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BERLINER, David. 2022. Devenir autre. Hétérogénéité et plasticité du soi. Paris: Éditions la Découverte. 176 pp.

Resenha de: BERLINER, David. . 2022 Devenir autre. Hétérogénéité et plasticité du soi . Paris: Éditions la Découverte, 176 pp.

David Berliner é antropólogo e professor da Universidade Livre de Bruxelas. Tendo realizado trabalho de campo na África Ocidental e no Sudeste Asiático, Berliner se tornou mais conhecido na antropologia pelo público anglo-saxão e francófono em função de suas reflexões sobre transmissão, patrimônio cultural, memória e contradição (cf. Berliner 2012BERLINER, David. 2012. “Multiple nostalgias”. J R Anthropol Inst, 18:769-786., 2014BERLINER, David. 2014. “On exonostalgia”. Anthropological Theory, 14 (4):373-386., 2017BERLINER, David. 2017. “Contradictions: From the intrapersonal to the social, and back”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 7 (2):45-49.).

Devenir autre [Tornar-se outro], recém-publicado livro de Berliner, tem como ponto de partida o ponto de chegada do seu livro precedente, Perdre sa culture [Perder sua cultura]. Neste último livro, em que o antropólogo belga realiza uma compacta e densa reflexão sobre a nostalgia contemporânea daqueles que reivindicam a conservação ou a recuperação de uma “cultura perdida”, Berliner termina com uma análise a respeito da plasticidade do antropólogo. Ele seria aquele que, “usando capacidades humanas de transformação de si” (2018BERLINER, David. 2018. Perdre sa culture. Bruxelles: Zones sensibles.:97), conviveria com uma cultura outra, se identificaria com ela, sem no entanto perder a sua própria cultura. Cameleão por excelência - como o famoso Zelig de Woody Allen -, o antropólogo seria, segundo Berliner, essa figura que mergulha no contexto nativo não para nele deixar a sua cultura de lado - ou go native -, mas sim para ampliar os seus próprios horizontes perspectivos a partir do contato com a alteridade.

O antropólogo, então, seria aquele que, por ofício, aprende e exercita, de forma regular e sistemática, esse alargamento e descentramento de seu mundo próprio por meio de capacidades específicas, como a empatia, a imitação e a assunção da perspectiva do outro - capacidades estas que, diga-se de passagem, não são monopólio do próprio antropólogo. Porém, ao contrário das pessoas leigas que estão absortas em suas atividades pragmáticas rotineiras e habituais, o antropólogo não apenas hipertrofiaria as aludidas capacidades, mas também refletiria e se deteria sobre elas. E é tal gesto reflexivo que define o ponto do qual o livro de Berliner parte.

O livro Devenir autre [Tornar-se outro] é, então, uma brilhante meditação acerca das “experiências identificatórias particularmente especiais” (2022:13) que pessoas - e não somente antropólogos - empreendem com a finalidade de serem outra coisa além daquilo que são. Berliner tem como intuição pré-teórica não apenas o desejo que todos temos de nos tornamos outros, mas sobretudo a capacidade ou a competência para realizá-lo. Afinal, se é possível não apenas desejar, mas também tornar-se outro, ainda que momentânea e parcialmente, a questão de uma “antropologia da experiência” que Berliner propõe torna-se descrever de que forma e em que circunstâncias é possível fazê-lo. Nos termos do autor: “como funciona a identificação com o outro? Quais são os seus motores e efeitos? Quais são as tecnologias que tornam o processo possível? Como se pode falar disso? O que essas experiências nos dizem sobre o self, suas múltiplas facetas e sua plasticidade?” (2022:19).

Com estas perguntas em mente, Berliner volta a sua energia intelectual para as distintas modalidades de aparição e expressão do que chama de “exoexperiências” (2022:16-21), isto é, experiências nas e por meio das quais as pessoas habitam uma realidade distinta ou uma vida alternativa àquela a que estão habituados. No primeiro capítulo do livro, o antropólogo belga se volta para as exoexperiências propiciadas pelo cosplay, essa atividade lúdica em que pessoas interpretam personagens reais (artistas, celebridades etc.) ou ficcionais (personagens de animes, mangás etc.), copiando seus gestos e vestindo suas roupas; no segundo capítulo, Berliner se dedica a apresentar diversas experiências de pessoas que procuram “tornar-se animais”, isto é, assumir o ponto de vista e o comportamento de um outro animal não humano. O terceiro capítulo se detém sobre grupos de pessoas que fazem recriações históricas - como as que tentam recriar o dia D, na Normandia -, enquanto o quarto capítulo retrata a experiência daqueles que jogam RPG em tamanho real.

