Acessibilidade / Reportar erro

AS MULHERES E O PAÍS DO FUTEBOL: INTERSECÇÕES DE GÊNERO, CLASSE E RAÇA NO BRASIL

Resumo

O campo de pesquisas sobre o futebol de mulheres cresceu no Brasil nas últimas duas décadas. Contudo, há ainda uma lacuna sobre como marcadores sociais, como classe e raça, interseccionam o gênero na constituição dessa prática. Para preenchê-la, analisamos, com base em estatística descritiva e inferencial, o suplemento especial sobre esporte da PNAD de 2015. Assim, descrevemos o perfil das mulheres que jogam futebol no Brasil contemporâneo e o comparamos em relação aos homens e às demais mulheres que praticam esportes diferentes do futebol. Nossos resultados apontam que, em comparação ao que ocorre com mulheres que praticam esporte em geral, classe e raça impactam de forma oposta na adesão ao futebol. A maioria das mulheres que pratica o futebol advém de classes mais baixas e é negra. Ao indicar esta relação, demonstramos a necessidade de enegrecer as narrativas sobre o futebol de mulheres no Brasil.

Palavras chave:
Mulheres Negras; Futebol; Esportes

Abstract

The field of research on women’s football has grown in Brazil in the past two decades. However, there is still a gap related to how class and race intersect gender in the constitution of that practice. To fill this gap, we analyzed the 2015 National Household Sample Survey’s Special Sports Supplement, based on descriptive and inferential statistics. We describe the profiles of women who play football in contemporary Brazil and compare them to those of men and other women who play sports other than football. Our results indicate that, in comparison to what occurs with women who practice sports in general, class and race have the opposite impact on adherence to football. The majority of women who practice football come from the lower classes and are black. By indicating this relationship, we demonstrate the need to promote racial equality, diversity, and inclusion of black women’s football narratives in Brazil.

Keywords:
Black women; Football; Sports

Resumen

El campo de investigación sobre el fútbol de mujeres ha crecido en Brasil en las últimas dos décadas. Sin embargo, todavía existe una laguna sobre cómo marcadores sociales, como clase y raza, tienen intersección con el género en la constitución de esta práctica. Para subsanar esa falta, analizamos, con base en estadística descriptiva e inferencial, el suplemento especial sobre deporte de la PNAD 2015. Así, describimos el perfil de las mujeres que juegan al fútbol en el Brasil contemporáneo y lo comparamos con relación a los hombres y a las demás mujeres que practican deportes distintos al fútbol. Nuestros resultados indican que, en comparación con lo que ocurre con las mujeres que practican deportes en general, clase y raza impactan de manera opuesta cuando se trata del fútbol. La mayoría de las mujeres que practican el fútbol provienen de clases bajas y son negras. Al señalar esta relación, demostramos la necesidad de ennegrecer las narrativas sobre el fútbol femenino en Brasil.

Palabras clave:
Mujeres Negras; Fútbol; Deportes

1 INTRODUÇÃO

Há uma fala recorrente no senso comum: o Brasil é o país do futebol. De fato, segundo dados da PNAD (IBGE, 2017), o futebol é a modalidade esportiva mais praticada no país. Contudo, duas problematizações devem ser feitas em relação a esses discursos que vinculam a identidade nacional ao futebol e à frieza dos números absolutos: qual é o lugar das mulheres nessa afirmação e quem são as mulheres que incorporam essa prática no cotidiano das suas vidas? Pouco ainda se sabe sobre elas e, a despeito de alguns trabalhos (CALHEIRO; OLIVEIRA, 2018CALHEIRO, Ineildes; OLIVEIRA, Eduardo D. Interseccionalidade no esporte: reflexões sobre o estudo com as árbitras de futebol e o método corpo-experiência. Rebeh-Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 1, n. 03, p. 34-57, 2018.; PISANI, 2018PISANI, Mariane da Silva. “Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo. Tese (Doutoradoem Antropologia social) - São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018.), a descrição da experiência feminina no futebol tem silenciado outros marcadores sociais, como raça e classe (BRUENING, 2005BRUENING, Jennifer E. Gender and racial analysis in sport: Are all the women White and all the Blacks men? Quest, v. 57, n. 3, p. 330-349, 2005.; SMITH, 1992SMITH, Yevonne R. Women of color in society and sport. Quest, v. 44, n. 2, p. 228-250, 1992.).

Em geral, as narrativas sobre o futebol de mulheres no Brasil se iniciam com marcos históricos que encenam as interdições, invisibilidades e silenciamentos que tal prática foi objeto ao longo de boa parte do século XX. Certa parte da historiografia do tema mais recentemente vem demarcando também a resistência dessas mulheres, sobretudo nos contextos de proibição formal da modalidade, que ocorreu de 1941 a 1979 (RIBEIRO, 2018RIBEIRO, Raphael R. Futebol de mulheres em tempos de proibição: o caso das partidas Vespasiano x Oficina (1968). Mosaico, v. 9, n. 14, p. 48-69, 2018.; SILVA, 2015SILVA, Giovanna Capucim e. Narrativas sobre o futebol feminino na imprensa paulista: entre a proibição e a regulamentação (1965-1983). Dissertação ( Mestrado) - São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.). Tais estudos demonstram, a partir das narrativas das mulheres que jogaram futebol naquele contexto e que, posteriormente, vieram a formar as primeiras gerações de atletas no país, intituladas de pioneiras, que a proibição poderia representar silenciamento e apagamento, mas não inexistência (GOELLNER, 2005GOELLNER, Silvana V. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 2, p. 143-151, 2005.; MORAES, 2018MORAES, Carolina F. As torcedoras querem torcer. Dissertação (Mestrado) -Salvador: Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia, 2018.; RIBEIRO, 2018; SILVA, 2015; ALMEIDA, 2013ALMEIDA, Caroline S. Boas de bola: Um estudo sobre o ser jogadora de futebol no Esporte Clube Radar durante a década de 1980. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.).

