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CURRÍCULO CULTURAL: OUTRAS POSSIBILIDADES DE PENSAR A RESSIGNIFICAÇÃO

CULTURAL CURRICULUM: OTHER POSSIBILITIES OF THINKING ABOUT RESIGNIFICATION

CURRÍCULO CULTURAL: OTRAS POSIBILIDADES DE PENSAR LA RESIGNIFICACIÓN

Resumo

Neste artigo, apresentamos o modo como o encaminhamento didático-metodológico do Currículo Cultural da Educação Física denominado ressignificação emerge nas aulas do componente e alguns de seus possíveis efeitos nos modos de subjetivação dos discentes. Por meio de uma autoetnografia, produzimos um relato de prática pedagógica, o qual analisamos com base no quadro teórico que ancora essa perspectiva curricular e nas noções de governamentalidade e contraconduta desenvolvidas por Michel Foucault. Notamos que a ressignificação desponta nas ações de resistência promovidas pelos discentes em relação aos modos de regulação das aulas e da prática corporal em estudo. Visto que essas resistências possibilitaram aos discentes elaborarem ações de contraconduta. Um processo que possibilitou outras conduções de si, do outro, assim como diferentes formas de ser, viver e pensar sobre a prática corporal em estudo, potencializando práticas de liberdade.

Palavras-chave:
Educação Física; Currículo; Basquete; Resistência.

Abstract

In this article, we present in which way the didactic-methodological proceeding of the Cultural Curriculum of Physical Education called resignification emerges, and some of its possible effects on the students' modes of subjectivation. By means of an autoethnography, we produced a report of pedagogical practice, which we analyzed based on the theoretical bases that anchors this curricular perspective and the notions of governmentality and counter-conduct elaborated by Michel Foucault. We noticed that the resignification emerges in the resistance actions promoted by the participants in relation to the ways of regulating the classes and the corporal practices under study, since these allow students to elaborate counter-conduct actions. A process that made possible other conducts of self, of others, as well as different ways of being, living and thinking about the corporal practices under study, potentiating practices of freedom.

Keywords:
Physical education; Curriculum; Basketball; Resistance.

Resumen

En este artículo presentamos la forma en que emerge en las clases componentes el enfoque didáctico-metodológico del Currículo Cultural de Educación Física denominado resignificación y algunos de sus posibles efectos en los modos de subjetivación de los estudiantes. A través de una autoetnografía elaboramos un relato de la práctica pedagógica, que analizamos a partir del marco teórico que ancla esta perspectiva curricular y las nociones de gubernamentalidad y contraconducta desarrolladas por Michel Foucault. Notamos que la resignificación emerge en las acciones de resistencia promovidas por los estudiantes en relación a las formas de regular las clases y la práctica corporal en estudio, ya que estas permiten a los estudiantes elaborar acciones de contraconducta. Un proceso que posibilitó otras conductas del yo, del otro, así como diferentes formas de ser, vivir y pensar el cuerpo en estudio, potenciando prácticas de libertad.

Palabras clave:
Educación Física; Currículo; Baloncesto; Resistencia.

INTRODUÇÃO1 1 O presente artigo é um desdobramento da dissertação de SILVA JÚNIOR, Welington Santana. Currículo cultural e a ressignificação: efeito das práticas de resistência. Orientador: Mário Luiz Ferrari Nunes. 2021. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas: São Paulo, 2021.

Face às diversas formas de dominação presentes na sociedade, emerge no campo do saber das teorias pós-críticas o Currículo Cultural (CC) da Educação Física (EF) como forma de resistência às formas de regulação presentes na cultura corporal, que fixam identidades e limitam modos de ser. Sua aposta é na afirmação da diferença como potência de vida (NEIRA; NUNES, 2020NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. As dimensões política, epistemológica e pedagógica do currículo cultural da Educação Física. In: LARA, Larissa; ATHAYDE, Pedro; BOSSLE, Fabiano (org.). Ciências do Esporte, Educação Física e produção do conhecimento em 40 anos de CBCE: Educação Física Escolar. Natal: Edufrn, v. 5, p. 25-43. 2020.).

O CC promove ações didáticas para que os discentes realizem uma leitura semiótica e discursiva das práticas corporais, a fim de desestabilizarem as relações de poder na sociedade. Para isso, o CC problematiza os modos de governo vigentes; potencializa os saberes subjugados para que se produzam outras formas de vivenciar e dizer acerca da prática corporal escolhida como tema de estudo e de seus praticantes; habilita os discentes a perceber o caráter constitutivo da cultura, das subjetividades e de si mesmos, com vista à produção de práticas de liberdade (NUNES, 2018NUNES, Mário Luiz Ferrari. Planejando a viagem ao desconhecido: o plano de ensino e o currículo cultural da Educação Física. In: FERNANDES, Celina. (org.). Ensino fundamental - planejamento da prática pedagógica: revelando desafios, tecendo ideias. São Paulo: Editora Appris, 2018.; NEIRA; NUNES, 2020NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. As dimensões política, epistemológica e pedagógica do currículo cultural da Educação Física. In: LARA, Larissa; ATHAYDE, Pedro; BOSSLE, Fabiano (org.). Ciências do Esporte, Educação Física e produção do conhecimento em 40 anos de CBCE: Educação Física Escolar. Natal: Edufrn, v. 5, p. 25-43. 2020.). Com esses propósitos, o CC é posto em ação apoiado em um processo pautado em princípios ético-políticos e organizado através dos encaminhamentos didático-metodológicos.

