Acessibilidade / Reportar erro

PATRONATO: Uma pesquisa exploratória sobre quem entra e quem sai do sistema carcerário fluminense

Patronato: An Exploratory Research on Who Gets in and Who Gets out of Rio de Janeiro’s Prison System

RESUMO

Esta é uma pesquisa sobre a egressão do sistema carcerário fluminense, realizada a partir do Patronato Margarino Torres. A primeira parte mapeia o labirinto da execução penal; a segunda identifica os principais caminhos de egressão; e a terceira aborda os perfis com mais chance de sair do sistema. Concluímos com uma síntese dos achados e algumas considerações.

PALAVRAS-CHAVE:
fluxo penal; sistema carcerário; seletividade penal; Rio de Janeiro; justiça penal

ABSTRACT

This research is about egression from the Rio de Janeiro’s prison system, from the perspective of Patronato Margarino Torres. The first maps the labyrinth of penal execution; the second identifies the mains paths of egression; and the third shows the mean types which has more chance of getting out. We conclude with synthesis of the results and some considerations.

KEYWORDS:
penal flux; prison system; penal selectivity; Rio de Janeiro; penal justice

Desde o seminal artigo de Edmundo Campos Coe­lho (1986), pesquisas quantitativas sobre o fluxo do Sistema de Justiça Criminal (SJC) têm se questionado como esse sistema, que começa na polícia, atravessa o Ministério Público e o Judiciário para desembocar nas prisões, processa e define eventos tratados como crime. As revisões mais recentes (Azevedo; Sinhoretto, 2017Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli de; Sinhoretto, Jacqueline. “O sistema de justiça criminal na perspectiva da antropologia e da sociologia”. BIB - Revista Brasileira de Informações Bibliográficas em Ciências Sociais, 2017, v. 84/2, pp. 188-215.; Oliveira; Machado, 2018Oliveira, Marcus Vinicius Berno N. de; Machado, Bruno Amaral. “O fluxo do sistema de justiça como técnica de pesquisa no campo da segurança pública”. Revista Direito e Práxis, 2018, v. 9/2, pp. 781-809.; Vargas, 2014_______. “Fluxo do sistema de justiça criminal”. In: Lima, Renato Sérgio; Ratton, José Luiz; Azevedo, Rodrigo Ghiringheli de (orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, pp. 411-26.) elencam mais de quarenta estudos distintos, dos quais sobressaem duas questões-chave: a seletividade, tanto de ocorrências como de acusados, e o tempo de processamento. A primeira questão se preocupa em mostrar os fatores jurídicos e extrajurídicos que influem nas chances de um evento atravessar todas as etapas do SJC. A segunda se volta para o conhecido problema que a lentidão causa no acesso à Justiça. Todas assinalam, contudo, que uma velocidade exacerbada apresenta o risco de atropelar as garantias de direitos dos acusados, de modo que haveria uma morosidade ideal (Adorno; Pasinato, 2007_______; Pasinato, Wânia. “A justiça no tempo, o tempo da justiça”. Tempo Social, 2007, v. 19/2, pp. 131-5.).

Malgrado as diferenças de método que essas pesquisas possuam entre si, a resposta que comumente fornecem para a seletividade é que, no que tange às ocorrências, o SJC apresenta a forma de um funil, no qual o maior gargalo está na passagem do registro de ocorrência para o inquérito e do inquérito para o processo penal (Costa, 2015Costa, Arthur Trindade M. “A (in)efetividade da justiça criminal brasileira: uma análise do fluxo de justiça dos homicídios no Distrito Federal”. Civitas, 2015, v. 15/1, pp. 11-26.; Ribeiro, 2009Ribeiro, Ludmila. Administração da Justiça Criminal no Rio de Janeiro: uma análise dos casos de homicídio. Tese (doutorado em sociologia). Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 2009.; Ribeiro; Platero, 2010_______; Platero, Klarissa. “Fluxo do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro: um balanço da literatura”. Cadernos de Segurança Pública, 2010, v. 2/1, pp. 15-27.; Vargas, 2007_______. “Análise comparada do fluxo do sistema de justiça para o crime de estupro”. Dados, 2007, v. 50/4, pp. 671-97.). No que concerne à seletividade pelo perfil dos acusados, os resultados costumam mostrar que esse funil prioriza o processamento de homens, jovens, pretos ou pardos de classes desfavorecidas e baixa escolaridade (Adorno, 1999Adorno, Sérgio. “Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo”. Novos Estudos Cebrap, nov. 1995, n. 43, pp. 45-63.; Vargas, 1997Vargas, Joana. Fluxo do sistema de Justiça Criminal para crimes sexuais. Dissertação (mestrado em antropologia). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1997.). Quanto à morosidade, concluem que, no geral, o tempo real que uma ocorrência leva para transitar pelas diferentes fases - inquérito, processo e sentença - é muito maior do que seria ideal. No entanto, quando a vítima é menor de idade e o acusado é preso em flagrante delito, o tempo real tende a diminuir, aproximando-se do ideal (Battitucci, 2006Battitucci, Eduardo; Cruz, Marcus Vinicius Gonçalvez da; Silva, Breno. “Fluxo do crime de homicídio no sistema de justiça criminal de Minas Gerais”. In: 30-º Encontro Anual da Anpocs, 2006, Caxambu. Disponível em: <Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/papers-32-encontro/gt-27/gt05-25/2304-eduardobatitucci-fluxo/file >. Acesso em: 31/8/2021.
http://www.anpocs.com/index.php/papers-3...
; Cireno; Ratton, 2007Cireno, Flávio; Ratton, José Luiz. “Homicídios no fluxo do sistema de justiça criminal em Pernambuco”. In: 32-º Encontro Anual da Anpocs, 2007, Caxambu. Disponível em: <Disponível em: https://anpocs.com/index.php/papers-32-encontro/gt-27/gt07-12/2334-flaviocireno-homicidios/file >. Acesso em: 31/8/2021.
https://anpocs.com/index.php/papers-32-e...
; Ribeiro; Diniz, 2020_______; Diniz, Alexandre. “The Flow of Murder Cases Through the Criminal Justice System in a Brazilian City”. Homicide Studies, 2020, v. 24/3, pp. 242-67.).

