RESUMO
Este texto versa sobre a colonização, reforma agrária e os projetos de assentamentos rurais de Mato Grosso. Assim, objetiva compreender, a partir das histórias de vidas e narrativas dos participantes da pesquisa do Projeto de Assentamento Vale do Arinos, seus sentimentos ao chegarem no assentamento, suas experiências de vida individuais e coletivas, seus sonhos, lutas e desafios empreendidos em busca da posse de seus lotes de terra, no contexto do assentamento rural. O estudo baseia-se no método de pesquisa qualitativa associado ao método de histórias de vida e narrativas de doze assentados, especificamente os primeiros moradores do assentamento. Os dados da pesquisa apontam que as narrativas manifestadas mostram, por um lado, a satisfação e a alegria pela oportunidade que tiveram ao realizar o sonho de conquistar seus próprios lotes de terras para a garantia da produção familiar e, de outro, que existem, ainda, problemas inerentes ao descaso e/ou pouco comprometimento do poder público, ao não disponibilizou aos assentados a infraestrutura básica preconizada nas políticas de reforma agrária para assentamentos rurais.
Palavras-chave:
Assentamentos Rurais.; Colonização; Histórias de vida; Narrativas
RESUMEN
Este texto versa sobre la colonización, reforma agraria y los proyectos de asentamientos rurales de Mato Grosso. El objetivo consistió en comprender, a partir de las historias de vidas y narrativas de los participantes de la pesquisa del Proyecto de Asentamiento Vale del Arinos, sus sentimientos al llegar al asentamiento, sus experiencias de vida individules y colectivas, sus sueños, luchas y desafíos emprendidos en la búsqueda de la posesión de sus lotes de tierra, en el contexto del asentamiento rural. El estudio se basa en la pesquisa cualitativa asociado al método de historias de vida y narrativas de doce asentados, los primeros moradores del asentamiento. Las narrativas manifestadas el las voces de los asentados muestran, por un lado, la satisfacción y la alegría por la oportunidad que tuvieron al realizar el sueño de conquistar sus propios lotes de tierras para la garantía de la producción familiar y, de outro, que existen, aún, problemas inehentes al descuido y/o poco comprometimiento del poder público, que no ha puesto a los asentados la infraestructura básica preconizada en las políticas de reforma agraria para asentamientos rurales.
Palabras clave:
Assentamientos Rurales.; Colonización; Historias de Vida; Narrativas
ABSTRACT
This text deals with the colonization, agrarian reform and rural settlement projects in Mato Grosso. Thus, the main objective was to use the life stories and narratives of the participants in the research on the Arinos Valley Settlement Project to understand their feelings upon arriving at the settlement, their individual and collective life experiences, the dreams, struggles and challenges they underwent in their pursuit of possession of their lot of land in the context of rural settlement. The study is based on the assumptions of the qualitative research method associated with the life stories and narratives of twelve settlers; the selection criterion was that they were the original inhabitants of the settlement. The research data indicate that the narratives expressed in the settler's voices show, on the one hand, their satisfaction and joy regarding the opportunity to fulfill their dream of achieving their own lots of land to guarantee family production. On the other hand, that there are also problems inherent in the neglect and / or lack of commitment of the public authorities, which have not provided the settlers with the basic infrastructure recommended in agrarian reform policies for rural settlements.
Keywords:
Rural settlements; Colonization; Life stories; Narratives
INTRODUÇÃO
Os Projetos de Assentamentos Rurais, segundo dados do Incra (2015)INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Assentamentos. Disponível em: http://www.incra.gov.br/assentamento. Acesso em: 23 mar. 2016.
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, localizam-se em todas as regiões do país e constituem-se de conjuntos de unidades agrícolas independentes, onde são alocadas famílias, com vistas a fazerem uso da terra na produção de bens que lhes proporcionem renda e sustento. Segundo dados daquele instituto existem no Brasil 9.337 assentamentos rurais, desses 549 localizam-se no estado de Mato Grosso, com 82.876 famílias assentadas, num espaço geográfico físico de 6.048.948,91 ha.
O Projeto de Assentamento Vale do Arinos, situado no município de Juara, região noroeste do estado de Mato Grosso, teve sua criação em 2003 com capacidade para assentar 243 unidades familiares agrícolas numa área total de 22.800,3725 has. A história do assentamento iniciou a partir de um acordo realizado entre o proprietário das terras e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Juara, para forçar o governo a declarar a área como de interesse social e, ao mesmo tempo, desapropriá-la.
Os trâmites para a criação do assentamento, o processo de seleção, planejamento e execução da seleção desencadearam inseguranças e dúvidas aos assentados, que narram suas histórias de ocupação das terras num misto de esperança - de que as terras fossem logo regularizadas -, e de medo -, que tivessem de abandonar seus lotes e devolvê-los aos donos da propriedade, fato que os obrigariam a deixar para trás benfeitorias resultantes de árduos trabalhos que tinham realizado, como também sonhos por melhores condições de vida.
Nesse contexto, foram produzidas histórias do assentamento e dos assentados. Este estudo teve como centralidade a busca de respostas ao seguinte questionamento: como as histórias de vida emergem nas narrativas de memórias dos assentados do Projeto de Assentamento Vale do Arinos? E também em desvelar as indagações consequentes e complementares da questão anterior: quais foram seus sentimentos com referência ao processo de chegada em seus lotes de terras e os desafios encontrados? E, na atualidade, como percebem o assentamento?
A composiçao textual encontra-se organizada em três seções. Na primeira, aborda-se o método, as técnicas de produção de dados, a contextualização do universo e dos participantes da pesquisa, bem como sua operacionalização. O aporte teórico que versa sobre os assentamentos rurais, processo de colonização e reforma agrária e os projetos de assentamentos rurais de Mato Grosso, encontram-se na segunda seção. Na terceira seção, compartilham-se as histórias de vidas, as expectativas, as motivações, os sonhos, as lutas e os desafios enfrentados pela posse de um lote de terra nas narrativas dos assentados; e, nas considerações, reafirma-se a necessidade de maior compromisso das instituições públicas com as políticas de reforma agrária no país.
MATERIAL E MÉTODOS
O estudo referenciou-se no método de pesquisa qualitativa. Essa abordagem, segundo Bogdan e Biklen (1994)BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto Editora: Portugal, 1994. 336p., possibilita a produção/recolha de dados descritivos a partir do contato direto do pesquisador com o universo, os fenômenos sociais e o próprio contexto dos sujeitos da realidade investigada. A maior preocupação do referido método está em compreender amplamente as diferentes situações e realidades interconectadas com o objeto de pesquisa em questão. Ao pesquisador, cabe a tarefa atenta de olhar os dados em sua relação mais ampla, visto que para a pesquisa qualitativa, segundo os mesmos autores, os dados que retratam os fenômenos investigados não podem ser concebidos como triviais, mas como geradores de múltiplos significados.
Com essa compreensão, a pesquisa qualitativa deve considerar, portanto, os indivíduos no meio em que vivem, por isso leva em conta que o contexto é parte integrante e determinante nos modos de vida. Essa assertiva é reafirmada por Lüdke e André (1986)LÜDKE, M.; ANDRE, M. E. D. A. Pesquisa em educação. São Paulo: EPU, 1986. 99p. ao argumentarem que qualquer tipo de pesquisa que desloca o indivíduo do seu ambiente natural nega a influência dessas forças contextuais e, em consequência, deixa de compreender o fenômeno estudado em sua totalidade.
Goldenberg (2003, p. 49) corrobora esses argumentos ao asseverar que "os dados da pesquisa qualitativa objetivam uma compreensão profunda de certos fenômenos sociais apoiados no pressuposto da ação social". Para a autora, a abordagem qualitativa busca a compreensão de fenômenos sociais baseados nos pressupostos subjetivos da ação social.
São muitos os métodos de geração de dados em uma abordagem qualitativa, dentre esses a história de vida ocupa lugar de destaque. Com referência a essa abordagem, Paulilo (1999)PAULILO, M. A. S. A pesquisa qualitativa e a história de vida. Serv. Soc. Ver. Londrina, V. 2, p-135-148, Jul./Dez. 1999. Portal do Brasil. Economia e emprego. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2015/07/agricultura-familiar-produz-70-dos-alimentos-consumidos-por-brasileiro. Acesso em: 10 jun. 2017.
