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O DIVERTIMENTO IMPORTADO: UMA COLONIZAÇÃO CULTURAL NO SERTÃO NORTE-MINEIRO

IMPORTED AMUSEMENT: CULTURAL COLONIZATION IN NORTHERN MINAS GERAIS’S HINTERLAND (SERTÃO)

LA DIVERSIÓN IMPORTADA: UNA COLONIZACIÓN CULTURAL EN EL SERTÃO DEL NORTE DE MINAS GERAIS

Resumo

Este estudo objetivou analisar o desenvolvimento de aspectos modernos na cidade de Montes Claros, na primeira metade do século XX, localizada no Norte do estado de Minas Gerais, e problematizou as tensões sociais existentes entre a aquisição de novos hábitos e as antigas tradições locais. Foram buscadas informações na imprensa jornalística da época, a partir do periódico Gazeta do Norte, o jornal de maior circulação da cidade de Montes Claros no período de 1918 a 1962. Identificou-se que, no sertão do Brasil do século XX, as diversões se constituíram em meio a tensões entre a tradição e o moderno. Para além disto, o tempo e o espaço locais estabeleceram relações com a formação do binômio trabalho e divertimento em Montes Claros. O advento da modernidade permitiu a apropriação, não sem resistências e tensões, de um conjunto de valores e práticas que se distinguiam das vigentes no ordenamento social até então.

Palavras chave:
Atividades de Lazer; História do Século XX; Esportes; Trabalho

Abstract

This study analyzed the development of modern aspects of life in the first half of the 20th century in the city of Montes Claros, northern Minas Gerais, Brazil, and discussed the social tensions between acquisition of new habits and old local traditions. Information was sought from Gazeta do Norte, the most widely read newspaper in the city in 1918-1962. The study found that, in the Brazilian hinterland (known as sertão) of the 20th Century, forms of amusement were created amid tensions between tradition and the modernity. In addition, local time and space have established relations with the work/entertainment binomial in Montes Claros. The advent of modernity allowed appropriation - not without resistance and tensions - of a set of values and practices that were different from those that had prevailed in the social order so far.

Keywords:
Leisure activities; History, 20th Century; Sports; Work

Resumen

Este estudio tuvo como objetivo analizar el desarrollo de aspectos modernos en la ciudad de Montes Claros, ubicada en el norte del estado de Minas Gerais, en la primera mitad del siglo XX, y problematizó las tensiones sociales existentes entre la adquisición de nuevos hábitos y las antiguas tradiciones locales. Se buscó información en la prensa de la época a partir del periódico Gazeta do Norte, el diario de mayor circulación en la ciudad de Montes Claros en el período de 1918 a 1962. Se identificó que, en el semiárido brasileño del siglo XX, las diversiones se constituyeron en medio a tensiones entre la tradición y la modernidad. Además, el tiempo y el espacio locales establecieron relaciones con la formación del binomio trabajo y entretenimiento en Montes Claros. El advenimiento de la modernidad permitió la apropiación, no sin resistencias y tensiones, de un conjunto de valores y prácticas que se diferenciaban de las imperantes en el orden social hasta entonces.

Palabras clave:
Actividades recreativas; Historia del siglo XX; Deportes; Trabajo

1 INTRODUÇÃO

O texto Colonialidad y modernidad/racionalidad1 1 Texto originalmente publicado na revista Perú Indígena, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. Disponível em: https://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf. Acesso em: 28 abr. 2020. , do sociólogo peruano Aníbal Quijano, tornou-se um clássico quando se discute a instituição de um novo padrão de imposição de poder produzido pelos colonizadores ibéricos sobre as colônias americanas, subjugando índios, negros e mestiços pelo que denominaram “raça”. Quijano desenvolveu a ideia de dominação econômica exploratória pelo viés sociorracial, o que é plausível e verossímil. Contudo, podem-se aventar outras formas de dominação sofrida pelos latino-americanos. Neste artigo, pretende-se desenvolver a ideia da colonização cultural, instituída pela modernidade e pelo sentimento eurocêntrico e norte-americano, a partir da introdução de divertimentos tidos como modernos.

Historicamente, o que se observa é que a fórmula de dominação colonialista e imperialista se transforma com o passar do tempo. Principalmente em localidades ocidentais mais fragilizadas e menos desenvolvidas, há uma maior influência de agentes internacionais e, por consequência, são mais susceptíveis às imposições econômicas e culturais. Estas formas de dominação

[…] estariam sendo reproduzidas com outras roupagens, discursos, ações e estratégias pela preservação e a serviço dos mesmos interesses econômicos e políticos dos países centrais, capitaneadas por diferentes agências, instituições e atores transnacionais (BALLESTRIN, 2014BALLESTRIN, Luciana. “Colonialidade e Democracia”. Estudos Políticos, v. 5, n. 1, p.191-209, 2014., p.193).

Assim, haveria possibilidade de se observar a colonização pelo divertimento supostamente moderno numa dada localidade sertaneja? A instituição de práticas esportivas e o cinema, numa cidade do interior do Brasil, podem refletir a mesma ideia de dominação pela raça e trabalho, como desenvolvido por Aníbal Quijano? Por fim, indaga-se: como práticas de diversão, importadas da Europa pós-Revolução Industrial, influenciaram as subjetividades e a cultura da cidade de Montes Claros, sertão do Norte de Minas, na primeira metade do século XX?2 2 Optamos, aqui, por operar não com um conceito sociológico de lazer atrelado às práticas de divertimento, por entendermos que reside, aí, um anacronismo de percepção dessas experiências. Nesta direção, de acordo com o pesquisador Melo (2013), ao tratarmos dessas vivências de diversão, ao fim do século XIX e primeiras décadas do século XX, é pertinente considerarmos o “conceito nativo” de divertimento, ou seja, aquilo que os sujeitos, à época, consideravam como tal, para melhor compreensão dessa lógica.