Diante da carência de estudos sobre os encaminhamentos didático-metodológico, escolhemos análisar a ressignificação por termos percebido tanto em relatos de práticas como nas diversas pesquisas acerca do CC que ela está para além do exposto na literatura dessa proposta curricular da área. Para essa análise, apresentamos um relato de prática acerca do estudo do basquete com alunos dos anos iniciais do ensino fundamental, numa escola pública situada em uma cidade do Estado de São Paulo, a fim de contribuir com os estudos acerca do CC e do campo do currículo da EF.

Apoiados na teorização do CC e fazendo uso de duas ferramentas conceituais desenvolvidas por Foucault (2008)FOUCAULT. Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008., a saber - governamentalidade e contraconduta -, interpretamos como a ressignificação ocorre durante as aulas de EF a partir das seguintes questões: quais são os efeitos da ressignificação no processo de leitura e interpretação de uma prática corporal, bem como de sua produção de sentidos? De que forma o docente atua nas aulas ao se deparar com os efeitos da ressignificação? Quais são as possibilidades desse encaminhamento em operar na transgressão dos limites normativos que as práticas corporais apresentam aos sujeitos?

2 MÉTODO

Para responder essas questões, produzimos dados através da autoetnografia pautada em Santos (2017)SANTOS, Silvio Matheus Alves. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: autores perspectivas e desafios. Plural - Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, v. 24, n. 1, p. 214-241, 2017. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/113972. Acesso em: 10 fev. 2023.
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. É um método de produção de dados empíricos que se materializa por meio das experiências dos sujeitos envolvidos na pesquisa. O autor manifesta que sua importância está nas narrativas discursivas pessoais em relação às experiências tanto dos sujeitos pesquisadores como dos pesquisados. Trata-se de um método que incide nas escolhas sobre o que deve ou não ser registrado. Uma escolha que se dá por pensamentos e atitudes racionalizadas politicamente devido aos processos de subjetivação que atravessam o pesquisador, limitando a condução da pesquisa por conta dos discursos (acadêmico-científicos, pedagógicos, morais etc.) que posicionam o sujeito-pesquisador em determinada ordem discursiva. Mesmo que se busque atentar às forças que mobilizam o pesquisador, é inevitável que a pesquisa esteja contaminada pelos regimes de verdade do método e do campo teórico que a estrutura.

Escolhemos esse método devido às especificidades que o caracterizam e o explicam na valorização da inclusão das experiências do sujeito pesquisador, a começar pelo objeto de pesquisa escolhido. A partir da escolha do objeto\tema que será pesquisado, o pesquisador leva em consideração alguns meios, a saber: a história de vida do sujeito ou grupo que pretende pesquisar, as diversas formas de registrar e de registros, a memória e a autobiografia (SANTOS, 2017SANTOS, Silvio Matheus Alves. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: autores perspectivas e desafios. Plural - Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, v. 24, n. 1, p. 214-241, 2017. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/113972. Acesso em: 10 fev. 2023.
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). Diante dessas características, dos nossos interesses e do ferramental de análise adotado, atentamo-nos ao cuidado com as ações que pudessem ser tomadas como consciência pura que interferissem nas análises dos dados produzidos. Demos maior vazão aos acontecimentos, às contingências, sem uma seleção prévia do material que pudesse ser incluído ou excluído ou de qualquer expectativa da prática pedagógica desenvolvida.

Mediante as questões do método e dos referenciais adotados, produzimos um relato de prática com base nas experiências pedagógicas no transcorrer de todo o ano letivo de 2019. As aulas ocorreram em uma escola municipal, situada em um dos maiores municípios do estado de São Paulo, com turmas de 3ºs e 4ºs anos do ensino fundamental, séries iniciais. As turmas são compostas em média por 28 alunos, de conformação heterogênea em relação a questões de raça e gênero. A escola fica em bairro próximo da moradia das crianças, fator que implica o seu deslocamento por meio de transporte escolar fornecido pela prefeitura. O bairro onde os alunos residem é relativamente novo na cidade, com insuficiente infraestrutura, o que explica a necessidade das crianças frequentarem a escola de outro localidade.

Quanto ao docente, ele atua na rede pública desse município desde 2014. Ingressou nessa escola onde descreve o relato de prática em 2018, após um processo de remoção de local de atuação que acontece anualmente. A sua trajetória é marcada pela dupla formação (Bacharelado e Licenciatura), por uma prática que transitou por várias teorias pedagógicas (BRACHT, 1999BRACHT, Valter. A constituição das teorias pedagógicas da Educação Física. Cadernos Cedes, Ano XIX, n. 48, p. 69-88, ago. 1999. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/3NLKtc3KPprBBcvgLQbHv9s/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 10 fev. 2023.
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) até tomar contato com os estudos do campo do currículo em um curso de extensão universitária cujo enfoque foi a perspectiva curricular pós-crítica da EF. Desde então busca atuar pedagogicamente com o CC, o que implicou em estudos stricto sensu. A escolha do tema basquete decorreu das atividades de mapeamento, como propõe um dos encaminhamentos do CC (NEIRA; NUNES, 2006NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Pedagogia da cultura corporal. São Paulo: Phorte Editora, 2006., 2020; NUNES, 2018NUNES, Mário Luiz Ferrari. Planejando a viagem ao desconhecido: o plano de ensino e o currículo cultural da Educação Física. In: FERNANDES, Celina. (org.). Ensino fundamental - planejamento da prática pedagógica: revelando desafios, tecendo ideias. São Paulo: Editora Appris, 2018.). As atividades de mapeamento realizadas permitiram identificar a posição de sujeito das crianças nos discursos das práticas corporais, principalmente os esportivos, que fazem parte dos seus contextos sociais.

