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UM ROMANCE EM SÉRIES: “WATT”, DE SAMUEL BECKETT

A Novel in Series: “Watt”, by Samuel Beckett

RESUMO

Com base em Watt, de Samuel Beckett, o artigo traz uma reflexão sobre os caminhos do romance moderno, considerando três elementos: a paródia literária e filosófica na obra de juventude do autor; a dificuldade em determinar o foco narrativo; e o emprego de séries e combinatórias para questionar a organização do tempo romanesco sob a forma da ação.

PALAVRAS-CHAVE:
Samuel Beckett; romance moderno; serialismo

ABSTRACT

The article approaches Samuel Beckett’s Watt as a reflection on the paths of the modern novel. Three elements are highlighted: the literary and philosophical parody in the author’s early work; the difficulty in determining the narrative focus; and the use of series and combinations to question the organization of romanesque time in the form of action.

KEYWORDS:
Samuel Beckett; modern novel; serialism

Watt, segundo romance de Samuel Beckett, tem mais de um ponto em comum com Murphy, a estreia do autor no gênero, publicado em 1938.1 1 Ver: Beckett, Murphy (São Paulo: Cosac Naify, 2013); Watt (Londres: Faber & Faber, 2009). Watt foi o segundo romance concluído por Beckett, mas só saiu nos anos 1950, após a publicação dos romances que compõem sua chamada trilogia: Molloy, Malone morre e O inominável. Antes de Murphy, Beckett trabalhara num projeto de romance intitulado Dream of Fair to Middling Woman, o qual ele só permitiu que fosse publicado pós-morte. Se Beckett de fato havia concluído Dream…, é uma questão controversa, mas o fato é que ele aproveitou muito de seu material na primeira coletânea de contos, More Pricks than Kicks, e em Murphy. Comparado à economia de recursos literários e à concentração formal e temática da produção posterior que fez a fama de Beckett, Murphy era um livro colorido e exuberante, na linhagem do romance picaresco, do romance de ideias e da comédia filosófica que remonta a Miguel de Cervantes, a François Rabelais e à literatura setecentista de Jonathan Swift, Henry Fielding e Laurence Sterne (Ackerley; Gontarski, 2006_____; Gontarski, S. E. (orgs.). The Faber Companion to Samuel Beckett. Londres: Faber & Faber, 2006., p. 387; Knowlson, 1996Knowlson, James. Damned to Fame. The Life of Samuel Beckett. Nova York: Grove Press, 1996., p. 204). Recheado de digressões, paródias eruditas e tiradas de humor afiado, na tradição do witt britânico, Murphy trazia uma trama intrincada, centrada na ciranda afetiva de seu protagonista com um conjunto de personagens que se deslocavam de Dublin a Londres em seu encalço (Gatti, 2014Gatti, Luciano. “Murphy , antes e depois de Beckett”. Novos Estudos Cebrap 98, v. 33 (1), mar. 2014.).2 2 Sobre a trilogia do pós-guerra, Molloy, Malone morre e O inominável, ver Andrade (2001). Em Watt, personagens beirando o pitoresco - como o sr. Hackett e os Nixons conversando num banco público sobre o protagonista ainda fora de cena - assemelham-se aos perseguidores de Murphy e colaboram para evocar, logo na abertura do romance, o tom paródico e o universo irlandês que caracterizam a prosa de juventude do autor. No que diz respeito aos protagonistas dos dois romances, um traço comum a ambos é a galeria de posturas corporais. O desejo de imobilidade de Murphy, que chega a atar-se à cadeira para libertar seu espírito, tem correspondências com o modo de andar de Watt, que avança segundo uma peculiar combinatória dos quatro pontos cardeais. Se as andanças de Murphy de Dublin a Londres refaziam os passos do próprio autor, a topografia de Watt, com suas estações de trem e paradas de bonde, também retoma locações da vida de Beckett, em particular a casa de sua família nos arredores de Dublin, tida como um modelo para a residência do personagem do sr. Knott (Ackerley; Gontarski, 2006_____; Gontarski, S. E. (orgs.). The Faber Companion to Samuel Beckett. Londres: Faber & Faber, 2006., p. 630).

A atmosfera inicial do romance, própria ao marasmo de uma vida de província, não poderia, entretanto, estar mais distante das circunstâncias de composição do livro, iniciado em 1941, em Paris, e concluído na mesma cidade em 1948, mas escrito em grande parte entre 1942 e 1944 em Roussillon, vilarejo no sul da França onde Beckett se escondeu durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar do esforço em publicá-lo, ele tinha reservas em relação ao livro: considerava-o insatisfatório, escrito como um exercício para ocupar as noites vazias e manter a lucidez. Ao mesmo tempo, como comenta com George Reavey em 1947, o livro “teria um lugar na série”, ou seja, Watt seria um dos perambuladores beckettianos de chapéu e sobretudo que teriam descendência assegurada nas Novelas e nos três romances do imediato pós-guerra: Molloy, Malone morre e O inominável. O livro saiu apenas em 1953 pela Olympia Press, que publicava de pornografia a Henry Miller, e nas condições mais precárias, repleto de erros tipográficos que se repetiriam nas edições seguintes em meio às correções insuficientes que ainda dificultam o estabelecimento de uma edição definitiva. Em um romance no qual o protagonista chega a mudar a ordem das palavras na frase e das letras na palavra, esburacando a relação entre nomes e coisas em meio a paródias da escolástica e do cartesianismo, é mais que nebulosa a fronteira entre erros propositais, da lavra do autor, e o descuido dos editores.

A julgar pelo exaustivo Obscure Locks, Simple Keys: The Annotated Watt (2005Ackerley, C. J. Obscure Locks, Simple Keys. The Annotated Watt. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2005.), de Chris Ackerley, Watt contém um conjunto tão ou mais volumoso de paródias, trocadilhos e referências cifradas que Murphy. As notas do leitor voraz, que enchiam na década anterior os Whoroscope Notebooks com comentários e citações que iam de Agostinho a Arthur Schopenhauer, entre outros, também teriam se infiltrado nas páginas de Watt. Ackerley lembra que os primeiros esboços começavam com as categorias escolásticas “Quis? quid? ubi quib usauxiliis? cur? quomodo? quando?” [“Quem? o quê? onde? por quais meios? por quê? de que modo? quando?”], por meio das quais qualquer proposição poderia ser reduzida a elementos básicos. Elas estavam na origem do protagonista, que interroga com o próprio nome (Watt) o senhor (Knott) do qual ele pouco ou nada descobrirá pela análise de seus atributos. No registro das referências filosóficas, Watt poderia ser lido como uma paródia do método cartesiano, reforçando a continuidade com a paródia do dualismo de corpo e alma em Murphy. Durante os prováveis dois anos em que Watt trabalha como criado na residência do sr. Knott, seu raciocínio combinatório leva ao paroxismo, o que René Descartes enunciou na quarta regra do método: “fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir” (1973Descartes, René. O discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1973., p. 46). Daí seguem-se listas de variantes possíveis de conjuntos limitados de elementos, dos ingredientes da refeição do sr. Knott à disposição dos móveis de seu quarto. Como indica Ackerley, Watt põe à prova a aplicação do método para chegar à verdade: “a tentativa de Descartes de racionalizar e sustentar sua filosofia da dúvida; nas palavras de Arsene, de tocar o inefável. Uma vez que a essência de Knott é ser inacessível ao entendimento racional de seus atributos por Watt, essa tentativa leva ao desastre, e por fim à loucura” (Ackerley, 2005Ackerley, C. J. Obscure Locks, Simple Keys. The Annotated Watt. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2005., p.13). Ruby Cohn bem observou que Watt, por ser um romance a respeito do fracasso de uma busca, assemelha-se a O castelo, de Franz Kafka (Cohn, 1962Cohn, Ruby. Samuel Beckett: The Comic Gamut. Nova Jersey: Rutgers University Press, 1962., p. 66). Em ambos, protagonistas recém-chegados buscam compreender o funcionamento do território que adentram, lidando com a experiência fundamental da perplexidade diante de um mundo enigmático. Um traço comum a essas duas obras é reduzir a experiência com o mundo a uma trama cifrada. Mas enquanto K. tem em seu caminho ao Castelo uma aldeia de intermediários, que geram situações com graus diversos de verossimilhança, a despeito da intransparência do conjunto, Watt tem acesso direto à casa e à pessoa do sr. Knott. Essa proximidade, porém, assim como a aplicação obsessiva da regra cartesiana, não o levará à verdade, como queria o filósofo, mas à narrativa de episódios à beira do nonsense.

