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EDUCANDO O CORPO DESVALIDO: A EDUCAÇÃO FÍSICA NA HISTÓRIA DA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE DE CRIANÇAS E JOVENS BRASILEIROS

EDUCATING THE HELPLESS BODY: PHYSICAL EDUCATION IN THE HISTORY OF DEPRIVATION OF LIBERTY FOR BRAZILIAN CHILDREN AND YOUTH

EDUCANDO EL CUERPO DESVALIDO: EDUCACIÓN FÍSICA EN LA HISTORIA DE LA PRIVACIÓN DE LIBERTAD DE NIÑOS Y JÓVENES BRASILEÑOS

Resumo

O presente estudo tem como objetivo apresentar o processo histórico acerca da constituição da Educação Física em instituições de privação de liberdade para crianças e jovens no estado de São Paulo. Os dados, coletados por meio de revisão bibliográfica em pesquisa de mestrado realizada de 2016 a 2018, apresentam uma análise da presença da Educação Física nestas instituições desde o final do século XIX, bem como dos pressupostos que a sustentam atualmente. Aponta-se que a Educação Física nestes estabelecimentos se constituiu sobre os mesmos pressupostos que a legitimaram em estabelecimentos escolares: o movimento higienista e o ideal de sociedade moderna. Como nas escolas, a Educação Física na privação de liberdade se consolidou através de práticas ginásticas, tendo, posteriormente, encontrado no esporte o meio pelo qual “poderia” contornar a delinquência juvenil.

Palavras chave:
Educação Física; Esportes; Privação de liberdade; Criança; Adolescente

Abstract

This study presents the history the establishment of Physical Education at institutions enforcing deprivation of liberty for children and youth in the state of São Paulo. Data were collected through bibliographical review during research for a master’s degree from 2016 to 2018. An analysis of the presence of Physical Education in those institutions since the end of the Nineteenth Century is presented, together with the assumptions that support it today. Physical Education was established in those establishments on the same assumptions that legitimized it in schools: the hygienist movement and the ideal of modern society. In a similar process to that of schools, Physical Education under deprivation of liberty was consolidated through gymnastics practices, having later found sports as the means by which it ‘could’ circumvent juvenile delinquency.

Keywords:
Physical Education; Sports; Deprivation of liberty; Children; Adolescent

Resumen

El presente estudio tiene por objetivo presentar el proceso histórico acerca de la constitución de la Educación Física en instituciones de privación de libertad para niños y jóvenes en el estado de São Paulo. Los datos, recogidos a través de revisión bibliográfica en investigación de Maestría realizada de 2016 a 2018, presentan un análisis de la presencia de la Educación Física en estas instituciones desde fines del siglo XIX, así como de los presupuestos que la sostienen actualmente. Se indica que la Educación Física en estos establecimientos se constituyó sobre los mismos presupuestos que la legitimaron en establecimientos escolares: el movimiento higienista y el ideal de sociedad moderna. Como en las escuelas, la Educación Física en la privación de libertad se consolidó a través de prácticas gimnásticas, habiendo encontrado, posteriormente, en el deporte el medio por el cual “podría” eludir la delincuencia juvenil.

Palabras clave:
Educación Física; Deportes; Privación de libertad; Niño; Adolescente

1 INTRODUÇÃO

Observa-se, em produções no campo da Educação Física, uma absoluta predominância sobre sua historiografia nos espaços escolares. A partir disso, este estudo apresenta indícios de que a Educação Física também se consolidou, por meio da ginástica, em instituições que privaram a liberdade de menores1 1 Segundo Bretan (2014), o termo simbolizou a inferioridade das camadas mais pobres e a legitimação do recolhimento de crianças e jovens do poder familiar pelo fato de considerá-los potenciais perigosos: “[…] além de perigoso, por fim, esse menor é pobre. As elites resolvem seus casos em instâncias informais e não segregadoras; a justiça é reservada para os meninos de famílias pobres” (BRETAN, 2014, p. 51, grifo do original). Ou seja, eram os menores os considerados perigosos pela sociedade brasileira e que eram recolhidos por estabelecimentos correcionais. brasileiros. Referidos indícios são discutidos através de dados coletados em pesquisa de mestrado realizada no período de 2016 a 2018 (SOUZA, 2018).

A presença da Educação Física em instituições tidas como correcionais foi fruto de um movimento que existiu no final do século XIX e início do século XX. Os hábitos proclamados pelo movimento higienista por meio de exercícios físicos visavam à regeneração da sociedade. Soares (2003SOARES, Carmem Lucia. Do corpo, da Educação Física e das muitas histórias. Movimento, v. 9, n. 3, p. 125-147, set./dez. 2003.; 2004; 2008), Góis Junior (2000; 2003; 2008) e Paiva (2003PAIVA, Fernanda Simone Lopes de. Sobre o pensamento médico-higienista oitocentista e a escolarização: condições de possibilidade para o engendramento do campo da educação física no Brasil. 2003. 452 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.; 2004) sinalizam que o processo de instituição da Educação Física no Brasil atrelou-se à ideia de desenvolvimento econômico e industrial da sociedade moderna, em que era necessário governar os modos de ser (individual e coletivo) em prol de um objetivo comum. Essa visão se concretizou através de saberes que legitimaram os exercícios físicos como aqueles que preparariam a população para esta nova configuração social.