Todos esses trabalhos acompanham a sobrevivência de eventos transformados em ocorrências criminais e convertidos em processos penais que, talvez, redundem em condenação. Mas, uma vez dada a sentença, param por aí. Não analisam o que acontece depois. Isso não quer dizer, no entanto, que o SJC acabe na sentença. Muito pelo contrário, ele se prolonga na execução. Não só no âmbito administrativo, a cargo do Executivo, mas também no do jurídico, uma vez que a execução penal, a partir de 1984, com a Lei de Execuções Penais, passou a ser jurisdicionalizada. Na administração da pena, o ex-réu, agora apenado, transita entre diversos regimes de cumprimento, do mais rígido aos menos restritos, até, finalmente, sair do sistema mediante a extinção de sua punibilidade. Elaborar uma primeira análise sobre o que acontece nessas terras que a abordagem quantitativa dos estudos de fluxo tem deixado inexploradas é o objetivo deste artigo. Para isso, empregaremos a combinação de uma metodologia longitudinal retrospectiva com o método transversal (Vargas; Ribeiro, 2008_______; Ribeiro, Ludmila. “Estudos de fluxo da Justiça Criminal: balanço e perspectivas”. 32-º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 2008.). Nosso ponto de entrada será uma instituição um tanto desconhecida, inscrita no item v do artigo 61 da Lei de Execuções Penais: o Patronato.

O Rio de Janeiro possui um desses pontos obscuros: o Patronato Margarino Torres. Com sede no bairro de Benfica, na capital, e com filiais nas cidades de Campos, no Norte fluminense, e Volta Redonda, no Sul do estado, o Patronato tem, entre outras, a atribuição de fiscalizar os benefícios de Suspensão da Pena (sursis), de Livramento Condicional (LC), do regime aberto de Prisão-Albergue Domiciliar (PAD) e de algumas penas restritivas de direito, bem como prestar assistência social aos apenados em PAD e aos egressos (Brasil, 1984_______. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execuções Penais.). “Egressos”, aliás, é a denominação que os próprios funcionários do Patronato usam para se referir à população que atendem. Contudo, como aqueles que o Patronato fiscaliza ainda não cumpriram a totalidade de suas respectivas penas, optamos por denominá-los “egressantes”, tal como faz Camille Porto (2019Porto, Camille. “O que há de moral na carreira moral: sobre dispositivos de transformação de si em ‘egressantes’ do sistema penitenciário”. Dilemas, 2019, v. 12/3, pp. 477-98.).

Como toda instituição burocrática, o Patronato Margarino Torres mantém registros de seus procedimentos administrativos inscritos em toneladas e mais toneladas de papel. Como toda instituição burocrática que lida com o fluxo de pessoas, os membros de sua população-alvo estão individualizados em documentos. Cada indivíduo possui seu respectivo prontuário. Pelos prontuários, foi possível obter uma amostra estatisticamente representativa da população lá atendida. Uma vez que todos os apenados, de acordo com os funcionários da instituição, quando são postos em PAD ou recebem os benefícios de sursis ou LC, devem se apresentar à sede do Patronato, em Benfica, Rio de Janeiro, estamos falando de uma amostra representativa de todos aqueles que estão deixando o cárcere no estado.

Entre junho e julho de 2016, realizamos uma amostra aleatória sistemática de 486 dos 7.188 prontuários então ativos no Margarino Torres, o que nos permite realizar inferências com 95% de confiança e margem de erro de 5% para cada lado (Agresti; Finlay, 2012Agresti, Alan; Finlay, Barbara. Métodos estatísticos para as ciências sociais. 4. ed. Porto Alegre: Penso, 2012.; Bartlett et al., 2001Bartlett, James E.; Kotrlik, Joe W.; Higgins, Chadwick, C. “Organizational Research: Determining Appropriate Sample Size in Survey Research”. Information Technology, Learning, and Performance Journal, 2001, v. 19/1, p. 8.). O período de tempo coberto pela amostra vai de 29 de julho de 2003 (data de ingresso do apenado mais antigo que ainda cumpria medida no Patronato Margarino Torres) a 4 de junho de 2016 (data de ingresso do apenado mais recente a cumprir medida no Patronato).

Dos prontuários, retiramos informações de dois documentos: a folha de rosto e a carta de sentença. Do primeiro foi possível recuperar dados sociodemográficos, como sexo, idade, nível de escolaridade e situação da execução penal (presídio de procedência, tipo de medida que cumpre, entre outras). Já do segundo retiramos quais e quantos processos o apenado cumpria ou já cumpriu na Vara de Execuções Penais, somados aos crimes nos quais foi condenado.

Cada prontuário corresponde a um egressante. O problema é que cada egressante pode ter mais de um processo criminal e, em cada processo, pode ter sido condenado em mais de uma infração. Nossa amostra, então, é composta de três entidades: os egressantes, seus respectivos processos e os crimes pelos quais foram julgados culpados. Dos primeiros foram coletados os já citados 486 casos, os segundos totalizaram 741 casos, e os terceiros, 925.