Se a presença mais ou menos evidente da tradição racionalista aproxima os dois primeiros romances de Beckett, também é necessário notar diferenças importantes, entre elas o fato de que tais referências não são mais tão explícitas em Watt como o eram em Murphy. Em Watt não há lugar, por exemplo, para um capítulo como o da mente de Murphy, nem para associações entre personagens e correntes de pensamento, como era o caso do antigo mestre pitagórico do primeiro protagonista. Nesse contexto, não é demais lembrar que o emaranhado de ideias e teorias referidas ou parodiadas pode ser traiçoeiro ao induzir uma chave explicativa capaz de conferir sentido à obra literária. Dada a alta consciência demostrada por esses romances a respeito da história das convenções do gênero, é mais razoável tentar compreender a função literária que as ideias exercem no universo ficcional. Nesse ponto, há diferenças marcantes entre Murphy e Watt. Observando bem, não é difícil notar que, em Murphy, a intromissão do mundo das ideias era, além de fonte para caracterização dos personagens, um expediente para a intervenção do próprio narrador, que ocasionalmente piscava para o leitor e subia à cena para fazer seus comentários. Watt, por sua vez, além de abrir mão da trama intrincada de Murphy, repleta de perseguições e sustentada por uma galeria diversificada de personagens, e de optar por uma prosa menos exuberante e colorida, deixa de lado também o exibicionismo autorreflexivo do narrador titereiro que marca presença manipulando suas personagens tal como marionetes.

A determinação do narrador de Watt é, aliás, uma questão intrincada. O primeiro capítulo, salvo engano, traz um narrador em terceira pessoa, que acompanha Watt em seu caminho até a casa do sr. Knott, onde ele depara com o monólogo de despedida de seu antecessor, Arsene. A certa altura do segundo capítulo, em que são narrados episódios diversos do primeiro ano de Watt na casa, o narrador informa que o que lemos é, na realidade, a reconstituição de um relato que lhe foi feito pelo próprio Watt. O terceiro capítulo, que se passa longe da casa, talvez em um asilo ou uma instituição médica, possivelmente após os acontecimentos na residência do sr. Knott, consuma a mudança do foco narrativo para a primeira pessoa. Um narrador que se apresenta como Sam vem à tona para explicitar sua amizade com Watt e as circunstâncias em que ouviu dele tudo o que é relatado. O último capítulo, por sua vez, recua no tempo para apresentar o momento em que Watt abandona a casa do sr. Knott, passa a noite na estação e, por fim, desaparece sem ter pegado o primeiro trem da manhã. Esse balanço indica forte instabilidade não apenas entre a terceira e a primeira pessoa, entre o observador descompromissado e o personagem secundário que, assim ele indica, pertence à série de funcionários que passou pela casa do sr. Knott, como também na própria ordenação cronológica da narrativa, a qual derivaria, segundo o narrador, do relato mesmo feito por Watt. Assim lemos no início do quarto e último capítulo: “Como contou o começo da história, não em primeiro lugar, mas em segundo, de modo idêntico, agora, Watt contou seu fim, não em quarto lugar, mas em terceiro. Dois, um, quatro, três, foi nesta ordem que Watt contou sua história. O método de elaboração dos quartetos heroicos não difere muito” (Beckett, 2009_____. Watt. Londres: Faber & Faber, 2009., p. 252).3 3 Em todas as citações de Watt utilizo a tradução de Fábio de Souza Andrade, cuja publicação está prevista ainda para 2020, pela Companhia das Letras. Agradeço a ele pela gentileza de permitir o uso de sua tradução ainda inédita neste artigo. A paginação citada, contudo, refere-se à da edição em inglês, indicada nas referências bibliográficas.

Vários elementos perturbam a tese de que Sam seria o narrador do romance. Enoch Brater, que estudou a instabilidade da voz narrativa de Watt, chega mesmo a duvidar da possibilidade de unificar a narrativa dos quatro capítulos em torno de um único narrador - o Sam do terceiro capítulo: “as quatro vozes narrativas só são distinguíveis na medida em que não estamos certos de que elas sejam a mesma voz” (Brater, 1981Brater, Enoch. “Privilege, Perspective, and Point of View in Watt”. College Literature, v. 8, n. 3, 1981, pp. 209-26., pp. 209-10). Ele julga pertinente comparar os quatro capítulos de Watt com O som e a fúria, o romance polifônico de William Faulkner, mas apenas para insistir em que as vozes de Watt seriam ainda menos coordenadas. Em outras palavras, Faulkner confere a seu leitor o privilégio de saber mais que cada um dos personagens, ao contrário do que ocorre em Watt, romance em que, a despeito da análise exaustiva das circunstâncias, nenhum dos capítulos resulta em conhecimento fidedigno da casa do sr. Knott, o que deixa o leitor (e Watt) de mãos abanando. Por esse motivo, diz Brater, no que diz respeito à determinação do narrador, não haveria “leitura correta” do romance. Mais ainda, seria mesmo razoável considerar tal indeterminação como estratégia da composição, de modo que seria possível recolher elementos tanto favoráveis como contrários à identificação do narrador com Sam. O contraste entre o alegado comprometimento do narrador com sua tarefa e as suspeitas levantadas a respeito do relato mesmo feito por Watt acentuam ainda mais esses deslizamentos. Em uma longa passagem do segundo capítulo, ele afirma:

Pois tudo que sei sobre o sr. Knott, e sobre tudo que toca ao sr. Knott, e sobre tudo que toca a Watt, provém de Watt, e apenas dele. E se aparento não saber muito sobre o sr. Knott ou sobre Watt, e sobre tudo que lhes toca, é porque Watt não sabia muito sobre estes assuntos, ou não se deu ao trabalho de contar. Mas ele me assegurou, na ocasião, quando começava a desfiar seu novelo, que contaria tudo, e então de novo, alguns anos depois, quando já o tinha deslindado, que contara tudo. E da mesma forma que acreditei nele da primeira e da segunda vez, assim continuo a acreditar agora, tempos depois da história deslindada, e da partida de Watt. Não que haja alguma prova de que Watt efetivamente tenha contado tudo que sabia sobre estes assuntos, ou mesmo que se tenha se empenhado neste sentido, de que modo poderia haver, se tudo que sei a respeito foi o que Watt me contou. […] Isto não quer dizer que Watt não tenha deixado de fora parte das coisas que se passaram, ou que existiram, ou que não tenha contrabandeado outras que não se passaram, ou não existiram. Já se fez menção às dificuldades que Watt experimentava nas suas tentativas de distinguir entre o que acontecera e o que não acontecera, entre o que existia e o que não existia, na casa do sr. Knott. E Watt não fazia segredo disto, em suas conversas comigo, de que muitas das coisas que descrevera como ocorridas, na casa do sr. Knott e, claro, no resto da propriedade, talvez nunca tivessem acontecido de fato, ou tivessem ocorrido de modo muito diverso, e que muitas coisas descritas como existentes, ou como não existentes, e estas eram as mais importantes, talvez não tivessem nunca existido, ou, ao contrário, existido desde sempre. Mas tudo isto à parte, é difícil para um homem como Watt contar uma longa história sem deixar de lado umas coisas, e acrescentar outras tantas, contrabandeadas. E tampouco quer dizer que eu não tenha deixado de lado algumas das coisas que Watt me contou, ou acrescentado de contrabando outras, que Watt não me contou, ainda que tenha tido o máximo cuidado ao anotar tudo, na época, em meu caderninho. É muito difícil, em se tratando de uma história longa como a que Watt contou, mesmo tendo o máximo cuidado ao anotar tudo, na época, no caderninho, evitar deixar de fora algumas das coisas ditas, e acrescentar de contrabando outras, que nunca foram ditas, nunca nunca pronunciadas. […] E assim, todas as vezes em que a impossibilidade na qual me encontro, e na qual Watt se encontrava, eu, de saber o que sei, Watt, de saber o que sabia, parecer absoluta, e intransponível, e inegável, e incoercível, é possível demonstrar que eu sei porque Watt me contou, e que Watt sabia porque alguém lhe contara, ou porque descobrira ele próprio. Pois nada sei, a este respeito, senão o que Watt me contou. E Watt nada sabia, a este respeito, senão o que lhe contaram, ou o que descobriu ele próprio, de uma forma ou de outra. (Beckett, 2009_____. Watt. Londres: Faber & Faber, 2009., pp. 155-8)