Mais recentemente, algumas pesquisas sustentam que as mulheres já praticavam futebol antes mesmo do principal marco até então celebrado na historiografia tradicional, conhecido como o jogo de 1921 das “senhoritas” do bairro de Tremembé e da Cantareira, em São Paulo (GOELLNER, 2005GOELLNER, Silvana V. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 2, p. 143-151, 2005.). De acordo com essas perspectivas, a iniciação de meninas ao futebol aconteceu já na década de 1910, entre meninas da elite, nas festividades esportivas (BONFIM, 2019BONFIM, Aira F. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). Dissertação (Mestrado) - Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais.Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2019.).

Além dessa iniciação que acompanhava as tradições aristocráticas do surgimento da modalidade no país, a prática do futebol por mulheres também aconteceu nas áreas suburbanas e nos circos. Porém, ao contrário daquelas que pertenciam à elite brasileira, as mulheres que se envolveram com a prática nesses contextos eram estigmatizadas, indicando que os enunciados de abjeção vinculados ao futebol feminino já perfazem mais de um século de existência (BONFIM, 2019BONFIM, Aira F. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). Dissertação (Mestrado) - Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais.Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2019.). Ou seja, já existem há mais tempo que a proibição e os enunciados higienistas de controle da sexualidade e do corpo das mulheres, sobretudo, brancas (ALTMANN, 2003ALTMANN, Helena. Orientação sexual em uma escola: recortes de corpos e de gênero. Cadernos pagu, n. 21, p. 281-315, 2003.). Por outro lado, tais apontamentos mostram o envolvimento de mulheres de diferentes camadas sociais e contribuem para que o olhar para o futebol feminino, independentemente do tempo histórico, considere a questão de gênero em sua interseccionalidade com outras clivagens sociais, como classe, raça, localidade e geração (BUTLER, 1990BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. New York: Routledge, 1990.).

As pesquisas brasileiras, portanto, estão rompendo as barreiras do apagamento das narrativas e da participação das mulheres no futebol antes do século XXI (BARREIRA et al., 2018BARREIRA, Júlia et al. Produção acadêmica em futebol e futsal feminino: estado da arte dos artigos científicos nacionais na área da educação física. Movimento (Porto Alegre), v. 24, n. 2, p. 607-618, 2018. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.80030
https://doi.org/https://doi.org/10.22456...
). Assim, embora a investigação sobre homens nessa modalidade se confunda com o surgimento dos próprios campos de história, sociologia e antropologia do esporte; os estudos sobre mulheres e gênero no futebol têm crescido sobretudo a partir do final da primeira década dos anos 2000. Como consequência, a idade recente destas pesquisas implica um leque de objetos e perguntas ainda sem investigação, em especial no que se refere à questão da interseccionalidade de gênero e outros marcadores sociais.

Considerando essa lacuna, neste artigo nos debruçamos sobre a seguinte pergunta: quem são as mulheres que jogam futebol no Brasil nos tempos contemporâneos? Dessa forma, mais do que retratar as narrativas de atletas cuja imagem ainda ganha em passos lentos a atenção da imprensa, objetivamos apresentar quem são as mulheres anônimas que atuam nas quadras, nos campos de terra e nos gramados desse país. Intentamos enfocar estas que mostram em pequenas comunidades, em escolas e em grandes centros que as mulheres gostam, sabem e jogam futebol. Com isso, nosso objetivo foi descrever o perfil das mulheres praticantes de futebol no Brasil, demonstrando que a interseccionalidade de gênero, classe e raça interfere na adesão a tal modalidade esportiva.

Com base nos dados do suplemento especial sobre esporte da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD), de 2015, descrevemos o perfil das mulheres praticantes de futebol, em relação às mulheres e aos homens que praticam esportes (IGBE, 2017). Demonstramos que, diferentemente do comportamento médio das mulheres que praticam esporte em geral, a classe e a raça interferem de forma oposta na adesão delas ao futebol. Isto é, se por um lado as mulheres brancas e de extratos econômicos mais altos têm uma tendência maior à prática de esportes, por outro, são as mulheres negras1 1 Compreendemos raça como uma construção social, por isso, é importante descrever os parâmetros utilizados na denominação de negros no Brasil. O IBGE, em 2015, trabalhou com a pergunta “qual é a sua cor ou raça?” e como resposta: “preto, branco, pardo, amarelo ou indígena”. Como esse “colorismo” é criticado na literatura do tema, aqui compusemos uma oposição entre brancos e negros. Conforme tem sido problematizado por outros autores, pardos e pretos representam a categoria dos negros no Brasil, por partilharem uma ascendência africana que pode contribuir para discriminação (COSTA, 2019; SILVA; LEÃO, 2012). e mais pobres que aderem ao futebol. Ao analisarmos os homens que jogam futebol, observamos que este, como um esporte popular, também tem maior adesão das classes mais baixas. No entanto, no caso das mulheres esse efeito é bem mais acentuado.

Tais tendências informam que o futebol de mulheres no Brasil tem raça e classe social, de modo que é fundamental discutir as razões e as causas que contribuem para que a modalidade tenha uma adesão maior entre aquelas que apresentam esses atravessamentos. Essa questão ganha relevância na medida em que se observa que é justamente nesse extrato social que se vê a menor tendência à participação esportiva, dentre as mulheres de uma forma geral. Ou seja, são mulheres cujas barreiras para o engajamento esportivo são incontavelmente maiores que as das brancas, mas que, no entanto, quando se relacionam com o esporte, optam pelo futebol. Nesse sentido, para observar as barreiras e os apoios que compõem a relação das mulheres com o esporte, é necessário considerar a interseccionalidade entre gênero, raça e classe. Ou seja, uma descrição específica ou um modelo que pretenda dar conta dos níveis e da forma pela qual mulheres se engajam (ou não) com o futebol, bem como com os esportes em geral, precisa considerar esses outros marcadores sociais, que atuam de forma interseccional, formando não apenas outras identificações possíveis, mas interpelando discursos e sujeitos para as práticas sociais de forma distinta.