Essa variedade de entidades nos colocou diante do obstáculo de manter as relações de uns com os outros de maneira eficaz. Para resolver esse impasse, construímos a base de dados normalizada pelo modelo Entidade-Relação (Tahaghoghi; Williams, 2007Tahaghoghi, Saied M. M.; Williams, Hugh E. Learning MySQL. Sebastopol: O’Reilly, 2007.), o qual permite armazenar em tabelas separadas as unidades de registro, sem a necessidade de repetição dos casos. As unidades se mantêm vinculadas mediante variáveis-chave, em relações de um para um (1:1), um para muitos (1:N) e muitos para muitos (M:N). Os dados e a maneira pela qual eles se relacionam entre as entidades podem ser recuperados por meio de Linguagens de Consulta Estruturada (Structured Query Language, ou SQL), tais como MySQL, PostGreSQL e MariaDB, por exemplo. Este trabalho escolheu utilizar a MicrosoftSQL, a qual faz parte do programa Microsoft Access. Sua interface gráfica facilita ao iniciante todo o processo de construção da base e inserção das informações. As tabelas foram posteriormente exportadas em arquivos .csv e importadas na linguagem R de programação (R Core Team, 2020R Core Team. R: A language and environment for statistical computing. Viena: R Foundation for Statistical Computing, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.R-project.org/ >. Acesso em: 31/8/2021.
https://www.R-project.org/...
), com a qual levamos a cabo todas as análises. Os resultados encontram-se sintetizados na Tabela 1, a qual retornaremos ao longo do texto.1 1 É de se observar ao leitor que a variável idade foi derivada da subtração de ano de nascimento e data de coleta. Ela foi recodificada de numérica intervalar para categórica, nos mesmos níveis da variável usada no Infopen de 2016 (Santos; Rosa, 2017), com vistas à comparação. Quanto à proporção de pessoas por tipo de crime, agrupamos as capitulações do Patronato conforme os critérios adotados no Infopen. O art. 155 do Código Penal foi codificado como “Furto”; o art. 157 da mesma lei como “Roubo”; o art. 121 como “Homicídio”; e o art. 157§3 como “Latrocínio”. A incriminação no art. 12 da Lei 6.368 e no art. 33 da Lei 11.343 foi classificada como “tráfico de drogas”. Os artigos 14-18 do Estatuto de Desarmamento (Brasil, 2004) foram agrupados sob a rubrica “Desarmamento”. Todas as demais se encontram na categoria “Outros”. Sobre a escolaridade, não foi possível determinar se o nível de ensino havia ou não sido concluído. Em alguns prontuários a escolaridade estava apenas registrada como “ensino fundamental”, enquanto outros distinguiam se o egressante o cursara ou não até o final. Por isso, tivemos de agrupar os casos apenas por nível de ensino, independentemente de se concluído ou não. Finalmente, o critério de reincidência foi o de reincidência legal. Conforme definindo nos arts. 63 e 64 do Código Penal, considera-se reincidente aquele que comete novo crime depois de uma condenação já transitada em julgado, no prazo inferior de cinco anos entre uma e outra (Brasil, 1940). Mais estritamente, consideramos como “novo crime” apenas novas condenações transitadas em julgado com intervalo menor que cinco anos. Não só porque, no nível jurídico, a existência ou não de um crime — e de sua culpabilidade — só será demonstrada depois de percorrida todas as fases do processo penal, como também porque as fontes só nos davam acesso aos processos nos quais o egressante já fora condenado.

Tabela 1
Estimativas da amostra do Patronato Margarino Torres (n = 486)

O problema é que considerar a execução penal tão somente por uma descrição quantitativa faz pouco para diminuir sua ilegibilidade e opacidade, para usar termos de Rafael Godoi (2016Godoi, Rafael. “Penar em São Paulo: sofrimento e mobilização na prisão contemporânea”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2016, v. 31/92. Disponível em: <Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/mVqD53j5Mf93JGYNt97Mx3b/?format=pdf⟨=pt >. Acesso em: 31/8/2021.
https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/mVqD53j...
, 2017_______. “O controle da pena: presos, defensores e processos nos circuitos do sistema de justiça”. Dilemas, 2017, v. 10/3, pp. 389-411.). Com o intuito de compreender efetivamente esse intricado processo, realizamos, em paralelo à amostragem, uma consulta aos Códigos Penal (Brasil, 1940Brasil. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.) e de Processo Penal (Brasil, 1941_______. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.) e à Lei de Execuções Penais (Brasil, 1984_______. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execuções Penais.). Desses diplomas tentamos retirar todos os requisitos que um apenado deve cumprir para avançar na execução, requisitos estes que variam de acordo com uma série de circunstâncias. O resultado dessa sistematização das regras formais de egressão será exposto a seguir, na primeira parte, e, como se verá, a melhor figura que representa a execução penal é a de um labirinto. Na segunda parte, usaremos o mapa desse dédalo para identificar os principais caminhos de egressão e estimar quais tendem a prevalecer. A terceira parte apresenta o perfil do egressante no Patronato Margarino Torres e, a partir de uma comparação transversal com dados do Infopen 2016, levanta hipóteses sobre quem tem mais chance de progredir até o Patronato e quem tem mais chance de permanecer nos regimes fechado ou semiaberto. A quarta e última parte sintetiza os resultados e tece algumas considerações finais.

OS CAMINHOS DO SISTEMA

Quando um réu é julgado culpado em um processo criminal e sentenciado à pena privativa de liberdade, a dosimetria da pena determina de quanto tempo e como será essa punição. De acordo com o art. 33 do Código Penal (Brasil, 1940Brasil. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.), há três inícios possíveis: 1) réus condenados a mais de oito anos de reclusão devem começar a cumprir pena em regime fechado, em estabelecimento de segurança máxima ou mínima; 2) quando a pena é igual ou superior a quatro anos, e menor que oito, o apenado pode iniciar o cumprimento no regime semiaberto; 3) já no caso de a pena ser inferior a quatro anos, é possível começar o cumprimento da pena já no regime aberto. Para iniciar em regime semiaberto ou aberto, contudo, o apenado não pode ser reincidente. Nesse caso, deve começar pelo fechado, regime inicial obrigatório também para os condenados a mais de oito anos. Esses são os chamados critérios objetivos. Além deles, há outros, de caráter mais subjetivo, que encontram guarida no arbítrio do juiz. Pois um magistrado pode sentenciar um réu primário condenado a pena inferior a oito anos - mas avaliado de “alta periculosidade” - a iniciar seu período de reclusão em regime fechado.

A diferença entre os regimes é que, no fechado, não é permitido ao detento deixar os limites da unidade prisional. No semiaberto, é-lhe facultado o trabalho diurno, desde que não ultrapasse as fronteiras do estabelecimento, devendo retornar à reclusão no período noturno. No aberto, ele pode trabalhar fora da unidade, mas ainda assim com a obrigação de retornar à noite. Todavia, como o estado do Rio de Janeiro possui apenas uma unidade prisional de regime aberto (Casa do Albergado Crispim Ventino), é muito comum entre os cumpridores desse regime a pena de Prisão-Albergue Domiciliar (PAD). Também considerada uma punição de regime aberto, na prática a PAD é mais benéfica, porque o apenado pode dormir em sua própria residência e estar em contato com seus familiares e amigos. Deve, contudo, ficar em casa durante a noite e fins de semana, além de ter de comparecer periodicamente ao Patronato para prestar contas - bimestralmente, quando utiliza tornozeleira eletrônica, e quinzenalmente, quando não a utiliza.