O quinto capítulo foge à regra de todos os outros, uma vez que é dedicado mais às formas de transformação do que às suas modalidades de aparição: nele, Berliner descreve as tecnologias das “passagens” e as experiências imersivas, como aquelas de fluxo de Csikszentmihalyi (1990CZIKSENTMIHALYI, Mihaly. 1990. Flow: The Psychology of Optimal Experience. Cidade: Harper.), que as primeiras comumente implicam. O sexto capítulo, por sua vez, delineia a importância da escrita de ficção para os processos de experimentação da e com a alteridade - e, nele, o próprio Berliner assume publicamente ser Derek Moss, um alter ego, criado para experimentar outras modalidades de si por meio da escrita ficcional.1 1 Assim Berliner detalha a razão da criação de seu alter ego: “Derek foi também uma forma de falar sobre o meu judaísmo e as minhas ansiedades, dois assuntos que David Berliner não gosta de falar em público. Em suma, ao combinar o primeiro nome de Derek Freeman com o nome transformado de Marcel Mauss, ambos antropólogos que acabaram na loucura, nasceu Derek Moss, o filho imaginário de Kate Moss e o Inspector Derrick” (2022:136). Contudo, como as exoexperiências não são redutíveis a momentos lúdicos e voluntários, no sétimo capítulo Berliner se volta para boa parte da literatura pós-colonial, racial e de trânsfugas, retratando as exoexperiências dos colonizados e dos subalternizados, cuja interiorização de um ponto de vista outro - no caso, dos dominantes - é uma questão de sobrevivência.

Ao retratar essas diversas modalidades de exoexperiências, de modo empiricamente criativo e teoricamente bem fundamentado, Berliner também evita possíveis formas de fetichismo da alteridade. Ele alerta para o fato de que, diferentemente de tendências pós-modernas ou pós-estruturalistas, seu interesse não está apenas na “transformação e [na] fragmentação” (2022:27), e que “mesmo quando a linguagem usada pelas pessoas é a da metamorfose ou da possessão” (2022:14), uma pessoa nunca pode se tornar totalmente outra. Com base nisso, Berliner propõe uma perspectiva compatibilista entre dois paradigmas a respeito do self que, de modo geral, são tratados como incomensuráveis. Por um lado, ele não descarta a perspectiva segundo a qual o indivíduo é dotado de um considerável grau de coerência e de constância; por outro, ele preconiza que é preciso enriquecer tal paradigma a partir da ideia de que este indivíduo estável e coeso é, ao mesmo tempo, um ser múltiplo e maleável. Berliner, assim, concilia o reconhecimento de uma pluralidade de papéis sociais, contextos heterogêneos, emoções, ideias e valores por vezes contraditórios, com a presença de uma continuidade sempre elástica e plástica do self. Apesar de permanentemente alterável ao longo da vida e da incorporação de novas experiências, o self, para Berliner, é uma instância que (re)elabora sem cessar o seu senso de continuidade e permanência.

Ainda que Devenir autre [Tornar-se outro] mereça muitos elogios tanto pela escrita, que é clara e empolgante, quanto pelas engenhosidade e criatividade teóricas - é, de fato, impressionante o número de referências literárias, filosóficas, antropológicas, além de entrevistas feitas pelo autor, de forma tão compactada e sintética -, cabe, creio eu, ao menos um apontamento crítico. Ele se refere às escolhas prioritárias que o antropólogo belga estabelece ao tratar das exoexpêriencias: ainda que os exemplos arrolados no livro, sobretudo no sétimo capítulo, possam ir além das vivências lúdicas, toda a estrutura teórica mobilizada privilegia processos de tornar-se outro cuja duração é relativamente curta, artificialmente produzida e consideravelmente controlada. Por isso, creio que seria importante que Berliner introduzisse no seu trabalho uma distinção qualitativa entre processos de transformação como os de um cosplayer - processo que abarca uma performance temporária num determinado papel ficcional - e aqueles que envolvem um compromisso existencial contínuo e não têm tempo determinado estabelecido previamente, como é o caso da transição de gênero de pessoas transexuais. Mesmo que possamos considerar que a prática do cosplay possa produzir efeitos duradouros e não intencionais sobre o cosplayer - e o livro de Berliner mostra muito bem isto -, tal transformação não pode ser comparada nem mesmo estudada nos mesmos termos daquelas vividas por uma pessoa em vias de mudar de gênero. Por isso, seria importante que Berliner contemplasse tais transformações com exemplos empíricos e introduzisse distinções entre processos de tornar-se outro que implicam um baixo custo de reversibilidade e uma curta duração e outros que envolvem um altíssimo custo de reversibilidade e possuem duração prolongada. No que tenho chamado e desenvolvido como sociologia dos problemas íntimos, em vez de me ater ao estudo de pessoas que vivem exoexperiências esporádicas e lúdicas, volto-me notadamente para acompanhamentos temporais e longitudinais de pessoas que estão passando, para usar os termos de Berliner, por exoexperiências de longa duração que, quando não irreversíveis, são dotadas de um altíssimo custo de reversibilidade (cf. Corrêa, 2020CORRÊA, Diogo Silva. 2020. Entre o querer e o não querer: dilemas existenciais de um ex-traficante na perspectiva de uma sociologia dos problemas íntimos. Tempo Social, v. 32, n. 2: 175-204., 2021CORRÊA, Diogo Silva. 2021. Esboço de uma sociologia dos problemas íntimos. Sociologia & Antropologia [online]. 2021, v. 11, n. 02: 415-444., 2022CORRÊA, Diogo Silva. 2022. Anjos de fuzil: uma etnografia das relações entre pentecostalismo e vida do crime na favela Cidade de Deus, Rio de Janeiro: Eduerj.; Corrêa & Grillo, 2022CORRÊA, Diogo Silva & GRILLO, Barbara. 2022. Outline of a sociology of intimate troubles: The “passages” of a single self between Evangelicalism and crime. Revista del CESLA. International Latin American Studies Review,(29):195-218). Transexuais, mas também modificadores corporais e obesos que recentemente passaram por cirurgias bariátricas, estão todos envolvidos em processos de mudança que vão muito além de uma atividade recreativa controlada. Ao contrário, todos estão submersos em longos e tortuosos processos biográficos de mudança que incorrem em pontos de irreversibilidade e implicam uma longa duração.

