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Por uma sociologia da produção científica no campo acadêmico da Educação Física no Brasil

For a sociology of scientific production in the academic field of Physical Education in Brazil

Resumos

No presente artigo, temos por objetivo demonstrar algumas frentes de apreciação que podem ser abertas para pensar a constituição e estrutura do campo acadêmico da Educação Física no Brasil a partir da Sociologia da Ciência tal como retomada na obra de Pierre Bourdieu. Para tanto, procuramos recuperar um exemplo bem pontual e recente das "tensões epistemológicas" evidenciadas no subcampo de produção sócio-cultural em Educação Física, mais precisamente, as tomadas de posições materializadas na Revista Brasileira de Ciências do Esporte por conta da publicação dos artigos: "Antropologia, cultura e Educação Física escolar" de autoria de Diego Luz Moura e Hugo Rodolfo Lovisolo em 2008 e o artigo "Antropologia, cultura e Educação Física escolar: considerações a respeito do artigo de Moura e Lovisolo" redigido por Jocimar Daolio em 2009. Cabe a ressalva, de que nosso intuito é mais partir desse exemplo para desenvolver as argumentações e amarrações empírico-teóricas do que propriamente se debruçar sobre o caso específico em si, ou ainda, tomar partido frente aos posicionamentos apresentados.

Campo acadêmico; Educação Física; Sociologia da Ciência


In this article, we mean to show some fronts of assessment that can be opened to consider the formation and structure of the academic field of Physical Education in Brazil based on the Sociology of Science as incorporated in the work of Pierre Bourdieu. To this end, we recover an example of ad hoc and the recent "epistemological tensions" highlighted in the subfield of socio-cultural production in Physical Education, more precisely, the positions taken materialized in the Brazilian Journal of Sport Science on behalf of the publication of articles: "Anthropology, Culture and Physical Education" written by Diego Luz Moura and Hugo Rodolfo Lovisolo in 2008 and the article" Anthropology, Culture and Physical Education: Considerations about the article of the Moura and Lovisolo" written by Jocimar Daolio in 2009. It is the exception that our aim is more from this example to develop the arguments and empirical and theoretical moorings of what exactly to look into the case itself, or even take sides against the positions presented.

Academic field; Physical Education; Sociology of Science


ARTIGO ORIGINAL

Por uma sociologia da produção científica no campo acadêmico da Educação Física no Brasil

For a sociology of scientific production in the academic field of Physical Education in Brazil

Juliano de Souza; Wanderley Marchi Júnior

Centro de Pesquisa em Esporte, Lazer e Sociedade (CEPELS) da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR,Brasil

Asociación Latinoamericana de Estudios Socioculturales del Deporte (ALESDE)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Juliano de Souza Rua Coronel Carlos Bardelli, 183 Cajuru Curitiba PR Brasil 82940-340 Telefone: (41) 3082.1747 e-mail: julianoedf@yahoo.com.br

RESUMO

No presente artigo, temos por objetivo demonstrar algumas frentes de apreciação que podem ser abertas para pensar a constituição e estrutura do campo acadêmico da Educação Física no Brasil a partir da Sociologia da Ciência tal como retomada na obra de Pierre Bourdieu. Para tanto, procuramos recuperar um exemplo bem pontual e recente das "tensões epistemológicas" evidenciadas no subcampo de produção sócio-cultural em Educação Física, mais precisamente, as tomadas de posições materializadas na Revista Brasileira de Ciências do Esporte por conta da publicação dos artigos: "Antropologia, cultura e Educação Física escolar" de autoria de Diego Luz Moura e Hugo Rodolfo Lovisolo em 2008 e o artigo "Antropologia, cultura e Educação Física escolar: considerações a respeito do artigo de Moura e Lovisolo" redigido por Jocimar Daolio em 2009. Cabe a ressalva, de que nosso intuito é mais partir desse exemplo para desenvolver as argumentações e amarrações empírico-teóricas do que propriamente se debruçar sobre o caso específico em si, ou ainda, tomar partido frente aos posicionamentos apresentados.

Palavras-chave: Campo acadêmico. Educação Física. Sociologia da Ciência.

ABSTRACT

In this article, we mean to show some fronts of assessment that can be opened to consider the formation and structure of the academic field of Physical Education in Brazil based on the Sociology of Science as incorporated in the work of Pierre Bourdieu. To this end, we recover an example of ad hoc and the recent "epistemological tensions" highlighted in the subfield of socio-cultural production in Physical Education, more precisely, the positions taken materialized in the Brazilian Journal of Sport Science on behalf of the publication of articles: "Anthropology, Culture and Physical Education" written by Diego Luz Moura and Hugo Rodolfo Lovisolo in 2008 and the article" Anthropology, Culture and Physical Education: Considerations about the article of the Moura and Lovisolo" written by Jocimar Daolio in 2009. It is the exception that our aim is more from this example to develop the arguments and empirical and theoretical moorings of what exactly to look into the case itself, or even take sides against the positions presented.

Keywords: Academic field. Physical Education. Sociology of Science.

Introdução

A idéia de escrever um artigo retomando algumas tensões constitutivas do campo acadêmico da Educação Física no Brasil não é recente e já vem nos inquietando há algum tempo. Como leitores de algumas das principais produções acadêmico-científicas vinculadas e produzidas no interior do referido campo, temos notado a potencialidade das mesmas se constituírem como um dos objetos de disputa mais decisivos no sentido de definir estruturalmente a lógica de concorrência e de relações na área.

Como primeira observação, convém ressaltarmos que o campo de produção acadêmica da Educação Física no Brasil é um locus social onde se produz e se vincula conhecimento científico, o que, no entanto, não bastou para caracterizar a área como um campo de natureza propriamente científica, afinal a falta de autonomia e legitimidade dessa disciplina já apontada por autores como Sérgio (1991) e Bracht (1992), dificultou a mesma ser reconhecida e considerada uma ciência constituinte e estruturante de um campo de saber específico.