As atividades que mobilizaram o docente a escolher o basquete foram: a) conversa em pequenos grupos acerca das práticas corporais que praticavam e acessavam por meios diversos ou preferiam; b) registros escritos e ilustrações que identificassem saberes acerca de ditas práticas; c) vivências combinadas entre os colegas com o uso de materiais disponíveis na escola. Nessas produções, o basquete foi referenciado com mais evidência do que outras. Cabe destacar que, no ano anterior, a escola investiu na compra de tabelas de basquete, acontecimento que motivou os alunos para a sua prática. Assim como algumas vivências anteriores com esse esporte, porém, sem aprofundamento.

As aulas sobre o basquete tiveram duração de um ano. Enfatizamos que esse tempo não foi originalmente previsto. Como consta na literatura do CC, o plano de estudo não é delimitado pelo docente ou pelo calendário escolar. Ele é produzido de forma imanente, no devir-aula, mediante as problematizações que emergem nas aulas (SANTOS; NEIRA, 2016SANTOS, Ivan Luis; NEIRA, Marcos Garcia. A tematização no ensino de Educação Física . In: CANO, Márcio Rogério de O.; NEIRA, Marcos Garcia. Educação Física cultural. São Paulo: Blucher, 2016.). As problematizações, enquanto fios condutores da tematização (NUNES; 2018NUNES, Mário Luiz Ferrari. Planejando a viagem ao desconhecido: o plano de ensino e o currículo cultural da Educação Física. In: FERNANDES, Celina. (org.). Ensino fundamental - planejamento da prática pedagógica: revelando desafios, tecendo ideias. São Paulo: Editora Appris, 2018.) exigiram mais elementos para o estudo, logo, mais tempo para a sua produção. Outro aspecto a ser sublinhado é que as crianças das turmas tiveram contato em séries anteriores tanto com o docente como com a perspectiva do CC. Sem dúvida, um fator que permitiu com que as práticas pedagógicas apoiadas nessa perspectiva curricular fosse melhor compreendida e consequentemente aceita pelas crianças.

Os registros foram feitos a cada aula em um diário de bordo, diante de cada situação, enunciado, conflitos e indagações percebidos - também registramos os eventos das aulas por meio de fotos, áudios e vídeos. Tal relato de prática foi analisado por meio da teorização do CC e com base nos conceitos de governamentalidade e contraconduta formulados pelo filósofo Michel Foucault.

3 CURRÍCULO CULTURAL

O CC apoia-se nas teorias curriculares pós-críticas, em especial aquelas decorrentes do pensamento pós-estruturalista. Para Lopes (2013)LOPES, Alice Casimiro. Teorias pós-críticas, política e currículo, Dossiê temático da investigação educacional no Brasil. Educação, Sociedade & Culturas, n. 39, p. 7-23, 2013. Disponível em: https://www.fpce.up.pt/ciie/sites/default/files/02.AliceLopes.pdf. Acesso em: 10 fev. 2023.
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, as teorias pós-críticas de currículo baseiam-se em pressupostos que colocam em xeque as noções de realidade, verdade, linguagem, sujeito e sociedade. Nesse campo intelectual, a identidade das coisas não é fixa, tudo está em constante construção, desconstrução e criação, em disputa pelo controle do que venha ser uma verdade. Neira e Nunes (2009aNEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Praticando estudos culturais na Educação Física. São Caetano do Sul: Yendis, 2009a.; 2020) indicam que, pelo CC, os professores e estudantes podem abordar quaisquer dos elementos discursivos que formam as práticas corporais (danças, lutas, esportes, ginásticas, brincadeiras etc.), entendida por eles como cultura corporal. O CC dá embasamento para que os sujeitos (discentes e docentes) atuem diante das relações de poder que moldam os processos de subjetivação que atravessam a cultura corporal com um objetivo principal: produzir pensamentos e outras formas de estar e atuar no mundo.

Sendo assim, o CC é colocado em ação diante de um complexo processo didático-pedagógico em que o acesso às práticas não-discursivas e discursivas que criam as práticas corporais são lidas, problematizadas, vivenciadas e escritas. É pela leitura dos diferentes códigos de comunicação (NUNES, 2016NUNES, Mário Luiz Ferrari. Afinal, o que queremos dizer com a expressão “diferença”? In: NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari (org.). Educação Física Cultural: por uma pedagogia da(s) diferença(s). Curitiba: CRV, 2016. v. 13, p. 15-66.) que dão significados à prática corporal que os estudantes percebem as relações de poder entre os sujeitos e a cultura. Essas leituras tomam a diferença como potência e não como negação de uma identidade; problematizam-se as formas de regulação das práticas corporais, dos praticantes, dos espaços da sua ocorrência social e dos discursos que as produzem e que as envolvem para além das estruturas da prática em si, como as questões políticas, sociais, étnicas, religiosas, sexuais, geracionais, de gênero etc.

É por meio dessas diferentes formas de fazer e problematizar as leituras que os discursos são acessados, desconstruídos e reconstruídos em um processo permanente de vivência, interpretação, análise, crítica e criação. Desse modo, os alunos se percebem pertencentes e determinados pela cultura, como também, produtores culturais. O processo de leitura é perpassado pela problematização. Essa só é possível de acontecer mediante o modo como os docentes são agenciados por princípios ético-políticos que caracterizam o CC: afirmar a diferença, ancoragem social dos conhecimentos, evitar o daltonismo cultural, justiça curricular e descolonização curricular - para com esses planejarem situações didáticas pautadas nos encaminhamentos didático-metodológicos: mapeamento, vivência, leitura, ampliação, aprofundamento, ressignificação, registro e avaliação, sem que haja uma linearidade a ser seguida, tampouco um modo único de realização (NEIRA; NUNES, 2006NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Pedagogia da cultura corporal. São Paulo: Phorte Editora, 2006.; 2009b; 2020).

