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Introdução ao “Especial” sobre a obra de Peter Rivière

Em 2019 eu propus à Mana organizar um dossiê em torno da obra do antropólogo Peter Rivière. A minha ideia era reunir artigos de jovens pesquisadores, a maioria brasileiros, que nas últimas décadas produziram excepcionais etnografias de povos indígenas da região das Guianas - aquela “ilha” do nordeste da América do sul, delimitada ao sul pelo rio Amazonas, a oeste pelo rio Negro e o Canal de Cassiquiare, ao norte pelo Mar do Caribe e a leste pelo Oceano Atlântico, como Rivière (1984:2RIVIÈRE, Peter. 1984. Individual and Society in Guiana: A Comparative Study of Amerindian Social Organisation. Cambridge: Cambridge University Press.), um dos pioneiros da pesquisa etnográfica na região, a definiu. Apesar do entusiasmo de diversos colegas, a pandemia de coronavirus interrompeu os nossos planos e o dossiê acabou sendo abandonado. No entanto, Peter Rivière havia concordado em publicar um artigo seu que foi escrito originalmente em 1973, e que se tornara um texto influente na etnologia indígena apesar de jamais ter sido publicado, para o qual ele escreveu um novo prefácio. Recebemos ainda dois excelentes artigos que dialogam com a obra de Rivière. Para não perdermos a oportunidade de publicar essas contribuições em conjunto, os editores da Mana convidaram-me para organizar esse “Especial”.

Peter Rivière não foi apenas um pioneiro da etnografia na região das Guianas, mas também um dos primeiros etnógrafos modernos das terras baixas da América do Sul (Viveiros de Castro 1996:181VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Images of nature and society in Amazonian ethnology”. Annual Review of Anthropology, 25:179-200.; Rival & Whitehead 2001RIVAL, Laura & WHITEHEAD, Neil. 2001. “Forty years of Amazonian anthropology: The contribution of Peter Rivière”. In: Laura Rival & Neil Whitehead (orgs.), Beyond the Visible and the Material: The Amerindianization of Society in the Work of Peter Rivière. Oxford: Oxford University Press. pp. 1-18.; Costa 2019COSTA, Luiz. 2019. “The place of ‘The construction of the person in indigenous Brazilian societies’ in Amazonian anthropology”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 9:687-693.:687-688). Em sua monografia sobre os Tiriyó do Suriname, Rivière descreveu de modo inovador os mesmos traços “invariantes” dos povos indígenas das Guianas que ele depois exploraria de modo comparativo (Rivière 1969RIVIÈRE, Peter. 1969. Marriage among the Trio: A Principle of Social Organization. Oxford: Clarendon Press.; 1984RIVIÈRE, Peter. 1984. Individual and Society in Guiana: A Comparative Study of Amerindian Social Organisation. Cambridge: Cambridge University Press.): ausência de agrupamentos sociais de caráter corporado, em particular aqueles em que a afiliação é determinada pela descendência; um forte princípio endogâmico, que se traduz em uma abjeção ao exterior e a consequente supressão ideológica das relações de afinidade no interior do grupo local; uma tendência à uxorilocalidade ali onde a endogamia não ocorre; aldeias centradas e em um chefe, usualmente um sogro de muitos homens corresidentes; uma organização social “atomística” e “individualista”; um padrão de assentamento, “amorfo” e “fluido”; por fim, uma terminologia de relacionamento em duas linhas, tema do artigo que publicamos neste número. Para Rivière, tais definições mais ou menos negativas (em que as sociedades das Guianas são definidas pelo que carecem) encontravam a sua faceta positiva em uma economia política da escassez de pessoas e do seu trabalho e, sobretudo, de mulheres que são responsáveis pela reprodução do trabalho. Portanto, o que dá forma ao caráter aparentemente amorfo das Guianas é o controle de pais sobre suas filhas, ou melhor, de sogros sobre seus genros por meio de suas filhas/esposas. Ademais, tal estruturação da vida social representa a “a cultura das terras baixas em sua forma mais simples” (Rivière 1984:102RIVIÈRE, Peter. 1984. Individual and Society in Guiana: A Comparative Study of Amerindian Social Organisation. Cambridge: Cambridge University Press.), forma esta cujas transformações Rivière explora em relação aos Jê do Brasil Central e aos povos indígenas do alto Rio Negro, lançando mão das excelentes etnografias e estudos sintéticos que foram produzidos para essas regiões a partir da década de 1960 até o início dos anos 1980 (ver Viveiros de Castro 1986VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. “Sociedade minimalistas: a propósito de um livro de Peter Rivière”. Anuário Antropológico, 85:265-282.).