Comece o apenado pelo regime fechado ou semiaberto, é seu direito pleitear a progressão do regime mais severo para o mais brando após cumpridos m do tempo da pena.2 2 A Lei n. 13.964, de 14 de dezembro de 2019, conhecida como “pacote anticrime”, alterou essas frações. Passou a expressá-las em porcentagens e aumentou a combinatória de condições ao introduzir, ao lado da hediondez e da reincidência — critérios que já estavam presentes —, a letalidade do crime, e se ele foi produzido com violência ou grave ameaça. Entretanto, nossa amostra vai de 2003 até 2016. Como a nova lei só entrou em vigor em dezembro de 2019, optamos por descrever as condições de egressão pelas normas processuais vigentes anteriormente. Alguém condenado a doze anos de reclusão vai iniciar sua pena em regime fechado e, após dois anos, pode requerer a passagem para o semiaberto. Essa fração aumenta para i quando o crime é hediondo ou análogo e para j quando o réu é reincidente em crime dessa mesma natureza. Além desse critério objetivo, o apenado deve também ostentar “bom comportamento” - algo a ser determinado pela administração penitenciária - e a decisão do juiz deve ser precedida e motivada pelas manifestações do Ministério Público e do defensor do réu, conforme o artigo 112 da Lei de Execuções Penais (Brasil, 1984_______. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execuções Penais.).

Essa progressão paulatina “fechado-semiaberto-aberto” é uma das formas de egressão do sistema carcerário até o Patronato. As outras duas são o Livramento Condicional (LC) e a Suspensão Condicional da Pena, também conhecida como sursis. Os requisitos mínimos do LC quanto ao tempo de cárcere são de N do cumprimento da pena para apenados não reincidentes em crime doloso, H para reincidentes em crime doloso e O para réus primários condenados em crime hediondo ou análogo. Para reincidentes em crime dessa natureza não é facultado o direito de solicitar o benefício. E tal como na progressão de regime, o “bom comportamento”, a ser determinado pela administração penitenciária, aliado às manifestações do Ministério Público e da Defensoria, são condições necessárias que se somam ao critério objetivo de cumprimento da pena (Brasil, 1984_______. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execuções Penais.). Quanto ao sursis, ele é elegível para apenados de bons antecedentes, não reincidentes em crimes dolosos, condenados a penas privativas de liberdade inferiores a dois anos, mas não conversíveis em penas restritivas de direito (Brasil, 1940Brasil. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.).

Analiticamente diferentes, na prática a progressão de regime, o LC e o sursis acabam se misturando no percurso de egressante. Voltemos à situação de um réu primário, condenado a doze anos de prisão. Sendo o tempo de reclusão superior a oito anos, ele deve iniciar o cumprimento em regime fechado. Passados dois anos (m da pena), ele pode solicitar a transferência para o semiaberto. Mais dois anos no novo regime e ele completa quatro anos de encarceramento. Com esse tempo, ele já preencheu a condição de N de cumprimento da pena, critério objetivamente necessário para a solicitação do LC. Adquirido o benefício, ele recebe a Carta de Livramento e deve se apresentar no Patronato Margarino Torres.

O fluxograma abaixo tenta sintetizar essas condições no intricado labirinto que leva o encarcerado até o Patronato.

Há, portanto, três medidas principais que os egressantes em penas privativas de liberdade cumprem no Patronato Margarino Torres: Prisão-Albergue Domiciliar (PAD), Livramento Condicional (LC) e sursis. Além delas, o Patronato fiscaliza algumas penas restritivas de direito, como Prestação de Serviços Comunitários e Limitação de Final de Semana. As restritivas de direito e o sursis, todavia, são uma minoria na amostra. Apenas 16 casos em 486 (aproximadamente 3%) cumpriam penas restritivas de direito e 4 em 486 (aproximadamente 1%) estavam em sursis (Tabela 1). O LC e a PAD, em contrapartida, são a maioria absoluta do processamento cotidiano no Patronato, com mais de 96% dos casos.

De quantas maneiras, porém, os egressantes no Patronato Margarino Torres podem chegar até a PAD ou o LC? A análise exaustiva da Figura 1 nos mostra que existem seis caminhos possíveis de egressão. Esses seis trajetos lineares e únicos são:

  1. fechado → semiaberto → aberto → Patronato;

  2. fechado → semiaberto → Patronato;

  3. fechado → Patronato;

  4. semiaberto → aberto → Patronato;

  5. semiaberto → Patronato;

  6. aberto → Patronato.

FIGURA 1
Caminhos de egressão das penas privativas de liberdade até o Patronato Margarino Torres

Então, se soubermos: 1) a data da sentença, 2) o último regime do egressante antes do Patronato, 3) a medida que lá cumpre, 4) o tempo de pena ao qual foi condenado, 5) se ele é reincidente ou não, e 6) se cometeu crime hediondo ou não, poderíamos estimar a prevalência esperada dentre esses caminhos. Dizemos “esperada” porque, em primeiro lugar, nossos dados não nos permitem vislumbrar o percurso real. Diferentemente de um caminho, que é um trajeto linear entre dois pontos em uma rede, tal como exemplificada na Figura 1, em um percurso é possível atravessar o mesmo ponto múltiplas vezes. Em outras palavras, na prática, um egressante pode ir e voltar para um mesmo regime: pode progredir para o semiaberto, regredir para o fechado, progredir de novo para o semiaberto e chegar ao Patronato por PAD ou LC. Nesse caso, ele teria percorrido o caminho dois, mas não de maneira linear e direta. Em segundo lugar, essa prevalência é “esperada” porque levamos em conta apenas os critérios objetivos, uma vez que não temos acesso aos subjetivos. E, em terceiro lugar, porque, das seis variáveis acima, os prontuários não traziam informações sobre três: o último regime, o tempo de pena e se o crime era hediondo. Logo, tivemos de complementar nossa base com outras fontes.