É preciso refletir sobre essa regeneração social, pois ela se deu em espaços diferentes, e destinou-se a crianças e jovens diferentes, de modos distintos. Enquanto a historiografia da Educação Física aponta para o espaço escolar como o local onde as transformações pretendidas na sociedade deveriam ocorrer, a regeneração da população brasileira infantil e jovem considerada desvalida passou por Institutos Disciplinares e Colônias Correcionais.

Rizzini e Gondra (2014RIZZINI, Irma; GONDRA, José Gonçalves. Higiene, topologia da infância e institucionalização da criança pobre no Brasil (1875-1899). Revista Brasileira de Educação, v. 19, n. 58, p. 561-584, jul./set. 2014.) analisam as marcas dos discursos higienistas nos casos de dois internatos para menores desvalidos no Rio de Janeiro, compreendidos no período de 1875 a 1899. Com o intuito de regenerar os “menores” (ou possíveis “delinquentes”) através da educação moral, intelectual e física, esses espaços eram “[…] estabelecimentos construídos para modelar a criança pobre, para controlar os riscos e as virtualidades da ‘perigosa’ população de pequenos” (RIZZINI; GONDRA, 2010, p. 577, grifo do original). Embora não se trate dos Institutos Disciplinares e Colônias Correcionais, estes estudos trazem indícios da inserção da Educação Física no trabalho com crianças e jovens em regime de internação. Amparados nos preceitos higiênicos da época, tais instituições preparavam os menores para o trabalho agrícola:

As concepções de educação vigentes, atentas a uma ‘nova pedagogia’ e às contribuições da ciência, colaboraram na construção do projeto pedagógico do Asilo dos Meninos Desvalidos, a começar pela escolha do local, feita em absoluto respeito às prescrições higiênicas. O ideal de formação, ancorado nos preceitos higienistas, contemplava a educação física, intelectual e moral - aspectos complementares de uma educação integral. Tais preceitos, aplicados às ‘camadas inferiores’ da sociedade, traduziam-se no preparo intelectual prático, voltado para as necessidades do trabalho, no fortalecimento do corpo, por meio dos exercícios ginásticos e militares e da formação moral (RIZZINI; GONDRA, 2010, p. 570).

Vicente e Amaral (2010VICENTE, Magda de Abreu; AMARAL, Giana Lange. Medidas higienistas adotadas no patronato agrícola visconde da graça (1923-34) - Pelotas/RS. Revista Histedbr [on-line], n. 37, p. 123-133, mar. 2010. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/37/art09_37.pdf. Acesso em: 12 ab. 2019.
http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revist...
), ao analisarem o contexto do Patronato Agrícola (1923-1934) em Pelotas/RS, evidenciam a presença da ginástica como parte da rotina dos menores ali institucionalizados.

Lá estando tinham aulas de escoteirismo, tomavam banhos frios e tinham um cotidiano bem árduo, envolto entre os estudos, as aulas práticas de agricultura e as aulas das disciplinas regulares. Também praticavam aulas de Educação física, com base na ginástica sueca, prática rigorosa, embasada nos padrões eugenistas e ainda deveriam cumprir suas obrigações dentro dos dormitórios, mantendo-os limpos e asseados (VICENTE; AMARAL, 2010VICENTE, Magda de Abreu; AMARAL, Giana Lange. Medidas higienistas adotadas no patronato agrícola visconde da graça (1923-34) - Pelotas/RS. Revista Histedbr [on-line], n. 37, p. 123-133, mar. 2010. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/37/art09_37.pdf. Acesso em: 12 ab. 2019.
http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revist...
, p. 131).

Esses pensamentos se articulam com o histórico da Educação Física Escolar na medida em que, de igual modo, sua sistematização e consolidação enquanto campo de conhecimento no cenário brasileiro deu-se no final do século XIX e início do século XX, legitimadas pelas práticas de ginásticas e pelo discurso higienista. A partir de um poder disciplinar, a ginástica investiria diretamente sobre o corpo do indivíduo, preparando-o para o trabalho diante de um período de massiva industrialização e modernização da sociedade.

2 O MENOR E O DISCURSO DA GINÁSTICA

O discurso higienista, legitimado entre o final do século XIX e início do século XX, impõe à família brasileira a educação do físico, da moral, do intelecto e dos hábitos sexuais. Em um momento de grande expansão industrial, era a higiene que melhoraria os hábitos da população, garantindo o desenvolvimento da saúde da população e fortalecendo seus corpos, sendo a ginástica, oriunda da ciência europeia, apresentada como a arte de governar os corpos da população para atingir essa finalidade. Afinal, “[…] ela encarna e expressa os gestos automatizados, disciplinados, e se faz protagonista de um corpo ‘saudável’; torna-se receita e remédio para curar os homens de sua letargia, indolência, preguiça, imoralidade” (SOARES, 2004SOARES, Carmem Lucia. Educação física: raízes europeias e Brasil. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2004., p. 6) e, deve-se acrescentar, para curar “a delinquência”.

