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Las formas locales de la vida religiosa. Antropología e historia de los santuarios de La Rioja

RESENHAS

CALAVIA, Oscar. 2002. Las formas locales de la vida religiosa. Antropología e historia de los santuarios de La Rioja. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas. Vol. I. 234 pp.

Miguel Carid Naveira

Doutorando, PPGAS/UFSC

Os dualismos global/local, urbano/rural, erudito/popular, ou sagrado/profano, são no presente, como já o foram no passado, objeto de amplas reflexões teóricas, contribuindo para a revisão de noções tão caras à antropologia quanto à de religião ou cultura. Entretanto, são menos volumosos os estudos históricos e etnográficos que tentam explicar a relação específica e constituinte de cada um desses pares, através de dados e situações concretos. Esse é um dos objetivos principais que orientam o trabalho de Oscar Calavia sobre os santuários de La Rioja e a religiosidade rural dessa região norte da Espanha.

O autor leva-nos a uma viagem mais diversificada do que os tours convencionais em matéria de religião nos têm acostumado, apresentando-nos três santuários riojanos e o modo específico de religiosidade a eles associado no caso, a devoção e a peregrinação -, temas centrais do livro. Suas páginas incluem trilhas muito diversas que vão desde narrativas das vidas e dos milagres dos santos que deram origem à construção dos santuários até - passando pela análise de festas e procissões contemporâneas, pelo diabolismo e a sexualidade, e pela política religiosa - um sem-fim de questões teóricas de longo alcance. Questões que, ainda que o autor se reserve não explicitá-las in abstrato até as últimas páginas, são ilustradas ao longo do livro pela prova com maior peso teórico: o próprio exercício de análise.

O estilo fluido mantém o tom habitual do autor, em que a exaustividade e a profundidade teóricas não parecem excluir registros mais criativos, e um certo encobrimento dos processos técnicos da análise que tende a facilitar a leitura. O livro situa-se na interface entre os estudos históricos e os antropológicos, tanto pelos materiais que inclui - crônicas e monumentos, ritos e costumes atuais - quanto pelas perspectivas teóricas de que se vale - crítica de fontes históricas, profundidade temporal, observação participante, análise estruturalista do ritual. Nesse sentido, Calavia não hesita em ultrapassar as fronteiras acadêmicas, abordagem esta muito acorde com as vitalidades regionais e transfronteiriças das religiosidades católicas que estuda. São formas locais, no sentido de que sugerem as adaptações e criações populares - ou eruditas, pois os santuários são geridos pelas ordens religiosas oficiais: santos cujos milagres vigoram em alguns lugares e não em outros, santuários que representam suas façanhas e são como que tomados pelo ímpeto da interpretação popular regional, mitos que usam os mesmos registros ou constroem, com sua variação, o sentido. Mas são formas locais, também, porque dependem de um diálogo permanente, seja com a doutrina hegemônica e disciplinadora do catolicismo oficial, seja com outras formas também locais, constituindo - e constituindo-se - através de um jogo de diferenças que só o olho avezado dos exegetas locais, ou, no caso, do analista, sabe tornar explícito: os santos se conhecem entre si, afirma o autor, lembrando que é precisamente o conhecimento dos mitos vizinhos e a comunicação que permitem à imaginação local construir a diferença, "variar sobre la comunidad de peripecias" (:207-208).

Para fugir dos pontos cegos de abordagens mais essencialistas, fruto, na maioria das vezes, de uma análise focalizada no discurso oficial e hegemônico, a noção de "campo religioso"- talvez seria melhor dizer "campo de religiosidades" -, com seus múltiplos agenciamentos e jogos de espelhos, vem propor um novo modelo de análise. Calavia está preocupado com as configurações concretas, com aquilo que a parte tem a dizer ao Todo, e também com a constante interpenetração das partes, sejam estas dois ou mais santuários contíguos, suas representações iconográficas, o pároco e os fiéis, ou os habitantes da cidade e os peregrinos que por ela passam. Para tanto, em vez de "reduzir" os símbolos à expressão de um pensamento hegemônico, apriorístico ou universal, ou a uma combinatória lógica de abstrações - mas sem negar também o que de "selvagem" tem a religiosidade popular -, o autor confere especial atenção à historicidade do símbolo.