2 GÊNERO, CLASSE E RAÇA: MARCAS DA INTERSECCIONALIDADE NA ADESÃO ÀS PRÁTICAS CORPORAIS

Quando observamos a predominância de homens no futebol, a problemática das relações de gênero é convocada para explicar as desigualdades de oportunidades que as mulheres possuem com a prática. A categoria gênero refere-se às construções sociais, culturais e linguísticas que constituem a forma como percebemos as diferenças entre homens e mulheres (SCOTT, 1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade, v. 20, n. 2, p. 72-99, 1995.). Portanto, esta categoria analítica permite compreender que tais diferenças e desigualdades não são biologicamente determinadas (LOURO, 1999LOURO, Guacira L. Sexualidade, gênero e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1999.; MEYER, 2003MEYER, Dagmar E. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira L. (Ed.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petropólis: Vozes, 2003. p. 27.; SCOTT, 1995). Na medida em que é parte da cultura, o gênero é cotidianamente aprendido, reiterado e negociado. Isso significa que apreendemos as normas de gênero vigentes em processos que não são “linear[res], progressivo[s] ou harmônico[s] e que também nunca está[ão] finalizado[s] ou completo[s]” (MEYER, 2003, p. 16). Esse aprendizado, ainda, ocorre por meio de diversas instâncias, como o futebol, os esportes e as práticas corporais. Nessa perspectiva, praticando-os também aprendemos a “ser” mulheres e a “ser” homens dentro de um contexto cultural. Portanto, por meio dos esportes, “fazemos” gênero.

Como parte da nossa cultura, aprendemos e fazemos gênero influenciados por tempos e espaços específicos, conformando diversos modos de vivenciar as feminilidades e as masculinidades. Essas formas ainda são atravessadas por outros marcadores sociais, que podem até se configurar distintamente segundo o momento da vida (MEYER, 2003MEYER, Dagmar E. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira L. (Ed.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petropólis: Vozes, 2003. p. 27.). Desse modo, em vez de pensarmos a experiência das mulheres como única, devemos perceber também a pluralidade de formas existentes de performatizar feminilidades, agenciadas pelas pessoas em relação ao contexto, às relações de poder, às masculinidades e às situações específicas. Esses agenciamentos também são atravessados por outros marcadores sociais, como raça e classe (BUTLER, 1990BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. New York: Routledge, 1990.).

Tal perspectiva dialoga com as críticas que as feministas negras empreenderam ao feminismo tradicional. bell hooks (2019) afirmou que a experiência das mulheres negras se distingue da das brancas, o que confirma a insuficiência das generalizações advindas das descrições tradicionais do feminismo. No caso brasileiro, Sueli Careiro se pergunta de quem estamos falando ao nos referirmos a uma representação de fragilidade feminina. Para a autora, as negras nunca se reconheceram nesse mito, por terem trabalhado fora do ambiente doméstico próprio e por exercerem funções laborais dispendiosas, como o trabalho “nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quitandeiras, prostitutas” (CARNEIRO, 2019CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: HOLLANDA, H. B. DE (Ed.). . Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 313-323., p. 314). Portanto, olhar a pluralidade da experiência das mulheres no Brasil implica demarcar o peso da questão racial.

Em geral, os discursos culturais remetem as mulheres negras a duas metáforas. A primeira é da “mãe negra”, que é uma mulher mais velha, dócil e cuidadora do ambiente doméstico. A segunda figura metafórica é da mulata hipersexualizada, cujo corpo está à disposição do homem branco (CARNEIRO, 2019CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: HOLLANDA, H. B. DE (Ed.). . Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 313-323.). Ambas estão sempre prontas para servir, o que implica uma representação que deixa pouco tempo para se dedicarem às próprias atividades de lazer. Além disso, quando as mulheres negras transgridem essas metáforas ou escapam aos muros do espaço privado e do trabalho, isto é, quando estão fora do que se circunscreve à representação da docilização, são descritas como irracionais, não civilizadas e descontroladas (PISANI, 2018PISANI, Mariane da Silva. “Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo. Tese (Doutoradoem Antropologia social) - São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018.).

Essas narrativas têm como efeito situar as negras fora de um lugar de agência, de voz e de escuta. Portanto, têm impacto sobre a forma como tais mulheres e meninas são vistas e (não) narradas. Uma pesquisa com as meninas negras norte-americanas na escola demonstrou como elas muitas vezes são vistas como “meninas-problema”. A razão para esse estereótipo era o fato de elas não se enquadrarem nas expectativas de docilização feminina daquele ambiente, se colocando e se defendendo publicamente em relação às violências que sofrem (NUNN, 2018NUNN, Nia M. Super-Girl: strength and sadness in Black girlhood. Gender and Education, v. 30, n. 2, p. 239-258, 2018.). Como consequência, os(as) professores(as) têm baixas expectativas sobre sua participação no espaço escolar e sobre elas recaem processos disciplinatórios mais severos do que sobre outras garotas.

Processos de discriminação semelhantes ocorrem quando se trata da inserção das meninas e mulheres negras no esporte. Por um lado, raça e classe se interseccionam ao gênero quando se trata da escolha das atividades esportivas com as quais as meninas se engajam (WALKER-PICKETT; DAWKINS; BRADDOCK, 2012WALKER-PICKETT, Moneque; DAWKINS, Marvin; BRADDOCK, Jomills. Race and gender equity in sports: Have white and African American females benefited equally from Title IX? American Behavioral Scientist, v. 56, n. 11, p. 1581-1603, 2012.). Nesse sentido, as meninas negras praticam atividades esportivas cujo custo financeiro e social de manutenção e engajamento são menores. Como resultado, nos EUA, elas têm se inserido de forma mais predominante em esportes como o basquete e o atletismo, cuja disponibilidade para a prática é economicamente mais acessível. Para além do custo financeiro, as autoras ainda afirmam que há poucas oportunidades e convites para que pratiquem outras modalidades, demonstrando que se trata de uma barreira tanto econômica quanto simbólica. No Brasil, essa realidade é observada no futebol (PISANI, 2018PISANI, Mariane da Silva. “Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo. Tese (Doutoradoem Antropologia social) - São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018.), o que contribui para que se compreenda um segundo aspecto dessa intersecção entre gênero, raça e classe.