Este trabalho objetivou analisar o desenvolvimento de aspectos modernos na cidade de Montes Claros, localizada no Norte do estado de Minas Gerais, e problematizou as tensões sociais existentes entre a aquisição de novos hábitos e as antigas tradições locais. Esta região “[…] está contida no ‘interior’ incivilizado”, influenciada por dois contextos de identidade sociocultural: “num viés territorial, pelo nordeste brasileiro de um lado e/ou pela região central de Minas Gerais pelo outro” (ALVES, 2018ALVES, Rogério Othon Teixeira. Formação identitária de Montes Claros: fronteiras políticas do sertão. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA - “HISTÓRIA, DEMOCRACIA E RESISTÊNCIA”, 21., 2018, Montes Claros. Anais… Montes Claros: ANPUH, 2018. Disponível em: http://www.encontro2018.mg.anpuh.org/resources/anais/8/1530814897_ARQUIVO_FormacaoidentitariadeMontesClaros_fronteirassertanejas_CORRIGIDO.pdf. Acesso em: 19 maio 2020.
http://www.encontro2018.mg.anpuh.org/res...
, p.5).

Para atingir os objetivos, foram buscadas informações na imprensa jornalística da época, notadamente a partir do extinto periódico Gazeta do Norte, o jornal mais importante e de maior circulação da cidade de Montes Claros no período de 1918 a 1962, acessado no Centro de Pesquisa e Documentação Regional da Universidade Estadual de Montes Claros - CEPEDOR/Unimontes, de entrada restrita e regulada. Foram consultadas todas as edições existentes do jornal Gazeta do Norte no período, e possíveis de serem acessadas no arquivo, considerando palavras-chaves como esportes, divertimentos e expressões correlatas que surgissem em quaisquer das páginas do jornal.

Especificamente sobre a periodicidade da Gazeta do Norte e o seu alcance informativo em Montes Claros, foi importante considerar o que disse Veloso (2008VELOSO, Geisa Magela. A missão “desanalfabetizadora” do jornal Gazeta do Norte, em Montes Claros (1918-1938). 2008. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008., p.70):

Se a influência dos imaginários sobre as mentalidades depende dos meios que asseguram a sua difusão, no contexto montes-clarense, em que outros jornais já haviam sido instalados e desativados, a Gazeta do Norte, com publicações regulares de 1918 até a década de 1960, ocupou um lugar diferenciado.

Enfim, sobre a relevância da imprensa como fonte de informações, é importante compreendê-la como uma “[…] força ativa da vida moderna, muito mais ingrediente do processo do que registro dos acontecimentos, atuando na constituição de nossos modos de vida, perspectivas e consciência histórica” (CRUZ; PEIXOTO, 2007CRUZ, Heloísa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: conversas sobre história e imprensa. Projeto História, n.35, p. 253-270, 2007., p.257).

Para as análises, os dados pesquisados foram organizados e caracterizados em função dos objetivos, discutidos com memorialistas locais e autores que dialogam com a mesma temática e inferidos para o enriquecimento deste debate na seara das produções acadêmicas que atravessam o referido objeto de estudo.

2 NO SERTÃO DO BRASIL DO SÉCULO XX: AS DIVERSÕES SE CONSTITUEM EM MEIO A TENSÕES ENTRE A TRADIÇÃO E O MODERNO

As transformações das práticas de diversões, em inúmeras cidades brasileiras no início do século XX, se constituem como desdobramentos do pensamento moderno, modificando o padrão de comportamento social até então vigente, notadamente tradicional e permeado por valores conservadores.

Assim, podemos observar uma “[…] nítida influência do estilo de vida europeu, moderno, estava na constituição de novos códigos sociais, que pretendiam forjar uma cultura calcada na urbanização, no consumo e na exposição pública” (SILVA; SOUZA NETO, 2010SILVA, Luciano Pereira da; SOUZA NETO, Georgino Jorge de. Os primeiros movimentos do foot-ball em Montes Claros: a inauguração de útil e saudável diversão. In: CONGRESSO SUDESTE DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 3.2010, Niterói. Anais… Niterói, 23- 25 set. 2010. Disponível em: http://congressos.cbce.org.br/index.php/cbcesudeste/iiicbcesudeste/paper/viewFile/2247/1914. Acesso em: 06 abr. 2020.
http://congressos.cbce.org.br/index.php/...
, p.2). Havia intencionalidade de se romper com o aspecto rural, dominante até então, e transformar o espaço urbano num tempo e espaço de práticas específicas de lazer, ou de divertimentos que ocupassem o tempo disponível da população, demarcando o período de trabalho e o tempo livre. Nesta tentativa de se alcançar um padrão burguês, o esporte e as diversões ditas “modernas” se tornam peças fundamentalmente necessárias para o convencimento dos sujeitos sociais que ainda resistiam à instauração desta nova ordem (SOUZA NETO et al., 2011).

Localizando o espaço citadino de Montes Claros/MG, mesmo que a experiência de certas atividades, vistas como modernas, tenham chegado ao Norte de Minas Gerais alguns anos mais tarde do que em cidades como Belo Horizonte e Juiz de Fora, elas também representaram, nessa região, o desejo de pertencimento a um novo mundo que estava em permanente construção. Além disso, trabalha-se a hipótese de que as práticas de diversão foram um dos meios de preparar a população para a vida moderna, além de serem elementos da própria modernidade.

