subgrupos Paresi com a Comissão de linhas telegráficas, Rondon foi visto como um pai protetor que teria vindo para civilizá-los e libertá-los do regime de escravidão a que estavam submetidos. Por isso ele também foi associado pelos Paresi ao herói mítico Wazáre, que, de acordo com o mito de origem dos Halíti (Paresi), criou o mundo, nomeando os locais por onde passava. Identificando e nomeando as cabeceiras dos rios, ele foi localizando, em cada uma delas, os diferentes subgrupos Paresi, definindo, assim, o território de cada um. Segundo Machado:

É notável e impressionante a possibilidade de adaptação de Rondon à figura mítica de Wazáre, considerando as características do seu comportamento no território dos índios. Também ele, em suas expedições, cruzava as cabeceiras do chapadão, delimitando o território de sua gente, plantando as estações e renomeando o mundo (Machado 1994MACHADO, M. F. R. 1994. Índios de Rondon. Rondon e as linhas telegráficas na visão dos sobreviventes Wáimare e Kaxíniti, grupos Paresi. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional.:159).

Machado observa ainda que, ao agir como o herói mítico dos Paresi, renomeando e demarcando o território, Rondon,

mesmo consciente do mito original e das denominações tradicionais das inúmeras cabeceiras, dos rios e seus afluentes, os substituía, nas suas passagens, apagando os vestígios de ocupação indígena e fixando nos seus mapas os novos nomes. Nomes dados já pelos seringueiros e, principalmente, por ele mesmo, em homenagem a vários de seus seguidores, a personalidades famosas, a um acontecimento marcante na sua carreira ou mesmo a seus parentes mais próximos e amigos. Citações como essas abundam nos seus relatórios (Machado 1994MACHADO, M. F. R. 1994. Índios de Rondon. Rondon e as linhas telegráficas na visão dos sobreviventes Wáimare e Kaxíniti, grupos Paresi. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional.:159).

Se, para os Paresi, Rondon foi associado ao herói criador do mito de origem e atuou “corrigindo o mundo” (Machado 1994MACHADO, M. F. R. 1994. Índios de Rondon. Rondon e as linhas telegráficas na visão dos sobreviventes Wáimare e Kaxíniti, grupos Paresi. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional.:53), alterando as relações entre os subgrupos nomeados e o território, ao renomeá-lo, para os Nambiquara, me parece que Rondon atuou como mais um tipo de espírito que produziu novas dobras no mundo, tornando visíveis novos caminhos e, assim, novos territórios. Penso que esses caminhos, suspensos pelos postes do telégrafo, podem ser descritos como condutores ontológicos, como sugeri no início. Eles não demarcavam limites ou fronteiras em um território fixo ou definido de antemão, mas constituíam suportes ou meios que permitiam o trânsito entre mundos diferentes. As linhas suspensas do telégrafo e as picadas que as seguiam pelo chão da floresta criavam novos caminhos por onde outros tipos de seres passavam a transitar, ampliando, assim, as possibilidades de transformação. A partir do que sugeri chamar de uma teoria nambiquara das linhas, podemos imaginar que os fios do telégrafo elicitaram novas relações de alteridade concebidas pelos Mamaindê como transformações ontológicas ou corporais que, como procurei demonstrar, equivalem a deslocamentos no espaço.

Desta forma, é possível contrapor duas concepções de espaço e de território: uma cuja cartografia baseia-se numa noção de território como uma totalidade que pode ser representada por mapas nos quais as linhas definem fronteiras, demarcam identidades, ligam pontos fixos a partir dos quais se pode definir um território específico - refiro-me aqui aos mapas e às representações cartográficas que resultaram da ação da Comissão Rondon, frequentemente retratada como um marco importante do processo civilizatório do país e que, não por acaso, apagou sistematicamente os nomes indígenas dos locais registrados nos mapas e outra cuja cartografia é composta por linhas-caminhos eminentemente instáveis e irredutíveis à ideia de representação. Trata-se, neste caso, de caminhos que só podem ser tornados visíveis na medida em que se estabelece uma relação de alteridade. Estamos, assim, diante de um espaço topológico e que se aproxima mais das noções de movimento e de transformação que costumam ser mobilizadas para descrever o modo de atuação dos xamãs na Amazônia.

Considerações finais

Gostaria de concluir este artigo com a seguinte pergunta: teriam os Nambiquara derrubado os postes que suspendiam as linhas do telégrafo por confundirem o barulho característico do fio telegráfico com o de uma colmeia de abelhas selvagens trabalhando, como sugeriu Lévi-Strauss?