Essa falta de autonomia, por sua vez, tem sido explicada em algumas literaturas críticas da área excepcionalmente pelo fato da Educação Física durante seu processo de construção histórica ter sofrido forte influência dos sistemas e movimentos sociais higienistas, militaristas e tecnicistas prevalecentes na sociedade brasileira (MEDINA, 1983; OLIVEIRA, 1985; CASTELLANI FILHO, 1988; GHIRALDELLI JÚNIOR, 1989; BRACHT, 1992; SOARES, 1994; CAPARROZ, 1997). Cabe ainda notarmos que a própria produção de conhecimento na área foi e continua sendo direcionada, resguardadas as particularidades sócio-acadêmicas do momento em que vivemos, por essas tradições, paradigmas e correntes.

Não obstante e por mais paradoxal que pareça, devemos reiterar que foi exatamente por via dessa inspiração positivista sustentada nas ciências naturais que, ao longo dos anos, se construíram as bases identitárias mais incisivas e, talvez, homogêneas para uma possível cientifização da área. Mas se por um lado as tendências biológicas e motoras de divulgação da Educação Física no Brasil representaram a possibilidade mais concreta de sistematizá-la como ciência, por outro, contribuíram para a naturalização de algumas práticas sociais (leia-se critérios objetivos de distinção), que não apenas sustentam um sistema onde os favorecidos são cada vez mais favorecidos e os desfavorecidos cada vez mais desfavorecidos, mas perigosamente bloqueiam o nosso acesso aos reais fundamentos e desdobramentos que asseguram a reprodução desse sistema de desigualdades.

Essa crítica, de certo modo, já foi antecipada e formulada pelos estudiosos da área nos anos 1980 e 1990, sobretudo, por intermédio de algumas possibilidades de aproximação da Educação Física com as Ciências Humanas e Sociais. No fulcro dessas abordagens duas correntes sociológicas, no nosso ponto de vista, foram as que prevaleceram. A primeira respaldada nas mais distintas vertentes do marxismo e que se preocupou em denunciar o papel segregacionista, reprodutivista e ideológico da Educação Física e do esporte no Brasil. Uma segunda, mais recente, e que sob a influência dos escritos pós-estruturalistas de Michel Foucault, procurou demonstrar as sutis relações estabelecidas entre os saberes e epistemes produzidos sobre o corpo e os micro-poderes investidos no aperfeiçoamento e maximização da lucratividade do mesmo.

Óbvio que a esse panorama podem e devem ser acrescidas outras abordagens teóricas. Não obstante, o que tais interpretações reservam em comum é o fato de partilharem da crítica ao suposto reducionismo inerente ao excessivo enfoque biológico ou motor que predomina ou predominou na forma de fazer ciência na área de Educação Física no Brasil e, de modo mais incisivo, fazer a prática cotidiana no interior desse campo de atuação profissional, seja por intermédio do desenvolvimento de atividades físicas, esportivas, lúdicas, recreativas, de lazer e as atribuições se multiplicam.

Essa polissemia, por sua vez, é um dos aspectos mais interessantes e urgentes a ser recuperado na tentativa de sistematizar uma perspectiva de leitura sociológica das relações sócio-acadêmicas e profissionais configuradas no interior do referido campo. E isso basicamente porque a definição legítima da funcionalidade da área se trata do primeiro objeto de lutas constituído pelos agentes na tentativa de se imporem na condição de autoridades científicas e profissionais no campo e, acima de tudo, legitimarem uma nova hierarquia dos pesquisadores, dos objetos de pesquisa, da distribuição dos recursos reservados à produção científica e, enfim, das práticas sociais veiculadas através das aulas de Educação Física nas escolas ou então através dos programas de atividade física desenvolvidos nas academias, nos clubes, nas praças, nas empresas.

Na esteira dessa análise, é oportuno ainda lembrarmos que o conjunto de crenças e valores comungados entre aqueles pesquisadores e estudiosos da Educação Física que fizeram suas incursões no âmbito das Ciências Humanas e Sociais, não isentam os mesmos da possibilidade de tencionarem e rivalizarem entre si, já que a região ocupada por eles no campo conserva a particularidade de ser um espaço social onde os produtores dos bens científicos e culturais postos em circulação são, impreterivelmente e antes de qualquer coisa, os próprios consumidores dos referidos bens exteriorizados no campo sob a forma de livros, teses, dissertações, artigos, comunicações, palestras, seminários.

Além disso, não podemos esquecer que esses pesquisadores e autores concorrem para fornecer as interpretações mais completas e exatas da estrutura do campo em que estão inseridos como agentes, ou melhor, da região do campo onde eles mesmos lutam constantemente para deter o monopólio da competência legítima para fazer a crítica da Educação Física. Consideremos ainda, a possibilidade desses agentes e estruturas, responsáveis por fazer as interfaces entre a Educação Física e as Ciências Humanas e Sociais, constituírem um subcampo de pesquisas sócio-culturais no interior do referido campo acadêmico, já que os mesmos engendram um sistema de lutas acirrado e relativamente autônomo às demais demandas exteriorizadas no campo acadêmico maior.

No presente artigo, temos por objetivo demonstrar algumas frentes de apreciação que podem ser abertas para pensar a constituição e estrutura do campo acadêmico da Educação Física no Brasil a partir da Sociologia da Ciência tal como retomada na obra de Pierre Bourdieu. Para tanto, procuramos recuperar um exemplo bem pontual e recente das "tensões epistemológicas" evidenciadas no subcampo de produção sócio-cultural em Educação Física, mais precisamente, as tomadas de posições materializadas na Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE) por conta da publicação dos artigos: "Antropologia, cultura e Educação Física escolar" de autoria de Diego Luz Moura e Hugo Rodolfo Lovisolo em 2008 e o artigo "Antropologia, cultura e Educação Física escolar: considerações a respeito do artigo de Moura e Lovisolo" redigido por Jocimar Daolio em 2009.

Todavia, antes de nos direcionarmos mais especificamente a essa agenda, convém reportarmo-nos de forma sucinta aos principais fundamentos teórico-metodológicos que orientam o programa de pesquisa sistematizado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu para pensar a constituição dos campos acadêmicos e científicos bem como o sistema de concorrência científica engendrado no interior dos mesmos.