Para o tempo de pena e para a hediondez do crime, usamos as capitulações, informação presente na carta de sentença dos prontuá­rios. Uma condenação pelo artigo 121 §2 do Código Penal (homicídio qualificado) é de natureza hedionda (Brasil, 1940Brasil. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.). Da mesma maneira, é de natureza hedionda uma condenação pelo artigo 33 da Lei 11.343 sobre o tráfico de drogas (Brasil, 2006_______. Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.). Contudo, uma condenação também em tráfico, mas na norma jurídica anterior - artigo 12 da Lei 6.368 (Brasil, 1976_______. Lei n. 6.368, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências.) -, não é considerada como tal porque então o crime não era definido como análogo a hediondo. Se cruzarmos esse dado com a reincidência, informação presente nos prontuários, descobrimos se o egressante era ou não reincidente em crime hediondo. Quanto ao tempo da pena, uma vez que os prontuários não traziam essa informação, optamos por usar a mediana entre o tempo mínimo e máximo previsto na lei como o melhor estimador. Na falta de outras informações sobre como os juízes sentenciam os diversos tipos de crime nas mais diversas circunstâncias, a mediana acaba sendo o estimador menos enviesado. No caso de uma capitulação em mais de um tipo de crime, consideramos a soma das medianas. Por exemplo: alguém que foi condenado por roubo (art. 157; caput, §1 e §2 do Código Penal) tem uma pena prevista de quatro a dez anos, com mediana em sete. Se essa mesma pessoa também sofreu, digamos, uma condenação por associação criminosa (art. 288 do Código Penal), que prevê pena de um a três anos, com mediana em dois, seu tempo de pena estimado seria de nove anos (7 + 2 = 9). Pelos critérios objetivos, podemos considerar que essa pessoa começou a cumprir pena no regime fechado. Se a soma ficasse entre quatro e sete anos, consideraríamos o regime semiaberto como inicial - desde que o apenado não fosse reincidente. Se a soma fosse menor do que quatro anos e a pessoa não fosse reincidente, regime aberto. Para o último regime antes do Patronato, utilizamos o presídio de procedência indicado nos prontuários. Com posse dessa informação, pudemos estimar o último tipo de regime cruzando a amostra com o sistema Geopresídios, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ 2017). A informação consta na Tabela 1.

Finalmente, com as seis variáveis, podemos estimar quantos egressantes começaram no regime fechado, progrediram para o semiaberto e, depois, chegaram ao Patronato por LC ou PAD; quantos iniciaram já no semiaberto, passaram para o aberto via progressão de regime e chegaram ao Patronato com uma medida de PAD ou LC; quantos se tornaram egressantes passando por todos os regimes, inclusive pelo aberto em Casa de Albergado, e assim por diante. Entretanto, devemos ressaltar que, nesta análise, tivemos de excluir os casos em que o presídio anterior era considerado de regime misto, pois essa informação impedia a distinção exata do regime anterior. Após essas exclusões, a amostra se reduziu a 388 casos. Uma diminuição considerável, de cerca de 20%, mas a amostra ainda era grande o suficiente, em termos absolutos, para se fazer inferências com 95% de confiança e margem de erro de 5% para mais ou para menos em variáveis categóricas, de acordo com a fórmula de Cochran (Bartlett et al., 2001Bartlett, James E.; Kotrlik, Joe W.; Higgins, Chadwick, C. “Organizational Research: Determining Appropriate Sample Size in Survey Research”. Information Technology, Learning, and Performance Journal, 2001, v. 19/1, p. 8., p. 5).

O resultado dessa prevalência esperada entre os seis caminhos encontra-se sintetizado na Figura 2. Ela nos mostra a estimativa por ponto e o intervalo de confiança para cada um deles. Podemos ver uma prevalência do Caminho 2: fechado → semiaberto → Patronato, uma vez que seu intervalo de confiança não se sobrepõe aos demais. Destarte, no nível da população de egressantes no estado do Rio de Janeiro, é possível inferir que 64% deles, variando entre 59% e 69%, são condenados ao regime fechado inicial, por terem penas provavelmente maiores do que oito anos. Progridem até o semiaberto e, de lá, chegam ao Patronato, seja por PAD ou LC. Os outros 36% podem ter percorrido qualquer um dos outros cinco caminhos, pois, pela nossa amostra, não podemos distinguir a prevalência de um dentre eles, uma vez que seus intervalos se sobrepõem. Quanto ao tempo esperado até a egressão, entre aqueles que percorreram o Caminho 2 e aqueles que percorreram os demais caminhos não há diferenças significativas. O tempo médio esperado para o Caminho 2 é de 5,8 anos, com intervalo de confiança de 95% entre 5,4 e 6,4 anos, enquanto o dos demais caminhos, tomados em conjunto, varia de 4,7 a 6,3 anos, com média em 5,4, de modo que ambos os intervalos de confiança se sobrepõem.

FIGURA 2
Intervalos de confiança para os caminhos de egressão (n = 388)

Se o tempo esperado para chegar à PAD ou ao LC, no Rio de Janeiro, não varia conforme o caminho que o condenado a pena privativa de liberdade percorre, pode-se dizer o mesmo de seu perfil sociodemográfico e do crime que ele cometeu? Tentaremos levantar hipóteses para essas perguntas na próxima seção.

QUEM FICA E QUEM SAI

Em As regras do método sociológico, Émile Durkheim definiu no conceito de tipo médio a individualidade abstrata que reúne em si as características mais frequentes de um fenômeno social (Durkheim, 2007Durkheim, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 59). Aqui adaptamos esse conceito não só para separar o que é raro do que é comum entre os egressantes fluminenses, como também para perscrutar as linhas gerais de seletividade do SJC. Se comparamos o tipo médio do egressante fluminense, isto é, quem cumpre PAD ou LC, com o tipo médio do encarcerado fluminense, isto é, quem cumpre pena privativa de liberdade em unidades prisionais de regime fechado, semiaberto ou aberto, podemos identificar os prováveis fatores que favorecem a saída de um tipo de apenado, em detrimento de outros.

Podemos montar o primeiro desses dois homúnculos analíticos a partir da Tabela 1. Esse egressante médio é em geral do sexo masculino (95%), tem entre 35 e 45 anos (28%), estudou apenas até o ensino fundamental (63%) e possui ao menos uma condenação por roubo (49%). Se considerarmos os caracteres do egressante médio como independentes uns dos outros, isto é, caso não possuam correlação entre si, as leis da probabilidade nos dizem que a ocorrência de dois eventos simultâneos e independentes é igual ao produto de suas respectivas probabilidades. Logo, a probabilidade de o egressante ser homem, ter entre 35 e 45 anos, ter estudado apenas até o fundamental e ter ao menos uma condenação por roubo é de aproximadamente 8,22%. Cerca de um em cada onze egressantes fluminenses possuem esse perfil.