O trecho é notável por muitas razões, em particular por ser a reflexão de um narrador oscilante entre o comprometimento com o relato fidedigno e uma série de considerações que colocam sob suspeita as condições para a realização de seu trabalho. Por ser longa, a citação evidencia o caráter repetitivo desses deslizamentos. Como indica a desconfiança do narrador em relação a Watt, é possível que ele - o narrador - saiba ainda menos que o personagem envolvido na história, o que é, antes de tudo, uma inversão dos parâmetros do romance realista, em que o narrador almeja a visão de conjunto a partir dos pontos de vista parciais de cada personagem inscrito na ação. Mesmo em Murphy o narrador sabe mais que o protagonista, ainda que este não seja mera “marionete” como os demais personagens. A questão a respeito do que se sabe dos eventos narrados torna-se ainda mais enigmática quando a afirmação de que o relato inteiro tem sua fonte em Watt é contrastada com passagens que colocam em questão essa posição de princípio assumida pelo narrador. O episódio de abertura é exemplar. Se tudo o que o narrador sabe lhe foi transmitido pelas palavras de Watt, o que pensar da conversa entre o sr. Hackett e os Nixons, ocorrida na ausência de Watt? O mesmo poderia ser dito da cena final na estação de trem, na qual o romance, espelhando as páginas iniciais, retorna aos moradores da cidade conversando na ausência de Watt. Talvez seja possível que ele tenha ficado sabendo dessas conversas de alguma forma não contada no romance, pois o narrador também assegura que nem tudo foi relatado - mas essa justificativa seria apenas mais uma das muitas idiossincrasias que desviam a narrativa do caminho reto entre os acontecimentos e sua posterior transmissão. Os exemplos multiplicam-se: o monólogo de Arsene parece ter sido registrado verbatim em sua completude, embora Watt confesse posteriormente ter esquecido boa parte dele; e “vozes” diversas comunicam a Watt dados importantes da rotina da casa, sem que se saiba se Watt ouviu de fato algo de outro personagem. A demarcação entre a exterioridade das informações recolhidas e a interioridade de uma voz raciocinante, preenchendo as lacunas da realidade, é mais que nebulosa.

Por essa e por outras, torna-se difícil acreditar que o livro coincida com o relato do narrador em primeira pessoa que se manifesta no segundo capítulo. Haveria talvez um narrador irônico, como em Murphy, desacreditando o pretenso narrador manifesto dos episódios seguintes? A identidade deste último também é nebulosa. Por referir-se ao “seu tempo” na casa, tudo leva a crer que Sam participa da série de empregados do sr. Knott, assim como Watt, Erskine, Arsene, Arthur, entre outros não mencionados, e, portanto, teria acesso a um conjunto de circunstâncias semelhante àquele vivenciado por Watt. Mas, como personagem propriamente dito, ele (se ele for Sam) só aparece no terceiro capítulo, habitando um pavilhão próximo ao de Watt, sem que se saiba por quê, como ou quando ambos chegaram ali. Na passagem citada antes, ele põe em dúvida a memória e a percepção de Watt, mas a própria linguagem do protagonista também é um obstáculo ao relato, conforme revela o hábito de inverter palavras e letras, tornando seu discurso cada vez mais incompreensível. Inevitavelmente o narrador é levado a confessar que perdeu muito do que se passou da estadia de Watt com o sr. Knott:

Então Watt começou a inverter não mais a ordem das letras nas palavras ao mesmo tempo que a das frases no período, mas a das letras nas palavras e a das palavras na frase junto à das frases no período. Por exemplo: Odal a odal, snemoh siod. Aid odot, etion ad etrap. Acen, acen, acen. Oãtne son ek o odnezaf? Oãn. Taw moc avalaf tonk? Oãn. Tonk moc avalaf taw? Oãn. Taw arp avahlo tonk? Oãn. Tonk arp avahlo taw? Oceg, odiceprotne, odum. Etion ad etrap, aid odot. Snemoh sido, odal a odal. Levei um tempo para me acostumar com isto. Omoc, missa omoc? Watt dizia, missa omoc? Desta forma, devo ter deixado passar muita coisa, me parece, de enorme interesse, imagino, sobre o sétimo estágio, suspeito, do segundo período, o final, da estadia de Watt na casa do sr. Knott. (idem, pp. 204-5)

Essa observação gera a suspeita de que o relato do narrador não seja mais que o esforço de traduzir ou decifrar as palavras de Watt, o que abre espaço para um desnível ainda maior entre os acontecimentos, o relato de Watt e, por fim, a escrita do narrador, seja ele Sam ou outro. Exemplos de incongruências e dificuldades, que fazem de Watt um narrador limitado e inconfiável e tendem a impossibilitar qualquer relato fidedigno, multiplicam-se pelo livro, sempre em desfavor da tarefa de aproximar fatos e palavras. Com base neles, Brater conclui que a disparidade entre as quatro partes, entre as quatro vozes do romance, impede a determinação de um narrador comum a todas, o que incide diretamente na estrutura de Watt:

Compartilhando do mesmo problema do narrador não especificado, […] cada parte é, portanto, um mundo à parte. Ao reter identidades individuais ambíguas, as quatro narrativas nesse romance podem ser combinadas, mas nunca sintetizadas. […] Como um mecanismo inusitado de justaposição e desorientação, Watt entrava qualquer tentativa de correlacionar racionalmente seus quatro pontos de vista. “Estrutura” novelesca aqui é um equilíbrio de associação, dissociação e repetição, um amálgama, uma vibração e uma colisão consciente de partes similares mas separadas. (Brater, 1981Brater, Enoch. “Privilege, Perspective, and Point of View in Watt”. College Literature, v. 8, n. 3, 1981, pp. 209-26., p. 224)4 4 Na mesma direção, ver: Cohn (2001), pp. 118-9.