Um esboço da Sociologia da Ciência de Pierre Bourdieu

Uma das primeiras condições metodológicas inerentes à constituição de uma sociologia propriamente científica da ciência diz respeito à necessidade dos agentes aspirantes a esse escopo fazerem uma auto-sócio-análise na condição de cientistas que tem por pretensão e, sobretudo, interesse produzir conhecimento sob a forma sistematizada, consagrada e personificada de ciência (BOURDIEU, 1983, p. 63).

Decorre dessa leitura a necessidade imediata de justificar nossas possíveis intencionalidades e interesses que se vinculam à escrita do presente texto, de modo, inclusive, a colocar em prática aquele exercício reflexivo que Bourdieu (1990) chamou de objetivar o sujeito objetivante. Antes disso, entretanto, cabe a observação de que Bourdieu no livro "Os usos sociais da ciência" (2004), recomenda irônica e categoricamente aos cientistas que façam uma sociologia clínica dos campos científicos e não uma sociologia cínica. Sem dúvida, reconhecer que não existe um ato desinteressado ao fazer ciência é economizar cinismo.

Nesse sentido, é importante frisarmos que embora tenhamos dito no início do artigo que há algum tempo já vínhamos avaliando a possibilidade de escrever um artigo de caráter reflexivo contemplando algumas tensões demandadas no campo acadêmico da Educação Física no Brasil, houve, sem dúvida, outros motivadores permeando objetiva e subjetivamente essa escolha.

Um deles, como já foi dado a entender, seria nossa intencionalidade, ou melhor, nosso interesse em produzir um texto explorando à aparente "tensão epistemológica" evidenciada na circulação dos números 29 e 31 da Revista Brasileira de Ciências do Esporte entre dois importantes autores brasileiros que procuraram fazer a mediação entre a Educação Física e a Antropologia Social em suas respectivas obras. Um segundo motivo que nos vem em mente seria, talvez, a possibilidade de somar algum capital simbólico a nossa produção.

É imperativo frisarmos que esse exercício de auto-sócio-análise tal como aqui brevemente ilustrado, foi uma das constantes e rigorosas preocupações de Bourdieu ao construir e fundamentar seus programas de pesquisa sobre os mais variados e distintos objetos empíricos situados no espaço social. Não obstante, a extensão desse projeto para pensar o conjunto de sua obra, bem como a posição por ele ocupada no campo acadêmico e intelectual francês, se deu no livro póstumo "Esboço de auto-análise" publicado no Brasil em 2005.

Em tal oportunidade, dentre outras, Bourdieu ressalta o fato de ter utilizado, ou procurado impreterivelmente utilizar, a sociologia contra suas próprias determinações, argumentos e limites sociais de modo a fornecer e sistematizar elementos para uma análise sociológica do desenvolvimento do seu trabalho (BOURDIEU, 2005; BOURDIEU, 1990, p. 38-39). Além disso, o autor argumenta que a sociologia da produção do conhecimento não é uma especialidade sociológica dentre outras, mas um dos requisitos primeiros para constituição de uma sociologia propriamente científica e reflexiva (BOURDIEU, 1983, p. 18).

De acordo com Bourdieu (2002), para que se constitua uma sociologia científica da ciência é necessário considerar tanto as aspirações subjetivas dos pesquisadores quanto as condições objetivas do campo em que os mesmos se situam. A propósito, quando as demandas subjetivas dos cientistas encontram condições estruturais no campo similares àquelas em que foram originalmente produzidas, dizemos que suas chances de se furtar, se beneficiar ou, até mesmo, monopolizar os capitais em "jogo" é maximizada.

Todavia, quando há um desencontro entre as demandas objetivas e subjetivas, o "destino social" reservado a esses estudiosos, pesquisadores e cientistas não se revela tão promissor assim no interior do campo científico a que pertencem, embora sempre exista a possibilidade de que a competência técnica e autonomia intelectual dos mesmos venham a intervir e contrabalançar a situação de modo, inclusive, a transformar a própria estrutura de funcionamento do campo segundo suas aspirações e práticas científicas.

Talvez seja por conta dessas regularidades e circunstâncias esboçadas que Bourdieu (1990, p. 46), chega ao entendimento mais generalista de que "o campo científico é um jogo em que é preciso munir-se de razão para ganhar", ou de forma complementar, um campo no qual tanto a ciência legitima o cientista quanto o mesmo cientista, em meio a critérios sociais pautados na luta e na concorrência, legitima a ciência. Sem dúvida, esse é um dos argumentos-chave defendido avidamente pelo sociólogo francês ao longo da formulação de sua agenda de pesquisas direcionada à análise dos campos de produção acadêmico-científica.

Na esteira dessas investigações, Bourdieu se questiona sobre a posição que os cientistas ocupam nos campos científicos a que pertencem, bem como, sobre as definições legítimas de fazer ciência que daí resultam. Um exemplo interessante se dá no próprio caso do campo científico da sociologia, haja vista que existe "(...) uma estreita correlação entre o tipo de capital de que dispõem os diferentes pesquisadores e a forma de sociologia que eles defendem como única e legítima" (BOURDIEU, 1990, p. 50).

Ao delimitar os campos científicos como locus de análise, Bourdieu procura demonstrar e compreender os mecanismos que asseguram o funcionamento de tais espaços, bem como, procura tornar inteligíveis as lutas que se travam em função dos capitais em "jogo". Para isso, o sociólogo recupera seus postulados e leis gerais sobre a dinâmica estrutural dos campos, mais precisamente, o fato desses espaços possuírem algumas propriedades universais de funcionamento e outras mais específicas e pertinentes a cada uma dessas realidades que eles próprios constituem.