As ginásticas constituíram uma grande sistematização científica e pedagógica nessa empreitada de adestramento do corpo, de inscrição de novos gestos, de ‘qualificação’ do movimento e de governo da vontade, permitindo não só a visibilidade das performances corporais, mas também os efeitos dos exercícios sobre o corpo em sua totalidade ou em suas partes. A ginástica incrementa e melhora os índices dessa performance […] (SOARES, 2008SOARES, Carmem Lucia. Pedagogias do corpo: higiene, ginásticas, esporte. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo José. (org.). Figuras de Foucault. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 75-86., p. 78, grifo do original).

A presença da ginástica nas instituições que trabalhavam a “delinquência” infantojuvenil auxiliava no governo dos corpos daqueles que necessitavam de um esquadrinhamento condizente com o projeto de sociedade que se instalava na sociedade brasileira, especialmente no estado de São Paulo. Além dos exemplos trazidos, percebe-se, na legislação que institui os Institutos Disciplinares e as Colônias Correcionais, a qual perfil de público se dirige este trabalho. Ou seja, descreve-se quem é o menor que deve ser corrigido. É o que se observa nos trechos da Lei no 844, de 10 de outubro de 1902.

Artigo 1.º - Fica o Governo do Estado autorizado a fundar, onde julgar mais conveniente, um Instituto Disciplinar e uma Colonia Correcional, subordinados á Secretaria de Estado dos Negocios do Interior e da Justiça e sob immediata inspecção do chefe de polícia.

Artigo 2.º - O Instituto Disciplinar constará de duas secções destinadas a incutir hábitos de trabalho e a educar, fornecendo instrucção literária, profissional e industrial, de referencia agrícola:

a) a maiores de 9 annos e menores de 14, no caso do artigo 30, do Codigo Penal;

b) a maiores de 14 e menores de 21 annos, condemnados por infracção do artigo 399 do Codigo Penal e artigo 2.º da lei federal n. 145, de 11 de Julho de 1893;

c) a pequenos mendigos, vadios, viciosos, abandonados, maiores de 9 e menores de 14 annos [...] (SÃO PAULO, 1902a).

Note-se que os Institutos Disciplinares e as Colônias Correcionais destinaram-se a trabalhar com a infância e juventude pobre e marginalizada. No Decreto no 1.079, de 30 de dezembro de 1902, observa-se a inserção da ginástica como trato pedagógico na execução das práticas educativas, como alude o artigo 22: “[…] nos domingos e dias feriados, os menores farão exercícios militares, de gymnastica, de cantos coraes, e darão licções de musica vocal e instrumental” (SÃO PAULO, 1902b).

Os trechos das legislações mencionadas e os exemplos apresentados de instituições corretivas de diferentes estados (como no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul) demonstram que a Educação Física, idealizada pelos higienistas, exerceu-se por meio de métodos ginásticos. Tal afirmação é evidenciada em outros estudos, tais como o de Paiva (2004PAIVA, Fernanda Simone Lopes de. Notas para pensar a educação física a partir do conceito de campo. Perspectiva, v. 22, n. esp., p. 51-82, jul./dez. 2004.) ao se referir à constituição da Educação Física, nos espaços escolares, através da ginástica. Como uma técnica de controle, os exercícios físicos atuam no campo da governamentalidade2 2 “Por esta palavra ‘governamentalidade’ entendo o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança” (FOUCAULT, 2008, p. 143). que a escola propicia. “Temos, então, que a escolarização de uma ‘educação física’ não parece ser nem casualidade nem coincidência, mas um dos elementos que corroboram na [sic] construção de uma especificidade” (PAIVA, 2004PAIVA, Fernanda Simone Lopes de. Notas para pensar a educação física a partir do conceito de campo. Perspectiva, v. 22, n. esp., p. 51-82, jul./dez. 2004., p. 64).

Daí compreende-se que o pensamento que atravessa a escola também perpassa outras instituições, atuando, contudo, de modos diferentes sobre os corpos individuais e coletivos: para aquele que necessita de correção, a internação em estabelecimento disciplinar; para aquele que precisa de investimentos, a escola. Deste modo, as investigações sobre o tema apontam para um caminho conhecido e confortável na Educação Física: a transição da ginástica para a prática esportiva.

3 DO CONFLITO COM A SOCIEDADE AO CONFLITO COM A LEI: O ESPORTE COMO MECANISMO REGULATÓRIO

Além de a ginástica ter influenciado diretamente a constituição da Educação Física, Paiva (2003PAIVA, Fernanda Simone Lopes de. Sobre o pensamento médico-higienista oitocentista e a escolarização: condições de possibilidade para o engendramento do campo da educação física no Brasil. 2003. 452 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.) sinaliza que a inserção de práticas esportivas foi a grande propulsora de novas alterações no cenário da constituição deste campo de conhecimento. Nos dizeres de Soares (2008SOARES, Carmem Lucia. Pedagogias do corpo: higiene, ginásticas, esporte. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo José. (org.). Figuras de Foucault. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 75-86., p. 80, grifo do original), “[…] há algo que as ginásticas não possuem e que será suprido por outra pedagogia que a ela vai associar-se; trata-se do esporte, grande modelo de treino do corpo e de visibilidade das performances […] uma pedagogia higiênica do espetáculo do corpo”.