Como anunciado, entre os encaminhamentos propostos no CC, tomamos por objeto a ressignificação. Para Neira e Nunes (2006)NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Pedagogia da cultura corporal. São Paulo: Phorte Editora, 2006., a ressignificação ocorre durante as discussões que visam permitir que os alunos percebam que as práticas corporais não são fixas e imutáveis, mas sim, construídas, desconstruídas e reconstruídas culturalmente nas relações de poder que as produzem e as governam. Desse modo, “cada regra, cada jogo, cada procedimento será debatido com os alunos, a fim de ‘descobrir’ de forma coletiva uma alternativa para realização daquela prática corporal” (NEIRA; NUNES, 2006NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Pedagogia da cultura corporal. São Paulo: Phorte Editora, 2006., p. 55).

Neira e Nunes (2009b)NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Educação Física, currículo e cultura. São Paulo: Phorte Editora, 2009b. ampliam a teorização da ressignificação, elucidando que as práticas corporais são modificadas conforme as situações socioculturais em cada momento e lugar. A partir dessa premissa, afirmam que mudanças podem ocorrer nas práticas corporais escolhidas como temas de estudos diante das possibilidades e necessidades de os discentes problematizarem as questões étnicoraciais, classe social, religião, sexualidade, gênero, geração etc. Tais ações conduzem para uma ressignificação dos modos de fazer e dizer acerca da prática investigada, que poderá acontecer através das correlações das práticas corporais com as microestruturas e as macroestruturas sociais, tornando viável a modificação de seus sentidos.

Esse encaminhamento pode surgir nas constantes atividades nas aulas, nas quais a “vivência é sucedida pela ressignificação, ou seja, a prática corporal é reconstruída, reelaborada, recriada com base nas negociações” (NEIRA; NUNES, 2020NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. As dimensões política, epistemológica e pedagógica do currículo cultural da Educação Física. In: LARA, Larissa; ATHAYDE, Pedro; BOSSLE, Fabiano (org.). Ciências do Esporte, Educação Física e produção do conhecimento em 40 anos de CBCE: Educação Física Escolar. Natal: Edufrn, v. 5, p. 25-43. 2020., p. 39). Entendemos que os alunos, ao vivenciarem a prática corporal, interpretam por meio das leituras dos códigos diferentes sentidos acerca dela, e, ao confrontarem seus saberes com as várias interpretações realizadas pelos demais colegas ou outras apresentadas pelo docente, assim como, com as formas de regulação que as constituem, promovem a possibilidade do dissenso e com ele fazem da aula um lugar de negociações, de disputa por significados, de potencialização dos espaços e das formas de resistência.

Ao percebermos a resistência nesses processos de leituras, interpretações, negociações e produções, nos remetemos à governamentalidade das condutas, que, quando resistidas, dão espaço para a produção de outras formas de atuação ou, em termos foucaultianos, de contraconduta.

4 A RESISTÊNCIA E A CONTRACONDUTA

Foucault (2008)FOUCAULT. Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. apresenta o conceito de governamentalidade como uma ferramenta de análise do governo das condutas, isto é, das relações de poder. A palavra governo não significa ter um poder do controle de tudo, reinar como um rei, ser autor das leis e obrigar que elas sejam cumpridas. Ela não está relacionada ao governo político dos Estados - seus sentidos vão além: significa “seguir um caminho ou fazer seguir um caminho” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT. Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 162). A governamentalidade permite ao sujeito planejar táticas e procedimentos com a finalidade de governar o outro, um grupo de pessoas, uma população ou a si mesmo, ou seja, conduzir ou deixar-se conduzir por meio do governo das condutas. Não por menos, a escola é um espaço de condução mediante leis educacionais, currículos, normas internas, os combinados do recreio etc.

Onde há poder, há resistência (FOUCAULT, 1979FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 8. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.). É nessas resistências próprias às relações de poder que resultam as revoltas de condutas no governo das mesmas, fazendo emergir a contraconduta, que para Foucault (2008)FOUCAULT. Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. é a negação de uma conduta em busca de outra forma de condução. A resistência refere-se à escolha de outras técnicas de governamento, de outras condutas de vida. Não se trata de negar a vida ou tampouco o governo mas, sim, em produzir outros modos de representá-la, vivenciá-la, senti-la, enfim, ser governado de outro modo.

Tal modo de operar a resistência (e, com ela, a contraconduta) nos permite analisar os modos de governo das práticas corporais. Isso pode ser observado em todo o movimento de profissionalização do esporte e nos modos “alternativos” que ocorrem em cada grupo social, época e lugar de prática. No entanto, um olhar mais apurado pode mostrar que se trata de processos de negociações de sentido e resistências. Caso contrário, não haveria a necessidade da normatização institucionalizada do esporte em federações, em suma, sua burocratização, que em termos foucaultianos pode ser tomada como estratégia de regulação e governo de condutas (FOUCAULT, 2014FOUCAULT. Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.).

Os jogos de forças diversos estão em todas as práticas corporais, seja em um pega-pega, em um jogo de cartas, bocha etc. Se um ou mais praticantes, em meio às relações de poder entre eles e a prática corporal vivenciada, decidir mudar as regras do jogo, negará as condutas postas anteriormente, negociando interesses e criando outras formas de fazer e, também, dizer. Em que pese a ruptura, a prática corporal nos faz crer que permanece a mesma, apenas modificando as formas de condução. Não significa negar o jogo mas, sim, mudar algumas formas de jogar conforme as discussões e vontades dos jogadores.