A resposta a esta pergunta não pode deixar de ser especulativa. Sendo assim, faço duas observações que indicam outras possibilidades para entender o episódio a que Lévi-Strauss se referiu em 1938. A primeira diz respeito ao termo “Mamaindê”. Assim como todos os termos usados para designar os diferentes subgrupos Nambiquara, ele não é uma autodesignação. No entanto, de acordo com os próprios Mamaindê, o termo refere-se a uma espécie de abelha brava (mamainkdu) que costuma aparecer depois das guerras e se alimenta de sangue. O termo faz referência à belicosidade atribuída àqueles que são designados dessa forma. Algumas músicas de guerra cantadas pelos Mamaindê são onomatopeias que reproduzem o ruído característico de um enxame de abelhas se aproximando. A segunda observação se refere a um outro acontecimento que me foi relatado mais recentemente pelos Mamaindê.

Em 2019, mais de dez anos depois da minha última visita aos Mamaindê, retomei, através do WhatsApp, o contato com os jovens que eu havia conhecido ainda crianças durante o meu trabalho de campo. Trocamos muitas mensagens, mandei fotos que eu havia tirado na época da minha pesquisa e recebi fotos da aldeia atual. As fotos que recebi mostravam a aldeia repleta de postes com cabos para a transmissão de luz elétrica e sinal de internet. Uma paisagem muito diferente da que eu havia conhecido em 2005, quando concluí minha pesquisa de campo. Naquela época não havia luz elétrica na aldeia, a comunicação com quem estava longe era feita através de um antigo rádio da Funai que começava a ser substituído pelos telefones celulares. Os Mamaindê carregavam a bateria dos seus aparelhos recém-comprados nas cidades improvisando uma ligação elétrica usando um motor à gasolina e uma bateria de carro. Para conseguir fazer uma chamada da aldeia com os novos aparelhos telefônicos, era preciso subir em um cupinzeiro estrategicamente localizado na beira da serra. Dali era possível captar o sinal de uma antena de celular situada na cidade de Colorado D’Oeste.

A chegada da luz elétrica e da internet na aldeia possibilitava as longas trocas de mensagens e conversas que eu voltei a ter com os jovens Mamaindê. Durante essas conversas, eles me contaram, apreensivos, que estavam em guerra. Perguntei se a terra indígena estava sendo novamente invadida por madeireiros, posseiros ou garimpeiros, afinal, esse era o primeiro ano de um governo que permitiu e incentivou a invasão das terras indígenas, aumentando o desmatamento e implementando um projeto genocida contra os povos indígenas. Mas a guerra de que me falavam os Mamaindê era com os espíritos que passaram a chegar na aldeia com muito mais frequência através dos fios da rede elétrica.

As pessoas estavam adoecendo, desmaiando. O verão estava particularmente quente e fenômenos comuns naquela época do ano, como a formação de rodamoinhos, estavam ocorrendo com maior frequência e intensidade. Para os Mamaindê, os rodamoinhos são indicadores da presença dos espíritos walindu, que são extremamente agressivos e fazem adoecer principalmente as mulheres e as crianças. Nesse sentido, o que eu me refiro aqui como um “fenômeno” os Mamaindê chamariam de um “encontro”.

Os xamãs, na tentativa de impedir a entrada desses espíritos na aldeia, recomendavam a todos que não usassem os telefones celulares e diziam que os espíritos chegavam pelas linhas da rede elétrica que atravessavam a aldeia e entravam em cada casa. Não era a primeira vez que os Mamaindê viam novas linhas atravessarem o seu território. Foi preciso que os xamãs atuassem novamente para lidar com as relações que essas linhas tornavam visíveis. Penso, portanto, que a ação deliberada dos Nambiquara de derrubar os postes das linhas telegráficas, mencionada por Lévi-Strauss há cerca de oitenta anos atrás, não foi um erro de percepção por parte dos grupos indígenas, que teriam associado o som produzido pela linha do telégrafo ao de uma colmeia de abelhas. Os Nambiquara estavam em guerra.