Se, por um lado, a rígida disciplina ginástica não emplaca nas escolas e fora delas […], o esporte vai se apresentando como uma das vias dessa construção. Aparentando ser algo mais espontâneo, vivificante e moderno […] É ele que parece melhor congregar jovens, adultos, famílias em seu tempo livre, sendo desfrutado não só como prática ‘física’ mas, também, ‘visual’ (PAIVA, 2003PAIVA, Fernanda Simone Lopes de. Sobre o pensamento médico-higienista oitocentista e a escolarização: condições de possibilidade para o engendramento do campo da educação física no Brasil. 2003. 452 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003., p. 75).

Porquanto, o esporte é a própria lei que rege a sociedade moderna que, por sua vez, se fortalece no Brasil. “Construído na dinâmica própria da sociedade industrial, o esporte encarna e expressa não só comportamentos desejados, mas também se revela como divertimento consentido, aprovado e estimulado pelo poder” (SOARES, 2008SOARES, Carmem Lucia. Pedagogias do corpo: higiene, ginásticas, esporte. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo José. (org.). Figuras de Foucault. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 75-86., p. 81, grifo do original). Trata-se da representação pura da competição, do rendimento, da persistência, do treinamento (e aperfeiçoamento), e desenvolve-se a partir da “[…] lógica solitária da performance, lógica do excesso, do trabalho intermitente sobre o funcionamento do corpo e o seu uso sempre extremo” (SOARES, 2008, p. 83). Não à toa, o esporte passa a ser elemento privilegiado na rotina dos estabelecimentos disciplinares e correcionais, como a Febem3 3 Antiga nomenclatura, foi sigla para denominar, no Brasil, a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor. e, posteriormente, como pedagogia das práticas corporais existentes no cumprimento de medidas socioeducativas na Fundação Casa.4 4 Nome atual para designar o Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente.

Nesta perspectiva, Andrade (1997ANDRADE, Marcelo Pereira de. Educação física na fundação estadual do bem-estar do menor - FEBEM/SP: uma análise da proposta de 1992 a 1994 segundo o os discursos dos professores. 1997. 129 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.) analisou as propostas pedagógicas da Educação Física na Febem no período de 1992 a 1994. Seu estudo apontou que tais práticas se constituíram através de um projeto que visava ao rendimento esportivo dos jovens e a seleção de possíveis talentos. Segundo o autor, existiam escolas de esporte, principalmente de atletismo e futebol, compreendidas como uma saída possível para as especificidades institucionais. Em suas palavras,

[…] apesar da obrigatoriedade da educação física em instituições educacionais, em São Paulo, [a disciplina] somente foi implantada em 1974, com as contratações dos professores na Fundação Pró-Menor. Antes deste período, as atividades físicas e esportivas eram desenvolvidas por funcionários e policiais militares interessados em esporte. […] O esporte era o principal objetivo dos professores de educação física neste período. Em 1977, foi elaborado, paralelamente ao desenvolvimento esportivo, um plano de atuação denominado educação física infantil, que tinha como objetivo suprir as necessidades físicas, melhoria da saúde e sociabilização das crianças internadas (ANDRADE, 1997ANDRADE, Marcelo Pereira de. Educação física na fundação estadual do bem-estar do menor - FEBEM/SP: uma análise da proposta de 1992 a 1994 segundo o os discursos dos professores. 1997. 129 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997., p. 38).

Além de a ginástica ter influenciado diretamente a instituição da Educação Física nesses espaços, verifica-se que as análises de Paiva (2003PAIVA, Fernanda Simone Lopes de. Sobre o pensamento médico-higienista oitocentista e a escolarização: condições de possibilidade para o engendramento do campo da educação física no Brasil. 2003. 452 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.) se articulam com os estudos de Andrade (1997ANDRADE, Marcelo Pereira de. Educação física na fundação estadual do bem-estar do menor - FEBEM/SP: uma análise da proposta de 1992 a 1994 segundo o os discursos dos professores. 1997. 129 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.) quando este sinaliza a inserção das práticas esportivas no cotidiano dos estabelecimentos de internação dos menores. Nesse contexto, além de servir de ferramenta midiática, Andrade (1997) aponta que o esporte serviu à instituição como um importante meio para conformar a criança ou o jovem à privação de liberdade. Essa concepção, segundo o autor, fertilizou-se também na política de treinamento esportivo e de formação motora, criada e organizada pela Febem.

As análises realizadas por Andrade (1997ANDRADE, Marcelo Pereira de. Educação física na fundação estadual do bem-estar do menor - FEBEM/SP: uma análise da proposta de 1992 a 1994 segundo o os discursos dos professores. 1997. 129 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.) acerca das reformulações nas propostas da Educação Física na Febem compreendem o período pós-promulgação da Lei do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Isso significa que, a partir dessa legislação, as instituições que trabalhavam com crianças e adolescentes passaram a reorganizar sua política de atendimento, a fim de atender às novas prerrogativas. Importante observar, pois, que o ECA marca a passagem da situação irregular - caracterizada pelo perfil daqueles que eram institucionalizados em tais estabelecimentos (crianças e adolescentes pobres, marginalizados e que conviviam nas ruas) - para a doutrina da proteção integral. Essa alteração define a aplicabilidade da internação somente para adolescentes, desde que autores de atos infracionais. Asseguram-se, a partir daí, as prerrogativas ao direito ao processo legal, denominando tais políticas de medidas socioeducativas e estabelecendo uma série de princípios e diretrizes às quais o estado deve se atentar (BRASIL, 1990).