Nesse sentido, o livro apresenta uma perspectiva pouco habitual nos estudos sobre religiosidade popular: de um lado, um método de análise estruturalista herdeiro das "Mitológicas" lévi-straussianas - muito explícito nas análises tanto das narrativas clássicas quanto dos ritos tradicionais ou contemporâneos -, de outro, uma preocupação clara com a semântica e a história, ou seja, com os contextos. O material simbólico é posto a serviço de uma melhor compreensão das cosmologias locais, expressas nas ações atribuídas aos santos, na iconografia de seus santuários, na expressão de um tipo de cristianismo concreto ("fronteiriço" no caso de San Millán de la Cogolla, "transgressor" e "excêntrico" no santuário da Virgem de Valvanera, "mediador" no caso de Santo Domingo de la Calzada).

Essa combinação se revela altamente produtiva para a interpretação de práticas e dados etnográficos específicos, pois é no aspecto local dessas cosmologias que a sociedade - ou o santuário e a forma específica de religiosidade que a representam - se mostra com maior evidência, ou seja, sem perder de vista seu referente etnográfico concreto. Trata-se mais de amplificar do que de reduzir, mais de prestar atenção às partes e ao diálogo que elas estabelecem entre si do que de compor por abstração indutiva uma totalidade que empiricamente termine por não se achar em lugar algum (ainda que idealmente possa estar em todo lugar).

Valem aqui algumas conclusões que o autor já extraiu em outros textos a partir do estudo de mitos ameríndios: a eficácia histórica do símbolo não depende de uma interpretação exógena ao mesmo, ela é uma característica consubstancial ao próprio símbolo. Ou, dito de outra forma, entre estrutura e experiência histórica não há nem vazio nem subordinação, pois não há como processar sem estruturas, nem estruturas que não se realizem através de processos.

No caso, os processos levam-nos ao auge e decadência dos santuários de La Rioja, à escolha dos fatos representativos e às organizações locais dos mesmos, fruto, em grande medida, e como já citamos, do diálogo que as diferentes configurações regionais mantêm entre si, mas resultado também das topologias localizadas, dos registros específicos espaciais, naturais ou sexuais, entre outros, articulados em cada um desses santuários.

Não há como negar que alguns dos comentários anteriores vêm sendo lugar-comum das revisões teóricas recentes sobre dualismos tais como estrutura/processo, ou cultura/história; o difícil, porém, é incorporá-los à análise, empreitada que nos parece orientar a todo momento a pluma do autor, como ele próprio expõe nas conclusões. E talvez haja lugar aqui para uma crítica formal da organização do texto, mais concretamente à ausência de uma introdução teórica que oriente o leitor quanto à novidade da abordagem, ou que sublinhe o contexto teórico maior da religiosidade, em que esta análise dos santuários riojanos se situa e, por isso, propõe. (Não é sempre que a etnografia e a historiografia se dão as mãos com tanta empatia como no presente estudo, ou que mitos, ritos, iconografia e política são usados simultaneamente nos mesmos eixos interpretativos.) Parece-me que uma análise que visa a junção de técnicas estruturalistas e historiográficas, e que está tão preocupada com a sintaxe das estruturas como com sua semântica, mereceria algumas explicações teóricas prévias.

Sem dúvida, o livro interessará aos estudiosos (ou curiosos) da religiosidade em geral, ou ainda aos que queiram saber mais sobre as conexões entre mito e história, entre a cultura popular e a erudita, entre o sagrado e o profano. Isso não fica tão claro no começo, a não ser que se leiam antes as conclusões: "El lector avisado las identificará perfectamente a lo largo de la descripción", escreve o autor nas primeiras páginas, mas nem todo leitor...

O livro, prenhe de dados concretos - históricos e etnográficos - e com uma ambição teórica de longo alcance - embora não seja bem explicitada -, situa-se, como o leitor avezado já terá adivinhado pelo título, em uma filiação ilustre: as formas elementares de Durkheim, e as complexas do antropólogo e historiador espanhol Caro Baroja. Entretanto, se pelo tema e pelas problemáticas deve muito ao primeiro, mais me parece se aproximar do segundo nos caminhos escolhidos para resolvê-las. Afastando-se dos excessos hebraicos de Durkheim, dos deuses internacionais das "formas elementares da vida religiosa", o autor opta pela complexidade do local. Antes que reforçar as semelhanças para alcançar um grande princípio unificador, seja o "sagrado", seja a "sociedade", Calavia inclina-se pelas "religiosidades", pelos sistemas locais não-totalizantes, inserindo entre o sagrado e o social as estratégias dos registros regionais e a lógica da história.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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