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argumenta que por meio da história oral de vida pode-se compreender o que acontece na interseção do individual com o social, por isso possibilita que elementos do presente fundam-se a evocações passadas, o que oportuniza dinamismo na construção da estrutura social.
Mediante a natureza do fenômeno investigado - histórias de vidas e narrativas dos assentados do Projeto do Assentamento Vale do Arinos -, buscou-se compreender as motivações, experiências, os sonhos mobilizados nas histórias de vida das pessoas assentadas, participantes desta pesquisa. Além disso, buscou-se compreender em que medida as histórias de vida protagonizadas no contexto do assentamento rural demonstram as experiências individuais e coletivas, bem como as marchas (in)certas e lutas em busca do direito pela terra.
As histórias de vida e as narrativas fazem parte das características da abordagem qualitativa das pesquisas científicas, posto que essa se envolve com a subjetividade dos sujeitos pesquisados, isto é, com valores, sentimentos, emoções, percepções, perspectivas, dentre outros aspectos não mensuráveis.
O trabalho com histórias de vida e as narrativas possibilitam a geração de dados qualitativos. Os recursos encontrados nesse tipo de levantamento, conforme Porteli (1997)PORTELI, A. O que faz a história oral diferente. In: Cultura e representação. São Paulo: Projeto História, n.14. Fev. 1997. p.25-39., refere-se a subjetividade de quem fornece os dados por meio de fontes orais, e nela são encontrados elementos preciosos que não se encontram em outras fontes de pesquisa.
Na investigação com narrativas, os participantes contam suas histórias de vidas, que são repletas de percalços, desesperança, sonhos, lutas, como é o caso dos assentados do Projeto Vale do Arinos que participaram desta pesquisa. Em suas singelezas, narram as esperanças, as mobilizações que os impulsionaram a lutar por um pedaço de terra. São essas motivações que os mobilizam a buscar melhorias nas condições de vida e dignidade. Essa busca pela transformação decorre quando o sujeito toma consciência de si nesse processo de construção sociocultural.
Goodson et al (2010)GOODSON, I. F.; BIESTA, G.J. J. G.; TEDDER, M.; ADAIR, N. Narrative learning. London; New York: Routledge, 2010. 137p. pontuam a importância que exercem as histórias que contamos nos múltiplos espaços de convivência social. Para esses autores, as histórias que contamos retratam, muitas vezes, os fatos que vivenciamos no cotidiano, sejam esses permeados pelos sentimentos que nos movem, sejam as experiências ou mesmo as perspectivas de ação individual ou coletiva. Com mais detalhes, os autores asseveram a potencialidade das narrativas em pesquisas sobre história de vida:
Contamos histórias em diferentes contextos e ambientes, por diferentes razões e propósitos e com resultados e efeitos diferentes. Muitas de nossas histórias estão intimamente entrelaçadas com nossas vidas cotidianas. Elas consistem em trocas breves, anedotas curtas, coisas que queremos compartilhar com os outros, seja para uma finalidade específica ou apenas por uma questão de partilha. Algumas histórias são factuais e descritivos, outros expressam nossa experiência e sentimentos. E enquanto a maioria das histórias são sobre algumas coisas - um evento, uma experiência, um encontro, uma pessoa - que também sempre expressa algo sobre nós mesmos, ainda que seja apenas a nossa perspectiva particular sobre a situação. Histórias servem ao propósito de comunicação; ou comunicação com outras pessoas ou de comunicação com nós mesmos, como no caso dos diários ou em nossas 'conversas internas': nossas reflexões, pensamentos e devaneios. Às vezes, nossas histórias tornam-se mais reflexivo e avaliativo". [Tradução livre] (GOODSON et al, 2010GOODSON, I. F.; BIESTA, G.J. J. G.; TEDDER, M.; ADAIR, N. Narrative learning. London; New York: Routledge, 2010. 137p., p. 1-2).
Esses argumentos dos autores subsidiam na compreensão das narrativas de memórias do passado contadas no tempo presente pelos assentados acerca do processo de lutas, apropriação e posse de um pedaço de terra no Assentamento - universo desta pesquisa. Essas histórias poderão, segundo Goodson et al (2010)GOODSON, I. F.; BIESTA, G.J. J. G.; TEDDER, M.; ADAIR, N. Narrative learning. London; New York: Routledge, 2010. 137p., retratar os percalços, as desilusões, os árduos embates e lutas dos assentados em busca da terra, um sonho de muitas pessoas que almejam melhores condições de vida e sobrevivência em tempos tão contraditórios e de caminhos incertos para aqueles que sonham com um mundo melhor, por isso com menos injustiça e desigualdade social.
Com referência às narrativas e histórias, Goodson e Gill (2011, p. 4)GOODSON, I. F.; BIESTA, G.J. J. G.; TEDDER, M.; ADAIR, NGILL, S. R. Narrative pedagogy: life history and learning. New York: Peter Lang, 2011.174p. destacam três características comuns, assim descritas:
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temporalidade - todas as narrativas abrangem uma sequência de eventos;
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significado - significado pessoal e significado são exteriorizadas através da narração de experiências vividas;
-
encontro social - todas as narrativas são orientadas a uma audiência e, inevitavelmente, são moldadas pela relação entre o contador e o ouvinte [tradução livre.
Sob essa perspectiva, Goodson e Gill (2011, p. 6)GOODSON, I. F.; BIESTA, G.J. J. G.; TEDDER, M.; ADAIR, NGILL, S. R. Narrative pedagogy: life history and learning. New York: Peter Lang, 2011.174p. argumentam que a vida e narrativa se materializam fortemente por uma relação constituída mutuamente, "a vida é a base fundamental da narrativa, e a narrativa fornece estrutura, ordem e sentido na vida, e ajuda a desenvolver significados em formas mais ricas e mais integrada" [tradução livre].
As narrativas são indissociáveis da história de vida, por isso constituem-se fontes potenciais para compreender o sentido que os assentados - participantes desta pesquisa -, atribuem às suas histórias de vidas que são genuinamente mobilizadas por sonhos, esperanças, sentimentos, pela decisão deliberada em lutar, em trilhar os (des)caminhos para fazer acontecer as políticas de reforma agrária e, sobretudo, movidos pela busca da justiça e igualdade social. Nesse percurso de narrar as histórias de vida, os pesquisados são mobilizados a acionar suas memórias do tempo que retratam as lutas e mobilizações desde o processo inicial de criação e institucionalização do Projeto do Assentamento do Vale do Arinos. Os múltiplos percalços, passos (in)certos e avanços, por certo, aparecerão nas histórias e narrativas de memórias dos assentados.
CONTEXTUALIZAÇÃO DO UNIVERSO, DA PRODUÇÃO DOS DADOS E PERFIL DOS PESQUISADOS
A pesquisa de campo deu-se no Projeto de Assentamento Rural Vale do Arinos, distante aproximadamente 140 quilômetros da sede do município de Juara-MT e 890 quilômetros de Cuiabá, a capital do estado. O acesso aos lotes de terras das famílias assentadas acontece por meio de estradas sem asfalto e quase intransitáveis durante o "inverno da região", período de chuvas que se estendem de outubro a abril de cada ano.
A criação do Assentamento deu-se em 2003, por meio da portaria nº 49 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma (INCRA), publicada no Diário Oficial da União do dia 19 de setembro de 2003. Esse, por sua vez, tem capacidade para assentar 243 unidades familiares agrícolas numa área total de 22.800,3725 ha (vinte e duas mil e oitocentos hectares, trinta e sete e vinte e cinco centiares). Os lotes encontram-se organizados em cinco linhas, de acordo com suas posições geográficas e os assentados estão congregados em quatro associações representativas de produtores, onde discutem, tomam decisões de interesse comunitário e planejam melhorias das condições de vida da comunidade.