Nesse cenário, Andrade (1997ANDRADE, Marcelo Pereira de. Educação física na fundação estadual do bem-estar do menor - FEBEM/SP: uma análise da proposta de 1992 a 1994 segundo o os discursos dos professores. 1997. 129 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997., p. 42) informa que “[…] em 1993, foram feitas alterações na proposta da educação física surgindo dois tipos de atendimento, os quais deveriam ser coordenados por dois núcleos: Núcleo de Vivência Motora - NVM e o Núcleo de Aprendizagem Desportiva - NAD”. Segundo o autor, o chamado NVM estava atrelado ao fazer esportivo, pois era nele que os jovens aprendiam as diversas modalidades, tais como voleibol, handebol, basquetebol e atletismo, sendo que os que se apresentassem mais aptos eram encaminhados às equipes de treinamento. No que diz respeito ao NAD, “[…] estava previsto para o ano de 1993 as seguintes escolas de treinamento: de atletismo, basquetebol, voleibol, futebol, natação” (ANDRADE, 1997ANDRADE, Marcelo Pereira de. Educação física na fundação estadual do bem-estar do menor - FEBEM/SP: uma análise da proposta de 1992 a 1994 segundo o os discursos dos professores. 1997. 129 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997., p. 45).

Mata (2004MATA, Cristina Silva da. Um relato de experiência em educação física na FEBEM-SP: outros olhares. 2004. 94 f. Monografia (Graduação em Educação Física) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.) parte de sua prática como professora de Educação Física em uma unidade da antiga Febem em 2003 para refletir a respeito de suas experiências. Em diversos momentos a autora relata que as preocupações em relação à área estavam, sumariamente, focadas na prática esportiva. Segundo a autora, os investimentos na qualificação profissional ocorriam por meio de “[…] cursos com temas em treinamento esportivo, organizado pela supervisão esportiva da FEBEM” (MATA, 2004MATA, Cristina Silva da. Um relato de experiência em educação física na FEBEM-SP: outros olhares. 2004. 94 f. Monografia (Graduação em Educação Física) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004., p. 33). Assim, embora a instituição tenha alcançado positivas mudanças,5 5 Em 2006, a Febem tornou-se Fundação Casa, adequando procedimentos, diretrizes e criando um processo de descentralização pelo estado de São Paulo, a fim de construir novas unidades e, assim, reduzir a superlotação daquelas situadas na capital paulista, bem como minimizar o número de rebeliões. quando esta deixa de ser Febem para se transformar em Fundação Casa, em 2006, vê-se a manutenção e a supervalorização das práticas esportivas em detrimento das demais práticas corporais.

3.1 O “PROGRESSISMO” PEDAGÓGICO E A INÉRCIA ESPORTIVISTA

Diante de um novo cenário de reformulações nas propostas da instituição e do atendimento realizado, tem-se, a partir de 2006, a necessidade de atender às prerrogativas do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, o Sinase (BRASIL, 2012). Assim, no ano de 2010, a Fundação Casa conclamou um novo delineamento de sua proposta pedagógica, a ser realizada nos Centros de Atendimento Socioeducativos no estado de São Paulo, reformulando, inclusive, as antigas políticas de atendimento em Educação Física.

Essas diretrizes classificam a Educação Física no âmbito da educação não escolar, como uma disciplina que compõe a Educação, devendo assumir a tarefa de “[…] introduzir e integrar o aluno na cultura corporal de movimento, formando o cidadão que vai produzi-la, reproduzi-la e transformá-la” (SÃO PAULO, 2010, p. 42). Além disso, ela

[…] deve estar voltada para a construção da cidadania dos adolescentes, formando pessoas críticas e participativas no meio social em que estão inseridos. Seu objetivo principal deve ser de que o adolescente ‘adquira a qualificação sócio-histórico-cultural necessária para promover o desenvolvimento de uma racionalidade crítica, autônoma e participativa’ (SÃO PAULO, 2010, p. 42).

Percebe-se, assim, uma aproximação da proposta pedagógica da Fundação Casa às discussões realizadas cientificamente na área do conhecimento da Educação Física. Porém, convém ressaltar que essas mudanças acompanham, ainda que distantemente, as discussões que ocorrem no interior do campo do saber. Nota-se que este movimento se articula ao processo que se iniciou, a partir de 1980, na Educação Física Escolar, e que rompia com o pensamento mecanicista de corpo, superando a ideia de um homem-motor e introduzindo a reflexão sobre um corpo cultural. Sem dúvida, um movimento importante na Educação Física brasileira que revela novas expectativas a respeito da atuação do profissional na educação, pois se almeja que a

educação física pense o mundo, o homem e a organização social a partir de uma nova perspectiva, mais ampla, menos fragmentada. Essa perspectiva supera a visão do homem-motor e pensa o homem a partir da sua construção histórico-cultural (TABORDA DE OLIVEIRA, 1998, p. 10, grifo do original).