A construção do segundo homúnculo, o tipo médio do encarcerado fluminense, é um pouco mais complicada, porque temos de recorrer aos dados do Infopen 2016, que é o levantamento sobre a população prisional brasileira coetâneo à amostragem no Patronato Margarino Torres de mais fácil acesso que temos hoje (Santos; Rosa, 2017Santos, Thandara; Rosa, Marlene Inês da. “Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen - atualização junho de 2016”. Departamento Penitenciário Nacional, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/relatorio_2016_2211.pdf >. Acesso em: 31/8/2021.
http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/s...
). Em que pese sua abrangência nacional, os dados do Infopen apresentam uma série de deficiências, muitas delas decorrentes do fato de que a unidade de amostragem não são os apenados, mas as unidades prisionais. Quem prestou as informações foram os gestores dos presídios, não os presos. Sobre estes, a informação que temos é indireta, fornecida por uma espécie de informante privilegiado. Em muitos casos, é uma informação também ausente, pois quase todas as variáveis sociodemográficas possuem quantidade significativa de dados perdidos. Atendo-nos apenas àquelas que serão aqui utilizadas, a taxa de informação para faixa etária, por exemplo, é de 75% para a população de apenados; para escolaridade, 70%; tipo penal, 66%. E isso para todo o Brasil. Quando descemos para o nível dos estados, a situação muda. Algumas vezes para melhor, noutras para pior. O Rio de Janeiro vem aprimorando a coleta nos últimos anos. Em 2014, as proporções de informação nas variáveis de faixa etária, escolaridade e tipo penal eram, respectivamente, de apenas 23%, 19% e 0% (Moura; Ribeiro, 2016Moura, Tatiana Whately de; Ribeiro, Natália Caruso Theodoro. “Levantamento nacional de informações penitenciárias Infopen: junho de 2014”. Departamento Penitenciário Nacional, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf >. Acesso em: 31/8/2021.
https://www.justica.gov.br/news/mj-divul...
). Em 2016, as duas primeiras subiram para 100% e 85%. Apenas o tipo penal permaneceu com a mesma taxa nula de informação (Santos; Rosa, 2017Santos, Thandara; Rosa, Marlene Inês da. “Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen - atualização junho de 2016”. Departamento Penitenciário Nacional, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/relatorio_2016_2211.pdf >. Acesso em: 31/8/2021.
http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/s...
). Isso mesmo: para o Rio de Janeiro não há, no Infopen, dados acerca da quantidade de pessoas por tipo de crime. Portanto, usaremos as proporções do país todo como proxy para as do estado.

A Tabela 2 apresenta o resumo dessas características no Infopen 2016. Podemos ver que o tipo médio do encarcerado fluminense é homem (95%), tem entre 18 e 24 anos (37%), estudou apenas até o ensino fundamental (80%) e foi condenado ou aguarda julgamento por tráfico de drogas (28%). Pela mesma regra usada anteriormente - de que a probabilidade entre dois ou mais eventos independentes e simultâneos é o produto de suas respectivas probabilidades -, a proporção desse encarcerado médio na população é de 7,8%.3 3 P(A & B) = P(A) x P(B). O ideal seria considerar os eventos como dependentes, o que levaria a P(A & B) = P(A) x P(B|A). Mas na base de dados do Infopen, cuja unidade de observação são os presídios e não os presos, não é possível obter os valores da probabilidade condicionada de P(B|A). Para tornar essa base comensurável com a que produzimos sobre o Patronato, suspendemos possíveis correlações existentes entre as características sociodemográficas dos egressantes, de modo que as variáveis fossem consideradas independentes. Ou seja, cerca de um em cada doze encarcerados apresentam esse perfil no sistema carcerário fluminense.

Tabela 2
Perfil do encarcerado fluminense segundo o Infopen 2016 (n = 50.219)

Ao compararmos o egressante médio com o encarcerado médio, podemos vislumbrar algumas das linhas de força que operam a seletividade do sistema penal (Tabela 3). Quanto ao sexo, não parece haver diferenças: homens são mais presos que mulheres, homens saem mais do sistema que mulheres. Mas as semelhanças acabam por aí. O que chama a atenção na Tabela 3, em primeiro lugar, é o contraste entre as faixas etárias. O encarcerado médio tem entre 18 e 24 anos; já o egressante médio tem entre 35 e 45. Ou seja, o SJC parece aprisionar preferencialmente os mais jovens; em contrapartida, deixa sair com mais facilidade os mais velhos. Em segundo lugar, vemos que ele prende pessoas acusadas por roubo ou tráfico quase na mesma proporção (25% e 28%, Tabela 2), mas deixa sair mais acusados por roubo (49%, Tabela 1). Em terceiro lugar, vemos que, nas duas populações, o perfil mais frequente é de quem estudou apenas até o ensino fundamental. Até aqui, parece que os dois tipos médios concordam. No entanto, o intervalo de confiança para a amostra dos egressantes não abarca o da proporção na população de encarcerados, de modo que ambas as populações parecem diferir quanto à distribuição da escolaridade. Com efeito, é isso que acontece. Entre os egressantes, de 24% a 35% (Tabela 1) estudaram até o ensino médio e de 2% a 6% estudaram até o superior. Entre os encarcerados, essa proporção é de apenas 14% para o ensino médio e de 1% para o ensino superior (Tabela 2).

Tabela 3
Egressante médio x encarcerado médio

Destarte, podemos dizer que o perfil que enfrenta mais obstáculos em sua jornada rumo à liberdade é o do jovem entre 18 e 24 anos, tanto do sexo masculino quanto do feminino, de baixa escolaridade e condenado por tráfico. Pela medida de associação da razão de chances,4 4 Chance é a medida para uma variável binária que consiste em dividir a probabilidade de se encontrar determinado valor contra a probabilidade de não se encontrar esse valor (chance = probabilidade de sucesso/probabilidade de fracasso). A razão de chances nada mais é que a comparação das chances entre duas populações (razão de chances = chance 1/chance 2). a chance de se encontrar esse tipo na população carcerária é quase quatro vezes maior do que a de encontrá-lo na de egressantes. Por outro lado, o perfil mais favorecido no processo de egressão é o do homem adulto, entre 35 e 45 anos, de média ou alta escolaridade e condenado por roubo. A razão de chances para esse tipo mostra que ele tem uma chance quase seis vezes maior de ocorrer na população de egressantes do que na população carcerária (Tabela 4).