Esse segundo aspecto refere-se à forma como meninas negras percebem os estereótipos de gênero vinculados ao esporte de maneira distinta das meninas brancas. No contexto norte-americano, por exemplo, enquanto as brancas costumam perceber que esportes coletivos são menos apropriados para garotas, as negras, por outro lado, reconhecem algumas modalidades como basquete, futebol americano e lutas como práticas “neutras” do ponto de vista do gênero (HANNON et al., 2009HANNON, James et al. Gender stereotyping and the influence of race in sport among adolescents. Research quarterly for exercise and sport, v. 80, n. 3, p. 676-684, 2009.). De acordo com os autores, essa diferença na percepção desses estereótipos ocorre pela existência de “role models” de atletas negras que permitem o reconhecimento dessas garotas nessas práticas. Outra razão é dada pela Educação Física Escolar, que contribui para que elas se insiram apenas nessas modalidades esportivas, consideradas “agressivas e de explosão” (AZZARITO; SOLOMON, 2005AZZARITO, Laura; SOLOMON, Melinda A. A reconceptualization of physical education: The intersection of gender/race/social class. Sport, Education and Society, v. 10, n. 1, p. 25-47, 2005.), a despeito inclusive do interesse em realizar outras práticas (BRUENING, 2005BRUENING, Jennifer E. Gender and racial analysis in sport: Are all the women White and all the Blacks men? Quest, v. 57, n. 3, p. 330-349, 2005.). Assim, a experiência esportiva das meninas afro-americanas acaba constrangida por discursos culturais estereotipados e racializados (AZZARITO; SOLOMON, 2005).

Quanto ao futebol brasileiro, Mariane Pisani (2018PISANI, Mariane da Silva. “Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo. Tese (Doutoradoem Antropologia social) - São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018.) demonstrou que a experiência de mulheres brancas e negras se difere em relação aos sentidos da prática. Para as mulheres negras, o futebol foi entendido como uma possibilidade de profissão, ainda que dificilmente esta se concretize. Por outro lado, para as brancas, o futebol era um momento de lazer e diversão. Do ponto de vista da representação social, a mídia, por vezes, descreveu as futebolistas negras como “feras” e masculinizadas, em vez de belas, como descrevia as brancas (ALMEIDA, 2016ALMEIDA, Caroline S. Belas e feras, nós e as masculinizadas: discursos, corporalidades e significações. In: KESSLER, C. S. (Ed.). Mulheres na área: gênero, diversidade e inserções no futebol. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. p. 107-133.). Tal narrativa enquadra as negras na chave da “bestialização”, por transgredirem as normas da feminilidade e da heterossexualidade compulsória.

Paradoxalmente, por um lado as futebolistas negras foram consideradas abjetas pela mídia, sofrendo inúmeras violências, como racismo e homofobia; por outro, nos espaços cotidianos de prática de futebol, performatizar outras feminilidades não normalizadas faz com que tais mulheres sejam mais respeitadas (PISANI, 2018PISANI, Mariane da Silva. “Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo. Tese (Doutoradoem Antropologia social) - São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018.). Em outras palavras, no nível da relação com as outras mulheres que convivem no espaço cotidiano da prática esportiva, elas podem transgredir as normas de gênero sem sofrer discriminações, possibilitando expressar outros modos de ser mulher, sem ratificar a “feminilidade hegemônica” (BRUENING, 2005BRUENING, Jennifer E. Gender and racial analysis in sport: Are all the women White and all the Blacks men? Quest, v. 57, n. 3, p. 330-349, 2005.). No caso da pesquisa de Pisani (2018PISANI, Mariane da Silva. “Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo. Tese (Doutoradoem Antropologia social) - São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018.), as mulheres negras ainda se posicionavam de forma mais segura nas relações de poder configuradas nos campos e nos vestiários da prática amadora de futebol. Portanto, esse esporte pode ser um espaço onde diferentes feminilidades “transgressoras” e não normativas encontram um terreno seguro para sua manifestação. Tais apontamentos da discussão sobre gênero, raça e esporte ratificam a demanda de não generalizar a experiência das mulheres brancas e, tampouco, enquadrar a discussão racial como se não houvesse distinção de gênero nela (BRUENING, 2005; SMITH, 1992SMITH, Yevonne R. Women of color in society and sport. Quest, v. 44, n. 2, p. 228-250, 1992.).

3 PERCURSO METODOLÓGICO

Os dados foram extraídos do Suplemento de Práticas de Esporte e Atividades Físicas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2015 (IBGE, 2017). Até 2015, a PNAD era uma pesquisa de caráter anual que contribuía para a atualização, por meios amostrais, dos dados nacionais do Censo, sobre as características gerais da população, educação, trabalho, rendimento e habitação. Em algumas edições, a pesquisa ganhou uma temática especial, como foi o caso do suplemento estudado sobre esporte e atividades físicas, realizada em parceria com o Ministério do Esporte. O intuito foi contribuir para a formulação e avaliação de políticas públicas vinculadas à democratização do acesso ao esporte e às práticas corporais (IBGE, 2017).

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as informações sobre práticas esportivas foram estabelecidas para uma pessoa de cada domicílio visitado, com 15 ou mais anos de idade, selecionada aleatoriamente. Ao todo, foram entrevistadas 71.143 pessoas para este suplemento. Para nossa pesquisa, analisamos as distribuições de Sexo, Cor ou Raça, Renda mensal individual e Renda mensal per capita familiar2 2 Mantivemos os nomes das categorias idênticos ao definido e utilizado pela PNAD 2015. . Tais distribuições foram investigadas através do prisma de duas perguntas: (1) No período de referência de 365 dias, praticou algum esporte no tempo livre (fora do horário de trabalho e de Educação Física na escola)? e (2) Qual o principal esporte que praticou no período de referência de 365 dias? Como nosso principal foco é o futebol, exploramos somente os dados referentes à prática esportiva, isto é, não mobilizamos as informações sobre atividade física que a pessoa não considera esporte. Os dados foram tratados com estatística descritiva e inferencial.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Antes de analisarmos as mulheres que jogam futebol no Brasil, é preciso desenhar o contexto no qual as mulheres que praticam esporte no país estão inseridas. Para tanto, descrevemos um panorama geral da amostra da PNAD 2015, de quem, dentro desta amostra, praticou esporte nos últimos 365 dias antes da realização da entrevista e de quem, dentre quem praticou esporte, jogou futebol. Na Figura 1 apresentamos quatro distribuições. Na parte superior, exibimos um panorama geral da amostra entre mulheres e homens e outro entre quem praticou esporte nos últimos 365 dias e quem não praticou. Na parte inferior, há um gráfico que separa a amostra entre quem praticou ou não esporte, distribuindo entre mulher e homem; e outro que separa a amostra entre homens e mulheres e distribui entre quem praticou ou não esporte.