Brater, contudo, dedica menos atenção a certo processo de mimetização por parte do narrador de formas de pensar, conjecturar e movimentar-se que seriam, em princípio, de Watt. Esse é o caso, entre outros, da visita dos Galls, pai e filho, para afinar o piano, o primeiro episódio vivenciado por Watt na condição de criado do sr. Knott. A eventual atribuição de importância ao episódio por Watt leva o narrador a uma série de conjecturas possíveis a partir de um conjunto limitado de dados:

Finalmente, para voltar ao incidente dos Galls pai e filho, como Watt o relatou, teria ele tido aquele significado para Watt na época em que aconteceu, na sequência deixado de tê-lo, para só depois recuperá-lo? Ou teria tido um significado muito diferente para Watt na época em que aconteceu, na sequência deixado de tê-lo, e só depois recebido aquele que, sozinho ou associado a outros, apresentava no relato de Watt? Ou não teria tido qualquer significado para Watt na época em que aconteceu, não teria havido nem Galls nem piano então, mas apenas uma sucessão de mudanças ininteligíveis das quais Watt finalmente extraiu os Galls e o piano, em um mecanismo de autodefesa? São questões extremamente delicadas. Watt falava disto como se envolvesse, na origem, os Galls e o piano, mas era forçado a fazê-lo, mesmo que, na origem, não tivesse nada a ver com os Galls e o piano. (Beckett, 2009_____. Watt. Londres: Faber & Faber, 2009., p. 109)

Ao deslocar o foco do relato dos fatos para suas condições de transmissão, o narrador põe em questão a própria narrativa. Dadas as variações possíveis da recepção do evento por Watt, fica em aberto o que ele de fato teria contado. É nesse contexto ruidoso que as questões colocadas em série pelo narrador ecoam uma forma de conjecturar própria a Watt, incorporando ao relato o método investigativo de seu personagem. É o que se nota ao situar a passagem acima ao lado de uma das muitas séries de conjecturas de Watt. No momento de sua chegada, por exemplo, ele tenta entrar pela porta da frente, mas ela está trancada; tenta então a dos fundos, também trancada, retorna à porta da frente, ainda trancada e, quando tenta pela segunda vez a porta dos fundos, encontra-a aberta, o que ativa seu peculiar método serial de raciocinar com o intuito de descobrir o que ocorreu na passagem de uma porta à outra.

Watt ficou surpreso ao encontrar a porta dos fundos há tão pouco trancada, agora aberta. Duas explicações para tanto lhe ocorreram. A primeira era a seguinte, que sua ciência da porta fechada, tão raramente falha, assim o estivesse nesta ocasião, e que a porta dos fundos, quando a encontrara fechada, não estava fechada, mas aberta. E a segunda era a seguinte, que a porta dos fundos, quando a encontrara fechada, estivesse de fato fechada, mas tivesse sido aberta logo em seguida, de dentro, ou de fora, por alguém, enquanto ele, Watt, estivera ocupado em deslocar-se, de lá para cá, da porta dos fundos para a porta da frente, da porta da frente para a porta dos fundos. Das duas explicações, Watt achava preferir a segunda, pela beleza. Pois se alguém tivesse aberto a porta dos fundos de dentro, ou de fora, não teria Watt visto uma luz, ou escutado algum barulho? Ou teria a porta sido aberta, de dentro, no escuro, por uma pessoa perfeitamente familiarizada com a propriedade, calçando pantufas acolchoadas, ou de meias nos pés? Ou, aberta de fora, pela mesma pessoa, tão jeitosa com as pernas que andava sem fazer barulho algum? Ou tinha havido barulho, uma luz aparecera, e Watt não ouvira o primeiro, nem enxergara a segunda? Como resultado, Watt nunca descobriu como entrou na casa do sr. Knott. (idem, p. 69)

A ironia dessas conjecturas reside em que não ajudam Watt a descobrir nada. Ele deixará a casa do sr. Knott tão ignorante a respeito das razões de seu funcionamento quanto o era no momento em que se integrou à série dos empregados. Certamente tais operações mentais virtuosísticas - uma constante no romance - são uma paródia do método cartesiano.5 5 São operações que marcam também outros personagens, como comprova o “breve pronunciamento” de Arsene, repleto de séries infinitas criadas por blocos repetidos: “Os ralhos da terça, os resmungos da quarta, as pragas da quinta, os queixumes da sexta, os roncos do sábado, os bocejos do domingo, as manhãs da segunda, as manhãs da segunda. Os golpes, os gritos, os estalos, os gemidos, os murros, os ais, os chutes, os ganidos, os sopapos, as lágrimas, os pontapés, as preces, os tabefes, os urros. E a pobre velha terra piolhenta, minha terra e a de meu pai e de minha mãe e do pai de meu pai e da mãe de minha mãe e da mãe de meu pai e do pai de minha mãe e do pai da mãe de meu pai e da mãe do pai de minha mãe e da mãe da mãe de meu pai e do pai do pai de minha mãe e da mãe do pai do meu pai e do pai da mãe de minha mãe e do pai do pai de meu pai e da mãe da mãe de minha mãe e dos pais e mães de outros e pais dos pais e mães das mães e mães dos pais e pais das mães e pais das mães dos pais e mães dos pais das mães e mães das mães dos pais e pais dos pais das mães e mães dos pais dos pais e pais das mães das mães e pais dos pais dos pais e mães das mães das mães. Uma merda. […] E se pudesse começar do começo, tudo de novo, sabendo o que agora sei, o resultado seria o mesmo. E se pudesse começar do começo, tudo de novo, uma terceira vez, sabendo o que agora sei, o resultado seria o mesmo. E se pudesse começar do começo, tudo de novo, uma centena de vezes, sabendo a cada vez um nada a mais que na anterior, o resultado seria sempre o mesmo, e a centésima vida tal qual a primeira, e as cem vidas tal qual uma só” (Beckett, 2009, pp. 78-9). A questão é qual sua função literária. A comparação com Murphy é mais uma vez útil. Ali as ideias favoreciam os comentários do narrador, orgulhoso por mobilizar recursos setecentistas e joyceanos para zombar das convenções romanescas, do acerto da palavra justa, das correspondências entre linguagem e realidade. Seus comentários pressupunham certo afastamento, cristalizado numa postura irônica perante suas criaturas. Em Watt, a indeterminação do narrador, que se metamorfoseia de um capítulo a outro e mimetiza o raciocínio serial do protagonista, é um sinal de que essa distância é constantemente ameaçada, senão suprimida. Em outras palavras, Watt não dispõe mais do pressuposto da paródia, com a qual Murphy examinava a estrutura romanesca.

Watt toma um caminho distinto para pensar o romance, dando início a um enfrentamento incisivo da linguagem que teria vida longa na obra posterior de Beckett. No lugar da zombaria erudita dos recursos literários da tradição, surge em primeiro plano a dificuldade em traduzir acontecimentos opacos em linguagem. O episódio dos Galls é exemplar, não pelo efeito no encaminhamento da ação, insignificante, mas por ser o primeiro da estadia de Watt, o que faz dele um modelo para os demais. Como é praxe na convivência de Watt com o sr. Knott, os acontecimentos adquirem relevo por provocar seu raciocínio, inquieto na análise de situações banais segundo uma lógica muito peculiar. Watt não aceita que o evento, em sua “nitidez formal” e “conteúdo impenetrável”, não tenha significado, ou seja, que se esgote em sua descrição literal. Por isso, retorna a ele continuamente, reconstituindo a passagem dos Galls pela casa, buscando “o significado que se poderia induzi-los a apresentar, com ajuda de alguma paciência e de algum engenho” (Beckett, 2009_____. Watt. Londres: Faber & Faber, 2009., p. 105). A assimilação do evento pela mente analítica de Watt é apresentada em detalhes pelo narrador.

