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Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile

RESENHAS

Renata de Sá Gonçalves

Doutoranda PPGSA / IFCS / UFRJ

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. 2006. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. 3.ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: EdUFRJ. 268 pp.

O livro Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile, de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, é uma versão revista de sua tese de doutorado defendida em 1993 no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRJ. Trata da confecção de um desfile de uma escola de samba no Rio de Janeiro e, mais especificamente, do contexto sociológico e cultural de seu ciclo anual. O acompanhamento desse percurso realizou-se junto à Mocidade Independente de Padre Miguel durante o ano de 1992.

A primeira edição do livro é de 1994. Doze anos depois, em 2006, sua terceira edição ganhou uma pequena ampliação do primeiro capítulo que já estava presente na tese e foi acrescido de ilustrações que tornam a leitura ainda mais prazerosa. Em cinco capítulos, Cavalcanti conduz o leitor entre intrincados e complexos mundos que permeiam o ciclo de confecção do desfile carnavalesco e de uma escola de samba em movimento. Esse processo constitui-se desde a escolha do enredo, do samba-enredo, da confecção das alegorias carnavalescas e dos adereços à inserção diversa dos atores que integram tal ciclo — o carnavalesco (cap.2), os compositores (cap.3), as equipes de barracão (cap.4), as equipes de costura das fantasias e adereços (cap.5), além de outros participantes com maior ou menor vínculo com a escola.

Dos bastidores ao desfile, a abordagem da autora valoriza tanto os aspectos sociológicos — quem são, como se organizam, onde e quando se relacionam — quanto os conteúdos fortemente expressivos do samba, do samba-enredo, das fantasias e das alegorias, de modo a articular originalmente a relação entre o desfile e a cidade. O desfile promove, em sua confecção — que se inicia em seguida ao fim do carnaval anterior — e em sua realização, encontros e relações em vários níveis e dimensões culturais, integrando "uma arena onde se confrontam forças políticas e culturais diferenciadas" (:19). Falar do desfile, de suas continuidades e descontinuidades é, assim, falar de metrópole e de fragmentação. Seu caráter agregador orienta vastas redes de reciprocidade que atravessam diferentes bairros, expandindo-se por outras áreas e camadas sociais da cidade. Esse potencial de alargamento, como explica a autora, se deve à capacidade do desfile de absorção e de expressão de conflitos, disputas, segmentações e unidades da cidade.

Com um olhar renovado quanto a essa forma cultural carnavalesca, Cavalcanti trata da relação entre continuidade e mudança na vida social urbana. A autora considera as dimensões horizontal e vertical do desfile e explicita suas tensões, evitando oposições estanques e simplificadoras. Aspectos internos — como o descompasso entre samba-enredo, enredo e quesitos de julgamento — e aspectos externos — como o jogo do bicho e os processos de comercialização e expansão da base social das escolas — são importantes elementos que compõem a etnografia e a análise da autora, pois remetem a negociações sociais contínuas e a diferentes planos de estudo.

A análise sociológica é associada, assim, às formulações estéticas e expressivas próprias dessa grande festa popular, cujo núcleo tenso e fundamental se assenta na contraposição entre a noção de "samba" — ligada ao aspecto festivo e, portanto, participativo — e a de "visual" — que se refere à dimensão plástica e espetacular do desfile. Em vez de impedir a vitalidade das escolas, essa tensão possibilita-a, pois "num desfile a tensão entre 'samba' e 'visual' é decisiva e mantém um espaço sempre aberto para inversões e alternativas por vezes viáveis" (:69), dinamizando o modelo vigente. Ao balizar as diferenças, as escolas de samba configuram-se como grandes agências mediadoras. Nelas, cultura popular e comunicação de massa articulam-se, influenciam-se e interagem de modo a construir maneiras próprias de formulação e significação de seu percurso ao longo do tempo.

Ao marcar, nesse caso, a passagem do tempo histórico, Cavalcanti identifica que o enredo e o samba-enredo, por exemplo, têm sido lugares privilegiados de circulação de idéias onde se (re)interpretam os mais diversos tópicos do imaginário social nacional. O samba-enredo e seu contexto sociológico específico — o desfile das escolas de samba — são focos privilegiados de análise. A década de 1930 marcou o início da vinculação do samba ao tema do desfile. Até a década de 50, os sambas-enredo tematizavam versões "oficiais" da história e do folclore do país, sendo o samba um ritmo musical caracteristicamente nacional. Na década de 60, foram introduzidas versões alternativas, como a temática negra de inspiração "afro". Acrescentaram-se em 1970 temas oníricos e, a partir de 1990, apresentaram-se os mais diferentes assuntos. Em 2004, a reutilização de enredos foi sugerida pela Liga das Escolas de Samba em razão dos vinte anos de "sambódromo".