Porém, é preciso ponderar que a proposta de Educação Física da Fundação Casa, independentemente do eventual caráter humanista ou progressista que se apresenta em alguns momentos, advém, no limite, da idealização do sujeito moderno (autônomo, participativo, desenvolvido plenamente nos aspectos motores, cognitivos, afetivos e sociais). Além do cenário se configurar em torno de uma educação voltada e influenciada pelos pressupostos da sociedade moderna, ainda é possível encontrar um contexto de contradições. Ao analisar as considerações a respeito da visão da Educação Física da Fundação Casa, percebe-se que elas buscam uma aproximação às tendências críticas da área, mas que, no entanto, se deparam com um caminho diverso. Ao citar que a meta da Gerência de Educação Física e Esportes é “[…] trabalhar o ‘fazer esportivo’ ‘como ferramenta educacional, onde o ‘como’ fazer deve estar atrelado ao ‘por que’ fazer” (SÃO PAULO, 2010, p. 129, grifos do original), nota-se, mais uma vez, o viés voltado ao esporte. Essa visão não apenas se contradiz em relação à perspectiva da cultura corporal, mas também reforça aquilo que a instituição, há mais de um século, tem produzido nas suas práticas pedagógicas em Educação Física.

A aproximação teórica ao campo da Educação Física crítica e, ao mesmo tempo, a manutenção de práticas arraigadas nos pressupostos esportivos revelam confusões - presentes, inclusive, nos documentos orientadores da instituição.

Isto é facilmente percebido quando se observa a forma de se avaliar os indivíduos em Educação Física. Até o ano de 2015, as avaliações se deram por meio de um instrumental denominado “avaliação em psicomotricidade”, cujo objetivo era medir e aferir as condições dos jovens no que tange ao movimento, ao intelecto e ao afetivo. Ao que cabe este procedimento, a instituição revela que a

[…] avaliação na área de educação física e Esporte coletará informações pertinentes do nível de desenvolvimento neuropsicomotor do adolescente, e por meio do profissional da área poderá elaborar um programa de atividades que atenderá as necessidades deste adolescente (SÃO PAULO, 2010, p. 131).

Essa avaliação revela o interesse em analisar as capacidades físicas, a maturação biológica e a capacidade de concentração dos jovens, indo de encontro às ideias de uma Educação Física que se preocupa com os aspectos culturais, sociais e históricos das práticas corporais. Na abordagem psicomotora, “[…] o movimento é mero instrumento, não sendo as formas do movimentar-se humano consideradas um saber a ser transmitido” (BRACHT, 1999BRACHT, Valter. A constituição das teorias pedagógicas da educação física. Cadernos Cedes, ano XIX, n. 48, p. 69-88, ago. 1999., p. 79). Isto é, a Educação Física perde sua finalidade e serve de apoio para o desenvolvimento de outras habilidades consideradas necessárias. Essa abordagem entende o corpo como aparato biológico e a mente como local onde o pensamento se desenvolve, desconsiderando a ideia de um ser total, indivisível. Cabe destacar, ainda, que essa avalição mais se assemelha a uma avaliação de capacidades físicas do que, propriamente, a uma avalição psicomotora defendida por Le Boulch (1982), um dos referenciais mais utilizados sobre o tema na Educação Física.

Ainda nessa perspectiva, a partir de 2015 há uma nova reorganização na Educação Física da instituição, especialmente no que tange ao seu modelo de avaliação. Um novo documento, intitulado Avaliação diagnóstica em Educação Física e publicado no mesmo ano preconiza, já em seu prefácio, que

[…] é preciso compreender essa área de atuação [Educação Física] na sua multiplicidade de ação, atuando na formação motora inicial, na formação esportiva básica, na formação de esporte competição e na recreação. As várias intervenções trazem um eixo comum que é o prazer pela prática corporal, que seja o seu objetivo final. Esse é o papel da atividade física a ser desenvolvida na Fundação Casa, o de garantir acesso a diferentes práticas corporais organizadas que traduzam direitos individuais e das possibilidades coletivas, sempre vinculada ao objetivo maior da formação educacional dos jovens (SÃO PAULO, 2015, p. 3).

Nesse trecho, percebe-se a grande importância dada às atividades físicas, às práticas esportivas e à formação motora no âmbito da Educação Física. Essa concepção entra, novamente, em conflito com as proposições trazidas em 2010 e que ainda vigoram na política pública da instituição enquanto diretrizes pedagógicas da Educação Física. Entre o que se propõe como prática pedagógica e o que se avalia, resulta no que se pode chamar de miscelânea na construção teórica da proposta pedagógica da Educação Física na instituição. Ao que parece, trata-se de uma (nada ingênua) persistência pedagógica em algo que, se não fosse considerado importante, não implicaria em uma política pública a nível estadual.

3.2 CORREÇÃO DA DELINQUÊNCIA PELO ESPORTE

Para além daquilo que a própria instituição produziu enquanto prática pedagógica em anos de existência, o esporte aparece, também, como um elemento capaz de minimizar as chances/prevenir o jovem de entrar em conflito com a lei. O predomínio do esporte está amplamente ligado ao modelo de sociedade atual e de sujeito que se precisa formar para mantê-la vigente. “[…] Por sua peculiaridade de atividade física regrada por regulamentos, especialização de papéis, competição, meritocracia - e por apresentar condições para medir, quantificar e comparar resultados - o esporte torna-se o melhor meio de preparar o homem” (NUNES; RUBIO, 2008NUNES, Mário Luiz Ferrari; RUBIO, Kátia. Os currículos da educação física e a constituição da identidade de seus sujeitos. Currículo sem Fronteiras, v. 8, n. 2, p. 55-77, jul./dez. 2008., p. 61).