Uma das propriedades universais dos campos se refere ao grau de autonomia e heteronomia que eles apresentam. Dizemos que um campo é bastante autônomo quando a concorrência em seu interior é "pura" ou quando os agentes têm por clientes inevitavelmente os seus próprios concorrentes. Um campo heterônomo, por sua vez, é aquele que não têm condições e competências suficientemente desenvolvidas para refratar as forças externas, ou seja, um campo que não oferece maiores resistências às demandas políticas ou econômicas, por exemplo (BOURDIEU, 2003).

O campo científico na qualidade de campo relativamente autônomo, o que implica uma relativa dependência das leis sociais externas, tem em sua especificidade constituinte dois princípios de hierarquização bem definidos, mas que por ora podem vir a se combinar: um político e o outro propriamente científico. O princípio de hierarquização política dos campos científicos nos remete a circulação de um capital institucionalizado que dá sentido a uma concorrência de caráter comercial, enquanto o princípio de hierarquização científica implica em uma concorrência pautada na disputa pelo capital científico, que caso reconhecido adquire o status de capital simbólico.

No caso do subcampo de produção científica dos estudos sócio-culturais em Educação Física no Brasil, é possível notar a primazia do segundo princípio de hierarquização ao primeiro, o que significa que as lutas travadas no interior do referido espaço são orientadas, prioritariamente, de acordo com os princípios de aquisição interna. Essa constatação, por sua vez, se confirma na medida em que desenvolvemos uma sensibilidade sociológica a ponto de perceber que os pesquisadores constantemente questionam as heranças científicas do campo, os problemas e hipóteses levantadas, enfim, os conceitos e métodos empregados na elaboração dos discursos, das práticas e da ciência legítima e dominante. Quanto aos conflitos políticos de dimensão científica, devemos frisar que os mesmos não são alheios ao subcampo de produção acadêmica delimitado. Contudo e para o propósito da análise subseqüente, optamos em encaminhar a discussão levando em conta algumas questões e demandas de ordem mais interna ao referido espaço, o que, talvez, seja uma postura mais compatível para entender algumas das "tensões" engendradas no subcampo de produção sócio-cultural em Educação Física no Brasil.

Como último ponto a ser enfatizado sobre esse referencial teórico-metodológico, é importante lembrar que as leis mais gerais que prescrevem o funcionamento dos campos acadêmicos e científicos já foram, em suas devidas proporções, mapeadas e sistematizadas na macrossociologia de Pierre Bourdieu. Por sua vez, o desvelamento das leis e propriedades específicas a cada um dos campos acadêmico-científicos e, por conseguinte, dos subcampos que compõem o espaço de produção sócio-acadêmica no Brasil é uma das tarefas ainda por serem feitas mediante a apreensão empírico-teórica da realidade social expressa em cada um desses microcosmos. Essa microssociologia é o que pretendemos explorar, dentro de nossos limites, nas linhas que se seguem.

O subcampo de produção sócio-cultural em Educação Física no Brasil: uma análise preliminar

Quais as condições sociais que permeiam a construção de um texto que se propõe a analisar a obra de um autor com o qual pouco se concorda? Quais as condições sociais que levam um autor a escrever um artigo rebatendo críticas e argumentações formuladas a respeito de seu próprio trabalho?

A primeira vista, parecem questões óbvias - e tão óbvias que ninguém se atreve a problematizá-las ou, na melhor das hipóteses, passam despercebidas. No entanto, sem formular essas questões muito dificilmente um pesquisador consegue trazer à luz os fundamentos ocultos que asseguram o funcionamento concreto dos mais variados campos acadêmicos e científicos. Além disso, a formulação dessas perguntas implica tanto em reconhecer o caráter eminentemente social da produção científica quanto superar a dicotomia autor/obra como bem sugeriram Elias (1995) e Bourdieu (2007b).

No entanto, para que essas questões possam, de fato, ser objetivamente esclarecidas é necessário primeiro remontar ao processo de construção das posições de autoridade científica no interior de determinado campo mediante ao entendimento de que tal processo requer a cumplicidade tácita dos demais agentes envolvidos. Além disso, é oportuno notarmos que um dos principais efeitos acadêmicos reforçado por essa lógica da posição de autoridade, sem dúvida, está relacionado ao fato da mesma favorecer aos pesquisadores divulgarem seus trabalhos nos mais importantes veículos de circulação dos bens científicos e culturais.

A propósito, é no mínimo interessante mencionar a relação de complementaridade estabelecida entre os pesquisadores e os veículos que possibilitam a circulação social de suas pesquisas. Por um lado, a construção social e objetiva das revistas e congressos mais conceituados, dentre uma série de outros fatores, também se deve a publicação de artigos escritos por autores consagrados. Por outro lado, a própria consagração desses autores no campo acadêmico é favorecida pelo número e freqüência de publicações obtidas nos congressos e nos periódicos científicos mais bem conceituados.

É lógico que a construção de um autor consagrado perpassa por outras questões, dentre as quais, sua própria competência técnica e intelectual expressa, dentre outras coisas, na sua forma de escrever, de falar em público, no número e qualidade de livros e artigos publicados, na quantidade de palestras e cursos proferidos, no status da universidade em que se vincula, no nível de envolvimento com a pós-graduação. Não obstante, o acúmulo de capital cultural no estado institucionalizado conferido por meio de títulos, diplomas, certificados, é a condição de entrada no "jogo", isto é, o principal requisito para que um autor no mínimo tenha a possibilidade de se fazer conhecido em meio à chancela científica e intelectual prevalecente nos campos acadêmicos (BOURDIEU, 1998b; BOURDIEU, 2007a).

Entretanto, para o propósito da presente discussão, não é tão importante reter os fatores e demandas sócio-acadêmicas - o que não desqualifica os questionamentos a pouco evocados - que permeiam ou então favorecem a construção de um autor consagrado, quanto entender que as posições de consagração por ele ocupada dentro de um campo de produção científica é o que lhe autoriza a dizer determinadas coisas em detrimento de outras.

Consideremos ainda, o imperativo de que determinadas temáticas só cumprem seu propósito e eficácia simbólica - no sentido mais bourdieusiano possível de inter-relação entre conhecimento e reconhecimento - se forem publicadas em um congresso ou escopo editorial de alcance irrestrito e que tenha uma demanda elevada de participantes e leitores. De fato, nos campos de produção científica existem coisas que não convém serem deixadas no ostracismo.