Este foi, talvez, o principal incidente dos primeiros tempos de Watt na casa do sr. Knott. Em certo sentido, lembra todos os incidentes dignos de nota que se propuseram a Watt durante sua estadia na casa do sr. Knott, alguns dos quais serão registrados aqui, sem tirar nem pôr, e em certo sentido, não. Assemelhava-se a eles no sentido de que não se encerrou, uma vez ido, mas continuou a se desenrolar, na cabeça de Watt, de cabo a rabo, de novo e de novo, os jogos complexos de luzes e sombras, as transições do silêncio ao som e do som ao silêncio, a imobilidade que precede o movimento e a que a ele se segue, as acelerações e os retardamentos, as aproximações e as separações, todos os detalhes instáveis de seu desenvolvimento e ordem, segundo o capricho irrevogável que dele fez o que foi. Assemelhava-se a eles na rapidez com que se converteu em pura matéria plástica, e foi perdendo, aos poucos e completamente, na sutileza do processo que mobilizava suas cores e sons, seus acentos e ritmos, todo significado, até o mais literal. Assim, a cena na sala de música, com os dois Galls, logo deixou de significar para Watt um piano sendo afinado, uma relação familiar e profissional obscura, uma troca de impressões mais ou menos inteligível, e assim por diante, se é que alguma vez significou tais coisas, e tornou-se um mero exemplo da luz comentando os corpos, a imobilidade o movimento, e o silêncio o som, e o comentário o comentário. A fragilidade do significado exterior tinha um efeito ruim sobre Watt, pois obrigava-o a procurar por outro significado, por um significado qualquer no que se passara, a partir das imagens do como se passara. (Beckett, 2009_____. Watt. Londres: Faber & Faber, 2009., pp. 102-3)

São essas conjecturas dilatadas no tempo que provocam os questionamentos, citados mais acima, do narrador a respeito do próprio relato. Tão incerto e desconfiado quanto Watt, ele não sabe se está reproduzindo a visita dos Galls ou as incontáveis operações mentais de Watt. Tamanha é a dúvida que a narrativa inevitavelmente se ramifica em digressões: ele passa dos detalhes factuais da visita a seus questionamentos de narrador. Quando esse movimento se encerra, volta aos fatos com a justificativa de que “o pouco que se sabe sobre ele não foi ainda inteiramente dito. Muito foi dito, mas nem tudo” (idem, p. 106). Mas a promessa de um maior detalhamento não se cumpre. Em digressões dignas de um Tristram Shandy, o narrador nada acrescenta ao que já se sabe, preferindo retomar o leque de suposições a respeito de Watt, para quem, ficamos então sabendo, no fim das contas pouco importava o que tinha de fato se passado durante a vista dos Galls. O dado inaceitável ao seu método era que aquilo nada fosse e que esse nada continuasse a mover seu raciocínio. Mimetizando as conjecturas de Watt, o próprio narrador se envereda em tantas outras hipóteses a respeito dos muitos ruídos na transmissão desse episódio exemplar.

À primeira vista, um exibicionismo gratuito, capaz de produzir páginas e páginas de texto sem avançar nos acontecimentos, as considerações do narrador incorporam a perplexidade de Watt ante um cotidiano inescrutável a seu método de análise. Os entraves, contudo, não são apenas lógicos, como daria a entender uma paródia racionalista. Eles também denunciam o enfrentamento de algo que tangencia o método cartesiano, a saber, o inevitável enredamento do pensamento na linguagem. Como muitos comentadores já ressaltaram, ecoa aqui a leitura feita por Beckett das Contribuições a uma crítica da linguagem de Fritz Mauthner, que insistia no fracasso da filosofia, da escolástica a Schopenhauer, em escapar a um pensamento, chamado por ele de metafórico, que postula a conexão entre linguagem e realidade.6 6 Ver, entre outros, Feldman (2006), pp. 137-46; e Ackerley e Gontarski (2006), pp. 358-60. As combinatórias de Watt, desdobradas com rigor em inúmeros exercícios seriais, seriam movidas por essa dificuldade em encontrar correspondências satisfatórias entre as palavras e as coisas, como o narrador se encarrega de apontar na conclusão do episódio.

Não que Watt desejasse informações, pois não desejava. Mas desejava palavras que se aplicassem a sua situação, ao sr. Knott, à casa, à propriedade, a suas tarefas, às escadas, a seu quarto, à cozinha e, de modo geral, às condições existenciais em que se encontrava. Pois Watt se achava agora entre coisas que, se consentiam em ser nomeadas, o faziam como que com relutância. E o estado em que Watt se encontrava resistia à formulação de um modo que nenhum dos estados pelos quais passara antes resistira, e Watt já atravessara uma grande variedade de estados, no seu tempo. Olhando para um pote, por exemplo, pensando num pote, para um dos potes do sr. Knott, num dos potes do sr. Knott, era em vão que Watt repetia, Pote, pote. (Beckett, 2009_____. Watt. Londres: Faber & Faber, 2009., p. 111)

Pela repetição reiterada, Watt suspende a correspondência entre o objeto e a palavra. Como se fosse um discípulo das Investigações filosóficas de Ludwig Wittgenstein (que Beckett não conhecia na época), ele descarta um significado intrínseco às palavras, de modo a impossibilitar a definição ostensiva delas, ou seja, aquela em que se esclarece o significado de uma palavra ao apontar para o objeto que ela nomeia. Inspirada por Wittgenstein, para quem o significado das palavras não é afiançado por um substrato metafísico como a ideia platônica ou por uma linguagem privada composta de entidades mentais, mas decorre do uso prático, Marjorie Perloff detecta nos personagens do romance uma espécie de desordem linguística que os priva do contexto adequado ao uso da linguagem. “É esse fracasso em ver as conexões, em comandar uma visão clara do uso das nossas palavras, que Beckett disseca em Watt” (Perloff, 1996Perloff, Marjorie. Wittgenstein’s Ladder. Poetic Language and the Strangeness of Ordinary. Chicago: Chicago University Press, 1996., p. 153). O que significaria uma palavra quando privada do contexto em que é usualmente empregada? O pote pode ser pote, mas também pode ser qualquer outra coisa.

Os personagens no romance não estão inteiramente restabelecidos de sua “desordem de uso”, de sua incapacidade para encontrar os contextos apropriados aos seus pronunciamentos. Watt bem pode continuar a procurar pelo “nome verdadeiro” do pote que ele contempla, mesmo se “o nome verdadeiro, súbita ou gradualmente, deixou de ser o nome verdadeiro para Watt”. Mas o próprio Beckett, tendo desistindo no jogo de nomear de sua juventude, a busca pela realidade por trás do véu, agora tem um “passe livre” para criar uma linguagem que resiste, uma linguagem que não é, como coloca Wittgenstein, “contígua a qualquer coisa”. (idem, p. 171)

Em sua “necessidade de socorro semântico” (Beckett, 2009_____. Watt. Londres: Faber & Faber, 2009., p. 112), Watt experimenta outros nomes para o pote, para outras coisas, assim como para si mesmo, mas nenhum deles é mais satisfatório que o original. Nessa cisão entre palavras e coisas, Perloff alude à linguagem cifrada das mensagens trocadas por membros da resistência, Beckett inclusive, durante a Guerra (Perloff, 1996Perloff, Marjorie. Wittgenstein’s Ladder. Poetic Language and the Strangeness of Ordinary. Chicago: Chicago University Press, 1996., pp. 147-51). Embora pertinente, a referência biográfica tende a escapar à armação interna do livro. Mas tal cisão também remonta ao projeto esboçado na carta alemã de 1937: escapar às convenções de um inglês oficial, cavar um buraco na linguagem ou mal empregá-la para rasgar o seu véu e assim chegar às coisas ou ao nada por trás dele. Mais que Wittgenstein, a referência mais próxima é dada pela crítica da linguagem de Mauthner, lido e anotado por Beckett por volta de 1938. Embora a leitura seja posterior à redação da carta, mais de um comentador ressaltou no projeto de uma literatura da “despalavra” a influência do nominalismo radical de Mauthner, que desconfia não apenas da unidade dos conceitos, ou seja, da capacidade da linguagem em nomear universais, mas também em designar os particulares. As palavras tornam-se tão vazias de significado quanto o pote de Watt, ele mesmo uma exemplificação da incomensurabilidade entre a palavra e seu referente.7 7 Sobre a literatura da “despalavra”, ver a carta de Beckett a Alex Kaun de 1937, a chamada “carta alemã”, em Andrade (2001), pp. 167-71. Sobre Beckett e Mauthner, ver verbete “Mauthner” em Ackerley e Gontarski (2006).