Figura 1
Distribuição da amostra e prática esportiva.

Dentre os entrevistados, menos de ¼ declarou ter praticado algum tipo de esporte nos últimos 365 dias anteriores à entrevista. Embora a prática esportiva seja frequente entre quem compõe essa parcela de respondentes3 3 Segundo dados da mesma pesquisa, 95% das pessoas que afirmaram praticar esporte disseram que isso ocorre pelo menos uma vez por semana, sendo que 66,7% pratica esporte em três ou mais dias da semana. , o tamanho reduzido desse contingente reafirma a conclusão de outras pesquisas sobre a prevalência de índices baixos de participação nas atividades físicas no país (KNUTH et al., 2010KNUTH, Alan G. et al. Changes in physical activity among Brazilian adults over a 5-year period. Journal of Epidemiology & Community Health, v. 64, n. 7, p. 591-595, 2010.). Contudo, apesar da divisão homogênea da amostra entre mulheres e homens - com pouco mais mulheres do que homens -, a prática esportiva é mais frequente entre homens do que entre mulheres, confirmando um diagnóstico global de menor participação feminina em atividades esportivas (HALLAL et al., 2012HALLAL, Pedro C. et al. Global physical activity levels: surveillance progress, pitfalls, and prospects. The Lancet, v. 380, n. 9838, p. 247-257, 2012.).

Dentre as pessoas respondentes que praticaram esporte, somente 39,4% eram mulheres, apesar de elas representarem 53,8% da amostra. Assim, ao passo que 30,7% dos homens entrevistados praticaram esporte, este valor se reduz a somente 17,1% das mulheres. Em suma, Figura 1 sugere que homens têm mais incentivos à prática esportiva do que mulheres e, por isso, são maioria entre os praticantes de esporte no Brasil. Esse cenário reflete os discursos culturais que oportunizam distintas relações para meninas e meninos e mulheres e homens com os esportes. Afinal, boa parte dos esportes é descrita como práticas vinculadas à masculinidade, à agressividade e à virilidade (MESSNER, 2010MESSNER, Michael A. Out of play: Critical essays on gender and sport. Albany: Suny , 2010.). Por isso, as mulheres são menos incentivadas, possuindo menor disponibilidade de recursos para a prática esportiva e, quando se engajam, ficam mais propensas a sofrerem discriminação.

Com isto em tela, descrevemos na sequência, também diferenciando entre mulheres e homens, quem são as pessoas que jogam futebol no país, segundo a pesquisa realizada em 2015. Neste caso, consideramos somente os 23,4% da amostra que afirmaram ter praticado esporte. (Figura 2)

Figura 2
Distribuição esportes e futebol entre mulheres e homens.

Dentre as pessoas que praticaram esporte, 36,5% escolhem o futebol (em suas diversas manifestações como futsal, futebol society, de campo, de areia etc.). O futebol é a modalidade esportiva mais praticada no país, ratificando a popularidade desse esporte no Brasil. Porém, quando analisamos esta distribuição em função do gênero, notamos o quanto este esporte é predominantemente praticado pelos homens. Dentre as pessoas que jogam futebol, apenas 6% é mulher, o que representa 5,6% das mulheres que praticam esporte. Se colocarmos em perspectiva com os homens, a disparidade fica acentuada, pois estes representam 94% de quem joga futebol - número que corresponde a 56,7% dos homens que praticam esporte em geral, segundo a PNAD (IBGE, 2017).

Em outras palavras, das atividades esportivas, mais da metade dos homens tem preferência e pratica o futebol. Portanto, é patente que o futebol, no Brasil, é um esporte praticado prioritariamente por homens, embora potencialmente tenha crescido entre as mulheres. A razão é que o futebol é atravessado por discursos imbuídos de uma densidade de representações de masculinidade, virilidade e agressividade, fato que explica a enorme atração que a prática oferece para meninos e homens (DAMO, 2007DAMO, Arlei S. Do dom à profissão: formação de futebolistas no Brasil e na França, São Paulo:Aderaldo & Rothschild, 2007.; MESSNER, 2010MESSNER, Michael A. Out of play: Critical essays on gender and sport. Albany: Suny , 2010.). Além disso, é por meio do futebol que uma pedagogia de masculinidade é ensinada aos meninos (BANDEIRA, 2010BANDEIRA, Gustavo A. Um currículo de masculinidades nos estádios de futebol. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, p. 342-351, ago. 2010.; MESSNER, 1990; SILVA; BOTELHO-GOMES; GOELLNER, 2012SILVA, Paula; BOTELHO-GOMES, Paula; GOELLNER, Silvana V. Masculinities and sport: the emphasis on hegemonic masculinity in Portuguese physical education classes. International Journal of Qualitative Studies in Education, v. 25, n. 3, p. 269-291, 2012.).

Isso não significa que meninas e mulheres são impossibilitadas de jogar futebol, pois há 6% de mulheres que praticam o esporte. Entretanto, como efeito desses discursos culturais, elas enfrentam uma série de interdições, de preconceitos e precisam negociar e resistir às tentativas de exclusão, provando que sabem jogar (SOUSA; ALTMANN, 1999SOUSA, Eustáquia S. de; ALTMANN, Helena. Meninos e meninas: expectativas corporais e implicações na educação física escolar. Cadernos Cedes, v. 19, n. 48, p. 52-68, 1999.). Essa necessidade de prova, a um só tempo, desafia e reforça as normas de gênero. Afinal, ao mesmo tempo em que faz com que muitas vezes sejam vistas como “se não fossem meninas”, reafirmando a hierarquia masculina, também reposiciona as noções de feminilidade, por acomodar essas meninas no futebol (HILLS et al., 2020HILLS, Laura A. et al. ‘It’s not like she’s from another planet’: Undoing gender/redoing policy in mixed football. International Review for the Sociology of Sport, 2020. DOI: https://doi.org/10.1177/1012690220934753
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/...
).