A geração dos dados qualitativos da pesquisa1 (1) Os dados foram levantados nos meses de outubro de 2016 e concluídos em maio de 2017, em razão das chuvas torrenciais, acima da média pluviométrica na região, entre os meses de novembro a abril, que destruíram pontes, alagaram estradas, criaram atoleiros, deixando as estradas intransitáveis. foi produzida por meio de entrevista semiestruturada, uma vez que essa favorece a investigação que busca compreender a subjetividade dos sujeitos pesquisados, bem como as experiências individuais e as particularidades da visão de mundo dos assentados.
A entrevista semiestruturada foi submetida e aprovada no Conselho de Ética em Pesquisa da Universidade Ahanhguera-Underp, conforme parecer substanciado de número 2.231.294 e tinha como objetivo levantar dados sobre o processo de criação do Assentamento (planejamento, estruração do assentamento, seleção dos assentados) e as narrativas de história de vida dos assentados (chegada no assentamento, vivências entre sonhos, motivações e desafios).
A utilização da entrevista na pesquisa social, segundo Gil (2008)GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. - São Paulo: Atlas, 2008. 131p., deve-se a uma série de razões, dentre as quais, cabe considerar que ela possibilita a obtenção de dados referentes aos mais diversos aspectos da vida social, é uma técnica muito significativa para compreensão de dados, em profundidade, acerca do comportamento humano.
Para a produção dos dados sobre a história de vida dos pesquisados, solicitou-se ao Presidente da Associação Toca da Onça, que indicasse as pessoas para participar da pesquisa, visto que o critério de seleção para proceder as entrevistas, era de que residessem naquele universo desde o seu inicio.
Com esse critério, a entrevista realizou-se com doze (12) assentados. Desses, cinco são mulheres, dentre as quais uma delas chegou no assentamento ainda criança e sete homens. A partir da assinatura do consentimento livre esclarecido, os pesquisados concordaram que as entrevistas fossem gravadas em áudio.
Em atenção à ética na pesquisa, as mulheres assentadas serão denominadas por MA1, MA2, MA3, MA4 e MA5 e os homens nominados de HA1, HA2, HA3 e assim sucessivamente, conforme ilustra o quadro 1.
Para a sistematização, tratamento e análise dos dados tomou-se como referência teórico-metodológico as categorias de codificação propostas por Bogdan e Biklen (1994)BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto Editora: Portugal, 1994. 336p.. Para esses autores, "o desenvolvimento de um sistema de codificação envolve vários passos: percorre seus dados na procura de regularidades e padrões, bem como de tópicos presentes" (1994, p. 221). As categorias, no dizer de Bogdan e Biklen (1994, p. 221)BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto Editora: Portugal, 1994. 336p., "constituem um meio de classificar os dados descritivos que recolheu [...], de forma a que o material contido num determinado tópico possa ser apartado dos outros dados". Sob essa perspectiva, a história de vida e as narrativas dos pesquisados apontaram as categorias analíticas em atenção aos objetivos da pesquisa que consistia, principalmente, em compreender as itinerâncias, as mobilizações e lutas dos assentados em prol da busca de um lote de terra.
ASSENTAMENTOS RURAIS: COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA
Esta seção apresenta a abordagem teórica que fundamentou os trabalhos de pesquisa e tem sua construção a partir da revisão de textos em livros, artigos, periódicos, dentre outros de publicação de diversos autores que pesquisaram sobre assentamentos rurais. Este aporte teórico contribuiu para que houvesse maior familiaridade com o tema pesquisado e como subsídios importantes nas reflexões, na análise e interpretação dos dados produzidos.
O Brasil é um país marcado por desigualdades econômicas, políticas, sociais e culturais com características distintas que oscilam entre uma pequena faixa da população que concentra grande parte da renda, com acesso aos bens de consumo, saúde, segurança, educação e outra excluída, apresentando péssimas qualidades de vida em decorrência de poucas e humilhantes situações financeiras a que estão submetidos. Esta assimetria ou desigualdade econômica e social está presente entre as regiões do país, estados e municípios e impede que as pessoas tenham a garantia das condições necessárias para viver com dignidade e qualidade de vida.
Na atualidade, vemos grandes desigualdades entre modelos de desenvolvimento econômico e social, com significativas diferenças destes entre as regiões sul e sudeste das demais regiões do país. As "desigualdades econômicas, sociais e regionais no Brasil são um problema que afeta o desenvolvimento como um todo (GALEANO e MATA, 2009GALEANO, E. A. V.; MATA, H. T. C. Diferenças regionais no crescimento econômico: uma análise pela teoria do crescimento endógeno. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 40, n. 4, p. 669-684, 2009., p. 6).
As desigualdades econômicas têm como características principais a concentração e a distribuição irregular da renda. Estas promovem, por sua vez, outras desigualdades como discriminações e preconceitos às diversas classes sociais economicamente menos favorecidas. No Brasil, as desigualdades apresentam-se como se fossem imagens de um caleidoscópio perverso, com efeitos nocivos sobre a população de baixa renda como educação precária, o desemprego, a fome, os conflitos rurais e urbanos, a pobreza extrema, as desigualdades de gêneros e raciais.
Um passo importante em direção aos direitos individuais e às correções de injustiças sociais deu-se a partir da promulgação da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, também chamada de Constituição cidadã, que apresenta avanços importantes em direção a garantia do acesso à cidadania, atendendo a um leque amplo das reivindicações dos movimentos sociais. Todavia, muitas ações descritas na Carta Magna não foram postas em ação, como por exemplo, os problemas fundiários e as políticas públicas voltadas à distribuição de propriedades.
As reivindicações do campo são históricas e até hoje não foram completamente atendidas, principalmente, aquelas ações mais dinâmicas direcionadas ao atendimento daqueles que necessitam de terras para produzir e garantir seu sustento e de sua família. As políticas públicas direcionadas à questão fundiária e de acesso à terra no Brasil remontam ao período colonial, perpassam pela primeira república e chegam até os dias atuais.
Neste contexto, é necessário diferenciar a questão agrária que se refere ao acesso à propriedade, exploração da terra e as relações sociais entre os proprietários, da questão fundiária que se relaciona à dispersão, o tamanho e a concentração das propriedades rurais no território em uma única pessoa, uma família, empresa ou a um conglomerado empresarial, chamados de latifúndios que geram grandes disparidades e desigualdades econômicas e sociais locais e regionais.
A concentração de terras tem como consequência mais nociva a grande centralização ou a falta de distribuição de rendas que tem economicamente segregado grande parte dos brasileiros, resultado de políticas públicas contraditórias que se distinguem como expressão da supremacia das classes dominantes. O caso fundiário brasileiro é caracterizado por expressar vantagens concedidas aos mais abastados, econômica e financeiramente, em detrimento dos direitos civil e sociais de uma grande maioria de excluídos e com pouca possibilidade do benefício do uso e da posse da terra.
A concentração da posse da terra no Brasil tem suas origens na época do descobrimento. As intervenções do governo, fruto da execução de diversas políticas fundiárias e agrárias, não tem sido eficazes para alterar significativa e globalmente a estrutura da posse da terra (RANIERI, 2003RANIERI, S. B. L., Retrospecto da reforma agrária no mudo e no Brasil. In. SPAROVEK, Gerd. A qualidade dos assentamentos da reforma agrária brasileira. São Paulo: Páginas e Letras Editora e Gráfica, 2003. 205p., p. 5).
A questão fundiária e agrária são temas bastante complexos. Foram e são pesquisados no Brasil por vários autores que procuram demonstrar a distribuição fundiária injusta a que o povo brasileiro foi submetido desde seu descobrimento, com grande dessimetria econômica, política e social entre aqueles possuidores de grandes extensões de terras, daqueles que não a possuem. Desse modo, as políticas públicas necessitam ser planejadas com o intuito social de reparação dos direitos negados a grande parte da população na distribuição de terras, ações estas que demandam grande senso de gestão social e de justiça para o campo.
A partir dos anos 1960 do século XX foram criadas políticas públicas colonizadoras, com propósitos desenvolvimentistas, com a intenção simultânea de resolver conflitos sociais do centro sul do país e povoar a Amazônia. Todavia, muitos destes planos políticos apenas incrementaram a hegemonia das elites agrárias, ao lhes conceder créditos e incentivos que se configuram como grandes estratégias para a expansão do capital.