Tabela 4
Perfis mais favorecidos e desfavorecidos na egressão

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho, tentamos iluminar as paredes opacas e ilegíveis dos regimes de processamento da execução penal (Godoi, 2016Godoi, Rafael. “Penar em São Paulo: sofrimento e mobilização na prisão contemporânea”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2016, v. 31/92. Disponível em: <Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/mVqD53j5Mf93JGYNt97Mx3b/?format=pdf⟨=pt >. Acesso em: 31/8/2021.
https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/mVqD53j...
, 2017_______. “O controle da pena: presos, defensores e processos nos circuitos do sistema de justiça”. Dilemas, 2017, v. 10/3, pp. 389-411.), mas com foco no estado do Rio de Janeiro, mediante uma abordagem quantitativa e visto retrospectivamente a partir de um ponto de observação específico: o Patronato Margarino Torres. Deveras, nossos dados permitem lançar apenas uma fraca luz nessa escuridão. Pesquisas futuras, com acesso a melhores dados, caracterizarão com maior precisão o percurso do apenado. Por ora, no entanto, nossos resultados mostram que, enquanto o fluxo do SJC até a condenação se assemelha a um funil, a figura que melhor se aplica como metáfora à execução penal é a de um labirinto: um dédalo com muitos caminhos no qual o percurso depende de uma série de condições e circunstâncias, algumas mais objetivas, outras mais subjetivas, que fogem ao controle do egresso. O fluxo até a condenação trata da sobrevivência de um evento por sucessivos regimes de verdade até a sua “definição definitiva” na sentença, com o perdão do pleonasmo. No fluxo da execução, o que está em jogo não é se um evento sobrevive a múltiplas definições. Mais cedo ou mais tarde, todos saem da prisão: seja porque cumpriram sua pena, seja porque foram absolvidos, seja porque receberam um indulto, seja até porque vieram a óbito. A questão não é se os apenados vão sair ou não, mas quando sairão e quem sairá mais rápido. Na execução penal, o regime de processamento estabelece cesuras na população apenada por meio da atribuição de diferentes velocidades a cada tipo de egressante. O que tentamos fazer aqui foi decifrar, ainda que com parcos indícios, os critérios dessa seleção diferencial. Se, por um lado, critérios objetivos como a criminalização de algumas condutas como hediondas, a reincidência e o tempo de pena determinam essa velocidade, por outro, há critérios extrajurídicos que podemos inferir pela preferência do SJC em manter presos homens jovens, de 18 a 24 anos, de baixíssima escolaridade e condenados por tráfico, mas deixa sair, com mais facilidade, homens mais velhos, entre 35 e 45 anos, com escolaridade média a superior e condenados por roubo. Por trás desse diferencial talvez estejam em ação diferentes gramáticas morais, que tendem a julgar como mais ressocializado um tipo social, em detrimento de outro. Essa hipótese, contudo, é tarefa para outras pesquisas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Adorno, Sérgio. “Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo”. Novos Estudos Cebrap, nov. 1995, n. 43, pp. 45-63.
  • _______; Pasinato, Wânia. “A justiça no tempo, o tempo da justiça”. Tempo Social, 2007, v. 19/2, pp. 131-5.
  • Agresti, Alan; Finlay, Barbara. Métodos estatísticos para as ciências sociais. 4. ed. Porto Alegre: Penso, 2012.
  • Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli de; Sinhoretto, Jacqueline. “O sistema de justiça criminal na perspectiva da antropologia e da sociologia”. BIB - Revista Brasileira de Informações Bibliográficas em Ciências Sociais, 2017, v. 84/2, pp. 188-215.
  • Bartlett, James E.; Kotrlik, Joe W.; Higgins, Chadwick, C. “Organizational Research: Determining Appropriate Sample Size in Survey Research”. Information Technology, Learning, and Performance Journal, 2001, v. 19/1, p. 8.
  • Battitucci, Eduardo; Cruz, Marcus Vinicius Gonçalvez da; Silva, Breno. “Fluxo do crime de homicídio no sistema de justiça criminal de Minas Gerais”. In: 30-º Encontro Anual da Anpocs, 2006, Caxambu. Disponível em: <Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/papers-32-encontro/gt-27/gt05-25/2304-eduardobatitucci-fluxo/file >. Acesso em: 31/8/2021.
    » http://www.anpocs.com/index.php/papers-32-encontro/gt-27/gt05-25/2304-eduardobatitucci-fluxo/file
  • Brasil. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.
  • _______. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.
  • _______. Lei n. 6.368, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências.
  • _______. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execuções Penais.
  • _______. Lei n. 10.826, de 2004. Dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas - Sinarm, define crimes e dá outras providências.
  • _______. Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.
  • _______. Lei n. 13.964: aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Brasil: República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm>. Acesso em 18/3/2022.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm
  • Cireno, Flávio; Ratton, José Luiz. “Homicídios no fluxo do sistema de justiça criminal em Pernambuco”. In: 32-º Encontro Anual da Anpocs, 2007, Caxambu. Disponível em: <Disponível em: https://anpocs.com/index.php/papers-32-encontro/gt-27/gt07-12/2334-flaviocireno-homicidios/file >. Acesso em: 31/8/2021.
    » https://anpocs.com/index.php/papers-32-encontro/gt-27/gt07-12/2334-flaviocireno-homicidios/file
  • Coelho, Edmundo Campos. “A administração da justiça criminal no Rio de Janeiro: 1942-1967”. Dados, 1986, v. 29/1, pp. 61-81.
  • Costa, Arthur Trindade M. “A (in)efetividade da justiça criminal brasileira: uma análise do fluxo de justiça dos homicídios no Distrito Federal”. Civitas, 2015, v. 15/1, pp. 11-26.
  • Durkheim, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
  • Godoi, Rafael. “Penar em São Paulo: sofrimento e mobilização na prisão contemporânea”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2016, v. 31/92. Disponível em: <Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/mVqD53j5Mf93JGYNt97Mx3b/?format=pdf⟨=pt >. Acesso em: 31/8/2021.
    » https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/mVqD53j5Mf93JGYNt97Mx3b/?format=pdf⟨=pt
  • _______. “O controle da pena: presos, defensores e processos nos circuitos do sistema de justiça”. Dilemas, 2017, v. 10/3, pp. 389-411.
  • Moura, Tatiana Whately de; Ribeiro, Natália Caruso Theodoro. “Levantamento nacional de informações penitenciárias Infopen: junho de 2014”. Departamento Penitenciário Nacional, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf >. Acesso em: 31/8/2021.