Traçado este panorama, avançamos para descrever quem compõe esse conjunto de mulheres que pratica futebol no Brasil. Nesse sentido, exploramos esse grupo segundo dois critérios: Renda e Cor ou raça. Em todos os casos colocamos esta parcela da amostra em comparação aos homens; a todas as mulheres, incluindo aquelas que não praticam esporte; a todas que praticam esporte; e àquelas que praticam esportes diferentes do futebol. Os resultados relativos à Renda seguem na Figura 3:

Figura 3
Distribuição geral, futebol, esportes e esportes (não futebol) por Renda entre mulheres e homens.

Em termos mais gerais, a figura ratifica algo conhecido na sociedade brasileira: a renda das mulheres é consideravelmente inferior à dos homens (MUNIZ; VENEROSO, 2019MUNIZ, Jeronimo O.; VENEROSO, Carmelita Z. Diferenciais de Participação Laboral e Rendimento por Gênero e Classes de Renda: uma Investigação sobre o Ônus da Maternidade no Brasil. Dados, v. 62, n. 1, 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/001152582019169
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159...
). Além disso, considerando mulheres e homens, as pessoas que praticam futebol possuem, em média, rendas inferiores à amostra como um todo e, principalmente, àquelas que praticam esporte. Isto é acentuado quando se calcula a média apenas de quem pratica esportes diferentes do futebol.

Ao compararmos as mulheres que praticam futebol com os homens da mesma categoria, percebemos que a inferioridade é ainda mais pronunciada entre as primeiras. Nesse sentido, destacamos que as mulheres que praticam futebol possuem renda individual média 45,6% inferior à média geral das mulheres entrevistadas na PNAD, e 47,6% menor se consideramos a renda per capita familiar. Em contrapartida, ao observamos os homens que praticam futebol percebemos que, apesar de também possuírem rendas inferiores à média geral dos homens da PNAD, a diferença não é tão discrepante como no caso das mulheres (17,9% menor na renda individual e 22,5% inferior na per capita familiar).

Portanto, as mulheres que jogam futebol não só possuem em média as rendas mais baixas da amostra, como também são oriundas das famílias com as menores rendas per capitas. Dinâmica semelhante foi observada em estudos sobre as mulheres negras nos Estados Unidos, apontando que muitas vezes a escolha pelo esporte - predominantemente o basquete e o atletismo - se dá em função da ausência de disponibilidade e oportunidades para outras práticas (BRUENING, 2005BRUENING, Jennifer E. Gender and racial analysis in sport: Are all the women White and all the Blacks men? Quest, v. 57, n. 3, p. 330-349, 2005.; SMITH, 1992SMITH, Yevonne R. Women of color in society and sport. Quest, v. 44, n. 2, p. 228-250, 1992.). No entanto, nesse caso, não só a classe, mas também a raça se sobrepõe como fator explicativo. A falta de recursos financeiros contribui para que essas mulheres escolham essas modalidades que são financeiramente mais acessíveis. Além disso, a sobrerrepresentação das negras restrita a essas modalidades esportivas faz com que elas não sejam bem acolhidas ou que sejam discriminadas nas outras. Uma vez que raça e renda se combinam como dinâmicas de exclusão no Brasil, essa justaposição produz distintas oportunidades de educação e ocupação entre brancos e negros (SALATA, 2020SALATA, André. Race, Class and Income Inequality in Brazil: a Social Trajectory Analysis. Dados, v. 63, n. 3, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/dados.2020.63.3.213
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), com efeitos indiretos na socialização e no lazer. Por conseguinte, a dinâmica de exclusão produzida pela interseccionalidade entre raça e classe se justapõe ao gênero e se impõe também no futebol de mulheres.

Na Figura 5 exploramos a dimensão da raça, separando a amostra entre pessoas que se declararam brancas e aquelas que se declararam pretas ou pardas. A este segundo grupo nos referimos como pessoas negras, por partilharem de descendência africana4 4 Segundo o IBGE (2017), a opção de cor parda inclui: mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça. . Ao adotarmos tal estratégia, excluímos da amostra as pessoas que se declararam indígenas ou amarelas. Fizemos isto por duas razões. Em primeiro lugar, porque indígenas e amarelas representam menos de 1% da amostra (613 pessoas entre 71.142 respondentes). Em segundo, para estabelecer um diálogo direto com a literatura que lida com esta questão social. Em função destes aspectos, optamos por essa estratégia por razões estatísticas e analíticas, mesmo reconhecendo os limites que podem acarretar. Com isso, para esta parte específica da análise, nossa amostra passa de 71.142 entrevistadas para 70.529, por considerar somente as pessoas que se declararam pretas ou pardas - negras - e brancas.

Figura 4
Distribuição geral, futebol, esportes e esportes (não futebol) por Cor ou raça entre mulheres e homens.

Em termos de cor ou raça, vemos que a maior parte da amostra - entre mulheres e homens - é negra. No entanto, a diferença fica ainda maior quando consideramos quem joga futebol, sendo que a proporção das mulheres negras neste quesito (71,7%) é superior à de homens negros (66,1%), mesmo sendo inferior na distribuição geral (55,8% e 58,7%, respectivamente). Esta desproporção é evidenciada ao comparamos as mulheres que jogam futebol com aquelas que praticam esporte. Afinal, se por um lado a fração de mulheres negras que joga futebol é superior à porcentagem de mulheres negras da amostra (71,7% vs. 55,8%), o mesmo não ocorre ao considerarmos todas as mulheres que praticam esporte (49,8% vs. 55,8%). Ou seja, embora a prática esportiva entre as mulheres brancas seja desproporcional em relação à amostra, o quadro se inverte quando consideramos o futebol.

Cabe ainda destacar que a proporção entre os homens negros que praticam esporte (58,6%) é muito semelhante à amostra geral (58,7%). Assim, ainda que haja uma desproporção de homens negros que praticam futebol, esta é mais pronunciada entre as mulheres, ainda mais se colocarmos em perspectiva aquelas que praticam esporte.