A partir desse entendimento, Sevcenko (1992SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.) afirma que, com a divulgação dos ideais da modernidade, ficar em casa ou descansar nos dias de folga tornar-se-iam atitudes sem sentido, pois os novos hábitos propalados estimulavam as pessoas a se exercitarem publicamente, algo marcante para os divertimentos marcadamente modernos. Segundo Silva, tal cenário foi notado, em Montes Claros, quando tiveram início as práticas esportivas, especialmente o futebol: “[…] praticar e assistir futebol passou paulatinamente a compor o cotidiano da cidade, configurando-se como uma das principais vivências de diversão do município” (SILVA, 2013SILVA, Luciano Pereira da. O futebol e o início da diversão esportivizada em Montes Claros-MG. Licere, v.16, n.1, p.1-30, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/licere/article/view/681/482. Acesso em: 18 maio 2020.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/lic...
, p.3).

Considerando o reflexo social a partir do jornal Gazeta do Norte, nas primeiras décadas do século XX, em 1919, o periódico já expressava o clamor do cidadão norte-mineiro por divertimentos:

Fala-se constantemente em falta de diversões nesta cidade. É realmente uma lacuna lastimavel na vida da sociedade de Montes Claros. Ha dias, então, nos quaes a nossa terra é de uma insipidez sem nome: nos santificados e feriados, quando se fecham as casas de commercio. Pode-se, então, fazer cessar tal estado de cousas; basta que appareçam algumas pessoas de boa vontade e de iniciativa, para dar movimento á população e facilitar pontos de encontro onde a gente se divirta. Seria de se elogiar a empreza que nos raeabrisse o salão de cinematographo; mereceria applausos e amparo o grupo de amadores que nos desse, aos menos, de semana em semana, um espectaculo theatral de peças leves, modernas, instructivas e moraes […] (GAZETA…, 7 jun. 1919, p.1).

O discurso sobre a falta de divertimentos modernos trazido pela Gazeta do Norte revela a existência de novos hábitos de diversão no início do século XX, e este comportamento continuaria a ser notado nas fontes acessadas. A partir delas, observa-se o desenvolvimento de práticas esportivas e de diversões tidas como modernas, a exemplo do voleibol e basquetebol, além de uma nítida ampliação de outras já existentes, como futebol e cinema.

Em um outro ponto relevante, ressalta-se que, em uma cidade com expressiva população de negros e mestiços, a herança cultural africana era muitas vezes vista como símbolo do atraso. A convivência do que era moderno com os festejos tradicionais possivelmente tenderia à negação dos hábitos que possuíam ancestralidade africana. No que diz respeito a práticas de diversão, essa herança tradicional de cunho religioso se materializava, principalmente, na festa dos catopês, caboclinhos, marujadas, cavalhadas e bumba meu boi, culminadas nas habituais Festas de Agosto3 3 Segundo Hermes de Paula (1957, p.138), “Há mais de cem anos que nos dias 16, 17 e 18 de agosto se realizam em Montes Claros festas religiosas em homenagem a nossa Senhora do Rosário, são Benedito e Divino Espírito Santo respectivamente. Além das práticas puramente religiosas, tais como missas, bênçãos e levantamento de mastros, realizam-se também as marujadas, cabocladas ou caboclinhos, catopês ou dançantes, cavalhadas e bumba meu boi”. .

O que se supõe ser um conflito entre o tradicional e o moderno pode-se observar explícito no texto da Gazeta do Norte, no ano de 1926:

As velhas tradições, rôtas de traça, escondidas nas aguas-furtadas do espirito da gente têm o mesmo encanto sempre novo dos velhos livros das bibliothecas esquecidas. […] Velhas tradições! São historias que a Mãe-Preta escreveu nas nossas almas e que a gente nunca mais esquece… Outr’ora havia muito mais brilho e galhardia nas festas de agosto. Festas puramente populares achavam entretanto acolhida entre os homens de destaque na cidade, em tempos que não havia o snobismo pedante de hoje. […] Pois essa gente que vem de fora anda saturada de civilização e de mocinhas que fallam francez, essa gente quer ver coisas locaes que desconhece, quer conhecer a velha alma do povo sertanejo. […] As marujadas, os caboclinhos, as cavalhadas são, nos tres dias de agosto, reviviscencia de lendas, de costumes, um metachronismo pittoresco que vale ser conservado pela lembrança que nos traz dos tempos da nossa formação ethnologica, no formidavel caldeamento das nossas três raças mães. […] Enchem de vida a cidade, nesses três dias de folguedos, divertindo o populacho e os moradores dos povoados adjacentes, que aqui affluem em grande numero, em suas roupas domingueiras. Essas festas sobre serem interessantes, na sua simplicidade, trazem a grande vantagem de divertir o povo, fazendo olvidar nesses dias miserias e penúrias (GAZETA…, 4 ago. 1926, p.1).

Os trechos transcritos demonstram o ambiente de coexistência das velhas com as novas tradições, e tais vivências eram antagônicas. O autor do texto relembra dos tempos em que as festas “[…] populares achavam entretanto acolhida entre os homens de destaque na cidade, em tempos que não havia o ‘snobismo’ pedante de hoje”. Se, por um lado, o texto se aborrece com a civilidade esnobe, afirmando que a “[…] gente que vem de fora anda saturada de civilização e de mocinhas que fallam francez”[…], por outro, o mesmo texto confirma a existência de um modo de vida educado e civilizado de acordo com certa percepção da realidade social. O jornal deixou claro que as festas tradicionais de agosto, em tempos passados, atingiam todas as classes sociais da cidade. Porém, em 1926, isso já não existia: as festas tradicionais cumpriam o papel de divertir “[…] o populacho e os moradores dos povoados adjacentes, que aqui affluem em grande numero, em suas roupas domingueiras”. Por fim, as festas, “[…] na sua simplicidade, trazem a grande vantagem de divertir o povo, fazendo olvidar nesses dias miserias e penúrias”.