Referências

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  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. “A floresta de cristal. Notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos de Campo, 14/15:319-338.
  • 1
    Por “condutores ontológicos” refiro-me ao meio ou suporte que processa o trânsito entre diferentes mundos que são, em muitas cosmologias ameríndias, concebidos como transformações ontológicas ou corporais (Lima 1996LIMA, Tania S. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 2 (2):21-47., e Viveiros de Castro 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 2 (2):114:144.). Sobre a ideia dos colares e dos documentos como condutores ontológicos entre os Mamaindê ver respectivamente Miller (2015LASMAR, Denise Portugal. 2011. O acervo imagético da Comissão Rondon: no Museu do Índio 1890-1938. Rio de Janeiro: Museu do Índio (Publicação Avulsa do Museu do Índio, 3)., 2018LÉVI-STRAUSS, Claude. 1996 [1955]. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras.).
  • 2
    O termo yamakdu é provavelmente derivado do termo yamaka com o qual os Paresi (grupo falante de uma língua aruaque) designam as suas flautas sagradas (ver Costa 1985COSTA, Romana. 1985. Cultura e contato. Um estudo da sociedade Paresi no contexto das relações interétnicas. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ.).
  • 3
    Para uma descrição mais detalhada da linha-colar dos Mamaindê, ver Miller (2018LÉVI-STRAUSS, Claude. 1996 [1955]. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras.).
  • 4
    Noções como as de território, lugar, terra e paisagem voltaram recentemente a ser objeto de reflexão dos americanistas que vêm propondo retomá-las a partir de uma crítica etnográfica, enfatizando “os modos indígenas de viver e habitar n/a T/ terra” (Soares-Pinto 2017SOARES-PINTO, Nicole. 2017. “De coexistências: sobre a constituição de lugares djeomoritxi”. R@U. Revista de @ntropologia da UFSCAR, v. 9, n.1:61-82.). Esses trabalhos tem se debruçado sobre “o que os povos indígenas nos dizem sobre o que é a terra e quais as composições espaço-temporais produzem e são produzidas com a terra” (Otero & Lewandowski 2019OTERO DOS SANTOS, Julia & LEWANDOWSKI, Andressa. 2019. “Dossiê: Cosmopolíticas da terra contra os limites da territorialização”. ILHA. Revista de Antropologia /UFSC, v. 21, n. 1. :7). Noções como espaço, terra, território são cotejadas para além das categorias administrativas que cercam o debate sobre a territorialidade.
  • 5
    A linha do macaco coatá é descrita pelo xamã mamaindê como semelhante a uma teia de aranha, diferentemente da linha dos Mamaindê, que é feita de algodão.
  • 6
    Segundo os Mamaindê, nesse tempo, o sol ficava sempre no meio do céu e eles assavam carne ao sol, não havia o fogo doméstico.
  • 7
    Viveiros de Castro (2006VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. “A floresta de cristal. Notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos de Campo, 14/15:319-338.) ressaltou a ambiguidade transespecífica que caracteriza os seres mitológicos e observou que “o mito se reporta a um estado caracterizado pela perfeita transparência, na qual as dimensões espiritual e corporal de cada ser ainda não se eclipsavam umas às outras. O mito descreve justamente como esse estado de transparência foi suplantado por uma relativa opacidade em que corpo e alma passaram a funcionar alternadamente como figura e fundo em relação um ao outro”. É interessante pensar nessa imagem de corpos que não projetam sombras como um estado de transparência que impede a duplicação de uma imagem. No caso do mito wasusu, esse estado de transparência originária dos corpos equivale a um estado de imobilidade no espaço.
  • 8
    É interessante notar que esta caça sem movimento descrita nas versões do mito wasusu e mamaindê contrasta precisamente com a noção de mobilidade e de não fixidez que caracteriza a relação atual entre caça e território, tal como concebida pelos Guajá mencionados acima.
  • 9
    Noto que é o movimento corporal (da cabeça) que ocasiona o movimento de outro corpo (o Sol), estabelecendo a descontinuidade. Parece que, além da relação corpo-espaço, o mito anuncia uma relação entre corpo-tempo. Agradeço ao parecerista por esta observação.
  • 10
    O que sugeri chamar aqui de uma teoria nambiquara das linhas descreve um conjunto de transformações de um mesmo fenômeno, ou seja, uma estrutura. A partir de uma abordagem distinta, Ingold (2007INGOLD, Tim, 2007, Lines. A Brief History. Oxfordshire, England: Routledge.:59-60), em “Lines. A Brief History”, propõe uma antropologia comparativa das linhas. Lançando-se nessa empreitada, ele estabelece uma distinção entre o traço e a linha. O traço é uma marca deixada na superfície e a linha, por sua vez, tem a capacidade de criar uma superfície. A partir da análise da pintura corporal dos Shipibo-Conibo da Amazônia peruana, este autor mostra como os traços podem se transformar em linhas e vice-versa, fazendo e desfazendo superfícies. Pretendo desenvolver esta ideia futuramente.
  • 11
    Para maiores informações sobre a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas, o regime tutelar e a criação do Serviço de Proteção aos Índios, ver Antonio Carlos de Souza Lima (1995SOUZA LIMA, Antonio Carlos. 1995. Um Grande Cerco de Paz. Poder tutelar, Indianidade e Formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes. ).
  • 12
    Não posso deixar de notar que a linha do telégrafo saía justamente de dentro dos postos onde estavam armazenadas as mercadorias dos brancos. Essa imagem se repete nas festas do dono dos porcos, descritas pelos Negarotê, em que os espíritos chegavam nas aldeias através de linhas suspensas que entravam em todas as casas conectando-as também a outra maloquinha na roça. Mesmo sem colocar linhas suspensas na aldeia, os Mamaindê, como vimos, enfatizavam que nessas ocasiões rituais os espíritos yamakdu traziam miçangas em troca da comida recebida. As miçangas eram usadas para fazer colares que envolviam seus corpos.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2022
  • Aceito
    03 Fev 2023
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