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Gestar e gerir: estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil

RESENHAS

Luiz Felipe Rocha Benites

UFSM/UNIFRA

SOUZA LIMA, Antônio Carlos de (org.). 2002. Gestar e Gerir: estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 316 pp. (Coleção Antropologia da Política)

O livro "Gestar e Gerir" é composto por um conjunto diversificado de estudos, dispostos em 10 capítulos, que contribuem para o estabelecimento de um novo olhar sobre os aparelhos administrativos de governo no Brasil. A produção das ciências sociais brasileiras tem investido muito em análises acerca das relações entre Estado, políticas públicas e distintos segmentos sociais. Entretanto, a referida obra avança na construção de um quadro analítico no qual se articulam diferentes saberes, agentes, mecanismos de poder e práticas administrativas. De acordo com os autores, as ações engendradas nas instituições públicas tornamse constituintes do caráter e da performance estatal, sob diversos aspectos e em períodos históricos determinados.

A reunião de uma multiplicidade de temas de investigação, além de abrir caminho para o entendimento de um complexo campo de análise, combina-se e se enriquece com uma variedade de metodologias (da pesquisa documental histórica às observações etnográficas). Tal aspecto é bem caracterizado pelo organizador como "configurando abordagens que dificilmente se reduzem a cânones disciplinares convencionais, como aqueles preconizados hoje ainda em manuais e livros de introdução" (:11).

É possível abordar o livro considerando-o a partir de dois eixos transversais cujos pontos de cruzamento são dispersos, múltiplos e móveis. Um dos eixos agruparia os artigos em termos da proximidade entre os objetos da ação dos agentes do Estado (populações indígenas e de favelas, imigrantes, menores de idade, o relevo natural, territórios). Outro eixo seria constituído pelos dispositivos de poder, a cujo acionamento os estudos fazem referência (mecanismos tutelares, discursivos, "de parceria", de controle político-midiático e de administração populacional etc.).

Os artigos de Jair de Souza Ramos (cap. 2), José Gabriel Silveira Corrêa (cap. 5) e Adriana de Resende Barreto Vianna (cap. 10) problematizam o poder tutelar orientado, respectivamente, para imigrantes, índios e crianças. O estudo do primeiro autor versa sobre a constituição do Serviço de Povoamento do Solo Nacional (SPOV), entre 1907 e 1918, como produto de políticas de imigração e colonização associadas ao processo de formação do Estado Brasileiro. Assumindo o SPOV "como um conjunto de práticas sociais e como um processo" (:74), ele demonstra que a efetivação do poder tutelar de uma autoridade central está imbricada em um trabalho de classificação e diferenciação de populações migrantes, operado por agentes sociais na produção estatal de desigualdades. O texto de Corrêa também analisa uma agência do Estado, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) de 1910 a 1967. Seu aporte encontra-se na explicitação dos processos de incorporação dos índios à "cultura nacional" por meio dos recur-sos pedagógicos, pacificadores e integrativos da tutela exercida nas práticas funcionais do SPI. O artigo de Vianna, por sua vez, desloca o olhar para a dinâmica que envolve a administração da guarda sobre os "menores" pelos aparatos jurídicos do Estado. Para a autora, a dominação tutelar emerge articulada a "níveis de mediação e responsabilidade, de modo que nunca é o indivíduo sujeito de direitos o foco primordial da ação judicial sobre menores, e sim as relações nas quais ele está inserido ou deve ser alocado" (:300).

Os textos de Ludmila Moreira Lima (cap. 6), de João Paulo Macedo e Castro (cap. 8) e de Ana Lúcia Silva Enne (cap. 9) exploram as complexas relações que as agências públicas estabelecem com agentes externos na organização dos modos de intervenção estatal. Lima reflete sobre os conflitos e limites das experiências de "cooperação" e "parceria" entre os saberes e as práticas de setores governamentais e não-governamentais na implementação do Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL). Macedo e Castro focaliza sua reflexão no processo em que o discurso desenvolvimentista vai derivar na constituição de unidades sociais para definir a intervenção estatal. Partindo do Programa Favela-bairro, o autor demonstra como a favela é tomada como unidade social a ser "desenvolvida" (:239) e como o projeto vai se adaptando à realidade local a partir de conflituosas relações entre técnicos e representantes da comunidade. O estudo de Enne, por sua vez, nos remete a uma situação em que a ação estatal aparece como "coadjuvante" (:259) na relação com a sociedade civil. Tomando a atuação da Socie-dade Beneficente Nuclear Comunitária (SOBENCO) como objeto de reflexão, a autora cria uma cartografia do plano político-cultural em que as iniciativas da entidade se desenvolvem.

O período Varguista é o cenário para as análises de Adriana R. B. Vianna juntamente com Maurício B. A. Parada (cap. 3) e de Sérgio Ricardo R. Castilho (cap. 4). O capítulo 3 investe na reflexão sobre os rituais nacionalistas a partir das descrições e discursos produzidos pelos órgãos de imprensa da época. O quadro construído revela a transversalidade da lógica tutelar na produção da, então, cultura política nacional, por meio de um processo pedagógico sobre as crianças, evidenciado nas dramatizações cívicas do calendário cerimonial público. Castilho desloca seu olhar para o desenvolvimento das tecnologias midiáticas no território nacional para conectá-las com novas formas de controle político. Assim, a expansão dos meios de comunicação à distância é relacionada pelo autor como importante instrumento na personalização e na legitimação da centralização do poder na Era Vargas.

Geógrafos de formação, Rafael Winter Ribeiro (cap. 1) e Maria Lúcia Pires Menezes (cap. 7) problematizam a construção social e cultural dos territórios. Esta última autora faz um rigoroso levantamento dos elementos em jogo na construção de um modelo de gestão territorial da Amazônia brasileira. Ribeiro, por sua vez, vai buscar nas representações de técnicos e políticos sobre a natureza e a seca, ocorrida no Ceará entre 1877 e 1879, um aporte importante para se compreender a construção do Nordeste como região. Os conflitos de concepções entre os distintos agentes vão endossar diferentes propostas de intervenção da administração pública, nas quais um dos efeitos imprevistos é a contribuição para a construção da idéia do "Nordeste" associado ao problema da seca.

O conjunto de textos apresenta uma oscilação no plano analítico, especialmente no que se refere à elaboração teórica de certos estudos. Nem por isso deixa de construir um quadro rico, ainda que disperso, em elementos empíricos, bem situados social e historicamente, sobre a ação do aparato estatal no país. Em meio à aparente dispersão dos textos, creio que o maior mérito do livro seria o de iluminar os processos que podem ser denominados de "formação do Estado brasileiro". Afinal, tal como formulado por Ramos no capítulo 2: "a ação de agentes estatais não é simples produto de um Estado já pronto. As ações feitas em nome do Estado, ainda que demandadas a partir de interesses privados, constroem o próprio Estado" (:54). Tais ações, muitas vezes evocadas como equalizadoras de assimetrias sociais, são, de forma analítica, pertinentemente recolocadas pela obra nos circuitos produtores das desigualdades.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 2005
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