O artigo de Rivière publicado aqui explora outro aspecto da “cultura das terras baixas”, agora não em sua forma mais simples, mas em sua característica mais elementar. Analisando a terminologia de parentesco (ou, como ele prefere, de “relação”) em uma grande variedade de sociedades indígenas das terras baixas da América do Sul, ele isola como aspecto invariante de toda a região uma terminologia de “duas linhas” associada a um princípio de troca bilateral. Tomando nota de diferentes inflexões que modificam a forma dessa terminologia de duas linhas em suas diversas manifestações, não obstante, ele propõe essa terminologia como aquilo que define todas as terras baixas da América do Sul como uma “área cultural”. A análise de Rivière foi desenvolvida por Viveiros de Castro (1993VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1993. “Alguns aspectos da afinidade no dravidianato amazônico”. In: Eduardo Viveiros de Castro & Manuela Carneiro da Cunha (orgs.), Amazônia: Etnologia e História. São Paulo: NHII/Universidade de São Paulo e Fapesp. pp. 149-201.), que substituiu a linguagem needhamiana de “duas linhas” pelo rótulo dumontiano de “dravidiana”, aproximando assim as terminologias sul-americanas às do sul da Índia (ver Rivière 1993RIVIÈRE, Peter. 1993. ‘The amerindianization of descent and affinity’. L’Homme 126-128: 507-516.).

O artigo de Joana Cabral e Fabiana Maizza e o de Virgínia Amaral engajam aspectos diferentes da obra do Rivière. Cabral e Maizza lidam diretamente com o tema central da “economia política do controle” de Rivière (Viveiros de Castro 1996:188VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Images of nature and society in Amazonian ethnology”. Annual Review of Anthropology, 25:179-200.). Adotando uma perspectiva influenciada pela crítica feminista e a antropologia para além do humano, e lançando mão de etnografias recentes, sobretudo as das próprias autoras, o artigo questiona a tese de Rivière sobre o lugar do processamento da mandioca no controle que homens mais velhos exercem sobre homens por meio das mulheres. Reconhecendo a contribuição de Rivière para a interpretação do espaço doméstico como um aspecto da política na Amazônia, Cabral e Maizza discutem a linguagem utilizada por Rivière e, em consequência, algumas conclusões que derivam de seu estudo comparativo.

Virgínia Amaral se volta para um outro aspecto da obra de Rivière, menos conhecido de etnólogos no Brasil: seu estudo sobre a história colonial da fronteira entre o Brasil e a Guiana (Rivière 1995RIVIÈRE, Peter. 1995. Absent-Minded Imperialism: Britain and the Expansion of Empire in Nineteenth-Century Brazil. London: Tauris. ) e sua etnografia de fazendeiros em Roraima (Rivière 1972RIVIÈRE, Peter. 1972. The Forgotten Frontier: Ranchers of Northern Brazil. New York: Holt, Rinehart and Winston.). A partir de sua etnografia do ritual do Areruya entre os Kapon e Pemon de Roraima, Amaral reflete sobre a história da disputa “distraída” em torno da fronteira do Brasil e da Guiana relatada por Rivière. Mas Amaral assume uma perspectiva fincada na “fronteira esquecida” de Roraima e, sobretudo, na lógica dos profetismos kapon e pemon. Assim, ela pode explicar como o profetismo “apagou” a memória da influência missionária, constituindo o Areruya como uma religião nativa.

Estes artigos mostram a abrangência da obra de Rivière, cuja pesquisa cobriu o parentesco, a política e a história colonial, dentre outros temas. O seu artigo inédito revela um momento específico da etnologia indígena, em que começavam a surgir, para os pesquisadores, as semelhanças e os contrastes entre os povos da região. Trata-se de um esforço visionário de compreender aqueles “invariantes” que sempre o preocuparam. Os dois artigos escritos para este “Especial” apontam a atualidade da obra de Rivière, sua capacidade de instigar novas interpretações. Embora não tenha sido possível publicar um dossiê com a extensão que vislumbramos, tenho certeza de que temos aqui uma bela homenagem a um dos fundadores da etnologia indígena.

Referências bibliográficas

  • COSTA, Luiz. 2019. “The place of ‘The construction of the person in indigenous Brazilian societies’ in Amazonian anthropology”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 9:687-693.
  • RIVAL, Laura & WHITEHEAD, Neil. 2001. “Forty years of Amazonian anthropology: The contribution of Peter Rivière”. In: Laura Rival & Neil Whitehead (orgs.), Beyond the Visible and the Material: The Amerindianization of Society in the Work of Peter Rivière Oxford: Oxford University Press. pp. 1-18.
  • RIVIÈRE, Peter. 1969. Marriage among the Trio: A Principle of Social Organization Oxford: Clarendon Press.
  • RIVIÈRE, Peter. 1972. The Forgotten Frontier: Ranchers of Northern Brazil New York: Holt, Rinehart and Winston.
  • RIVIÈRE, Peter. 1984. Individual and Society in Guiana: A Comparative Study of Amerindian Social Organisation Cambridge: Cambridge University Press.
  • RIVIÈRE, Peter. 1993. ‘The amerindianization of descent and affinity’. L’Homme 126-128: 507-516.
  • RIVIÈRE, Peter. 1995. Absent-Minded Imperialism: Britain and the Expansion of Empire in Nineteenth-Century Brazil London: Tauris.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. “Sociedade minimalistas: a propósito de um livro de Peter Rivière”. Anuário Antropológico, 85:265-282.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1993. “Alguns aspectos da afinidade no dravidianato amazônico”. In: Eduardo Viveiros de Castro & Manuela Carneiro da Cunha (orgs.), Amazônia: Etnologia e História São Paulo: NHII/Universidade de São Paulo e Fapesp. pp. 149-201.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Images of nature and society in Amazonian ethnology”. Annual Review of Anthropology, 25:179-200.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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