Assim, ao falar de jovens autores de atos infracionais, trata-se daqueles que transgrediram normas. Embora vivam regidos por outros códigos normativos, ao infringir a lei, esses jovens resistem à lógica estatal e, por serem corpos fugidios, necessitam de constantes intervenções para serem normalizados. Desse modo, o esporte atua como uma ferramenta de homogeneização, aliado na busca da formação de um jovem que segue regras na lógica da moral - que respeita o próximo, aprende a perder e a vencer com os próprios esforços. Sob o manto da manutenção dos corpos saudáveis e do aprendizado social, a redução da Educação Física à prática esportiva, independente de seus objetivos, há muito vem sendo questionada por teóricos da área. Se o esporte está inserido num contexto educativo, ele faz parte de seu microtexto curricular: “[…] independente de seus objetivos, significa dizer que ele está implicado com formas de regular e governar os sujeitos da educação” (NUNES, 2006NUNES, Mário Luiz Ferrari. Educação física e esporte escolar: poder, identidade e diferença. 2006. 206 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006., p. 69).

Nesse contexto, uma proposta para o trato da Educação Física com jovens em privação de liberdade se assemelha aos movimentos da instituição. Domingos (2014DOMINGOS, Rosangela da Silva. Pensando e praticando o esporte na medida socioeducativa: orientações para profissionais de educação física. 2014. 153 f. Dissertação (Mestrado em Adolescente em Conflito com a Lei) - Universidade Anhanguera de São Paulo, São Paulo, 2014.) defende um trabalho pautado no esporte, aliado às necessidades do retorno do jovem em privação de liberdade à sociedade. Não é de se surpreender, no entanto, que essa perspectiva se articule ao modelo de Educação Física atual da Fundação Casa. Nessa proposta, o esporte é visto como um recurso para adequar o sujeito à condição necessária para se manter na estrutura:

[…] o esporte apresenta-se, como um elemento educativo, num modelo pedagógico capaz de desenvolver o sentido de coletividade, o aprendizado da vida social e o conhecimento. Sob essa perspectiva, as ações dirigidas aos adolescentes pelas práticas esportivas devem primar com propósito superior do desenvolvimento integral do adolescente para ser e conviver sem entrar em conflito com a lei (DOMINGOS, 2014DOMINGOS, Rosangela da Silva. Pensando e praticando o esporte na medida socioeducativa: orientações para profissionais de educação física. 2014. 153 f. Dissertação (Mestrado em Adolescente em Conflito com a Lei) - Universidade Anhanguera de São Paulo, São Paulo, 2014., p. 69).

Travestida do discurso de formar pessoas autônomas, a ênfase no esporte educacional em espaços educativos como a Fundação Casa situa-se no seio de uma tensão. Busca-se apresentar os benefícios de tal prática e seu resultado emancipatório. Mas, do que se emancipa o sujeito com o qual não se problematizam as questões que o levaram a uma situação marginal, transmitindo-lhe conhecimentos e saberes desejáveis do neoliberalismo? De tal forma, essa proposta parece primar pelos ideais de uma sociedade cujo esporte reproduz.

Propostas que encontram na prática esportiva uma possibilidade de válvula de escape do jovem à privação de liberdade, bem como objetivam desenvolver o necessário para conviver em sociedade, são chamadas, por Neira (2014NEIRA, Marcos Garcia. Análise de relatos que abordam o esporte nas aulas de educação física: indícios de uma mudança paradigmática. Revista Educação, n. 16, p. 41-65, maio/ago. 2014.), de visão “ingênua”, exatamente porque

[…] não se arriscam a promover, junto com os estudantes, investigações sobre a presença do esporte na sociedade, seus significados, efeitos e os fatores causadores da exclusão. Tentam apenas equacioná-los, por meio de atividades que mimetizam a prática esportiva, por isso, não são capazes de implementar mudanças (NEIRA, 2014NEIRA, Marcos Garcia. Análise de relatos que abordam o esporte nas aulas de educação física: indícios de uma mudança paradigmática. Revista Educação, n. 16, p. 41-65, maio/ago. 2014., p. 44).

Cabe sinalizar que essas análises não buscam fazer críticas à presença do esporte no trabalho com jovens em medidas socioeducativas. Compreende-se, no entanto, que o modelo esportivo pautado na produção de sujeitos performáticos tem servido à conformação dos sujeitos, adequando-os a certos padrões sociais. São homogeneizadas, assim, as diferenças, e inviabilizadas as discussões mais amplas acerca de seus significados sociais.

Desse modo, incutir nos jovens valores “salvacionistas” do esporte, tão necessários ao convívio social, reduz a responsabilidade pela condição em privação de liberdade aos próprios jovens. É como se reforçasse que o jovem entrou em conflito com a lei por não ter os valores sociais necessários e, no limite, é preciso aprendê-los, porque depende dele mesmo sair desta condição. Neste caso, o esporte, trabalhado nesta perspectiva de transmissão de valores serve como uma luva, pois é a própria corporificação do sistema neoliberal. Assim, convém moldar os jovens à lógica existente, acreditando ser o esporte um meio pelo qual contribuir-se-á com a revisão da delinquência juvenil. Nesta lógica, percebe-se que os fatores sociais que atravessam o esporte permanecem indiscutíveis, petrificados. Esta maneira de conceber o esporte revela seu viés funcionalista, utilizado como meio para se alcançar determinada expectativa: forjar sujeitos regrados, disciplinados, solidários e sociáveis, modernos e autogovernáveis.