A fim de compreendermos melhor estas desproporções, calculamos a razão de chance de uma mulher negra em relação a uma branca de: i) praticar esporte, considerando todas as mulheres da amostra; ii) praticar futebol, considerando todas as mulheres da amostra e; iii) praticar futebol, considerando somente as mulheres que afirmaram praticar esporte. Para tanto, elaboramos três regressões logísticas assumindo que o aspecto Cor ou raça impacta nas chances de uma mulher praticar esporte e jogar futebol. Na sequência apresentamos as variáveis consideradas nos modelos, a Tabela 1 com os resultados das três regressões e o Gráfico 1 apresentando as razões de chance calculadas.

Modelo 1: Praticar Esporte. Todas as mulheres respondentes:

  • - Variável Dependente (Praticar Esporte) - Se a mulher entrevistada declarou que praticou esporte nos últimos 365 dias, 1; caso contrário, 0;

  • - Variável Independente (Mulher Negra) - Se a mulher entrevistada se declarou preta ou parda, 1; caso se declarou branca, 0.

Modelo 2: Praticar Futebol. Todas as mulheres respondentes:

  • - Variável Dependente (Praticar Futebol) - Se a mulher entrevistada declarou que o principal esporte praticado nos últimos 365 dias era futebol, 1; caso contrário, 0;

  • - Variável Independente (Mulher Negra) - Se a mulher entrevistada se declarou preta ou parda, 1; caso se declarou branca, 0.

Modelo 3: Praticar Futebol. Somente mulheres que praticaram esporte nos últimos 365 dias:

  • - Variável Dependente (Praticar Esporte) - Se a mulher entrevistada declarou que o principal esporte praticado nos últimos 365 dias era futebol, 1; caso contrário, 0;

  • - Variável Independente (Mulher Negra) - Se a mulher entrevistada se declarou preta ou parda, 1; caso se declarou branca, 0.

Tabela 1
Regressão logística. Razão de chance de uma mulher negra praticar esporte e futebol em comparação a uma mulher branca.

Gráfico 1
Razão de chances de uma mulher negra praticar esporte e futebol em comparação a uma mulher branca.

Destacamos que a chance de uma mulher negra praticar esporte é inferior (0,747 vezes) à chance de uma mulher branca, quando observamos todas as mulheres da amostra. No entanto, quando consideramos a prática do futebol o quadro se inverte. Nesse caso, a chance de uma mulher negra é 2,017 vezes maior do que de uma mulher branca. Esta razão fica ainda mais elevada quando consideramos somente as mulheres que praticam esporte, sendo que, dentre estas, a chance de uma mulher negra praticar futebol é 2,685 vezes superior à chance de uma mulher branca. Cabe salientar que todos os resultados das regressões são estatisticamente significativos, considerando 95% de intervalo de confiança. Desse modo, ratificamos o cenário de que as chances de envolvimento para a prática esportiva são menores para as mulheres pobres e negras. Mas que, em face das desiguais oportunidades de acesso, no futebol tem havido mais acolhimento para elas do que para as mulheres brancas. Por essa via, quem falar sobre a história do futebol de mulheres no Brasil não pode silenciar sobre esse quadro de racialização da prática.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao nos depararmos com um cenário estatístico que demonstra a necessidade de enegrecer as narrativas sobre o futebol de mulheres no Brasil, é necessário que alguns cuidados sejam tomados. Em primeiro lugar, de não considerar os dados estatísticos como “um destino” inescapável às mulheres negras (BRUENING, 2005BRUENING, Jennifer E. Gender and racial analysis in sport: Are all the women White and all the Blacks men? Quest, v. 57, n. 3, p. 330-349, 2005.). Cabe escutar e olhar criticamente as experiências, as oportunidades e os sentidos atribuídos para a prática de futebol, não silenciando sobre a questão racial.

Em segundo lugar, cabe destacar que a partir de 2016, mas sobretudo em 2019, assistimos a um grande crescimento do futebol de mulheres no país. Os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo trouxeram visibilidade para a seleção, e as recentes regulamentações da Conmebol obrigaram os clubes populares brasileiros a constituírem equipes femininas. Com isso, mais atenção tem sido destinada às mulheres, o que pode ter como consequência um aumento no número das praticantes. Isto salienta um limite de nosso artigo, por se basear numa pesquisa que captura informações apenas de 2015. Por essa razão, é interessante que outras pesquisas como este suplemento sejam realizadas, para permitir um acompanhamento longitudinal e racialmente crítico dos efeitos dessas mudanças.

Além disso, cabe observar, descrever e narrar em pesquisas futuras os sentidos e usos que são feitos do futebol por essas mulheres anônimas. Cabe escutar o agenciamento dessas mulheres sobre seus corpos, suas vidas e as relações cotidianas que emaranham sua participação esportiva no futebol. É necessário, portanto, um olhar que seja atravessado pelo feminismo enegrecido, que considere a pluralidade das experiências femininas e a não colonização dessa narrativa pela supremacia branca.