Esse projeto literário, que faz da linguagem uma convenção, termina por conferir um novo feitio ao recurso mesmo à paródia. Como bem afirmou Ruby Cohn (1962Cohn, Ruby. Samuel Beckett: The Comic Gamut. Nova Jersey: Rutgers University Press, 1962., p. 85), ela é mais lógica que literária, como ainda o era em Murphy. Decerto, mas a paródia lógica, que expõe o racionalismo ao ridículo, está a serviço de um questionamento mais incisivo do uso da linguagem, não tanto a linguagem da prática cotidiana, estudada por Wittgenstein, mas a própria narrativa, tal como se dá nos relatos de Watt a Sam e deste a seus leitores. Por esse motivo, o raciocínio peculiar de Watt e sua desconfiança da linguagem convergem no recurso narrativo predominante do romance: o uso indiscriminado e obsessivo de séries, repetições e combinatórias. Por meio delas a paródia cartesiana reverte-se em um consistente enfrentamento da tradição do romance sob a forma da organização do tempo romanesco como ação. Pois o que são séries e repetições senão o movimento contrário, sabotador mesmo, ao avanço teleológico que costura cenas e acontecimentos, impelindo o desenvolvimento de conflitos rumo ao desfecho conclusivo que confere sentido ao todo?

As séries já despontavam em alguns episódios de Murphy, mas é em Watt que se tornam preponderantes na economia da narrativa. Em seu estudo sobre procedimentos repetitivos em Beckett, Steve Connor notou dois tipos exemplares atuando em Watt. A permutação finita, que exaure todas as combinações e relações possíveis entre elementos em uma dada estrutura, é o primeiro deles. Exemplos não faltam: as vozes na mente de Watt, que cantam, choram, asseveram e murmuram em diferentes combinações; os doze arranjos possíveis das refeições do sr. Knott; as diferentes relações possíveis entre centro e círculo na pintura de Erskine; as combinações variadas do vestuário do sr. Knott; a distribuição musical do coaxar dos sapos, entre outras. Segundo Connor, essas repetições “podem e chegam a um fim” (1988Connor, Steven. Samuel Beckett: Repetition, Theory and Text. Oxford: Blackwell, 1988., p. 30). O segundo tipo é o da sequência infinita de alternativas, como na remissão de Arsene a seus antepassados e na série infindável dos empregados a serviço do sr. Knott. Enquanto no primeiro tipo predomina a estrutura, reconhecível por inteiro no fim da combinatória, o segundo é definido pela sequência aberta, que parece escapar à lógica de uma estrutura predeterminada. Não é impossível, contudo, que um tipo contamine ou subverta o outro:

Beckett tem um modo de fazer com que mesmo as sequências fechadas pareçam arbitrárias e inacabadas. Ao fim da tabulação de vozes na cabeça de Watt, somos informados que isso foi “para mencionar somente esses quatro tipos de vozes, pois havia outros”. Isso abre a possibilidade de mais séries repetitivas, de repetições dessa repetição com toda outra forma concebível de elocução ou expressão fonética. O mesmo se aplica a outras sequências, cujos elementos aparecem constantemente arbitrários, de modo que o ato de repetição se torna infinitamente renovável. (idem, p. 31)

Os dois modos de série refletem-se, por sua vez, em uma dupla organização do livro como um todo. Se for visto a partir da estrutura da sequência finita, ele se fecha sobre si mesmo, exaurindo-se. Mas ele também pode ser entendido como uma série infinita ou como parte de uma série infinita de arranjos de todo grupo de elementos. Assim, não há fecho possível.8 8 A tendência das séries a um desenvolvimento infinito, assim como as variações não explicitadas das sequências fechadas, põe em questão a noção de “esgotamento” mobilizada por Gilles Deleuze em seu estudo da obra de Beckett (Deleuze, 2010). Segundo ele, séries e combinatórias destinam-se ao percorrimento e ao cancelamento de todas as alternativas possíveis, sem nada realizar nesse movimento. Esse é o sentido do esgotado. Ele é distinto daquele que age, pois quem age exclui um possível para realizar outro (sair exclui ficar em casa...). A opção descartada permanece um possível não realizado. Mas ele também se diferencia do cansado, pois este não pode mais realizar o possível, embora a possibilidade permaneça (sem se realizar todo o possível). O esgotado, por sua vez, é aquele que esgota o possível: “combina-se o conjunto de variáveis de uma situa­ção, com a condição de renunciar a qualquer ordem de preferência e a qualquer objetivo, a qualquer significação. Não é mais para sair nem para ficar, e não se utilizam mais dias e noites. Não mais se realiza, mesmo que se conclua algo”. As disjunções permanecem, mas só servem para permutar. “A disjunção torna-se inclusa, tudo se divide, mas em si mesmo” (idem, p. 69). No esgotamento, enfim, tudo (todas as possibilidades) ainda é o nada (realizado). Os personagens mapeiam todas as possibilidades, mas nada realizam. Como se habitassem um estado originário, em que combinatórias mentais assumem o lugar do movimento no mundo, são seres fechados sobre si mesmos, anteriores a qualquer movimento ou exteriorização. Ora, as combinatórias de Watt, pelo menos as narradas, ao contrário do afirmado por Deleuze, nem sempre esgotam todo o possível, não apenas porque o narrador deixa algumas possibilidades de lado, sem mencioná-las, mas também porque não hesita em duvidar da veracidade mesma do que acabou de ser dito, relativizando suas afirmações por outras em sentido contrário. Ao associar a lógica da combinatória à instabilidade das vozes narrativas (de Watt e do narrador), submetendo a lógica não apenas ao arbítrio, mas também à sua esburacada tradução em linguagem, o romance resiste à linha reta, ao plano traçado, enfim, à teleologia necessariamente implicada na formulação deleuziana do “esgotamento”.

Watt compõe-se de uma combinação desses dois modos de série, a qual se traduz tanto na ausência de um desfecho que arremate a ação como no caráter fortemente episódico da narrativa, que se fragmenta em anedotas, conjecturas e acontecimentos em sua grande maioria fechados sobre si mesmos, casualmente relacionados ao enredo principal, e sem influência sobre o eventual desenvolvimento psicológico ou intelectual das personagens. Se a ação é centrada em um protagonista, Watt, ele permanece um personagem plano, que não chega a conclusão alguma a respeito do funcionamento da casa do sr. Knott e também não evolui ou amadurece durante sua busca. Sua posição de criado deve-se a seu lugar na série, o que também sugere que o livro todo possa ser um item da série mais abrangente dos funcionários do sr. Knott. Uma das consequências mais importantes da conexão entre as duas séries é a formulação de um mecanismo fabulatório. É o que ocorre no momento em que o arranjo de permutações finitas desdobra-se em novos episódios a partir do arranjo serial inicial. O caso exemplar é dado pelo episódio dos restos das refeições do sr. Knott, a serem dados a um cachorro. As conjecturas de Watt o levam não só a uma combinatória de possibilidades, mas também a uma série de cachorros e à história de uma família dos arredores.

O episódio explicita e parodia, numa sequência desenfreada de conjecturas, a harmonia preestabelecida entre a casa do sr. Knott e o universo que a circunda. O ponto de partida é a instrução recebida por Watt de deixar as sobras das refeições do sr. Knott para o cão responsável por liquidá-las.