Em casos mais extremos, quando as alterações são mais profundas, a ruptura é mais visível. Nesse caso, é possível notar a sua transformação, como pode ser observada pela(s) história(s) do futebol. A partir dos primeiros registros, na China, entre 2.000 e 1.500 a.c, em que há relatos de humanos chutando uma bola até a sua prática como a conhecemos hoje e institucionalizada na Inglaterra em 1848, data da primeira tentativa de uniformização das regras (FRANCO JÚNIOR, 2007FRANCO JUNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade e cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.). Nota-se um movimento incessante de negociações, resistência, mudanças e rupturas. Basta nos atentarmos para a prática do Rugby, Futebol Americano, Futebol de 7, Futsal, de botão, de rua etc., sendo que, muitas dessas também foram burocratizadas.

No entanto, para que a resistência nas relações de poder seja produtiva, é preciso que haja um mínimo de liberdade. São por meio das práticas de liberdade que os sujeitos produzem as práticas de resistência ao questionarem: por quem aceitamos ser conduzidos? Como queremos ser conduzidos? Em direção ao que queremos ser conduzidos? (FOUCAULT, 2008FOUCAULT. Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.). Percebe-se que tais questionamentos não são neutros, muito menos produzidos por um sujeito consciente ou autônomo, pois sempre os sujeitos estão presos às dinâmicas do poder, da linguagem e a certos processos de subjetivação.

Se onde há poder, há resistência, cabe realçarmos a questão da liberdade. Foucault (2004)FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos V: ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 258-280, 2004. questiona a liberdade plena, como posto pelos ideais iluministas e pela economia política liberal. Essa condição indica uma consciência pura ou o retorno do sujeito a um estado pleno de si, o que é impossível por estarmos sempre presos aos processos de significação e às forças que os produzem. Foucault (2004)FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos V: ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 258-280, 2004. nos tranquiliza, indicando a possibilidade de exercermos práticas de liberdade. Elas estão relacionadas ao estado de dominação e emergem quando entre o poder que domina também existe a liberdade para negociações, ou seja, surgem nas relações de poder em que existe por menor que seja um mínimo de liberdade.

Já nas relações de poder em que predominam os estados de dominação, por não haver liberdade, também não há práticas de liberdade. São as práticas de liberdade que permitem a produção de novos gestos e discursos, que por meio das ações interpretativas seus efeitos podem resultar na transgressão dos limites postos, isto é, - na transgressão das normas que determinam os significado das coisas,- consequentemente na criação de outros significados devido às experiências do sujeito (FOUCAULT, 2004FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos V: ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 258-280, 2004.) - no nosso caso, as experiências produzidas nas aulas.

O limite é o que tem sido defendido como verdade absoluta nas discussões polêmicas, como: política, etnias, sexualidade, gênero, religião etc. Segundo Foucault (2009)FOUCAULT. Michel. Prefácio à transgressão. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos III. estética: literatura e pintura, música e cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 28-46 2009., a transgressão dos limites é semelhante a um jogo, em que simultaneamente ao transgredir\romper um limite, aquilo que foi transgredido, aberto para outras possibilidades, se fecha, e um outro limite passa a ser constituído.

A transgressão não traz em si um sentido negativo por apontar o limite das coisas e assim indicar o ilimitado. Nesse sentido, a transgressão é algo positivo, necessária para indicar que em nada existe uma única verdade, um único significado fechado. Desse modo, os sujeitos, ao transgredirem os limites das práticas corporais por meio das práticas de liberdade, passam de leitores e reprodutores de sentido para produtores de textos, de consumidores de cultura para produtores culturais, de sujeitos assujeitados pela moral normativa para sujeitos éticos capazes de atuar sobre si, na vida.

Conforme Foucault (2004)FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos V: ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 258-280, 2004., a prática da liberdade tem relação direta com a ética. Nos seus estudos acerca do mundo greco-romano antigo, ele percebeu que a liberdade é tratada como ética referente ao cuidado de si, em que desde os diálogos platônicos aos textos referentes ao estoicismo tardio percebe-se que o cuidado de si percorreu todo o pensamento moral. Um exemplo dado por Michel Foucault está na ordem da sexualidade, em que o sujeito no cuidado de si, liberando seus desejos diante das suas práticas de liberdade, saberá como conduzir-se de forma ética nas relações de prazer com o outro. Desse modo, compreendemos que na Antiguidade, a ética foi tida como uma prática racional que se deu no cuidar-se de si mesmo.

Na sociedade contemporânea, segundo esse mesmo filósofo, o cuidado de si passou a ser algo um tanto quanto suspeito, talvez até ambíguo referente às influências do cristianismo. O fato de o sujeito ocupar-se de si, a partir de um certo momento, poderia ser interpretado como uma forma de egoísmo ou de interesse próprio, na qual não há uma preocupação com o próximo, contrariando a ética cristã. Sendo assim, o cristianismo provocou diferentes modos de pensar sobre as práticas de liberdade no cuidado de si de forma racionalizada, ou seja, eticamente, provocando um paradoxo em que a busca pela salvação por meio dos sacrifícios, da negação do corpo e de seus desejos é um meio de cuidar-se de si conforme a moralidade cristã - um modo de pensar diferente da Antiguidade entre os gregos e romanos.

Por outro lado, o cuidado de si contemporâneo também foi influenciado pelas ciências médicas e psicológicas, pelo mundo do trabalho, pelo capital, que sobrevalorizaram o corpo, os desejos e os prazeres, tornando-se um cuidado de si que conduz o sujeito pela busca da sua verdade última ou a decifrar suas estruturas e sistemas de significantes. Para Foucault (2010)FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso Collège de France (1981-1982). 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., trata-se de substituir a transcendência do ego pela imanência do sujeito que se constitui em ação, ou seja, um sujeito que cria a si próprio por meio de técnicas de si (ver-se, narrar-se, governar-se etc.) ao invés do sujeito contemporâneo que é constituído por técnicas de dominação produzidas por tais saberes. O cuidado de si é um modo de estar no mundo atento às nossas práticas. Sem o cuidado de si, não há práticas de liberdades nos sistemas de dominação, inclusive nas formas de dominação dos nossos desejos sobre nós mesmo.