De certo modo, os agentes e estruturas que protagonizaram e configuraram uma recente e aparente "tensão teórica" passível de ser recuperada no interior do subcampo de produção sócio-cultural em Educação Física no Brasil, correspondem e preenchem esses perfis sociais rapidamente evocados. Comecemos nossa descrição empírica pela Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE) - estrutura social localizada no interior do campo acadêmico da Educação Física no Brasil. A RBCE está em circulação no país há 30 anos e vem sendo editada de forma quadrimensal sob a responsabilidade do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE). Segundo informações disponibilizadas no site da revista, esse veículo de circulação de estudos e pesquisas de natureza teórica e/ou empírica, tem cumprido um duplo papel na construção historiográfica da Educação Física no Brasil, isto é, contribuindo tanto com a tarefa de divulgar quanto intervir na produção de conhecimento em Educação Física e Ciências do Esporte.

Esse relato é confirmado ao revisitarmos a história editorial da revista. De 1979 a 1991, predominou o escopo aberto priorizando a publicação de artigos originais, anais de congressos, cursos, entrevistas, crônicas, notícias, relatos de experiências, cartas de leitores, resenhas de livros, teses e dissertações, além de trabalhos abrangendo temas como motricidade humana, Educação Física Especial, ou então, contemplando pesquisas referentes aos dez anos do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte.

Em 1992, por sua vez, o periódico passou a abranger as dimensões temáticas, as quais regeram e estruturaram a dinâmica editorial da revista até recentemente em setembro de 2008. Nesse cenário atual instaurado a partir de meados de 2008, a revista tem mantido suspensas as edições de cunho temático, o que representa um deslocamento importante de indução na demanda e produção de trabalhos na Educação Física e Ciências do Esporte no Brasil.

Importantes autores e pesquisadores brasileiros da área de Educação Física vêm publicando seus trabalhos ao longo dos 30 anos de circulação nacional desse periódico, caracterizando a revista como uma das mais tradicionais e representativas produções científicas vinculadas ao campo acadêmico em questão. Além disso, a RBCE está indexada em indicadores internacionais e foi avaliada e reconhecida como um periódico "B2" pelo sistema de avaliação QUALIS/CAPES - ano-base 2008.

A partir desse retrospecto, podemos inferir que a qualidade, representatividade e abrangência nacional inerente ao raio de atuação da RBCE, têm feito da mesma uma das plataformas de circulação dos bens científicos mais importantes e significativas vinculadas à Educação Física no Brasil, juntando-se a outros periódicos que compõe o espaço editorial reservado para produção científica na área, tais como a Revista Movimento vinculada a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Revista Brasileira de Educação Física e Esporte publicada pela Universidade de São Paulo, a Revista da Educação Física da Universidade Estadual de Maringá e a Revista Motriz da Universidade Estadual Paulista de Rio Claro, dentre outras.

Sem dúvida, esse panorama brevemente apresentado é uma das condições objetivas que explica a elevada procura dos pesquisadores pelo espaço editorial oferecido pela RBCE. Além disso, é importante considerar que a elevada gama de público que ela atende, talvez seja um dos pilares que justifica a produção e a demanda de trabalhos de orientação crítica sobre algumas temáticas relativas à área de Educação Física, dentre as quais, o próprio estado da arte da produção de conhecimento cultural na área. Em síntese, tendemos a crer em conformidade com Bourdieu (1998a), que a lógica de formulação e consagração da crítica é diretamente proporcional ao número de leitores com predisposição a legitimar a crítica e, portanto, validá-la enquanto tal.

O artigo "Antropologia, cultura e Educação Física escolar" publicado na RBCE em 2008, de certa forma contempla essa demanda e, se por um lado, não temos nenhuma evidência empírica e objetiva comprovando a repercussão que o texto obteve no campo acadêmico da Educação Física no Brasil, por outro, temos a própria fala dos autores que justificam a intenção de revisar através de um ângulo crítico o impacto e as possíveis "confusões" desencadeadas pela obra de Jocimar Daolio na área de estudos culturais da Educação Física escolar no Brasil. Vejamos nas palavras dos próprios autores:

O ensaio pretende discutir criticamente a idéia de cultura e as propostas formuladas para a educação física (EF) escolar a partir dela. Analisa a produção de Jocimar Daolio apontando suas inconsistências e lacunas. O objetivo principal, entretanto, não é a obra do autor, mas sua utilização para esclarecer algumas das confusões que vigoram na área dos estudos culturais e pedagógicos da EF escolar (MOURA; LOVISOLO, 2008, p. 137).

Contudo, antes de arriscar a apontar algumas intenções que talvez permeiem a proposta de formulação do artigo, convém situarmos o lugar de fala dos autores. Diego Luz Moura possui graduação em Educação Física pelo Centro Universitário da Cidade, duas especializações e mestrado em Educação Física pela Universidade Gama Filho. O título de uma de suas monografias de especialização é "Antropologia, cultura e Educação Física escolar", a qual, a saber, foi orientada pelo professor Hugo Lovisolo. Em sua dissertação de mestrado defendida em 2009, sob a orientação do professor Antonio Jorge Gonçalves Soares, Moura se ateve a investigar a apropriação do conceito de cultura presente no debate pedagógico brasileiro e, além disso, identificar por via de pesquisa etnográfica a forma de apropriação desse debate pelas instituições escolares no Rio de Janeiro.