As políticas estabelecidas para a ocupação, iniciadas na década de 1970, incentivaram migrações sem precedentes para o Estado de Mato Grosso ao transformar os cerrados e as florestas em terras produtoras de commodities para o agronegócio. As céleres transformações econômicas, políticas e sociais serviram de âncora para justificar a colonização de empreendimentos que passaram a devastar o meio ambiente por meio das derrubadas, das queimadas, do excessivo uso dos defensivos agrícolas e fertilizantes lançados ao solo para assegurar a produtividade do plantio.
As transformações foram muito rápidas para a região. "A ocupação das terras do Estado até a metade do século passado, fora um processo lento e caracterizado por vários estágios inicialmente com a captura de índios para servirem de "mão de obra escrava nos principais centros mercantis da Colônia" (SILVA e SATO, 2010SILVA, R.; SATO, M. Territórios e identidade: mapeamento dos grupos sociais do estado de mato Grosso - Brasil. Revista Ambiente e Sociedade, Campinas, n. 2, p. 261-281, 2010., p. 262). As etapas posteriores incidiram-se na extração de pedras preciosas, na exploração da borracha, na criação de gado e mais recentemente, na indústria madeireira e no agronegócio. Estas atividades econômicas aconteceram ou acontecem, simultaneamente, sempre com a supremacia de uma delas.
Atualmente, a expansão econômica do estado é, em grande parte, consequência das políticas expansionistas instituídas pelos governantes que criaram medidas para estabelecer atividades produtivas nesta nova fronteira agrícola, com a ocupação/reocupação de vastas áreas de terras onde foram assentados milhares de famílias, principalmente, de origem dos estados do sul do país, que, na atual conjuntura, são produtores de grãos do agronegócio direcionados, em sua maioria, para exportação e, simultaneamente, fortalece a geração e manutenção de divisas tanto aos produtores quanto ao país.
Em Mato Grosso, na década de 1950, a utilização da terminologia colonização, nos discursos oficiais, "assume um significado específico", inserindo-se "[...] na política de ocupação dos espaços vazios com mão de obra imigrante para o Norte do estado, destinada à formação de núcleos de povoamento e produção agrícola" (SILVA, 2004SILVA, A. C. F. Nas trilhas da memória: uma colônia japonesa no norte de Mato Grosso - Gleba Rio Ferro (1950-1960). Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2004., p. 16-17).
Todavia, os assentamentos implantados no estado não se caracterizam como a reforma agrária anunciada pelas elites e governo militar em atenção às constantes lutas dos movimentos sociais, visto que essa trata de políticas públicas voltadas às questões sociais de distribuição de terras para aqueles que não a possuem, sejam elas públicas ou privadas e, colonização são assentamentos criados pelo poder público ou por empresas particulares em terras devolutas do estado. Posto isso, Graziano (1985, p. 74)GRAZIANO DA SILVA, J. F. Para entender o plano nacional de reforma agrária. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense S.A, 1985. 103p. assevera que:
A colonização se faz em terras não anteriormente ocupadas, geralmente terras devolutas (sem dono) do Estado. Já a reforma agrária é feita em terras que já tem dono, ou seja, em terras privadas, sejam elas particulares ou do governo: por isto a reforma agrária implica, basicamente, uma mudança de propriedades das terras para indivíduos que não são proprietários. Quer dizer: criam-se novos donos entre os "sem terra" a partir de terras que já eram propriedade privada de alguém.
Stedile (2011)STEDILE, J. P. A questão agrária no Brasil: o debate tradicional - 1500-1960. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 201p. destaca que na literatura política, a reforma agrária afeta o estudo e análise das questões que a concentração da posse da terra traz às forças produtivas de uma sociedade. Oliveira (2007)OLIVEIRA, A. U. Modo de produção capitalista, agricultura e reforma agrária. São Paulo: FFLCH, 2007, 184p. corrobora essas argumentações ao dizer que a reforma agrária se constitui de políticas governamentais concebidas para modificar a estrutura fundiária por meio de distribuição da posse e da propriedade da terra.
Embora a reforma e a colonização se relacionem ao campo é necessário maior aprofundamento destes temas para se entender o que realmente são. A colonização visa a ocupação de terras desabitadas com o assentamento de famílias tornando-as produtivas e reforma agrária caracteriza-se por reformar, modificar estruturas existentes para o atendimento de interesses sociais, corrigindo as relações jurídicas de propriedade das terras para atender aos interesses da sociedade (IOKOI et al., 2005IOKOI, Z. M. G., ANDRADE, M. O.; REZENDE, S.; RIBEIRO, S. (Org.) Vozes da terra: histórias de vida dos assentados rurais de São Paulo. São Paulo: Fundação Itesp, 2005. 256p.).
A Reforma Agrária é um processo pelo qual os governantes por meio das políticas públicas garantem a distribuição ou redistribuição de propriedades rurais para que essas cumpram a função social que lhes são atribuídas. Com isso, Sparovek (2003) destaca a importância da realização de diagnósticos e ações para a implantação dos assentamentos para a reforma agrária, uma vez que essas se constituem ferramentas potenciais na efetividade e consolidação da gestão de políticas públicas e ações governamentais.
A Reforma Agrária caracteriza-se como uma política complexa que não deve ser compreendida apenas como a distribuição de terras, mas como um programa completo que beneficia os trabalhadores rurais, ao lhes possibilitar além da posse da terra, condições de moradia, educação, transporte, saúde, logística, crédito e, também, assistência técnica com informações sobre plantio, produção, beneficiamento, transportes, vendas, entre outros. As políticas agrícolas para a reforma agrária deveriam ter como principal característica autênticas ações com vistas à distribuição de terras, cuja posse e uso promovessem a equidade de direitos e a justiça social. Todavia, existe uma dificuldade histórica para sua efetividade, dado que as terras ainda se encontram concentradas e são privilégios de poucos latifundiários capitalistas, que as utilizam como mercadoria e se organizam política e economicamente para que haja continuidade desse processo.
A reforma agrária não conseguiu cumprir com altivez o seu papel social de alocar os trabalhadores no campo. Oliveira (2003)OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista. O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, 150p. assevera que as razões sociais, políticas e econômicas são fundamentais para discutirmos a questão das disputas políticas e suas formas tradicionais de condução, em que os projetos sociais são implementados a partir de interesses daqueles grupos que estão no poder. Fato esse que caracteriza uma relação de dependência e dominação social.
Mediante as contradições históricas que se perpetuam no país, em que o poder prevalece nas mãos de grandes latifundiários e nas grandes forças políticas, conservadoras e hegemônicas e que traçam os destinos do país, é emergente a necessidade do debate acerca da democratização da terra, sob o viés dos princípios de um programa coerente de reforma agrária.
Com respeito ao impeditivo de consolidação das políticas públicas de reforma agrária, Oliveira (2007)OLIVEIRA, A. U. Modo de produção capitalista, agricultura e reforma agrária. São Paulo: FFLCH, 2007, 184p. assevera que a reforma agrária é uma imposição do capital para solucionar os problemas oriundos da concentração de terras. Para o autor, o maior empecilho para a execução das reformas agrárias centra-se no fato de que os governantes não têm conseguido garantir o processo de desapropriações sob a perspectiva dos ditames capitalistas responsáveis por gerar pressões e conflitos sociais. Assim, a reforma agrária faz parte de ações estruturais para dar equilíbrio ou diminuir as pressões sociais decorrentes da concentração da terra em grandes latifúndios. Com isso, a luta pela propriedade da terra não deve ser restrita apenas ao seu acesso, mas também contra aqueles que detêm a propriedade dos latifúndios, ou melhor, os detentores do capital.
No Centro-Oeste e na Amazônia, o avanço do capital sobre a terra é incentivada a partir do governo de Getúlio Vargas, que argumentava em seus discursos a necessidade de integração dessas regiões ao Brasil, por meio de políticas de povoamento, com o justiticativa de que era necessário a ocupação do que chamava de vazios demográficos, a fim de integrá-los ao território nacional para que tornassem produtivos para o mercado, criando para este intento a Marcha para Oeste (BARROZO, 2008BARROZO, J. C. Políticas de colonização: as políticas públicas para a amazônia e o centro-oeste. In. BARROZO, J. C. (Org.). Mato Grosso do sonho à utopia da terra. Cuiabá: EdUFMT/Carlini & Caniato Editorial, 2008. 336p.).