5 O BASQUETE, AS AULAS, A RESSIGNIFICAÇÃO COMO EFEITO DA RESISTÊNCIA

Logo nas primeiras aulas acerca do basquete, tivemos as primeiras experiências com o jogo. As crianças jogaram conforme suas experiências e leituras dessa prática corporal. Em cada turma percebemos uma forma de jogar, algumas semelhantes, outras distintas. Houve muita confusão nesses jogos quanto aos modos de sua realização. Notamos nas gestualidades das crianças uma proximidade com o basquete profissional, que indica a hegemonia dos modos de sua publicização, fato que mobilizou nossos modos de planejar as aulas para melhor tematizá-lo.

Após assistirmos ao vídeo de um jogo de basquete profissional, as crianças notaram o modo como o jogo é regulado. Discutimos as interpretações das imagens para melhor compreendermos os problemas ocorridos nos jogos realizados em cada turma nas primeiras aulas. Depois da discussão, propusemos que pensassem em como resolver os problemas gerados nos primeiros jogos, que foram permeados pelos estudos de algumas regras que conheciam previamente. Como respostas, sugeriram algumas alterações para controlar e organizar o jogo nas próximas vivências na quadra:

Montar times menores;

Separar os times por coletes.

Não tomar a bola à força;

Não demorar em quicar a bola, se demorar tem que fazer o passe ou arremessar.

Conforme as sugestões produzidas, vivenciamos outras formas de jogar. Após discutirmos essas vivências, algumas crianças indicaram a importância das regras para a regulação do comportamento dos jogadores. Porém, também questionaram as limitações impostas pelas regras, por impedirem algumas de jogarem como gostariam. Aspectos que também foram discutidos, tomando por base o critério de jogo coletivo e acordado entre todos.

Durante as aulas, em um dado momento, as cestas de basquete quebraram, gerando outro problema: “de que forma poderíamos jogar o basquete sem as cestas?”

Com arcos;

Com cestos de lixo;

Usando baldes;

Acertando a bola nos travessões dos gols;

Mediante essas propostas, percebemos que as crianças não desistiram do basquete; ao invés disso, produziram outras possibilidades de jogo. Fato que provocou mobilizações por parte delas junto à direção da escola para a compra de novas tabelas. Notamos nessas atitudes uma ação de resistência, que resultou não somente em outros modos de jogar, mas num ato político.

Nas problematizações sobre as regras do basquete, emergiu a necessidade de abordarmos as súmulas do jogo e o modo de comunicação dos árbitros com os mesários. As crianças, ao perceberem a complexidade dos gestos de arbitragem e diante da dificuldade tanto em fazê-los como em compreendê-los, novamente apresentaram resistência à governamentalidade do jogo. Acharam melhor trocarem a comunicação gestual pela verbal, assim como sugeriram a construção de súmulas com outros formatos.

Um processo de resistência que permitiu novas ideias e produções, algumas assujeitadas ao basquete, como escrever números nas camisetas dos jogadores, outras que incidiram no desenvolvimento de súmulas diferentes das oficiais. Fato que gerou dois modos de ressignificar, sendo: as modificações das regras visando adequar a prática corporal às condições atuais do grupo para uma desconstrução dos significados, desse modo, criar outros; a contraconduta referente às comunicações dos árbitros com os mesários, constituindo outro jeito de fazer em relação ao basquete em competições oficiais.

A fim de ampliarmos o tema em estudo, convidamos algumas pessoas que praticam o basquete para uma visita e experiência na escola. Primeiro, recebemos um jogador profissional, que treinou e participou de jogos pela LSB (Liga Sorocabana de Basquete), pelo Internacional de Regatas Santos, na categoria sub 19 e adultos, e naquele momento estava jogando pela escola preparatória da Cooper International Academy, nos Estados Unidos. Ele nos concedeu uma entrevista e promoveu vivências de treinos com movimentações específicas do basquete. Durante a entrevista, as perguntas concentraram-se na sua altura (2,12 m); perguntaram sobre a possibilidade de uma pessoa de menor estatura jogar profissionalmente. O entrevistado respondeu que sim, porém, haveria a necessidade de muito treinamento físico e muita técnica ao jogar, mas que, nos processos seletivos de jogadores, a altura poderia impactar na escolha.

Entre os pontos que mais chamaram a atenção das crianças esteve a desconstrução do discurso que defende um basquete profissional a ser praticado somente por pessoas altas.

Entendemos que as pessoas baixas e gordinhas também podem jogar;

As pessoas baixinhas podem jogar, mas precisam treinar muito.

É notório que essa vivência para as crianças possibilitou a leitura e análise dos discursos que circulam na sociedade reforçando as eficiências e exclusões e, a partir dela, puderam desconstruir e reconstruir os modos como discursam o basquete. Isso indica um processo de disputas de significados, que são mobilizados a partir dos embates entre pontos de vista que os alunos tinham antes das aulas e as situações didáticas promovidas, gerando a ressignificação.

Depois dessas vivências e ressignificações acerca do basquete profissional, iniciamos as tematizações com o jogo de streetball e 3x3, práticas que emergiram dos relatos de algumas crianças que frequentavam centros esportivos públicos da cidade.

De início, nosso objetivo estava em analisarmos o basquete profissional e fazermos uma comparação com o urbano, por meio das experimentações e vivências de cada um. Notamos que o streetball despertou maiores interesses que o basquete profissional, algo que nos levou a promoção de muitas vivências. Da mesma maneira como fizemos com o basquete profissional, assistimos alguns vídeos de alguns jogos tanto do streetball como do 3x3, e procuramos jogá-los na quadra conforme a ocorrência social dessas práticas.