Tal apontamento crítico, todavia, não pretende, em absoluto, desmerecer a qualidade de uma obra extremamente criativa, rica e densa como é Devenir autre [Tornar-se outro]. O livro de Berliner, na verdade, em sua “reflexão socioantropológica sobre a unidade do self, suas múltiplas facetas e sua plasticidade” (2022:141) nos ajuda a compreender não apenas os elementos que envolvem os processos de transformação, mas também a multiplicidade que habita em todos nós. O próprio Berliner, em seu livro, faz uma autoapresentação a partir da própria multiplicidade que o caracteriza enquanto self: “de uma maneira não exaustiva, sou ao mesmo tempo Europeu, Belga, de Bruxelas, francófono, judeu Ashkenazi, agnóstico e herdeiro dos traumas da Shoah, classe média na fase dos quarenta anos, um antropólogo que passou muito tempo na África Ocidental e no Sudeste Asiático, um professor, um pai, um cônjuge, um filho, um irmão, um amigo, um paciente, uma pessoa ansiosa, um homem heterossexual cisgênero, politicamente de esquerda, um fã de guitarra elétrica, corrida, Georges Perec e Donna Haraway” (2022:29).

Pouco importa se somos antropólogos, cosplayers, atores de RPG: diz-nos Berliner que há, “em cada um de nós, um cosplayer, um recriador de eventos históricos, um ator, um jogador pronto para encarnar e explorar mundos” (2002:169). Na esteira dessa ideia e à guisa de conclusão, gostaria de fazer referência a duas frases do ensaísta francês Paul Valéry, que poderiam muito bem servir de epígrafe e de síntese do livro recém-publicado de David Berliner:

“A ideia de viver uma outra vida que não a sua é, sem dúvida, a mais característica das ideias do homem.” (1957VALÉRY, Paul 1957. Œuvres. Edition établie et annotée par Jean Hytier. Paris: Gallimard, t.I.:1320).

"Eu penso muito sinceramente que se cada homem não pudesse viver uma quantidade de vidas além da sua, ele não poderia viver a sua própria.” (1957VALÉRY, Paul 1957. Œuvres. Edition établie et annotée par Jean Hytier. Paris: Gallimard, t.I.:1320).

Referências

  • BERLINER, David. 2012. “Multiple nostalgias”. J R Anthropol Inst, 18:769-786.
  • BERLINER, David. 2014. “On exonostalgia”. Anthropological Theory, 14 (4):373-386.
  • BERLINER, David. 2017. “Contradictions: From the intrapersonal to the social, and back”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 7 (2):45-49.
  • BERLINER, David. 2018. Perdre sa culture Bruxelles: Zones sensibles.
  • CORRÊA, Diogo Silva. 2020. Entre o querer e o não querer: dilemas existenciais de um ex-traficante na perspectiva de uma sociologia dos problemas íntimos. Tempo Social, v. 32, n. 2: 175-204.
  • CORRÊA, Diogo Silva. 2021. Esboço de uma sociologia dos problemas íntimos. Sociologia & Antropologia [online]. 2021, v. 11, n. 02: 415-444.
  • CORRÊA, Diogo Silva. 2022. Anjos de fuzil: uma etnografia das relações entre pentecostalismo e vida do crime na favela Cidade de Deus, Rio de Janeiro: Eduerj.
  • CORRÊA, Diogo Silva & GRILLO, Barbara. 2022. Outline of a sociology of intimate troubles: The “passages” of a single self between Evangelicalism and crime. Revista del CESLA. International Latin American Studies Review,(29):195-218
  • CZIKSENTMIHALYI, Mihaly. 1990. Flow: The Psychology of Optimal Experience Cidade: Harper.
  • VALÉRY, Paul 1957. Œuvres Edition établie et annotée par Jean Hytier. Paris: Gallimard, t.I.
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    Assim Berliner detalha a razão da criação de seu alter ego: “Derek foi também uma forma de falar sobre o meu judaísmo e as minhas ansiedades, dois assuntos que David Berliner não gosta de falar em público. Em suma, ao combinar o primeiro nome de Derek Freeman com o nome transformado de Marcel Mauss, ambos antropólogos que acabaram na loucura, nasceu Derek Moss, o filho imaginário de Kate Moss e o Inspector Derrick” (2022:136).

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Jul 2022
  • Aceito
    27 Jul 2022
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