No entanto, depreende-se que “em toda mudança vê-se também a persistência da substância antiga: a desconsideração que se tem pelo passado é apenas relativa” (SAHLINS, 1990SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990., p.190).

No entendimento de Victor Andrade de Melo sobre este período específico de mudanças sociais para hábitos ditos modernos na configuração de um “novo mundo”, pode-se constatar que “[…] enquanto uma cidade estava sendo ‘morta’ para que outra renascesse, preparava-se o terreno para a ‘sociedade do consumo’, onde o lazer e a diversão ganhariam ainda mais importância” (MELO, 2006bMELO, Victor Andrade de. Remo, modernidade e Pereira Passos: primórdios das políticas públicas de esporte no Brasil. Esporte e Sociedade, n.3, p. 2, 2006b. Disponível em: https://periodicos.uff.br/esportesociedade/article/view/47997. Acesso em: 20 mar. 2021.
https://periodicos.uff.br/esportesocieda...
, p.2). Na primeira metade do século XX, nos hábitos de vida da cidade de Montes Claros, notar-se-ia um momento diferenciado até então. Os festejos tradicionais, marcados pelo viés religioso católico, conviveriam com práticas de diversões descritas como modernas e sem apelo religioso aparente. Alguns elementos desta fase de mudanças são apontados por Silva (2012SILVA, Luciano Pereira da. Em nome da modernidade: uma educação multifacetada, uma cidade transmutada, um sujeito inventado (Montes Claros, 1889-1926). 2012. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012., p.175):

Futebol, cinema, teatro e Festas de Agosto integram o rol de vivências que preenchiam parte da vida do montes-clarense no início do período republicano. Em meio ao cenário em que despontavam novas práticas de diversão, permaneciam no cotidiano da população costumes enraizados na cultura local, como as Festas de Agosto, e possivelmente outras vivências que não são destacadas nas fontes utilizadas. De qualquer forma, é importante salientar o espaço proeminente que vivências modernas de diversão (instrumentos educativos) passaram a ocupar no cotidiano da cidade.

Esse processo fazia emergir, também, uma nova possibilidade de distinção social e de pertencimento de classe. No entanto, ser distintivo exigia o domínio dos códigos dessas experiências modernas de divertimento. Jogar futebol, bem como saber assistir a uma partida, a apropriação das regras do jogo, ir ao cinema (e não agir como um “caipira assustado”) e outras ações demarcavam o território daqueles que se adequavam à nova realidade social4 4 Na França, o cinema (1895) e os esportes (1896: organização dos primeiros Jogos Olímpicos modernos por Pierre de Coubertin), originalmente e numa mesma época, compuseram, juntamente com outros hábitos sociais, a formação de uma nascente cultura urbana. Apesar de o futebol ter se caracterizado no século XVIII, o cinema e os esportes, “mesmo possuindo raízes anteriores, são fenômenos típicos da modernidade, se organizando no âmbito de uma série de mudanças culturais, sociais e econômicas observáveis desde o fim do século XIX e consolidadas na transição e no decorrer do século XX” (MELO, 2006a, p.56). Nota-se que, tanto o futebol quanto as projeções cinematográficas transporiam o Oceano Atlântico e chegariam ao Brasil, primeiramente nas grandes cidades, e aportaria em Montes Claros nas primeiras décadas do século XX. . As histórias dessas vivências na região permitiriam o reconhecimento de fatos que se revelaram para além da prática em si.

Neste período estudado, ao pretender aqui demonstrar o quão significativo foi o advento das práticas modernas de divertimento, um dos maiores exemplos da caracterização do esporte moderno na cidade foi a construção da Praça de Esportes - Montes Claros Tênis Clube - inaugurada em 1941. A Praça, que foi idealizada para o incremento da cultura esportiva local, habitou o imaginário de muitos montes-clarenses, sem necessariamente ter uma ligação explicitamente esportiva. Ela foi motivo de orgulho, tal como descreveu o memorialista Haroldo Lívio de Oliveira:

Era a sala de visitas da cidade. Toda a beleza e suavidade de nossa urbes se resumia neste logradouro de ar puro, paisagem verde e céu azul de anil. Quem não fosse sócio da praça, estaria fora da história e da geografia da cidade. Era um pedaço do paraíso transportado para cá e plantado na várzea, um jardim de delícias da juventude (OLIVEIRA, 2013OLIVEIRA, Haroldo Lívio de. Montes Claros criança em 1953. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, v.10, p. 104, 2013., p.104).

Pela indicação dos memorialistas anteriores, a abertura da Praça de Esportes em 1941, além de ser um dos marcos da incorporação de divertimentos modernos em Montes Claros, com o objetivo oficial de desenvolver os aspectos físicos e morais da juventude, era local privilegiado de convivência pública da mocidade, promovedora de novos hábitos sociais.