A marcha para o oeste, anunciada em 1938 pelo Presidente Getúlio Vargas, é o sintoma das preocupações do governo em ocupar "grandes vazios", no intuito não só de manter a política do País como também, no dizer de Getúlio Vargas, de preencher os espaços vazios entre as "ilhas econômicas" que formavam o Brasil (CASTRO et al., 2002CASTRO, S. P.; BARROZO, J. C.; COVEZI, M.; PRETI, O. A colonização Oficial em Mato Grosso: a nata e a borra da sociedade. 2. ed. Cuiabá: EdUFMT/NERU, 2002, 236p., p. 29).
O governo militar, a partir dos anos 60, iniciou várias ações para a ocupação do Centro Oeste e da Amazônia, que favoreceram, sobremaneira, grandes proprietários e atraíram capitais nacionais e internacionais ao lhes conceder incentivos fiscais para, inicialmente, implantar pastagens e, logo a seguir, grandes lavouras para o desenvolvimento do agronegócio. O regime militar optou por apressar o processo de ocupação, definindo as suas formas de realização com o lema de que de estes vazios deveriam ser integrados ao Brasil para não serem entregues a supostas potências estrangeiras (MARTINS, 2009MARTINS, J. S. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2009. 191p.).
As terras do Estado de Mato Grosso foram amplamente submetidas a política de ocupação dos governos federal e estadual, por meio de intenso processo de propaganda, transformando-as em mercadorias, com a justificativa de que deveriam ser ocupadas, desbravadas, produtivas e integradas a economia do centro-sul do país.
A história legal da terra em Mato Grosso mostra como se deu a passagem das terras do domínio público para o domínio privado, como as leis, que regulam o processo de aquisição de terras, serviam de mecanismos políticos para dar sustentação a uma política fundiária voltada à constituição da moderna propriedade territorial, de acordo com os interesses das classes que dominaram e comandaram o poder econômico e político do Estado, principalmente dos proprietários de terra, por muito tempo (MORENO, 2007MORENO, G. Terra e poder em Mato Grosso: política e mecanismos de burla - 1892-1992. Cuiabá-MT: Entrelinhas: EdUFMT, 2007. 310p., p. 63).
Nesse cenário, empresas colonizadoras são fortaleciddas política e economicamente no estado e tiveram a seu dispor facilidades e benefícios e, em troca, possibilitaram a sustentação do regime militar, numa via de mão dupla.
A colonização no estado, desse modo, apresentada como uma preocupação em distribuir terras às famílias sem terra, caracterizou-se como a entrega de terras devolutas à iniciativa privada e ao capital, como estratégias intencionalmente organizadas para evitar a desapropriação dos latifúndios de propriedade da classe hegemônica. As empresas privadas apoderam-se de grandes extensões de terras e tornaram seus empreendimentos altamente lucrativos com a revenda de glebas e lotes na região aos colonos, que segundo Schaefer (1985, p. 54) "estas operações denominadas de atividades sociais, eram puramente ações brutais do capital sobre a população menos favorecida".
HISTÓRIA DE VIDA E AS NARRATIVAS DOS ASSENTADOS DO PROJETO DE ASSENTAMENTO VALE DO ARINOS: OS DADOS QUALITATIVOS EM ANÁLISE
Esta seção apresenta os excertos das narrativas e suas respectivas análises. As histórias de vidas e as narrativas constituem-se fontes potenciais para compreender as expectativas, os sonhos, as itinerâncias, a subjetividade, bem como as tramas e lutas dos assentados - participantes da pesquisa -, em busca de um pedaço de terra e, por conseguinte, por melhores condições de vida e dignidade.
O Projeto de Assentamento Vale do Arinos teve sua criação em 2003 e, assim como muitos outros, o assentamento é resultado das reivindicações por um pedaço de terra por aqueles que não a possuíam. Embora os assentamentos rurais não se constituem apenas pela sua criação no processo de reforma agrária, uma vez que esta tem como característica a mudança da posse da terra de proprietários latifundiários para produtores rurais sem terra, esses têm se constituído em um espaço de inclusão, como no Projeto de Assentamento Vale do Arinos. Apesar de ter sido criado com pouca infraestrutura, percebe-se nas vozes dos assentados que a chegada em seus lotes, além de lhes possibilitar os benefícios da posse da terra, constituiu-se também uma realização de antigos sonhos de oportunidades e igualdade de direitos, como demonstram os excertos dos pesquisados ao narrar como se sentiram ao tomar posse de suas terras:
HA5: Quando cheguei nem acreditei. Estava feliz, realizado. A terra era minha. Eu era proprietário de um pedaço de terras igual muita gente, mesmo que eu não tivesse os documentos dela como não tenho até hoje, mas a sensação foi de posse... Era tudo mato, existia tudo a fazer por aqui, mas me senti alegre. Não cansava de olhar para os lados, para minhas terras! (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
MA4: Me senti feliz de chegar num local que seria meu, nosso. Foi difícil na época, mas ao mesmo tempo, quando chegamos senti muita felicidade, porque a gente não tinha tido condições de adquirir nada. Agora nós éramos donos de um pequeno pedaço de terra como muita gente. Foi isso, fiquei feliz por chegar num lote que seria nosso. (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
HA6: Ao chegar no lote que me destinaram meu sentimento foi de felicidade e de prazer ao mesmo tempo por estar lá. Principalmente de ser proprietário de um pedaço de terras como muitos outros no assentamento. Eu não tinha como comprar um pedaço de terras. Eu estava feliz. A gente nem sabia que passaríamos tantas dificuldades para abrir o sítio, plantar e permanecer na terra. (Narrativas produzidas em 20/10/2016)
Ser proprietário de seu pedaço de terras emerge, também, nas narrativas de MA3 ao expressar alegria e, ao mesmo tempo, preocupação:
MA3: Senti muita alegria quando cheguei no lote. Eu nunca tinha tido um pedaço de terra e não tinha a menor condição de comprar nada, muito menos terra... Mas agora aquela terra era minha... Só que era tudo mato. Não tinha nada, mas mesmo assim eu estava chegando no que era meu, no que era nosso. O ranchinho foi feito perto do rio para facilitar o acesso à água. (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
A falta de ações governamentais, a falta de compromisso das instituições no cumprimento das políticas de reforma agrária, a pouca experiência dos assentados para o trabalho no campo, a falta de recursos para a sobrevivência fizeram com que muitos abandonassem ou vendessem seus lotes a qualquer preço e retornaram para suas origens, ou procuraram outras paragens para fazer de moradia, de modo que são poucos os assentados que estão no assentamento desde o seu começo.
O Projeto de Assentamento Vale do Arinos possui características que ora são similares a outros, como a origem dos assentados, e ora são diferentes como as atividades que os assentados exerciam antes de serem contemplados com um lotes de terras.
No Assentamento vale do Arinos os assentados já residiam nas proximidades cidades do Vale do Arinos, próximas ao assentamento. Situação semelhante do Projeto de Assentamento Pirituba, localizado no município de Itapeva, no estado de São Paulo. A população daquele assentamento também era constituida por assentados da região: "a população deste assentamento é originária, em sua maioria, da própria região, principalmente dos municípios de Itapeva, Itaberá, Itararé, Coronel Macedo e Itaporanga" (IOKOI et al, 2005IOKOI, Z. M. G., ANDRADE, M. O.; REZENDE, S.; RIBEIRO, S. (Org.) Vozes da terra: histórias de vida dos assentados rurais de São Paulo. São Paulo: Fundação Itesp, 2005. 256p., 38).