No entanto, diante de tais experiências, novas discussões e resistências ocorreram. Houve uma negociação entre os grupos que resultou na produção de outras regras e formas de jogar o basquete urbano, o que indica os efeitos das ações de ressignificação:

Professor, vamos fazer 4x4. Queremos jogar todos ao mesmo tempo, no 4x4 ninguém fica na reserva.

Queria jogar o 3x3, mas usando as duas cestas.

De acordo com as regras do 3x3, o time é composto por 4 jogadores; 3 jogam e um fica na reserva. É nesse ponto que percebemos a resistência, pois todos queriam jogar ao mesmo tempo, sem jogador reserva. O argumento foi que jogariam um tempo maior. Também propuseram em jogar o 3x3 fazendo uso das duas cestas. Entendemos que ambas as atitudes são formas de resistência ao padrão de normalidade da prática corporal. Segundo as crianças, isso tornaria o jogo mais interessante. Temos aí novamente atitudes de resistência que resultaram em outra forma de contraconduta. Esse processo permitiu às crianças perceberem que a identidade do basquete 3x3 e de outras práticas é fruto de negociações e disputas, que, por não ser algo natural, mediante uma atitude crítica de negar as formas de ser conduzido é possível construir outras formas de jogar mais afeitas às particularidades de cada grupo. Um modo de resistir que se refere a uma forma de afirmar a vida indo além de todo modo de governo atuante. Trata-se de um processo de resistir e re-existir. Tal processo inicia com o sujeito percebendo a sua constituição e a governamentalidade envolvida nesse movimento formativo (GALLO, 2017GALLO, Sílvio. Biopolítica e subjetividade: resistência? Educar em Revista, v. 33, n. 66, p. 77-94, out,/dez. 2017. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/educar/article/view/53865. Acesso em: 19 fev. 2023.
https://revistas.ufpr.br/educar/article/...
) para caminhar para a constituição de si no ato de sua ação e não por imposição hierárquica tanto por parte do professor quanto por algum aluno que apresente saberes técnicos acerca da prática, como comumente observamos nas aulas do componente e na prática esportiva em si.

Ainda com o basquete urbano, para uma das aulas convidamos um grupo de jogadores do basquete 3x3 e streetball. As curiosidades das crianças novamente nos levaram à promoção de uma entrevista. Da mesma forma, os convidados também promoveram algumas vivências aproximando-se do modo como essas práticas se dão nas ruas e parques da cidade. Do mesmo modo como fizemos com a entrevista com o jogador do basquete profissional, planejamos com os estudantes algumas perguntas prévias para iniciarmos as conversas, para que outras surgissem no devir da aula/entrevista.

Nas aulas em que ocorreram as entrevistas, expliquei como aconteceriam as vivências. Em seguida, as crianças leram as perguntas que planejaram anteriormente. Sem muita demora, as perguntas livres começaram a surgir. Depois desse momento, os convidados fizeram duas apresentações ao som do hip-hop, sendo uma do 3x3 e outra do streetball. Na aula seguinte, perguntamos o que aprenderam com tais vivências.

Que tem muitos jogadores de menor, que largam a escola para treinar o basquete profissional, que tem que estudar primeiro para depois tentar ser um jogador;

Alguns fazem faculdade e também jogam o basquete 3x3;

Não podemos apostar só no basquete, temos que ter uma base (escolar), caso o basquete não dê certo;

Que o basquete profissional não aceita os jogadores pequenos, já o 3x3 e o streetball aceitam, isso acontece comigo, quando ninguém passa a bola para mim porque sou pequena;

No 3x3 todos pegaram na bola, eles aceitam nossas diferenças;

Que no streetball aceita jogadores de todas as idades, até as crianças, no profissional não;

Que não são só as pessoas altas que podem jogar o streetball, as baixas também podem;

Aprendi que a gente joga errado;

O jeito de dividir os times é diferente;

Que eles fazem graça para fazer cestas;

No basquete profissional tem faltas que no streetball não é falta;

Que em 2020 vai ter o 3x3 nos Jogos Olímpicos;

A vitória é do time que fizer 21 pontos;

Que eles usam bermudas compridas para não machucar os joelhos no asfalto.

Em que pese notarmos a força dos discursos da escolarização, indicando assujeitamento a esses sem contestação, notamos que as vivências por meio da visita dos praticantes do basquete urbano ofereceram para as crianças diferentes leituras desse esporte e, através de ditas leituras, a produção de um olhar crítico para si mesmo, evidenciada pela fala de uma das alunas sobre sua altura. Isso possibilitou ao grupo produzir outra interpretação: que o basquete profissional provoca seletividade resultando em exclusões, enquanto o basquete urbano é diferente, porque aceita nossas diferenças e, com isso, produz outras formas de praticarem o jogo.

Outra fala nos levou para outra reflexão:

Estamos jogando errado!

Algo que nos mostrou a relevância de oferecer elementos que possibilitem outras leituras do basquete nas aulas para os alunos. A questão da vestimenta é um outro exemplo, em que o uso da bermuda comprida serve para proteger os joelhos de lesões em caso de quedas em pisos rústicos, aspecto esse explicado pelos entrevistados quando questionados sobre suas roupas. Fatos como esses nos conduziram para uma avaliação quanto ao modo como acessamos e organizamos os jogos de basquete.