Obviamente, a convivência entre o tradicional e o moderno não existia sem tensões. Nessa questão, entendemos que o moderno provocava mudanças de hábitos e costumes, constituindo um projeto civilizatório, e este processo não se dava tão passivamente. Observa-se, então, o estranhamento da seção religiosa, numa edição da Gazeta do Norte, de 1929, frente à postura “[…] perniciosa desse modernismo sem brio […]” que, segundo o texto, abatia-se sobre as mulheres da época, que desafiavam o padrão social feminino vigente e escandalizavam os princípios proclamados pela igreja:

Modernismo

A influencia perniciosa desse modernismo sem brio vae sendo a causa da corrupção dos povos. Está em evidencia o nú, e a mulher moderna, desvirtuada da sua sublime missão do lar, só aspira atrair as vistas do mundo. Mas, que é que o nú poderá ensinar de elevado e bom á massa popular, ante a qual se expõe por toda a parte e até onde deveria respeitar - a casa de Deus?! Á estação da missa, domingo passado, na Capella do Palacio Archiepiscopal, ouviu-se a voz áurea, auctorizada, do venerando, sabio virtuoso Metropolita, reclamando com toda razão, essa exhibição burlesca de «canelas», braços e collos de fora, nas funções religiosas, como para mostrar a «toilettes» no rigor da moda. Que lição moral poderá dar uma mãe de família, uma professora, de cabelinho «á la homme» expondo as linhas dos seus contornos aos olhos dos seus filhinhos, á vista de seus alunos? Que de nobre, que de moralidade poderá haver nesse espectaculo de exhibições indiscretas e ridículas de pernas ou «cabómtas»?… Esses vestidinhos excessivamente curtos não transformam as mocinhas de hoje em verdadeiras bonifrates? O nú não habilita, não moraliza; pelo contrário, o nú degrada, corrompe e escandaliza. Por ventura quererão as mães e filhas modernas convencer-nos de que agradam a Deus e respeitam os templos com sua nudez? (GAZETA…, 26 mar. 1929, p.1)

Sobre a “saída da missa” na Montes Claros dos anos 1930, o memorialista Hermes de Paula (1982PAULA, Hermes Augusto de. De Padre Chaves a Padre Dudu: pequena memória histórica da Paróquia de Nossa Senhora e São José de Montes Claros, por ocasião do seu sesquicentenário. Belo Horizonte: Littera Maciel, 1982., p.53-54) a descreve para além do sacral: “a igreja era onde acontecia5 5 O destaque em negrito na palavra “acontecia” foi dado pelo próprio Hermes de Paula. Possivelmente objetivando enfatizar o momento da saída da missa como um verdadeiro desfile de modas. , inclusive a missa das dez horas de domingo, que constituía um verdadeiro desfile de modas”. A Praça Doutor Chaves (Praça da Matriz) tornava-se a passarela de exibições da moda, um registro social elitista, principalmente na saída da igreja aos domingos.

Infere-se que havia recorrente tensão na coexistência entre o novo e o tradicional em Montes Claros, acentuada pelas maiores possibilidades e velocidade de informações que a modernidade promovia. Energia elétrica, telégrafo, imprensa, educação e transporte facilitados abreviavam o tempo de chegada do conhecimento e influenciavam os hábitos da população que tinha acesso a eles: primordialmente, mas não somente, os sujeitos da elite local. A “modernidade, para além de implicar em uma séria mudança de hábitos, causou mudanças em outro elemento da cultura vigente: a sensação do tempo, usualmente atrelada ao espaço” (MACHADO, 2007MACHADO, Maíra Saruê Modernidade, cinema e temporalidade. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007., p.26).

Mesmo sendo percebida como uma cidade de forte importância e influência no Norte de Minas Gerais, Montes Claros só vai se apropriar da experiência de práticas pertencentes à lógica da modernidade, provavelmente, mais tardiamente. Ao constituir uma localidade marcada por uma aguda cultura rural, com raízes historicamente solidificadas em princípios conservadores, era esperado que o binômio tradição/modernidade gerasse uma oposição mais sistemática a este novo modelo civilizador. Segundo Figueiredo (2010FIGUEIREDO, Vitor Fonseca. Os senhores do sertão: coronelismo e parentela em uma área periférica de Minas Gerais (1889-1930). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Juiz Fora, Juiz de Fora, 2010., p.161),

[…] uma abertura à diversificação econômica só se tornou efetiva após a chegada à região da Rede Ferroviária Central do Brasil, em 1926. Até lá, a base da sustentação do poder tradicional, sobretudo o latifúndio, se mantiveram praticamente intactos.

3 O TEMPO E ESPAÇO LOCAIS E A FORMAÇÃO DO BINÔMIO TRABALHO E DIVERTIMENTO EM MONTES CLAROS

Os trilhos para o sul do país, de fato, conduziram a cidade a uma nova dinâmica de acessibilidade ao mundo “civilizado”. O transporte ferroviário, inaugurado em 1926, movimentou mercadorias e pessoas e, com elas, os sentimentos e a cultura da sua gente. A Gazeta do Norte, em 1929, noticiou: “Com a chegada dos trilhos da Central do Brazil a esta cidade, a urbs foi-se transformando rapidamente, tomando a cidade um aspecto de verdadeira Princeza do Norte” (GAZETA…, 25 mai. 1929, p.1). Além do jornal da época, Gomes (2007GOMES, Fernanda Silva. Discursos contemporâneos sobre Montes Claros: (re)estruturação urbana e novas articulações urbano-regionais. 2007. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007., p.63) sustenta que “[…] a ferrovia propiciou significativas mudanças na cidade e sociedade montes-clarense, devido ao maior acesso às informações (correio, revistas, jornais) que antes eram trazidas pelos tropeiros”.

Com a estrada em pleno funcionamento, sabia-se que o trem mexeria com a rotina das pessoas e daria velocidade aos acontecimentos, pois, as “[…] regiões por onde passavam os trilhos tiveram o seu crescimento econômico favorecido. Muitas comunidades e manufaturas se desenvolveram ao redor das estações” (FONSECA, 2010FONSECA, Roberto Pinto da. O trem do sertão. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, v.5, p.131-141, 2010., p.137). “[A] partir do transporte ferroviário, a cidade organiza melhor sua economia, o que se desdobra na ampliação do sistema financeiro regional ao final dos anos 20” (OLIVEIRA, 2000OLIVEIRA, Evelina Antunes Fernandes de. Nova cidade, velha política: poder local e desenvolvimento regional na área mineira do Nordeste. Maceió: EDUFAL, 2000., p.40). E se durante anos estiveram dependentes dos tropeiros, viajantes responsáveis pelas trocas comerciais da região, poderiam, com a ferrovia, interligarem-se com cidades mais adiantadas.