As atividades que exerciam antes de serem assentados são um pouco diferente nestes dois assentamentos. Enquanto a população de assentados do Projeto de Assentamento Pirituba era composta por 99,7% de trabalhadores da terra (IOKOI et al, 2005IOKOI, Z. M. G., ANDRADE, M. O.; REZENDE, S.; RIBEIRO, S. (Org.) Vozes da terra: histórias de vida dos assentados rurais de São Paulo. São Paulo: Fundação Itesp, 2005. 256p.), no Assentamento Vale do Arinos apenas 65% deles tinham como ocupação as atividades de lavradores. Os demais realizavam afazeres diversos como marceneiros, pedreiros, vendedores, dentre outros.
Outra característica marcante do Projeto de Assentamento Vale do Arinos é sua forma de criação, que partiu de um acordo entre o proprietário da fazenda e o sindicato dos trabalhadores rurais para a invasão da área, para forçar o governo a declará-la como de interesse social para a reforma agrária e a desapropriasse para o assentamento dos sem terra.
O sindicato fez as inscrições dos candidatos, autorizou suas entradas e organizou os serviços de demarcação dos lotes. O Incra apenas deu continuidade aos trabalhos iniciados conferindo a documentação, realizando as consultas exigidas pela legislação, legitimando os selecionados e conduzindo as demais etapas dos trabalhos burocráticas da reforma agrária. Os candidatos ao assentamento viram estes trâmites processuais de seleção com desconfianças e também tinham dúvidas se o assentamento seria regularizado pelo governo federal.
O pesquisado HA1 narra como foram realizados os encaminhamentos dos assentados para a posse das terras no assentamento e compartilha seus temores diante das incertezas acerca de suas legalizações:
HA1: A gente fazia uma inscrição no sindicato e o sindicato ia distribuindo e indicando os lotes. Na época ninguém no assentamento era Siprado. Daí o Sindicato fazia a inscrição de todo mundo e foi cortando os lotes e distribuindo. Foi medindo, pois quando chegamos aqui os lotes não eram medidos ainda. Era uma desorganização... [...] Cada um fazia sua demarcação. Anos depois deu cada rolo quando pagamos pra fazer o geo. Era tudo um risco e tudo era incerto... Antes de vir pra cá assinamos um documento lá no sindicato que chamavam de comodato com duração de 3 anos. Se o governo não adquirisse a área para ser transformado em assentamento, nós íamos ter de sair do lote, abandonar as casas, as benfeitorias e todo trabalho que fizemos. (Narrativas produzidas em 20/10/2016)
As narrativas dos pesquisados HA5 e MA4 expressam, também, o sentimento de insegurança e temores sobre os trâmites do processo de legalização do assentamento pelo Governo Federal.
HA5: A gente fazia a inscrição para o assentamento no sindicato. Pagava até uma taxa... Depois eles encaminhavam a gente para o assentamento para trabalhar na terra. Os lotes eram indicados pelo sindicato mas tínhamos que assinar um documento. Eles informaram que isto era um sistema de comodato. Era assim: você ia para o assentamento e começava a trabalhar enquanto o sindicato e os políticos negociavam com o governo a desapropriação das terras. Caso não houvesse a desapropriação das terras, nós teríamos de sair deixando para trás os trabalhos e as benfeitorias. Era um risco dos grandes. Como deixar para trás algo construído com tanto esforço e com pouco dinheiro, se as terras não fossem desapropriadas? Era um risco sim. (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
MA4: Ficamos sabendo sobre o assentamento na rua e fomos procurar informações no sindicato. Lembro que pagamos uma taxa de setenta reais de inscrição que guardo o recibo até hoje. Depois participamos de uma reunião e nos informaram que não era ainda para ter a propriedade do lote no assentamento. Era um tipo de comodato de três anos. Se o governo não indenizasse os donos das terras, nós teríamos de sair delas. Então, nós fomos para o lote. Hoje, vejo que foi um passo incerto que demos... Vejo que foi um enorme risco, porque a gente poderia ser despejado a qualquer momento. (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
Durante o processo de tramitação dos documentos para a regularização do assentamento houve muitas informações que atemorizavam os assentados. O pesquisado HA7 narra suas incertezas sobre esse processo:
HA7: Fomos no sindicato, fizemos a inscrição e o sindicato nos encaminhou para o assentamento. O assentamento não era ainda regularizado e quando chegamos no lote era tudo mato. Aos poucos fomos abrindo a mata e trabalhando na terra. Para nós era um passo incerto que demos... Não havia certeza de nada, era tudo especulação. O sindicato não quis nos fornecer nem a cópia do termo de comodato. Existiam muitas conversas de que logo seriamos despejados dos lotes, deixar nosso trabalho e nossas coisas para o dono das terras. Todo dia era uma apreensão terrível. Nós tínhamos medo. (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
Esses excertos das narrativas demonstram o descumprimento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) da alínea "a", do parágrafo segundo, Artigo segundo do Estatuto da Terra, Lei 4.504/64, que estabelece ser dever do poder público promover e criar condições de acesso do trabalhador rural à propriedade da terra. Há, também, descumprimento do Artigo 55, uma vez que este determina que a colonização é de responsabilidade do poder público, e este tomará a inciativa de recrutar e selecionar pessoas ou famílias, dentro ou fora do território nacional, reunindo- as em núcleos agrícolas ou agroindústrias, podendo encarregar-se de seu transporte, recepção, hospedagem e encaminhamento, até a sua colocação e integração nos respectivos núcleos.
As ações realizadas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais para selecionar os assentados, apesar de ter sido fundamental para a existência do Projeto de Assentamento Vale do Arinos, geraram insegurança e temores aos candidatos a um lote de terras, por ser uma atividade prevista para ser realizada pelo Incra. Além disso, não havia a certeza de que o assentamento seria regularizado, pois os assentamentos rurais devem ser criados em terras já incorporadas ao Patrimônio Público após ser declarada de interesse social para reforma agrária.
As narrativas MA3 evidenciam que haviam muitos desafios a serem enfrentados e contornados no assentamento:
MA3: Para mim um dos desafios encontrados no assentamento era a falta de transporte e precariedade das estradas. O ônibus passava longe, a gente descia lá, chegava no assentamento uma, duas horas da manhã. Tinha de deixar as compras e a merenda da escola e dar um jeito de buscar depois. No começo eu trazia as compras e tudo que precisava nas costas e depois compramos uma carrocinha. Assim, chegávamos no ponto do ônibus, deixávamos as coisas, vinha a pé em casa, pegava o animal no pasto, atrelava na carroça e ir buscar o que tinha deixado para trás de madrugada. Não tinha estrada boa, era uma picada. A estrada ainda é ruim, mas já melhorou muito porque nós procuramos ajuda da prefeitura municipal, que de vez em quando dá uma arrumada para nós. Mas passamos muitas necessidades. Primeiro, porque não tínhamos dinheiro e também por causa das estradas ruins. Nos tempos das águas acabavam os alimentos e não tinha como ir a Juara porque os ônibus ficavam até dois meses sem conseguir chegar no assentamento. Sabe o que a gente comia? Como ainda não tínhamos ainda galinhas ou outra criação, a gente trazia bastante caldo de galinha e fazia um pirão com farinha e comia. (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
A pesquisada MA3, em suas narrativas, acrescenta que os desafios encontrados foram, também, decorrentes do descaso dos órgãos públicos que não disponibilizou a infraestrutura necessária ao Projeto de Assentamento Vale do Arinos.
MA3: Quando chegamos no assentamento era tudo mato. Fizemos a derrubada das árvores e a limpeza da área sem apoio ou assistência do Incra. A gente antes de vir para o assentamento ouviu no sindicato que teríamos direitos como estradas, pontes, casas, créditos, assistência técnica e orientação rural mas não recebemos nada. Ficamos abandonados. Hoje, as coisas melhoraram mas meu marido sempre fala que demos um passo ousado e que se soubesse que teria que passar o que passamos não teria vindo para o assentamento. (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
A falta de infraestrutura também é narrada pelo pesquisado HA7 como um dos problemas que encontram no assentamento:
HA7: Não tínhamos estradas boas nem para chegar no assentamento. Era difícil o nosso acesso aos lotes e também para trazer o que era necessário nossa continuidade nos lotes. Foram muitas dificuldades que me fizeram pensar se eu e minha esposa fizemos certo por ter vindo para o assentamento. Mas para mim, que sou pai, o maior desafio encontrado foi o estudo precário. Tenho um filho e a escola no assentamento era muito ruim. Muitas famílias acabaram indo para cidade em busca de melhores condições de estudos para seus filhos. (Narrativas produzidas 18/05/2017)
O artigo 16 do Estatuto da Terra evidencia que a Reforma Agrária visa estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador. Todavia, no Projeto de Assentamento Vale do Arinos houve o descompromisso do Incra com estas orientações, uma vez que as famílias foram assentadas e deixadas à própria sorte, sem que fossem oferecidos a elas o apoio financeiro necessário para a instalação e outros créditos previstos para assentados, não tiveram também as infraestruturas básicas como luz, água, estradas e moradias, a assistência técnica rural e o atendimento à educação.