Já Hugo Rodolfo Lovisolo, possui graduação em Sociologia pela Universidade de Buenos Aires, mestrado e doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutorado em Ciências do Esporte pela Universidade do Porto. A partir dos anos 1990, sua produção começa a ser direcionada mais incisivamente para a temática da Educação Física, do esporte e do lazer, que são tratadas, pelo autor, à luz da produção teórica de autores da Antropologia Social e a da Sociologia. Em termos sucintos, seu objetivo é compreender algumas das principais transformações sócio-culturais no âmbito da Educação Física, do lazer e do esporte. Uma revisão mais acurada de sua obra, certamente daria conta de melhor situar suas contribuições para o campo de produção acadêmico-científica em Educação Física no Brasil.1 1 A propósito, para uma discussão mais aprofundada sobre as contribuições do pensamento de Lovisolo para o campo acadêmico da Educação Física no Brasil, ver: MOURA, D. L. O olhar do antropólogo: o impacto de Lovisolo na Educação Física brasileira. In: VOTRE, S.; SOARES, A. J. G.; MOREL, M.; ROSA, A.; (orgs.). Mediação das ciências sociais com a Educação Física: A contribuição de Hugo Lovisolo. Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2009, pp. 45-54.

Tendo em vista essas filiações e redes de interdependências, podemos entrever que o artigo "Antropologia, cultura e Educação Física escolar", recebido pela RBCE em 10 de setembro de 2007, aceito em 12 de fevereiro de 2008 e publicado no volume 29 da revista, número 03, em maio do mesmo ano, trata-se de uma produção resultante do trabalho de especialização de Diego Luz Moura apresentado no ano de 2006 na Universidade Gama Filho.2 2 Essa menção ao trabalho de especialização de Moura, assim como às demais informações curriculares referentes à área de formação e aos interesses de pesquisa dos três autores em questão no artigo, foi fundamentada a partir da consulta que fizemos em seus currículos lattes disponibilizados na Plataforma Lattes/ CNPq. Além disso, o referido trabalho foi orientado por Hugo Lovisolo, um autor que possui um capital cultural institucionalizado referente à Antropologia Social e que fez suas incursões empíricas no terreno da Educação Física, área na qual, inclusive, orienta dissertações e teses pelo Programa de pós-graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho.

Outro aspecto que merece ser reiterado do texto "Antropologia, cultura e Educação Física escolar", é que o mesmo, conforme introduzido anteriormente, se propôs a discutir algumas possíveis confusões reinantes na área de estudos sócio-culturais em Educação Física escolar à luz da obra de Jocimar Daolio, escolhida pelos autores em função da visibilidade alcançada pela mesma na área (MOURA; LOVISOLO, 2008, p. 138). Em imediato algumas questões nos incorrem: por que a delimitação da obra de Jocimar Daolio e não a de outro pesquisador? A visibilidade da obra desse autor seria, de fato, o imperativo principal para produção do artigo de Moura e Lovisolo?

Na tentativa de tornar mais relacionais essas questões convém situarmos objetivamente o professor Jocimar Daolio no subcampo de estudos sócio-culturais em Educação Física no Brasil. Daolio possui graduação em Educação Física e Psicologia pela Universidade de São Paulo, mestrado em Educação Física também pela Universidade de São Paulo, doutorado em Educação Física pela Universidade de Campinas e livre-docência pela mesma instituição. Sua obra tem como principal escopo de análise a Educação Física escolar. Seu capital cultural institucionalizado foi obtido no campo acadêmico da Educação Física. A área de atuação e produção de conhecimento sobre e na Educação Física escolar é o universo empírico no qual está pautada sua reflexão.3 3 Para uma discussão mais aprofundada sobre sua abordagem antropológica e plural de Daolio, ver: DAOLIO, J. Da Cultura do Corpo. Papirus: Campinas, 1995; DAOLIO, J. Educação Física Brasileira: autores e atores da década de 1980. Campinas: Papirus, 1998; DAOLIO, J. Educação Física e o conceito de cultura. Campinas: Autores Associados, 2004. Suas incursões teóricas, por sua vez, se deram no terreno da Antropologia Social.

Por conta dessas questões objetivas e estruturais podemos pressupor que as condições sócio-acadêmicas de Daolio - a referida visibilidade de sua obra - ou de qualquer outro estudioso da área em relação a alguém que não é formado e titulado em Educação Física se estabelece na medida em que, a legitimação de um autor e a conseqüente recepção de sua obra no interior de determinado campo de produção científica se deve, impreterivelmente, ao fato do mesmo ter sido gerado enquanto pesquisador dentro desse espaço, com predisposição a incorporar as referências estruturais ali em vigência, ou melhor, como um agente que trás impresso no corpo as condições sociais do campo e, dessa forma, pode antecipar algumas tendências.

Em contrapartida, também existe a possibilidade de pesquisadores conseguirem obter prestígio fora de seu campo de formação e, dentre outros fatores, por conta de sua competência técnica e autonomia intelectual. Sem dúvida, esse é o típico caso protagonizado por Hugo Lovisolo no subcampo de estudos sócio-culturais em Educação Física no Brasil. Cabe notarmos, que nesse percurso interdisciplinar, a publicação de livros como "Educação Física: arte da mediação" (LOVISOLO, 1995) e "Estética, Esporte e Educação Física" (LOVISOLO, 1997), conferiu também ao autor determinada visibilidade e vantagem no campo de recepção de sua obra, de modo, inclusive, a se consagrar como um dos principais pensadores contemporâneos da Educação Física no Brasil.

Acresça-se ainda a essa análise, a relevância e originalidade de alguns estudos pertinentes à temática da Educação Física, do esporte ou então do lazer que foram produzidos sob a orientação e supervisão de Lovisolo. A saber, a dinâmica das orientações e a solidariedade teórico-metodológica estabelecida entre orientador e orientandos é uma coisa demasiado importante para ser deixada no obscurantismo. Adiantamos que essas relações se constroem enquanto tais na medida em que possibilitam, ou então, favorecem a reprodução dos habitus e práticas científicas, as quais, sem dúvida, estão diretamente interligadas à construção e imposição de uma hierarquia social dos objetos de pesquisa legítimos e ilegítimos no campo acadêmico da Educação Física no Brasil.