O que se esperava, após a instalação da ferrovia que ligaria Montes Claros ao sul do país, era que ela

[…] se livraria da imagem de cidade sertaneja, pobre e atrasada e fadada ao fracasso, como se pensava na época. Ou seja, deixaria de se pensar como uma cidade nordestina e começaria a se imaginar como uma cidade propensa ao progresso, como são representadas no imaginário social as cidades do Centro-Sul do país (QUERINO, 2006QUERINO, Augusto José. Montes Claros e o norte de minas na rede urbana do centro-sul: fábulas e metáforas do desenvolvimento. 2006. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Humano) - Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, 2006., p.159).

Apesar de sertaneja e pequena, a cidade alteraria sua dinâmica, saindo de relativo isolamento de antes do advento da estrada de ferro, tal como afirma a memória de quem testemunhou o período:

Na década de 30, Montes Claros era uma cidadezinha modesta, plantada no sertão mineiro e longe de tudo. Era servida pela ‘Estrada de Ferro Central do Brasil’ (EFCB), meio de transporte que ligava a nossa comunidade aos grandes centros e às localidades por onde passavam os seus trilhos. As outras partes da região, ligadas com estradas precárias, eram servidas pelas tropas de burros e carros-de-bois (DURÃES, 2010DURÃES, Juvenal Caldeira. Coisas do passado. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, v.5, p.61-67, 2010., p.61).

Num outro prisma de análise, na primeira metade do século XX, a região Norte de Minas ainda apresentava uma rotina política pautada no “coronelismo”, sistema vigente na relação entre as elites políticas dominantes e os menos privilegiados, caracterizando “[…] uma relação de dependência que se manifesta através de favores e se perpetua por meio de compromissos que mantêm a dominação política das elites econômicas sobre a população” (PEREIRA, 2001PEREIRA, Laurindo Mékie. Montes Claros anos 50: entre a esperança e a frustração. Unimontes Científica, v.1, n.1, p. 3, 2001., p.3).

Essa característica da relação política brasileira constituía, segundo Leal (1978LEAL, Victor Nunes. O coronelismo, enxada e voto. 4. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1978., p. 20), “[…] sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”. Na relação entre as elites políticas dominantes e os menos privilegiados da cidade de Montes Claros, o “[…] coronelismo é entendido como uma relação de dependência que se manifesta através de favores e se perpetua por meio de compromissos que mantêm a dominação política das elites econômicas sobre a população” (PEREIRA, 2001PEREIRA, Laurindo Mékie. Montes Claros anos 50: entre a esperança e a frustração. Unimontes Científica, v.1, n.1, p. 3, 2001., p.3).

Uma das mudanças mais sensíveis no decorrer do século XX talvez tenha sido o aumento de sortimentos importados no comércio e a transformação da figura do caixeiro viajante em comerciantes assentados nas praças das cidades. Isso se deu porque, como afirma Juvenal Durães (2011DURÃES, Juvenal Caldeira. Coisas do passado IV. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, v.8, p.54-59, 2011., p.57), após a estrada de ferro “[…] as referidas compras chegavam à estação ferroviária de Monte Claros nos vagões cargueiros”. Posteriormente à ferrovia, alguns desses viajantes fundaram “casas” comerciais em Montes Claros, pois os produtos já não precisavam viajar no “lombo” das tropas até o cliente longínquo. O “cometa”, acostumado a longas viagens, e que trazia um pouco de civilidade aos isolados, ao seu tempo, se fixou atrás de um balcão de vendas. Ao invés de ir ao cliente, o cliente passou a ir até ele. Nessa época, muitos comércios se desenvolveram e anunciaram, com frequência, seus modernos produtos na Gazeta do Norte (Figura 1):

Figura 1
Casa Minerva, estabelecimento comercial da década de 1920.

A primeira grande loja da cidade, no começo do século XX, foi a Casa Cocó, de propriedade de Joaquim Rabelo Júnior. Inovadora, a Casa Cocó utilizava-se da imprensa e do espaço do cinema local para anunciar os seus produtos modernos e exclusivos. Essa prática obrigava os antigos comerciantes a se modernizarem para concorrerem com o novo estabelecimento comercial (SILVA, 2012SILVA, Luciano Pereira da. Em nome da modernidade: uma educação multifacetada, uma cidade transmutada, um sujeito inventado (Montes Claros, 1889-1926). 2012. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.).

Numa nova conformação comercial, possibilitada pelas viagens de trem, como seria a rotina de um ex-caixeiro ao se fixar numa cidade? Para retratar essa dinâmica, numa Gazeta do Norte de 1930, observa-se o reflexo desse embate do “antes” com o “atual”. O tom explícito de reprovação das possibilidades de diversão aos domingos expressava a postura diferenciada de um comerciante (ex-caixeiro viajante) conhecedor de novas formas de passar o tempo num dia de folga e ávido por atividades que, para ele, deveriam constituir a dinâmica de uma cidade moderna:

Domingo triste duma cidade triste - Extremunhado de uma semana de paralysia commercial, como bom caixeiro que se habituou ao regime “das 7 ás 9” accórdo aos domingos ás 6 da manhã. Antes de abrir os olhos e fitar o telhado do meu quarto sem forro, onde três ou quatro goteiras projectam sobre mim pequeninos pharoletes, fico reconstituindo mentalmente as scenas da semama: - Faz menos? - Não senhor … - cinco mil reis por duas? - não senhor … Nem um menosinho? - Vá lá … Que hei de fazer nesse enervante domingo, para aproveitar minha suspirada folga, apos seis dias de balcão ferreo e de “capiáus” irritantes? O Zé Curiò terá organizado um piquenique? … E se eu fosse passear na horta dos bulgaros?.. Mas, nem o Curiò organizou piquenique nem passeio a horta, pois o caminho dos Bois está intransitável… Saio para a rua. Os bars estão fechados de manhã. Vou a casa de um amigo. Foi para o Brejo das Almas… Decididamente estou caipora. Só me resta deitar novamente e esperar a noite. Talvez melhore. Acórdo as cinco. Janto e saio. Perambulo pelas ruas desertas e tenho que engraxar duas vezes os sapatos, para passar o tempo. E o “footing” da rua Quinze? Vou para a rua Quinze. Nem uma moça. Ninguem. Talvez estejam no cinema. Vou para o cinema. Mas quem suporta o cinema? Uma fita mambembe que faz mal aos nervos e um exercito de pulgas que põe a plateia em dansas de São Guido. Qual. Antes de dormir e aguardar os seis dias de costas no balcão a espera dos capoeiras. JOÃO SIMPLICIO (GAZETA…, 29 mar. 1930, p.4).

Na mesma Gazeta do Norte, edição de uma semana após, encontra-se outra exposição da dura rotina do comerciante montes-clarense, porém consciente daquela conjuntura social. O autor da crônica, de 1930, constata o tempo exaustivo do trabalho do comerciário e a necessidade de novas formas de uso do tempo livre. O antigo caixeiro viajante, com sua postura crítica, parecia estar à frente do restante da sociedade, pelo menos em relação à aquisição de novos costumes urbanos, como esporte, footing e cinema.

Enquanto o pau vai e vem… - Meu caro João Simplicio. Lendo sua ultima chronica para a <Gazeta> eu, que também milito no commercio e tenho os osso pêrros, os músculos flácidos e o espirito embotado pela vida inerte, que levamos todos nos desta classe, venho trazer-lhe, nestas linhas desataviados o meu applauso pelo seu brilhante escripto. Realmente, é digno de lastima, o modo desassociativo, insociavel e falho de iniciativas que se nota no seio de nossa classe caixeiral. Causa-nos tristeza ver a nossa cidade, considerada uma das grandes do Estado, sem uma associação de Empregados no Commercio quando quase todos os pequenos lugares hoje já as possuem. Sem diversões para o corpo e para o espirito, sem recreações de espécie alguma, o empregado do commercio em Montes Claros, constitue um typo aparte do natural, bisonho, flacido, sonolento. Agarrados ao balcão, do clarear do dia ao recolhimento da população para o somno, vamos nos tornando uma espécie de gente que a cidade não vê e que não vê a cidade ao menos. Ah! Se o commercio se fechasse mais cedo!.. Poderiamos ter a nossa agremiação social e sportiva, a nossa bibliotheca… Mas, fallar nisso, por enquanto, è um mytho. Actualmente a nossa cidade é a “terra que Deus esqueceu”. Teremos melhores dias? Enquanto os esperamos, é nos conformarmos, como bem o disse em sua chronica, com o desenxabibo footing da rua 15 e com as pulgas vorazes e as fitas mambembes do Cine local aos domingos. Do collega e amigo. MACISTE ALPINO (GAZETA…, 5 abr. 1930, p.4).

As duas crônicas, trazidas na Gazeta do Norte em sequência, falam por si. Por elas, tem-se noção de como aspectos e ideias modernas surgiam naquele contexto social, e refletem o que era viver em Montes Claros na década de 1920/30. Os dois comerciantes/cronistas demonstram a intenção de um estilo de vida que, para eles, a cidade não oferecia, indiciando tensões existentes entre o moderno e o tradicional no espaço e tempo pesquisados. Nos textos, nota-se a existência de uma “artificialização” do tempo que a jornada de trabalho no comércio já impunha; identifica-se que existia o tempo do trabalho obrigatório e o tempo do não trabalho; ambos demarcam a rotina cansativa que enfrentavam e a falta do que se fazer no tempo de folga.

Ao terem narrado a rotina de trabalho como referência para o texto, os comerciantes de Montes Claros expuseram a cultura antagonista do tempo do trabalho e do tempo para o divertimento, bem observados nas suas falas. Sobre essa nova forma de se viver, imposta pelo capitalismo, Oliveira (2004OLIVEIRA, Cristina Borges de. Sobre lazer, tempo e trabalho na sociedade de consumo. Conexões, v. 2, n.1, p. 26, 2004., p.26) diz que:

Ao institucionalizar o tempo de trabalho, também se institucionaliza o tempo de não trabalho, ou seja, aquele no qual o trabalhador estaria, hipoteticamente, disponível para realizar outras atividades diferentes daquelas em que ele trabalha. Desta forma, se destila um tipo de organização social na qual o trabalho é a principal referência de tempo usada pelo indivíduo na orientação de sua vida: tudo gira em torno do trabalho e dos intervalos de tempo entre o exercício do mesmo.