Mas de que maneira, então, o cão e a comida seriam reunidos, naqueles dias em que, tendo o sr. Knott deixado toda ou parte da sua porção diária, toda ou parte da comida que estava à disposição do cão? Pois as instruções de Watt eram explícitas: Naqueles dias em que havia sobras de comida, as sobras de comida deviam ser dadas ao cachorro, sem perda de tempo. (Beckett, 2009_____. Watt. Londres: Faber & Faber, 2009., p. 123)

Como não havia nenhum cão na casa - uma voz interna relata a Watt as suspeitas do sr. Knott a respeito dos animais de quatro patas -, conclui-se que um cachorro das redondezas passaria pela casa ao menos uma vez por dia. O evento está sujeito a variações - tanto das sobras (prato meio cheio, meio vazio, quase cheio, quase vazio, cheio ou completamente vazio) como da saciedade do cão (meio cheio, meio vazio, e assim por diante) - e a outros questionamentos, pois, dada a variação de comida deixada, seria o cão regularmente assíduo? E apareceria no período conveniente das 20 horas, quando ficava sabendo quanta comida o sr. Knott deixara, ou às 22 horas, quando a casa era fechada?

O problema de “juntar comida e cachorro” teria sido enfrentado em tempos imemoriais, quando o sr. Knott se estabeleceu na casa, ou então por outros moradores, caso ele seja apenas um de uma série que se estende para tempos dos quais não se tem mais vestígios. Watt conta ao provável narrador a solução encontrada para o problema, mas menciona também outras soluções possíveis consideradas num passado remoto. A escolha teria recaído sobre a contratação de um homem pobre, dono de um cão faminto, que também mantivesse um cão de reserva para quando o primeiro morresse, o que necessariamente o obrigaria a arrumar um novo cão de reserva. Com isso se estabelecia o arranjo de uma série interminável de cães que se desdobrava também na série dos proprietários, uma vez que o arranjo exigia outro habitante local, sem cão, que assumisse a responsabilidade pelos cães caso o proprietário deles falecesse, e assim por diante.

À remota possibilidade de o segundo miserável local passar desta para melhor, juntando-se a seus entes queridos ao mesmo tempo que o primeiro, ou até antes, e, coisas mais estranhas acontecem a todo minuto, um terceiro, um quarto, um quinto e até mesmo um sexto miserável local sem cão, ou uma miserável, deveriam ser encontrados e, na medida do possível, por meio de palavras doces e ocasionais ofertas de dinheiro e roupas velhas, convencidos a ficarem de prontidão para eventualmente servir ao sr. Knott na maneira descrita, ou, melhor ainda, que se encontrasse uma grande família carente local de, digamos, dois pais e dez a quinze filhos e netos, apaixonadamente ligados a seu torrão natal. (idem, p. 129)

As séries de cães e proprietários convergem numa família, os Lynch, que aparece na narrativa como produto do arranjo fabular serialista: “O nome desta família bem-afortunada era Lynch e, quando Watt ingressou a serviço do sr. Knott, a família de Lynch estava constituída como se segue” (idem, p. 131). O narrador passa então a descrever as cinco gerações da família, do mais velho ao mais novo, abusando do exagero e do grotesco para extrair humor da decrepitude deles e roubar da narrativa qualquer pretensão de verossimilhança. Páginas à frente, ele arremata: “Cinco gerações, vinte e oito almas, novecentos e oitenta anos, tal era a marca respeitável da família Lynch, quando Watt ingressou a serviço do sr. Knott” (idem, p. 134). Circunstâncias diversas da vida dos Lynch também são narradas de maneira serial, antes que a família desapareça do romance sem maiores consequências para seu desenvolvimento posterior, o que libera o narrador para ocupar-se da série seguinte - a combinatória dos movimentos de Erskine pela casa -, narrada de maneira independente da série dos Lynch. Mas, diferentemente do episódio dos Galls, que volta e meia continuaria a atormentar Watt, a família Lynch lhe oferece, pela tradução satisfatória do enigma em palavras, a ocasião para o apaziguamento:

Mas tão logo Watt apreendeu, em sua complexidade, o mecanismo do arranjo, de como a comida vinha a ser provida, e o cão disponibilizado, e os dois reunidos, então ela deixou de interessá-lo, e ele pôde gozar de relativa paz de espírito, a este respeito. Não que Watt supusesse ter deslindado as forças em jogo, neste caso particular, ou sequer percebido as formas que elas sublevavam, ou obtido a menor parcela de informação útil sobre si próprio, ou sobre o sr. Knott, pois não supunha. Mas tinha convertido, pouco a pouco, uma perturbação em palavras, tinha fabricado uma almofada de velhas palavras, para a cabeça. (idem, p. 147)

A longa sequência de eventos e conjecturas - que vincula os arranjos para a refeição do sr. Knott, o problema dos restos de comida, sua liquidação pela série de cães e a família Lynch - revela muito do arranjo narrativo de Watt. O romance dispensa o desenvolvimento de conflitos envolvendo indivíduos bem situados para ater-se à ordenação paratática das séries. Cabe à unidade de lugar fornecer a conexão entre os episódios protagonizados por um herói que permanece à deriva do sentido deles. Seu raciocínio serial fracassa em fornecer um novo relevo aos episódios por meio da inserção num contexto abrangente. Em vista disso, não só a relação dos episódios com o todo permanece casual, talvez mesmo arbitrária, mas também o arranjo serial atinge o sentido da linguagem necessária à compreen­são e ao relato. Os jogos com o “pote” do sr. Knott revelam como a repetição de palavras numa série, ao potencializar a materialidade da linguagem em sua dimensão sonora, também sabota o teor semântico e referencial das palavras.

Ao conferir tamanho destaque ao serialismo, Beckett constitui uma nova perspectiva para examinar a história do romance. Se a paródia do gênero permitia localizar Murphy num terreno conhecido, embora profundamente revirado por importantes romances das décadas anteriores, as séries, que se tornarão cada vez mais presentes na obra posterior de Beckett, parecem empurrar sua prosa para um terreno menos sondado, fértil para a exploração repetitiva dos erros e das falhas de seus anti-heróis. Enquanto a paródia explícita e irônica de Murphy tende a sair de cena na obra posterior, séries e repetições afirmam seu lugar. Por isso, é importante notar que elas entram em atrito com o gênero do romance (e também com o drama), pois tendem a implodir a organização do tempo narrativo segundo os parâmetros progressivos da ação, ou seja, daquele elemento dramático do romance, responsável por unificar episódios heterogêneos, compor a unidade de uma multiplicidade e impulsionar o desenvolvimento conflituoso de episódios e personagens. Por mais rarefeita que ela tenha se tornado ao longo do século XIX, com o peso de episódios cotidianos e corriqueiros, ela ainda era a responsável pela costura do romance.