Não é o caso de arrazoar se a natureza desses ajustes é boa ou ruim, mas entender que se trata de um processo construído nas redes de interdependências e inter-relações sócio-acadêmicas - um processo resultante das tendências de especialização e materialização quantitativa do conhecimento no interior dos campos de produção e circulação dos bens científicos; um processo que, enfim, possibilita a determinadas correntes, paradigmas e teorias se legitimarem em detrimento de outras.

Nesse "jogo" de cumplicidades, ocorre também de ensejos dos orientadores passarem a fazer parte da realidade social constitutiva da vida acadêmica dos orientandos, o que, por sua vez, talvez seja o indício da construção de um habitus acadêmico adquirido estruturalmente e em relação às demandas de determinado campo de produção científica. Nesse propósito, é perfeitamente elucidativo o fato do habitus se definir como um programa de percepção e organização da ação que conforma esquemas de aprendizagem e de construção da realidade social. Talvez, também seja por isso que na análise sociológica bourdieusiana se enfatiza a importância de estudar a estruturação do habitus através das instituições de socialização dos agentes (ORTIZ, 2002, p.160-161).

Por conta dessa leitura, podemos dizer que o texto de Daolio intitulado "Antropologia, cultura e Educação Física escolar: considerações a respeito do artigo de Moura e Lovisolo", recebido pela RBCE em 21 de janeiro de 2009, aceito em 30 de junho de 2009 e publicado no volume 31 da revista, número 01, em setembro do mesmo ano, para além de marcar apenas sua posição de "resposta" aos autores ou então caracterizar uma oportunidade de "revisão" de seu trabalho, reflete e evidencia a preocupação em demarcar a posição de um grupo de pesquisa e de orientandos, a saber, o GEPEFIC - Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Física e Cultura da Universidade Estadual de Campinas. A primeira nota de rodapé do texto inserida na página 137, muito mais que um mero agradecimento de Daolio aos seus orientandos, talvez ilustre esse uso social que é feito, consciente ou inconscientemente, dos espaços editoriais.

Quanto à idéia da visibilidade da obra de Daolio utilizada por Moura e Lovisolo para justificar o motivo de seu texto, cremos que aceitar somente a mesma nos leva a invisibilidade das relações objetivas que, de fato, se materializaram ou vieram a se materializar por conta da circulação do referido artigo no subcampo de produção sócio-cultural em Educação Física no Brasil. Isso, por sua vez, não implica em negarmos que a obra de Daolio tem a sua visibilidade, como ele mesmo reconhece ao respaldar-se na justificativa de Moura e Lovisolo:

De qualquer forma, como afirmei, sinto-me honrado e gratificado pela repercussão de minha obra e pelo fato de essa visibilidade suscitar textos e debates como este. [...] Se fui mais lido e minha produção obteve maior visibilidade que a de outros estudiosos, trata-se menos de mérito pessoal do que da demanda da área pelo conteúdo que produzi (DAOLIO, 2009, p. 181).

Não obstante, devemos transcender o pressuposto da visibilidade da obra de Daolio, lançado e legitimado em ambos os textos. Essa postura, por conseguinte, implica em colocar em funcionamento a prática daquilo que Bourdieu, Chamboredon e Passeron, (1999) chamaram de "vigilância epistemológica" e que, em termos bem sintéticos, se trata de um exercício de ruptura com aquelas prenoções, ou melhor, pré-construções que organizam o mundo social e de forma questionável, conduzem os pesquisadores a tomarem determinadas evidências como realidades absolutas.

Dito de outro modo, o que devemos em última instância fazer é procurar pistas e explicações que dão conta de elucidar sociologicamente, para além das impressões dos agentes, o que de tão importante e específico está em "jogo" nos campos e subcampos acadêmicos, a ponto inclusive de se exteriorizar práticas objetivas que denotam estratégias de disputas pelo monopólio da autoridade, da palavra de ordem ou da competência legítima para realizar as "devidas aproximações" entre a Educação Física escolar e a Antropologia Social.

Na esteira dessa análise, devemos ressaltar ainda que o subcampo de produção sócio-cultural em Educação Física no Brasil reserva como homologia estrutural de funcionamento, a propósito dos demais subcampos e campos acadêmicos, o fato de se tratar de um espaço onde bens simbólicos e materiais estão constantemente em disputa. A seguinte passagem é ilustrativa disso:

A pior coisa que pode acontecer para uma produção acadêmica (seja um artigo, uma tese, um livro ou o conjunto dela) é não ser notada. De fato, no mundo acadêmico a intenção de todo autor é instigar a discussão na área de conhecimento da qual é integrante, lançar novas interpretações ou proposições, sabendo que, na dinâmica da ciência, as idéias são sempre provisórias, transitórias, por vezes ilusórias (DAOLIO, 2009, p. 190).

Não ter sua obra notada e reconhecida, é claro, não deve ser o que um pesquisador depois de árduos anos de trabalho, talvez décadas, espere como retorno. Embora essa afirmação não seja totalmente destituída de sentido e cabimento, ela, muitas vezes, acaba sendo perigosa por mascarar o fato de que o reconhecimento de uma produção, ou melhor, de um autor não se estabelece apenas em função do seu mérito, mas impreterivelmente, por mostrar que a sua produção, apropriação, inserção teórica é, ou pode ser, de maior notoriedade que a de seus pares.

Um pouco do que até aqui vimos sobre a aparente "indisposição teórica" protagonizada entre, de um lado, Diego Luz Moura e seu orientador Hugo Rodolfo Lovisolo e, de outro, Jocimar Daolio, pode ser explicada à luz desse último argumento. A propósito, é imperativo lembrarmos que situações de "concorrência" (no sentido bourdieusiano do termo) do tipo que visualizamos, se constroem no interior dos mais diversos campos de produção científica, o que, conseqüentemente, não implica em considerar que os agentes envolvidos no processo sejam necessariamente bons, maus ou então calculadores "frios" e "racionais", para emprestar os termos de Bourdieu.