Se a passagem do tempo é construída historicamente a partir da evolução do samba, do samba-enredo e das escolas, ela se realiza também em um outro nível: o plano ritual e agonístico do desfile. Seu dinamismo expressa-se permanentemente, ano a ano, com as atualizações das regras e dos critérios de julgamento e com a possibilidade de promoção ou rebaixamento na hierarquização aberta e em contínua revisão das escolas de samba.

Sua vitalidade manifesta-se igualmente pela negociação entre visões de mundo, por exemplo, entre carnavalescos e compositores, cujo confronto fica explicitado na passagem do enredo ao samba-enredo. De um lado, os compositores (cap.3) são mais ligados ao "meio do samba", pois se definem por uma visão de mundo e um estilo de vida peculiares, além de exercerem uma grande cobrança quanto à adesão mais intensa a determinada escola. De outro, os carnavalescos (cap.2) têm mais flexibilidade, transitam entre grupos distintos dentro da escola e dominam códigos diferenciados, destacando-se o seu papel mediador. Assim, no interior desse mesmo processo de criação coletiva que é o desfile, o compositor se situa como aquele de "dentro" e o carnavalesco como o de "fora".

A transformação do enredo em samba-enredo, passagem realizada pelo carnavalesco aos compositores, é um momento crítico no ciclo do desfile. Tal passagem se dá de forma irregular, envolvendo muitos ruídos na comunicação e confronto entre visões de mundo. Se, de um lado, há a perspectiva do carnavalesco que prima pelo "visual" da escola, de outro, há aquela do compositor, que envolve a informalidade do aprendizado do samba, as noções de "dom", de "fazer poesia", de fidelidade à sua escola, além da relação entre parcerias, que é instável e competitiva. A escolha do samba do carnaval do ano seguinte é o ápice desse processo, pois marca o momento de união interna da escola diante da cidade e de suas concorrentes.

Após o processo de definição do samba, o enredo passa a ser efetivamente transformado na linguagem plástica e visual de alegorias (cap.4), fantasias e adereços (cap.5). Nessa etapa, assim como já ocorre na passagem do enredo ao samba-enredo, há defasagens de significação entre o samba e o conjunto das alegorias, em razão da dinâmica e da organização do ciclo do desfile que distingue etapas específicas no interior de um mesmo processo. As alegorias, em relação ao samba, extrapolam em significados. De forma contundente, devido à sua forte qualidade expressiva, elas atestam a "primazia do visual" por meio de fragmentos que são juntados e esfacelados, abrindo-se para novos significados.

Na abordagem de Cavalcanti, ao universo carnavalesco — no qual a expressão estética das alegorias e a primazia do "visual" conversam com o "samba" — soma-se ainda o plano sociológico, em que diversos atores sociais concretos ganham centralidade. Artistas, ferreiros, carpinteiros, mecânicos, escultores, costureiros, aderecistas produzem coletivamente o desfile. A lógica do trabalho desses artistas acompanha a natureza da arte de consumo e é envolvida por forças, como a comercialização e o financiamento do desfile. A autora, contrariando a visão maniqueísta, analisa o mecenato do jogo do bicho segundo uma ordem moral interna presente no carnaval das escolas. Aqui, a reflexão sociológica ampla revela ao leitor mais um plano de análise. Nele, o poder clandestino do jogo do bicho reflete um padrão cultural no qual a dominação tradicional está representada pela patronagem, e a dicotomia concepção/execução desdobra-se na relação autoridade/obediência em níveis desiguais.

De modo circular, dinâmico, tenso, tal como a festa estudada, o trabalho de pesquisa realizado por Cavalcanti chama a atenção para o ciclo ritual, conquistado e renovado a cada desfile, e para o caráter histórico da "conversa" estabelecida entre a festa e a cidade do Rio de Janeiro ao longo das últimas décadas. Os bastidores ou o processo de confecção dessa festa deixam entrever uma rede de reciprocidade que é sempre atualizada e ganha expressão máxima no momento único e espetacular do desfile, quando se comunica com a "cidade inteira", exprimindo sua eterna capacidade de repetir-se e de permanecer atual.

Consciente de que as transformações são próprias das formas culturais, que se expandem e também decaem, a autora, no prefácio da 1ª edição de 1994, sugeria que só o tempo e a realização de novas pesquisas poderiam indicar outras tendências e configurações para o desfile das escolas de samba. O sucesso dessa forma carnavalesca, cujo processo ritual foi clarificado pela autora há mais de uma década, é confirmado ainda hoje e vem servindo de referência e estímulo para novas pesquisas, como aquelas mencionadas no prefácio desta 3ª edição de 2006. As pesquisas que se seguiram evidenciam seu rendimento analítico não só no âmbito dos estudos sobre o carnaval carioca, mas também nas abordagens das relações entre formas rituais e seus aspectos sociológicos em contextos urbanos diversos, comprovando sua contribuição mais ampla à sociologia, à antropologia urbana e à análise ritual.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Out 2007
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