Watt se apresenta então como legítimo herdeiro dos romances do início do século XX, de James Joyce a Marcel Proust e Virginia Woolf, que desbancaram a ação. Nesse romance, a força transgressora da série contra a ação ainda necessitava do alicerce básico de um enredo para apresentar-se. É possível reconhecer um personagem que chega a determinado lugar, passa ali um período realizando certas tarefas, ocupando-se em entender a situação em que se encontra, para depois seguir seu caminho, desaparecendo no fim. Beckett necessita desses elementos para apresentar a experiência fundamental de Watt: a perplexidade diante de uma situação que escapa tanto à compreensão como à sua tradução em linguagem. Esses elementos se tornarão cada vez mais rarefeitos na prosa posterior, mas os vestígios de uma experiência situada, por mais precária que seja, nunca desaparecerão por completo. Eles subsistirão como fonte de atrito com a linguagem e com a tradição, sem as quais mecanismos subversivos como o serialismo não teriam como funcionar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Andrade, Fábio de Souza. Samuel Beckett: o silêncio possível Cotia: Ateliê Editorial, 2001.
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  • _____. Watt Londres: Faber & Faber, 2009.
  • Brater, Enoch. “Privilege, Perspective, and Point of View in Watt”. College Literature, v. 8, n. 3, 1981, pp. 209-26.
  • Cohn, Ruby. Samuel Beckett: The Comic Gamut Nova Jersey: Rutgers University Press, 1962.
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  • Connor, Steven. Samuel Beckett: Repetition, Theory and Text. Oxford: Blackwell, 1988.
  • Deleuze, Gilles. “O esgotado”. In: Sobre o teatro Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
  • Descartes, René. O discurso do método São Paulo: Abril Cultural, 1973.
  • Feldman, Mathew. Beckett’s Books Londres/Nova York: Continuum, 2006.
  • Gatti, Luciano. “Murphy , antes e depois de Beckett”. Novos Estudos Cebrap 98, v. 33 (1), mar. 2014.
  • Knowlson, James. Damned to Fame The Life of Samuel Beckett Nova York: Grove Press, 1996.
  • Perloff, Marjorie. Wittgenstein’s Ladder. Poetic Language and the Strangeness of Ordinary. Chicago: Chicago University Press, 1996.
  • 1
    Ver: Beckett, Murphy (São Paulo: Cosac Naify, 2013Beckett, Samuel. Murphy. São Paulo: Cosac Naify, 2013.); Watt (Londres: Faber & Faber, 2009). Watt foi o segundo romance concluído por Beckett, mas só saiu nos anos 1950, após a publicação dos romances que compõem sua chamada trilogia: Molloy, Malone morre e O inominável. Antes de Murphy, Beckett trabalhara num projeto de romance intitulado Dream of Fair to Middling Woman, o qual ele só permitiu que fosse publicado pós-morte. Se Beckett de fato havia concluído Dream…, é uma questão controversa, mas o fato é que ele aproveitou muito de seu material na primeira coletânea de contos, More Pricks than Kicks, e em Murphy.
  • 2
    Sobre a trilogia do pós-guerra, Molloy, Malone morre e O inominável, ver Andrade (2001Andrade, Fábio de Souza. Samuel Beckett: o silêncio possível. Cotia: Ateliê Editorial, 2001.).
  • 3
    Em todas as citações de Watt utilizo a tradução de Fábio de Souza Andrade, cuja publicação está prevista ainda para 2020, pela Companhia das Letras. Agradeço a ele pela gentileza de permitir o uso de sua tradução ainda inédita neste artigo. A paginação citada, contudo, refere-se à da edição em inglês, indicada nas referências bibliográficas.
  • 4
    Na mesma direção, ver: Cohn (2001_____. Beckett Canon. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001.), pp. 118-9.
  • 5
    São operações que marcam também outros personagens, como comprova o “breve pronunciamento” de Arsene, repleto de séries infinitas criadas por blocos repetidos: “Os ralhos da terça, os resmungos da quarta, as pragas da quinta, os queixumes da sexta, os roncos do sábado, os bocejos do domingo, as manhãs da segunda, as manhãs da segunda. Os golpes, os gritos, os estalos, os gemidos, os murros, os ais, os chutes, os ganidos, os sopapos, as lágrimas, os pontapés, as preces, os tabefes, os urros. E a pobre velha terra piolhenta, minha terra e a de meu pai e de minha mãe e do pai de meu pai e da mãe de minha mãe e da mãe de meu pai e do pai de minha mãe e do pai da mãe de meu pai e da mãe do pai de minha mãe e da mãe da mãe de meu pai e do pai do pai de minha mãe e da mãe do pai do meu pai e do pai da mãe de minha mãe e do pai do pai de meu pai e da mãe da mãe de minha mãe e dos pais e mães de outros e pais dos pais e mães das mães e mães dos pais e pais das mães e pais das mães dos pais e mães dos pais das mães e mães das mães dos pais e pais dos pais das mães e mães dos pais dos pais e pais das mães das mães e pais dos pais dos pais e mães das mães das mães. Uma merda. […] E se pudesse começar do começo, tudo de novo, sabendo o que agora sei, o resultado seria o mesmo. E se pudesse começar do começo, tudo de novo, uma terceira vez, sabendo o que agora sei, o resultado seria o mesmo. E se pudesse começar do começo, tudo de novo, uma centena de vezes, sabendo a cada vez um nada a mais que na anterior, o resultado seria sempre o mesmo, e a centésima vida tal qual a primeira, e as cem vidas tal qual uma só” (Beckett, 2009_____. Watt. Londres: Faber & Faber, 2009., pp. 78-9).
  • 6
    Ver, entre outros, Feldman (2006Feldman, Mathew. Beckett’s Books. Londres/Nova York: Continuum, 2006.), pp. 137-46; e Ackerley e Gontarski (2006_____; Gontarski, S. E. (orgs.). The Faber Companion to Samuel Beckett. Londres: Faber & Faber, 2006.), pp. 358-60.
  • 7
    Sobre a literatura da “despalavra”, ver a carta de Beckett a Alex Kaun de 1937, a chamada “carta alemã”, em Andrade (2001Andrade, Fábio de Souza. Samuel Beckett: o silêncio possível. Cotia: Ateliê Editorial, 2001.), pp. 167-71. Sobre Beckett e Mauthner, ver verbete “Mauthner” em Ackerley e Gontarski (2006_____; Gontarski, S. E. (orgs.). The Faber Companion to Samuel Beckett. Londres: Faber & Faber, 2006.).
  • 8
    A tendência das séries a um desenvolvimento infinito, assim como as variações não explicitadas das sequências fechadas, põe em questão a noção de “esgotamento” mobilizada por Gilles Deleuze em seu estudo da obra de Beckett (Deleuze, 2010Deleuze, Gilles. “O esgotado”. In: Sobre o teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.). Segundo ele, séries e combinatórias destinam-se ao percorrimento e ao cancelamento de todas as alternativas possíveis, sem nada realizar nesse movimento. Esse é o sentido do esgotado. Ele é distinto daquele que age, pois quem age exclui um possível para realizar outro (sair exclui ficar em casa...). A opção descartada permanece um possível não realizado. Mas ele também se diferencia do cansado, pois este não pode mais realizar o possível, embora a possibilidade permaneça (sem se realizar todo o possível). O esgotado, por sua vez, é aquele que esgota o possível: “combina-se o conjunto de variáveis de uma situa­ção, com a condição de renunciar a qualquer ordem de preferência e a qualquer objetivo, a qualquer significação. Não é mais para sair nem para ficar, e não se utilizam mais dias e noites. Não mais se realiza, mesmo que se conclua algo”. As disjunções permanecem, mas só servem para permutar. “A disjunção torna-se inclusa, tudo se divide, mas em si mesmo” (idem, p. 69). No esgotamento, enfim, tudo (todas as possibilidades) ainda é o nada (realizado). Os personagens mapeiam todas as possibilidades, mas nada realizam. Como se habitassem um estado originário, em que combinatórias mentais assumem o lugar do movimento no mundo, são seres fechados sobre si mesmos, anteriores a qualquer movimento ou exteriorização. Ora, as combinatórias de Watt, pelo menos as narradas, ao contrário do afirmado por Deleuze, nem sempre esgotam todo o possível, não apenas porque o narrador deixa algumas possibilidades de lado, sem mencioná-las, mas também porque não hesita em duvidar da veracidade mesma do que acabou de ser dito, relativizando suas afirmações por outras em sentido contrário. Ao associar a lógica da combinatória à instabilidade das vozes narrativas (de Watt e do narrador), submetendo a lógica não apenas ao arbítrio, mas também à sua esburacada tradução em linguagem, o romance resiste à linha reta, ao plano traçado, enfim, à teleologia necessariamente implicada na formulação deleuziana do “esgotamento”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2019
  • Aceito
    24 Abr 2020
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