As questões relacionadas a falta de infraestrutura é narrada por todos os assentados, mas existiam outros como narram os pesquisados HA6 e HA5.
HA6: O maior desafio era transformar isto tudo em sítio. Era tudo mato e não tínhamos condições financeiras para isto. Foi desalentador você sem dinheiro ter de desmatar, plantar, cercar. Além disso, o que nós plantávamos os bichos comiam. Tinha muito bicho... Porco, antas, capivaras... Nada dava certo. Então optamos por plantar capim e partimos para a criação de gado. Assim, para mim o maior desafio foi abrir o sítio porque nós não conhecíamos a região, a terra. A terra era arenosa, a roça não deu certo, os pastos saíam fracos, o gado morria. Aos poucos fomos aprendendo a viver no assentamento, assim fomos contornando os desafios encontrados. Aprendemos também a lutar coletivamente por meio de nossa associação. Assim, brigamos com secretarias estaduais e municipais, com a prefeitura e eles aos poucos atenderam algumas de nossas reivindicações. (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
Há nas narrativas de HA6 a evidência de superação da condição de propietário privado individual e de aprendizagem de trabalho coletivo em direção à busca de direitos e de cidadania.
HA5: Os problemas eram muitos. Não tínhamos estradas, o acesso era muito ruim. Era só uma picada que permitia andar a pé. As coisas como equipamentos e comida eram carregados nas costas. Não tínhamos e ainda não temos atendimento à saúde. O Incra não deu assistência nem na demarcação dos lotes e nós tivemos de pagar por ela. A prefeitura pouco ajudou na abertura do assentamento, mas o maior desafio que encontramos foi a falta de conhecimento da região e do meio ambiente. Quando chegamos, o gado morria muito rápido de um mal desconhecido. Demorou para descobrirmos que era a ingestão de uma erva chamada "vicki" que infestava toda região. Conseguimos contornar muitos problemas com muito trabalho, as vezes individual outras vezes coletivamente. Também fomos aprendendo a ouvir e sentir o lugar. Aos poucos as coisas foram melhorando... (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
Para MA1, o maior desafio encontrado por sua família foi abrir o sítio e trabalhar numa terra que desconheciam.
MA1: Para mim era importante limpar o sítio, torná-lo habitável, produtivo. Aqui tinha só mato e a gente queria produzir gado, mas não tínhamos dinheiro nem conhecíamos direito o lugar que era cheio de bichos. A gente quase não via as onças, mas víamos seus rastros e ouvíamos os barulhos que faziam na mata. Eu era criança e ía para a escola a pé. Então, pensa como é que eu me sentia tendo de caminhar longe, sozinha e com medo. (Narrativas produzidas em 19/05/2017)
Os assentados selecionados não eram todos agricultores sem terra, e mesmo aqueles que estavam acostumados à lides rurais, tiveram dificuldades para enfrentar uma nova região, tanto que demoraram para descobrir porque o gado morria e, também, que a terra arenosa sem correção da acidez era imprópria para ser a produção da agricultura. Como não tiveram assistência técnica rural ou qualquer outra qualificação planejada e executada no assentamento, viram-se desprotegidos e sem condições de enfrentar a diversidade do campo, que lhes possibilitassem condições de produzir para seu sustento.
Na atualidade, o Assentamento, apesar de apresentar ainda muitos problemas, é avaliado pelos pesquisados como um lugar bom para morar. As pesquisadas MA3 e MA4 assim narram suas vidas no assentamento:
MA3: Eu acho que hoje a vida no assentamento é boa. É bem melhor do que quando nós viemos para cá. Minha vida é cuidar do que é nosso, de nossa criação. Nós temos porcos, galinhas, gados. Gosto muito de morar no assentamento. Aqui é tranquilo, é uma paz. A gente trabalha muito, luta o dia inteiro, mas quando chega à noite, a gente vai dormir numa tranquilidade... (Narrativas produzidas em 19/05/2017)
MA4: Em vista do que era antes está muito bom. Temos mais qualidade de vida se comparado com o começo do assentamento. Temos até uma camionete para carregar as coisas. Não se pode falar que tudo é cem por cento, mas hoje dá para viver melhor, comer melhor. E, hoje trabalhamos só no que é nosso. Não precisamos mais trabalhar fora. (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
Os excertos das narrativas de MA1 reafirmam as histórias de MA3 e MA4, como se pode observar:
MA1: Hoje é bom viver no assentamento. Nós temos até luz elétrica. Quando chegamos não existia energia e a gente vivia com luz de lamparinas. Como trabalhamos também com produção de leite, hoje podemos usar o resfriador. Na atualidade, temos casa de madeira mas é uma boa casa, o sítio é limpo, temos gado de leite e de corte e as estradas estão melhores. Hoje, gosto muito de morar no assentamento. Houve mudanças importantes e não necessitamos implorar por tudo, hoje nós sabemos cobrar mais das autoridades. Moro com meus pais e somos felizes no assentamento. (Narrativas produzidas em 19/05/2017)
As narrativas apontam significativas melhorias em suas condições de vida após o acesso e posse em seus lotes de terras. Quando indagados como é a vida no assentamento, esses elencaram diversas situações de melhorias nas infraestruturas básicas como estradas, escolas, energia, moradias, renda familiar, etc. que são essenciais para a permanência deles em seus lotes de terra. Com isso, é possível inferir que se a qualidade de vida melhorou, porque houve, também, significativo desenvolvimento econômico, social e político no assentamento. Quando ponderam que trabalham no que é deles, que cuidam do que é deles, que houve mudanças e que sabem cobrar seus direitos, há nessas narrativas sentimentos de que, de algum modo, souberam lutar em prol de um direito pela conquista da terra.
A tomada de consciência de sua cidadania, de seus direitos e deveres, torna os trabalhadores participantes ativos dos processos sociais, organizando-se na defesa de seus interesses... Em consequência passam a interagir e pressionar as autoridades para que suas reivindicações sejam atendidas, tornando-se agentes políticos significativos em suas comunidades (SPAROVEK, 2003, p. 26).
Os participantes da pesquisa narram que o assentamento é muito melhor do que há anos atrás, mas sentem falta de infraestrutura que lhes poderia possibilitar mais qualidade de vida. A pesquisada MA5 narrou do que sente falta no assentamento: "a gente sente falta ainda de um barracão para nosso lazer lá na igreja, precisamos de um telefone para nos comunicar com a cidade, necessitamos de mais atenção na área da saúde e, principalmente, de escolas com mais qualidade".
Esse sentimento se manifesta nas narrativas de HA3 e HA6:
HA3: O Assentamento Vale do Arinos hoje é muito bom para morar. Mas ainda falta interesse político para trazer mais melhorias para nós. Na minha opinião falta fomento para aumentar nossa produção e renda e, além disso, faltam estradas. (Narrativas produzidas em 20/10/2016)
HA6: O assentamento apesar de tudo é bom para morar. Se tivéssemos mais estrutura seria melhor ainda. Eu acho que a educação é precária, não pelos professores, mas como ela é oferecida (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
O Assentamento, nas narrativas dos pesquisados, é caracterizado como um bom lugar para morar, mas todos acreditam que a infraestrutura básica deve ser implementada ou melhorada, como: saúde, educação, estradas, lazer, etc. Essas reivindicações demonstram que a comunidade se politizou e tem percepções de seus direitos em busca do exercício plena de cidadania, a partir de suas conquistas. Para Sparovek (2003), quando os assentados assumem o controle de suas terras, passam por mudanças importantes e sentem mais responsabilidade sobre seus destinos, de forma que reivindicam mais e exigem mais individual ou coletivamente das instituições.