4 CONCLUSÕES

Buscou-se, neste estudo, trazer a historicidade da presença da Educação Física na privação de liberdade de crianças e adolescentes desde o final do século XIX até os dias atuais. Constantes mudanças legais e transformações institucionais revelam a “tentativa” de promover novas práticas pedagógicas em Educação Física, inclusive alinhando-se às prerrogativas do ECA e do Sinase, de que as medidas socioeducativas promovam a “ressocialização” do jovem autor, garantindo-lhe proteção e direitos constitucionais.

Buscou-se demonstrar que a Educação Física está inserida na Fundação Casa desde seus primórdios e que seu movimento ocorreu tal como o da Educação Física Escolar, incutindo sobre os “menores” a necessária correção dos corpos considerados indesejados através da prática da ginástica, tornando-os adequados à sociedade vigente e preparados para o mundo do trabalho, conforme anunciam as legislações e os decretos que direcionam os Institutos Disciplinares e as Colônias Correcionais (SÃO PAULO, 1902a; 1902b).

Como ocorreu nas escolas, percebe-se a transição da ginástica para a prática esportiva, transitando pelo dado histórico-institucional. As análises da proposta pedagógica e da legislação que conduzem o atendimento nessa instituição revelam a dominação do esporte sobre outras práticas corporais. Autores como Andrade (1997ANDRADE, Marcelo Pereira de. Educação física na fundação estadual do bem-estar do menor - FEBEM/SP: uma análise da proposta de 1992 a 1994 segundo o os discursos dos professores. 1997. 129 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.) e Mata (2004MATA, Cristina Silva da. Um relato de experiência em educação física na FEBEM-SP: outros olhares. 2004. 94 f. Monografia (Graduação em Educação Física) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.) indicam que, através de práticas esportivas e de avalições sobre performances motoras e rendimento físico, busca-se, além da produção de corpos adequados, a regeneração moral e a minimização da delinquência juvenil.

Assim, são necessárias reflexões acerca dos dogmas presentes nas práticas esportivas trabalhadas com jovens nestas condições quando estas homogeneízam os sujeitos aos preceitos considerados moralmente aceitos, de modo que se reflita para além daquilo que já vem sendo realizado há mais de um século e que, provadamente, não vem surtindo efeito. Por fim, sendo o delinquente um produto da sociedade moderna assim como as prisões o são, promove-se a seguinte observação: a de que é necessário romper com esta lógica, fomentada pelo modelo esportivo de rendimento e performance, a fim de buscar novas alternativas. A Educação, acredita-se, assim como a Educação Física dentro destas instituições, não pode se guiar e se efetivar pelos mesmos pressupostos que levam os jovens a estarem nesta condição. Rever é preciso.

REFERÊNCIAS

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    » http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/37/art09_37.pdf
  • 1
    Segundo Bretan (2014BRETAN, Maria Emilia Accioli Nobre. Os múltiplos olhares sobre a adolescência e o ato infracional: a produção científica na USP e na PUC/SP (1990 - 2006). In: SILVA, Roberto da; SOUZA NETO, João Clemente de; PINI, Francisca Rodrigues (org.). Pedagogia Social, Ciência da delinquência: o olhar da USP sobre o ato infracional, o infrator, as medidas socioeducativas e suas práticas. São Paulo: Expressão e Arte, 2014. p. 41-56.), o termo simbolizou a inferioridade das camadas mais pobres e a legitimação do recolhimento de crianças e jovens do poder familiar pelo fato de considerá-los potenciais perigosos: “[…] além de perigoso, por fim, esse menor é pobre. As elites resolvem seus casos em instâncias informais e não segregadoras; a justiça é reservada para os meninos de famílias pobres” (BRETAN, 2014BRETAN, Maria Emilia Accioli Nobre. Os múltiplos olhares sobre a adolescência e o ato infracional: a produção científica na USP e na PUC/SP (1990 - 2006). In: SILVA, Roberto da; SOUZA NETO, João Clemente de; PINI, Francisca Rodrigues (org.). Pedagogia Social, Ciência da delinquência: o olhar da USP sobre o ato infracional, o infrator, as medidas socioeducativas e suas práticas. São Paulo: Expressão e Arte, 2014. p. 41-56., p. 51, grifo do original). Ou seja, eram os menores os considerados perigosos pela sociedade brasileira e que eram recolhidos por estabelecimentos correcionais.
  • 2
    “Por esta palavra ‘governamentalidade’ entendo o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 143).
  • 3
    Antiga nomenclatura, foi sigla para denominar, no Brasil, a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor.
  • 4
    Nome atual para designar o Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente.
  • 5
    Em 2006, a Febem tornou-se Fundação Casa, adequando procedimentos, diretrizes e criando um processo de descentralização pelo estado de São Paulo, a fim de construir novas unidades e, assim, reduzir a superlotação daquelas situadas na capital paulista, bem como minimizar o número de rebeliões.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2018
  • Aceito
    01 Jun 2019
  • Publicado
    27 Out 2019
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