    » https://www.justica.gov.br/news/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf
  • Oliveira, Marcus Vinicius Berno N. de; Machado, Bruno Amaral. “O fluxo do sistema de justiça como técnica de pesquisa no campo da segurança pública”. Revista Direito e Práxis, 2018, v. 9/2, pp. 781-809.
  • Porto, Camille. “O que há de moral na carreira moral: sobre dispositivos de transformação de si em ‘egressantes’ do sistema penitenciário”. Dilemas, 2019, v. 12/3, pp. 477-98.
  • R Core Team. R: A language and environment for statistical computing. Viena: R Foundation for Statistical Computing, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.R-project.org/ >. Acesso em: 31/8/2021.
    » https://www.R-project.org/
  • Ribeiro, Ludmila. Administração da Justiça Criminal no Rio de Janeiro: uma análise dos casos de homicídio. Tese (doutorado em sociologia). Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 2009.
  • _______; Diniz, Alexandre. “The Flow of Murder Cases Through the Criminal Justice System in a Brazilian City”. Homicide Studies, 2020, v. 24/3, pp. 242-67.
  • _______; Platero, Klarissa. “Fluxo do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro: um balanço da literatura”. Cadernos de Segurança Pública, 2010, v. 2/1, pp. 15-27.
  • Santos, Thandara; Rosa, Marlene Inês da. “Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen - atualização junho de 2016”. Departamento Penitenciário Nacional, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/relatorio_2016_2211.pdf >. Acesso em: 31/8/2021.
    » http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/relatorio_2016_2211.pdf
  • Tahaghoghi, Saied M. M.; Williams, Hugh E. Learning MySQL. Sebastopol: O’Reilly, 2007.
  • Vargas, Joana. Fluxo do sistema de Justiça Criminal para crimes sexuais. Dissertação (mestrado em antropologia). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1997.
  • _______. “Análise comparada do fluxo do sistema de justiça para o crime de estupro”. Dados, 2007, v. 50/4, pp. 671-97.
  • _______. “Fluxo do sistema de justiça criminal”. In: Lima, Renato Sérgio; Ratton, José Luiz; Azevedo, Rodrigo Ghiringheli de (orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, pp. 411-26.
  • _______; Ribeiro, Ludmila. “Estudos de fluxo da Justiça Criminal: balanço e perspectivas”. 32-º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 2008.
  • 1
    É de se observar ao leitor que a variável idade foi derivada da subtração de ano de nascimento e data de coleta. Ela foi recodificada de numérica intervalar para categórica, nos mesmos níveis da variável usada no Infopen de 2016 (Santos; Rosa, 2017Santos, Thandara; Rosa, Marlene Inês da. “Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen - atualização junho de 2016”. Departamento Penitenciário Nacional, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/relatorio_2016_2211.pdf >. Acesso em: 31/8/2021.
    http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/s...
    ), com vistas à comparação. Quanto à proporção de pessoas por tipo de crime, agrupamos as capitulações do Patronato conforme os critérios adotados no Infopen. O art. 155 do Código Penal foi codificado como “Furto”; o art. 157 da mesma lei como “Roubo”; o art. 121 como “Homicídio”; e o art. 157§3 como “Latrocínio”. A incriminação no art. 12 da Lei 6.368 e no art. 33 da Lei 11.343 foi classificada como “tráfico de drogas”. Os artigos 14-18 do Estatuto de Desarmamento (Brasil, 2004_______. Lei n. 10.826, de 2004. Dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas - Sinarm, define crimes e dá outras providências.) foram agrupados sob a rubrica “Desarmamento”. Todas as demais se encontram na categoria “Outros”. Sobre a escolaridade, não foi possível determinar se o nível de ensino havia ou não sido concluído. Em alguns prontuários a escolaridade estava apenas registrada como “ensino fundamental”, enquanto outros distinguiam se o egressante o cursara ou não até o final. Por isso, tivemos de agrupar os casos apenas por nível de ensino, independentemente de se concluído ou não. Finalmente, o critério de reincidência foi o de reincidência legal. Conforme definindo nos arts. 63 e 64 do Código Penal, considera-se reincidente aquele que comete novo crime depois de uma condenação já transitada em julgado, no prazo inferior de cinco anos entre uma e outra (Brasil, 1940Brasil. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.). Mais estritamente, consideramos como “novo crime” apenas novas condenações transitadas em julgado com intervalo menor que cinco anos. Não só porque, no nível jurídico, a existência ou não de um crime — e de sua culpabilidade — só será demonstrada depois de percorrida todas as fases do processo penal, como também porque as fontes só nos davam acesso aos processos nos quais o egressante já fora condenado.
  • 2
    A Lei n. 13.964, de 14 de dezembro de 2019, conhecida como “pacote anticrime”, alterou essas frações. Passou a expressá-las em porcentagens e aumentou a combinatória de condições ao introduzir, ao lado da hediondez e da reincidência — critérios que já estavam presentes —, a letalidade do crime, e se ele foi produzido com violência ou grave ameaça. Entretanto, nossa amostra vai de 2003 até 2016. Como a nova lei só entrou em vigor em dezembro de 2019, optamos por descrever as condições de egressão pelas normas processuais vigentes anteriormente.
  • 3
    P(A & B) = P(A) x P(B). O ideal seria considerar os eventos como dependentes, o que levaria a P(A & B) = P(A) x P(B|A). Mas na base de dados do Infopen, cuja unidade de observação são os presídios e não os presos, não é possível obter os valores da probabilidade condicionada de P(B|A). Para tornar essa base comensurável com a que produzimos sobre o Patronato, suspendemos possíveis correlações existentes entre as características sociodemográficas dos egressantes, de modo que as variáveis fossem consideradas independentes.
  • 4
    Chance é a medida para uma variável binária que consiste em dividir a probabilidade de se encontrar determinado valor contra a probabilidade de não se encontrar esse valor (chance = probabilidade de sucesso/probabilidade de fracasso). A razão de chances nada mais é que a comparação das chances entre duas populações (razão de chances = chance 1/chance 2).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2019
  • Aceito
    21 Set 2020
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Rua Morgado de Mateus, 615, CEP: 04015-902 São Paulo/SP, Brasil, Tel: (11) 5574-0399, Fax: (11) 5574-5928 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: novosestudos@cebrap.org.br