Os assentados foram indagados sobre o que os motivava a morar no assentamento Vale do Arinos. A pesquisada MA3 enfatiza:
MA3: Porque gosto de morar no meu pedaço de terras. Ele tem propiciado renda para nossa sobrevivência. Eu sei que no passado arriscamos muito em ter vindo para cá, era tudo incerto mas para nós deu tudo certo. Eu me sinto feliz aqui. Além disso, no assentamento temos uma associação e nela temos força. (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
O pesquisado MA2 narra o que a motiva a viver no assentamento: é o sossego e a questão afetiva. No começo não tínhamos certeza de quase nada, apenas sonhávamos com um pedaço de terras. Quem está aqui desde o começo sofreu e de certa forma venceu. É isto que mantem a gente aqui até hoje.
O pesquisado HA5 manifesta, também, a sua motivação ao narrar:
O que me mantem no assentamento é a tranquilidade e acho que também porque me sinto realizado. Eu sempre quis ter um pedacinho de terras. Agora eu tenho. Esse sentimento me dá um pouco de segurança. Não é mais algo incerto, que poderia acontecer. Isto já aconteceu, é uma certeza". Além disto, há nosso trabalho comunitário. No começo, se o Incra tivesse cumprido pouco do que devia cumprir, eu pouco me importava. Depois fui me inteirando das coisas, do processo, dos direitos dos assentados e comecei a participar da associação. Hoje sou integrante, faço parte de uma comunidade. (Narrativas produzidas em 18/05/2017)
Essas narrativas envolvem por parte dos assentados o sentimento de pertencimento a comunidade, ao grupo de pessoas que chegaram no assentamento, lutaram e continuam morando nele até hoje. Para Farias (2003), este sentimento é um vínculo subjetivo que se relaciona ao sentimento de pertencimento com possibilidades de realização de desejos e reconhecimento.
Alguns evidenciaram seus sonhos de assentados rurais: "meu maior sonho é a documentação definitiva (Pesquisado HA6). "Meu sonho é que o assentamento propicie condições de rendas às pessoas que nele habitam" (pesquisada MA1). "Sonho de termos rendas melhores e acesso fácil para levarmos a produção para a cidade" (pesquisado HA5). "Meu maior sonho é viver". A pesquisa MA4, se emociona profundamente, chora ao contar: "Nossa história é uma história de sofrimento, passamos dificuldades. Mas é uma história de vida. Não apenas de uma, mas de muitas vidas. Só compreende esta história aqueles que acreditaram e lutaram".
Os sonhos dos assentados pesquisados do Projeto de Assentamento Vale do Arinos são coerentes com suas trajetórias e lutas. Percebe-se nas narrativas que, de algum modo, construíram espaços que possibilitaram a intersecção de relações sociais entre eles na comunidade, que contribuíram com suas permanências no assentamento. Deste modo, seus sonhos entrelaçados à história de vida e lutas projetam a continuidade ou desenvolvimento desses espaços de relações sociais, para desenvolver, não apenas aspectos inerentes à infraestrutura, mas também aqueles que dizem respeito ao processo de formação pessoal e política ao assumirem posturas militantes no âmbito da vida individual e coletiva do assentamento.
As histórias de vida dos assentados emergem como fatos de coragem proeminente para residir num local longínquo, com estradas precárias, sem quaisquer infraestrutura física e, ainda, com pouco apoio das instituições governamentais, como uma epopeia em passos duvidosos que se configuraram para alguns como passos ou decisões incertas que tomaram quando decidiram ir para o assentamento e, para outros, como coragem e luta em busca de um quinhão de terras, um espaço que lhes oportunizasse produção e rendas para seu sustento e de sua prole.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A criação do Assentamento Vale do Arinos possibilitou o acesso à terra a trabalhadores moradores dos municípios do Vale do Arinos, num processo burocrático que teve início no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Juara e complementado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A mudança da situação de trabalhador sem terra para a de proprietário de um lote de terras, trouxe consequências nas relações sociais e econômicas dos assentados, emergindo no assentamento novos atores sociais que atuaram nos cenários econômico, social e político.
As peculiaridades na seleção, na condução dos trabalhos de assentar os selecionados, a falta de infraestrutura e as dificuldades encontradas pelos assentados protagonizaram histórias, que não podem nem devem ser esquecidas. Neste contexto, o artigo compartilha as histórias de vida e as narrativas de memórias dos assentados do Projeto de Assentamento Vale do Arinos.
O conjunto de dados partilhados nesta pesquisa demonstram que as histórias de vida narradas pelos assentados emergem como uma decisão corajosa em morar num assentamento distante do núcleo urbano, com estradas em péssimas condições de serem transitadas, com pouca infraestrutura e quase sem assistência das instituições governamentais.
As narrativas dos assentados demonstram que seus sentimentos ao chegar nos seus lotes foram de alegria e de felicidade, que olhavam para suas terras e não cansavam de admirá-las e de apreciar a paisagem num estado de contemplação. A chegada para eles tinha o significado especial, de que sua insistência na luta pela terra não tinham sido em vão e acreditavam que suas vidas melhorariam depois que delas tomassem posse.
Mas nem tudo para os assentados foi fácil, eles narram que logo perceberam os desafios a serem contornados como a falta de transportes, estradas ruins, a falta de dinheiro e de crédito financeiro, falta de infraestruturas básicas como escolas, pontes, postos de saúde, moradias, água e, além disso, como desconheciam o ambiente demoraram para perceber que a agricultura familiar não era promissora sem que corrigissem os solos ou que o gado morria de morte súbita por ingestão de uma vegetação da região. Ressaltam que conseguiram contornar vários desses problemas/desafios com muito trabalho, individual ou coletivo e aprenderam a ouvir e sentir o lugar.
As narrativas dos pesquisados fazem alusões de que o acesso à terra, a propriedade do lote, os trabalhos realizados são subsídios importantes, mas não suficientes para possibilitar condições de produção, renda e qualidade de vida. Desse modo, foi difícil para os assentados continuarem no assentamento sem os meios necessários para as atividades produtivas como máquinas, equipamentos, insumos, créditos e, também, o conhecimento não só de como produzir, mas do ambiente natural da região.
A luta pela posse da terra possibilitou que os assentados percebessem o assentamento como um espaço de desenvolvimento de políticas e de poder, uma vez que se sentiram mais fortes e confiantes por meio das lutas coletivas em suas associações. A falta de apoio das Instituições Públicas como o Incra e a Empaer, aliadas às precárias infraestruturas que lhes foram permitidas, fez com que os assentados tornassem atores sociais em busca de seus interesses e de seus direitos.
Os excertos das narrativas dos assentados apontam que no Assentamento Vale do Arinos, as constantes lutas pela terra trouxe aos assentados experiências políticas e produziu formas descentralizadas de lideranças, representações e de organizações por meio de suas associações e também por outras formas de se organizarem em busca de suas reinvindicações. Além disso, a criação do assentamento não tem se configurado como o ponto final de um procedimento que tramitou por anos, de forma incerta e duvidosa, mas como um ponto inicial e de partida em que os assentados perceberam como possibilidades para insistir e lutar em busca de viabilidades, não só econômica, mas também de infraestruturas como escolas, serviço de saúde, boas estradas, créditos e assistências técnicas. Esta é a marcha pela terra que não é mais incerteza, mas é o resultado de amplas lutas, de sacrifícios e de vitórias.
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Os dados foram levantados nos meses de outubro de 2016 e concluídos em maio de 2017, em razão das chuvas torrenciais, acima da média pluviométrica na região, entre os meses de novembro a abril, que destruíram pontes, alagaram estradas, criaram atoleiros, deixando as estradas intransitáveis.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Jun 2018 -
Data do Fascículo
2018
Histórico
-
Recebido
17 Dez 2017 -
Aceito
02 Fev 2018