REFERENCES

  • ALMEIDA, Caroline S. Boas de bola: Um estudo sobre o ser jogadora de futebol no Esporte Clube Radar durante a década de 1980. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.
  • ALMEIDA, Caroline S. Belas e feras, nós e as masculinizadas: discursos, corporalidades e significações. In: KESSLER, C. S. (Ed.). Mulheres na área: gênero, diversidade e inserções no futebol. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. p. 107-133.
  • ALTMANN, Helena. Orientação sexual em uma escola: recortes de corpos e de gênero. Cadernos pagu, n. 21, p. 281-315, 2003.
  • AZZARITO, Laura; SOLOMON, Melinda A. A reconceptualization of physical education: The intersection of gender/race/social class. Sport, Education and Society, v. 10, n. 1, p. 25-47, 2005.
  • BANDEIRA, Gustavo A. Um currículo de masculinidades nos estádios de futebol. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, p. 342-351, ago. 2010.
  • BARREIRA, Júlia et al. Produção acadêmica em futebol e futsal feminino: estado da arte dos artigos científicos nacionais na área da educação física. Movimento (Porto Alegre), v. 24, n. 2, p. 607-618, 2018. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.80030
    » https://doi.org/https://doi.org/10.22456/1982-8918.80030
  • BONFIM, Aira F. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). Dissertação (Mestrado) - Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais.Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2019.
  • BRUENING, Jennifer E. Gender and racial analysis in sport: Are all the women White and all the Blacks men? Quest, v. 57, n. 3, p. 330-349, 2005.
  • BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. New York: Routledge, 1990.
  • CALHEIRO, Ineildes; OLIVEIRA, Eduardo D. Interseccionalidade no esporte: reflexões sobre o estudo com as árbitras de futebol e o método corpo-experiência. Rebeh-Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 1, n. 03, p. 34-57, 2018.
  • CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: HOLLANDA, H. B. DE (Ed.). . Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 313-323.
  • COSTA, Najara L. A implementação de cotas raciais na prefeitura de São Paulo: análises sobre os procedimentos de comissões de heteroidentificação. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais. São Bernardo do Campo: Universidade Federal do ABC, 2019.
  • DAMO, Arlei S. Do dom à profissão: formação de futebolistas no Brasil e na França, São Paulo:Aderaldo & Rothschild, 2007.
  • GOELLNER, Silvana V. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 2, p. 143-151, 2005.
  • HALLAL, Pedro C. et al. Global physical activity levels: surveillance progress, pitfalls, and prospects. The Lancet, v. 380, n. 9838, p. 247-257, 2012.
  • HANNON, James et al. Gender stereotyping and the influence of race in sport among adolescents. Research quarterly for exercise and sport, v. 80, n. 3, p. 676-684, 2009.
  • HILLS, Laura A. et al. ‘It’s not like she’s from another planet’: Undoing gender/redoing policy in mixed football. International Review for the Sociology of Sport, 2020. DOI: https://doi.org/10.1177/1012690220934753
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1177/1012690220934753
  • HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019.
  • IBGE. Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios. Suplemente de Práticas de esporte e atividade física : 2015. Rio de Janeiro, 2017.
  • KNUTH, Alan G. et al. Changes in physical activity among Brazilian adults over a 5-year period. Journal of Epidemiology & Community Health, v. 64, n. 7, p. 591-595, 2010.
  • LOURO, Guacira L. Sexualidade, gênero e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1999.
  • MESSNER, Michael A. When bodies are weapons: Masculinity and violence in sport. International review for the sociology of sport, v. 25, n. 3, p. 203-220, 1990.
  • MESSNER, Michael A. Out of play: Critical essays on gender and sport. Albany: Suny , 2010.
  • MEYER, Dagmar E. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira L. (Ed.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petropólis: Vozes, 2003. p. 27.
  • MORAES, Carolina F. As torcedoras querem torcer. Dissertação (Mestrado) -Salvador: Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia, 2018.
  • MUNIZ, Jeronimo O.; VENEROSO, Carmelita Z. Diferenciais de Participação Laboral e Rendimento por Gênero e Classes de Renda: uma Investigação sobre o Ônus da Maternidade no Brasil. Dados, v. 62, n. 1, 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/001152582019169
    » https://doi.org/http://dx.doi.org/10.1590/001152582019169
  • NUNN, Nia M. Super-Girl: strength and sadness in Black girlhood. Gender and Education, v. 30, n. 2, p. 239-258, 2018.
  • PISANI, Mariane da Silva. “Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo. Tese (Doutoradoem Antropologia social) - São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018.
  • RIBEIRO, Raphael R. Futebol de mulheres em tempos de proibição: o caso das partidas Vespasiano x Oficina (1968). Mosaico, v. 9, n. 14, p. 48-69, 2018.
  • SALATA, André. Race, Class and Income Inequality in Brazil: a Social Trajectory Analysis. Dados, v. 63, n. 3, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/dados.2020.63.3.213
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/dados.2020.63.3.213
  • SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade, v. 20, n. 2, p. 72-99, 1995.
  • SILVA, Giovanna Capucim e. Narrativas sobre o futebol feminino na imprensa paulista: entre a proibição e a regulamentação (1965-1983). Dissertação ( Mestrado) - São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.
  • SILVA, Graziella M.; LEÃO, Luciana T. de Souza. O paradoxo da mistura. Identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, n. 80, p. 117-133, 2012.
  • SILVA, Paula; BOTELHO-GOMES, Paula; GOELLNER, Silvana V. Masculinities and sport: the emphasis on hegemonic masculinity in Portuguese physical education classes. International Journal of Qualitative Studies in Education, v. 25, n. 3, p. 269-291, 2012.
  • SMITH, Yevonne R. Women of color in society and sport. Quest, v. 44, n. 2, p. 228-250, 1992.
  • SOUSA, Eustáquia S. de; ALTMANN, Helena. Meninos e meninas: expectativas corporais e implicações na educação física escolar. Cadernos Cedes, v. 19, n. 48, p. 52-68, 1999.
  • WALKER-PICKETT, Moneque; DAWKINS, Marvin; BRADDOCK, Jomills. Race and gender equity in sports: Have white and African American females benefited equally from Title IX? American Behavioral Scientist, v. 56, n. 11, p. 1581-1603, 2012.
  • 1
    Compreendemos raça como uma construção social, por isso, é importante descrever os parâmetros utilizados na denominação de negros no Brasil. O IBGE, em 2015, trabalhou com a pergunta “qual é a sua cor ou raça?” e como resposta: “preto, branco, pardo, amarelo ou indígena”. Como esse “colorismo” é criticado na literatura do tema, aqui compusemos uma oposição entre brancos e negros. Conforme tem sido problematizado por outros autores, pardos e pretos representam a categoria dos negros no Brasil, por partilharem uma ascendência africana que pode contribuir para discriminação (COSTA, 2019; SILVA; LEÃO, 2012).
  • 2
    Mantivemos os nomes das categorias idênticos ao definido e utilizado pela PNAD 2015.
  • 3
    Segundo dados da mesma pesquisa, 95% das pessoas que afirmaram praticar esporte disseram que isso ocorre pelo menos uma vez por semana, sendo que 66,7% pratica esporte em três ou mais dias da semana.
  • 4
    Segundo o IBGE (2017), a opção de cor parda inclui: mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça.
  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho não contou com apoio financeiro

Editado por

RESPONSABILIBADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Ivone Job*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*, Silvana Vilodre Goellner*
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2020
  • Aceito
    23 Dez 2020
  • Publicado
    27 Jan 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: movimento@ufrgs.br