6 CONSIDERAÇÕES

Ao analisarmos esses dados por meio do campo teórico do CC e das ferramentas conceituas apresentadas, percebemos que a resistência emergiu pela leitura dos alunos dos códigos de comunicação produzidos pela linguagem corporal do basquete. Resistência que aconteceu por meio de novas escrituras, através de outras práticas discursivas e não discursivas produzidas nas aulas a respeito da prática corporal em estudo.

Percebemos que os efeitos da ressignificação no processo de leitura e compreensão da prática corporal em estudo, assim como da produção de outros significados e condutas por parte das crianças, se deram quando elas construíram outras formas de vivenciar o basquete, o 3x3 e o streetball. Algo que só foi possível ao notarem que poderiam por meio da resistência às governamentalidades postas para suas conduções, produzir outras, tanto para se conduzirem como para a condução do jogo. Desse modo, as crianças compreenderam que suas identidades (ser alto, baixo, habilidoso etc.) assim como a do basquete (esporte para certos corpos e praticado de certo modo) não são fixas mas passíveis de transformações, potentes para a transgressão dos limites que as definem.

Essas análises nos permitiram entender que a potência da ressignificação para a transgressão dos limites normativos impostos pelo basquete, ou qualquer prática corporal, emergiu nas produções, negações e criações de algumas regras e formas de jogar mobilizadas por práticas de resistência. Nessas, as crianças se perceberam como sujeitos que produzem práticas de liberdade, isso é, atuam de maneira ética na aula mesmo diante da governamentalidade do basquete, da escola e do professor. Não se trata de uma liberdade irrefletida, irresponsável, mas uma forma de resistir aos modos de governo da prática corporal, a fim de criarem outras formas de jogar possíveis no interior do sistema de verdade do próprio basquete. Elas continuaram sendo governadas de um modo construído coletivamente em meio às controvérsias, negociações e às relações de poder que se estabeleceram nas aulas. No entanto, não se trata de uma criação no sentido de objeto de sujeição, como ocorre nas práticas sociais, na escola ou em outras perspectivas de EF, ou mesmo de um individualismo narcísico, mas de uma subjetivação ativa capaz de arriscar a si mesma diante das formas de dominação da escola, da EF, da prática corporal que é inseparável dos modos de transformação de si mesmo enquanto sujeito governável.

Notamos também que a ressignificação emergiu nas análises e discussões em todo o percurso percorrido durante as aulas e não em alguns momentos isolados e planejados. Ao pensarmos assim, consideramos que ela se diferencia da estruturação de um encaminhamento didático-metodológico do CC, como está posto na literatura (NEIRA; NUNES 2006NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Pedagogia da cultura corporal. São Paulo: Phorte Editora, 2006.; 2009b) e em diversos relatos de experiências publicados acerca do CC. Sem dúvida, trata-se de algo mais complexo. A pesquisa nos permite tomar a ressignificação como um efeito do processo didático no devir da aula, nas quais o docente opera de modo a oferecer elementos que possibilitem tais processos diante das resistências apresentadas pelas crianças. Desse modo, entendemos que a ressignificação pode emergir a qualquer momento, na imanência da aula, diante das problematizações e atividades propostas pelos seus sujeitos, desde que haja liberdade para resistir, para transgredir os regulamentos normativos das práticas corporais e assim permitir que os sujeitos possam produzir outras formas de jogar, dizer e pensar.

Cabe destacar que um olhar desatento poderá supor que ações similares a essas ocorrem em outras perspectivas de EF. Porém, no CC, as ações não são dadas por um planejamento a priori, tampouco determinadas por uma sequência didática estabelecida a partir de uma avaliação diagnóstica dos conhecimentos prévios dos alunos, a fim de se chegar ao conhecimento já dado, seja o basquete profissional, o 3x3 ou o streetball. Muito menos trata-se de ações para a resolução de problemas com vistas ao desenvolvimento de competências e habilidades cognitivas e motoras. No CC, os saberes dos alunos e dos praticantes são os elementos centrais para as problematizações que alimentam e produzem cada aula, pois esses decorrem da experiência vivida por cada sujeito em sua história de vida e o modo como compreendem e acessam os códigos das práticas corporais (NUNES, 2018NUNES, Mário Luiz Ferrari. Planejando a viagem ao desconhecido: o plano de ensino e o currículo cultural da Educação Física. In: FERNANDES, Celina. (org.). Ensino fundamental - planejamento da prática pedagógica: revelando desafios, tecendo ideias. São Paulo: Editora Appris, 2018.). O que se produz nas aulas do CC são vivências abertas ao acontecimento, ao devir-aula (NEIRA; NUNES, 2009aNEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Praticando estudos culturais na Educação Física. São Caetano do Sul: Yendis, 2009a.). São elas que permitem aos discentes viverem experiências com a linguagem da prática corporal, tencionar seus limites para resistirem às formas de dominação impostas, como as que determinam as regras, os biótipos dos praticantes - para atuar na contraconduta e produzirem outras condutas e, com isso, assumir a identidade de produtores culturais por meio da criação para si de outros modos de estar naquele momento vivido.

  • 1
    O presente artigo é um desdobramento da dissertação de SILVA JÚNIOR, Welington Santana. Currículo cultural e a ressignificação: efeito das práticas de resistência. Orientador: Mário Luiz Ferrari Nunes. 2021. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas: São Paulo, 2021.
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
  • COMO REFERENCIAR

    SILVA JÚNIOR, Welington Santana; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Currículo cultural: outras possibilidades de pensar a ressignificação. Movimento, v. 29, p. e29008, jan./dez. 2023. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.124717

ÉTICA DE PESQUISA

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Número do parecer: 3.660.381, CAAE:18710719.3.0000.5404.

REFERÊNCIAS

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    » https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/113972

Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2022
  • Aceito
    21 Dez 2022
  • Publicado
    14 Abr 2023
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
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