As aspirações dos dois cidadãos montes-clarenses são caracteristicamente diversões modernas, denotando a intenção de manterem hábitos diferentes aos praticados normalmente e tradicionalmente. Assim, criticam, veementemente, a insipiência local de aspectos sabidamente modernos, como a frequência a bares, o footing, piqueniques, o cinema e a agremiação social e esportiva. Enfim, aparentemente, a cidade não oferecia o que desejavam os comerciantes “civilizados”, mas a postura crítica nas duas crônicas indicava a necessidade de novas formas de utilização do tempo livre das obrigações do trabalho que as relações sociais já aspiravam: um modus vivendi possibilitado pelo moderno, mas vivendo sob as amarras do tradicional.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antes de qualquer conclusão, é importante frisar que o estudo se passa numa localidade brasileira do início do século XX, sertaneja, coronelista, latino-americana e que, em função dessas características, esteve sujeitada ao subjugo colonialista desde a chegada dos europeus. Nessa cidade, a Gazeta do Norte seguiu a história da imprensa brasileira, pois, ainda que tenha parcela de responsabilidade na introdução de preceitos civilizatórios, como os levantes independentistas, republicanos e abolicionistas, invariavelmente, deu voz às elites brancas, detentoras do poder político e econômico da região.

Como caracterizado nas fontes montes-clarenses, os divertimentos modernos seguiram, mais ou menos, o mesmo sentido: são desdobramentos sociais originários de uma nova forma de se viver, produzidos pela Revolução Industrial, irradiados da Europa. Ou seja, são para a prática e consumo da elite. O advento da modernidade permitiu, não sem resistências e tensões, a apropriação de um conjunto de valores e práticas que se distinguiam das vigentes no ordenamento social até então. O divertimento, enquanto uma vivência distintiva, passava a ocupar lugar central no novo modo de pertencimento do cenário citadino, marcado pelo ethos da urbanidade, forjando, dessa forma, identidades demarcadas no contexto social local.

Na cidade de Montes Claros, a modernidade também chegou, impulsionada pela imprensa e pela estrada de ferro, principalmente. A Gazeta do Norte foi fundamental nesse processo, pois disseminou a informação do moderno sem se desfazer do tradicional; também “educou” o cidadão para praticar novas formas de diversão, que não só as religiosas. Nesse cenário, tensões foram causadas e narradas em suas páginas.

Por fim, o que se notou foi a consolidação ou transformação da forma de dominação de um povo, tal como definiu Aníbal Quijano, atuando como um processo: o modus operandi moderno penetra a identidade social do sujeito menos civilizado e arraiga-se na cultura de um povo silenciosamente sem ser dolorosa. Entretanto, também impõe um modo de vida, importado e duradouro.

Para além da crítica, não se pode supor que a prática de divertimentos modernos, em si, foi perniciosa em Montes Claros. Na sertaneja cidade mineira, fronteiriça com o Nordeste brasileiro, a Gazeta do Norte prestou um serviço importante no desenvolvimento da suposta civilidade por meio das notícias e reportagens de novos hábitos na primeira metade do século XX. Porém, o panorama geral não mudou: o sujeito latino-americano continua colonizado; agora, também, pelos divertimentos modernos.

REFERÊNCIAS

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  • FINANCIAMENTO

    No presente trabalho não houve financiamento por órgãos de fomento.
  • 1
    Texto originalmente publicado na revista Perú Indígena, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. Disponível em: https://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf. Acesso em: 28 abr. 2020.
  • 2
    Optamos, aqui, por operar não com um conceito sociológico de lazer atrelado às práticas de divertimento, por entendermos que reside, aí, um anacronismo de percepção dessas experiências. Nesta direção, de acordo com o pesquisador Melo (2013MELO, Victor Andrade de. Sobre o conceito de lazer. Sinais Sociais, v. 8, n. 23, p. 15-36, set./dez. 2013.), ao tratarmos dessas vivências de diversão, ao fim do século XIX e primeiras décadas do século XX, é pertinente considerarmos o “conceito nativo” de divertimento, ou seja, aquilo que os sujeitos, à época, consideravam como tal, para melhor compreensão dessa lógica.
  • 3
    Segundo Hermes de Paula (1957PAULA, Hermes Augusto de. Montes Claros: sua história sua gente seus costumes. Belo Horizonte: Minas Gráfica Editora, 1957., p.138), “Há mais de cem anos que nos dias 16, 17 e 18 de agosto se realizam em Montes Claros festas religiosas em homenagem a nossa Senhora do Rosário, são Benedito e Divino Espírito Santo respectivamente. Além das práticas puramente religiosas, tais como missas, bênçãos e levantamento de mastros, realizam-se também as marujadas, cabocladas ou caboclinhos, catopês ou dançantes, cavalhadas e bumba meu boi”.
  • 4
    Na França, o cinema (1895) e os esportes (1896: organização dos primeiros Jogos Olímpicos modernos por Pierre de Coubertin), originalmente e numa mesma época, compuseram, juntamente com outros hábitos sociais, a formação de uma nascente cultura urbana. Apesar de o futebol ter se caracterizado no século XVIII, o cinema e os esportes, “mesmo possuindo raízes anteriores, são fenômenos típicos da modernidade, se organizando no âmbito de uma série de mudanças culturais, sociais e econômicas observáveis desde o fim do século XIX e consolidadas na transição e no decorrer do século XX” (MELO, 2006aMELO, Victor Andrade de. Cinema & Esportes: diálogos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2006a., p.56). Nota-se que, tanto o futebol quanto as projeções cinematográficas transporiam o Oceano Atlântico e chegariam ao Brasil, primeiramente nas grandes cidades, e aportaria em Montes Claros nas primeiras décadas do século XX.
  • 5
    O destaque em negrito na palavra “acontecia” foi dado pelo próprio Hermes de Paula. Possivelmente objetivando enfatizar o momento da saída da missa como um verdadeiro desfile de modas.

Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Ivone Job*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2020
  • Aceito
    28 Mar 2021
  • Publicado
    15 Abr 2021
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