Todavia, devemos lembrar que quando os agentes sociais tendem a apresentar manifestações de apropriação teórica dentro de um campo ou subcampo, a estratégia de sedimentar seu terreno mostrando que o do outro talvez não seja tão consistente e sólido tem se mostrado prática comum. Muitas vezes, não é nem o caso de comprovar que o terreno do outro seja, de fato, inconsistente, mas induzir ao efeito de que sua interpretação, sobre o "alicerce teórico" que sustenta o terreno do pesquisador em concorrência, possa, no mínimo, colocar em xeque a legitimidade da apropriação teórica e da metodologia de trabalho por ele utilizada.

Quanto ao texto-resposta de Daolio entendemos que o mesmo se trata de uma iniciativa acadêmica quase que esperada, afinal achamos muito improvável que alguém se sinta confortável e permaneça inerte ao ler um artigo associando sua própria obra a termos como "lacunas", "limites", "falta de refinamento", "criação de rótulos e fantasmas", "inconsistências", "afirmação de lugares comuns", "descrições fracas ou magras", "atitude pouco sólida".

Não obstante, as aspirações de Daolio em seu artigo, objetivamente falando, transcendem ao caráter de "resposta" e "revisão" anunciada no início do mesmo. Mais precisamente, seu texto produz um efeito social de neutralizar certo ou pretenso desequilíbrio de forças aparentemente instaurado pela publicação do artigo de Moura e Lovisolo e, além disso, procura reafirmar sua competência e visibilidade dentro do subcampo de produção sócio-cultural em Educação Física no Brasil, o que, afinal, é perfeitamente compreensível.

Considerações para o fechamento

A função de uma Sociologia da Ciência ou de uma sociologia da produção científica não é se constituir em árbitro ou juiz das relações sociais que asseguram e prescrevem a circulação dos bens científicos e culturais. O propósito de uma sociologia reflexiva e rigorosa da ciência é triplo: (1) entender o que faz com que as pessoas não possam compreender certas coisas, colocar certos problemas, determinar quais são as condições sociais do erro (BOURDIEU, 1983); (2) estruturar um quadro de referências sociais que não desarticule a produção científica do campo de relações acadêmico-científicas a que pertencem seus produtores (BOURDIEU, 2007b); e (3) desmistificar as crenças partilhadas cientificamente sobre as condições sócio-acadêmicas que conduzem um agente a escolher determinado objeto de pesquisa e não outro, a produzir um texto de cunho objetivista ou subjetivista, a escolher a revista "x" para publicar seu texto e não a "y", dentre outras circunstâncias.

No presente artigo, procuramos, dentro da delimitação científica apresentada, demonstrar como tais objetivos inerentes à Sociologia da Ciência de Pierre Bourdieu podem ser úteis no sentido de ampliar as frentes de apreciação para problematizar a produção de conhecimento na área e, além disso, fornecer um instrumento de incursão científica no subcampo acadêmico dos estudos sócio-culturais em Educação Física no Brasil. Para tanto, pautamos nossa abordagem em um exemplo empírico bem pontual, de modo a demonstrar que por detrás da "rotina de publicações" talvez existam condições sócio-acadêmicas objetivas sustentando a construção de um "habitus editorial" das mesmas e, além disso, refletindo a posição que os produtores ocupam no subcampo ou pretendem, impreterivelmente, ocupar.

Cabe também aqui reiterarmos que nosso objetivo, de modo algum, foi polarizar as relações entre os referidos agentes no subcampo de produção sócio-cultural em Educação Física, nem tampouco, questionar a qualidade e a consistência de suas produções científicas, ou ainda, tomar partido frente aos posicionamentos apresentados. Nosso intuito também não foi o de nos apropriarmos da "régua teórica bourdieusiana" para ajuizar sobre as relações contempladas, ou então estruturar um discurso determinista sobre as inter-relações sociais visualizadas no interior do universo empírico delimitado.

Nosso objetivo foi teórico-prático. De um lado, procuramos apresentar uma agenda de pesquisa sociológica sobre condições sócio-acadêmicas inerentes à produção de conhecimento no campo acadêmico da Educação Física, e que, inclusive, não se resume às questões levantadas e nem muito menos se esgota no itinerário aqui percorrido. De outro, procuramos fornecer subsídios para o entendimento de leis universais e específicas de funcionamento dos campos, as quais talvez sustentem a reprodução de uma estrutura objetiva especialmente presente no campo acadêmico da Educação Física no Brasil.

Recebido em: 6 de abril de 2010.

Aceito em: 13 de abril de 2011

Agradecemos sobremaneira a leitura criteriosa, as correções e sugestões da Profª Dra. Cristina Carta Cardoso de Medeiros do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal do Paraná.

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  • Endereço para correspondência:
    Juliano de Souza
    Rua Coronel Carlos Bardelli, 183
    Cajuru Curitiba PR Brasil 82940-340
    Telefone: (41) 3082.1747
    e-mail:
  • 1
    A propósito, para uma discussão mais aprofundada sobre as contribuições do pensamento de Lovisolo para o campo acadêmico da Educação Física no Brasil, ver:
    MOURA, D. L. O olhar do antropólogo: o impacto de Lovisolo na Educação Física brasileira. In: VOTRE, S.; SOARES, A. J. G.; MOREL, M.; ROSA, A.; (orgs.).
    Mediação das ciências sociais com a Educação Física: A contribuição de Hugo Lovisolo. Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2009, pp. 45-54.
  • 2
    Essa menção ao trabalho de especialização de Moura, assim como às demais informações curriculares referentes à área de formação e aos interesses de pesquisa dos três autores em questão no artigo, foi fundamentada a partir da consulta que fizemos em seus currículos lattes disponibilizados na Plataforma Lattes/ CNPq.
  • 3
    Para uma discussão mais aprofundada sobre sua abordagem antropológica e plural de Daolio, ver:
    DAOLIO, J. Da
    Cultura do Corpo. Papirus: Campinas, 1995;
    DAOLIO, J.
    Educação Física Brasileira: autores e atores da década de 1980. Campinas: Papirus, 1998;
    DAOLIO, J.
    Educação Física e o conceito de cultura. Campinas: Autores Associados, 2004.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Aceito
      13 Abr 2011
    • Recebido
      06 Abr 2010
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