Acessibilidade / Reportar erro

ILUMINISMO EUROPEU COM SEX APPEAL – HOMENAGEM A PETER GAY1 [1] Publicado originalmente no blog Strenger, do Neue Zürcher Zeitung, em 26 de maio de 2015.

Após a revolução de 1968,durante décadas o Iluminismo europeu foi negociado em baixa na bolsa de ideias. Em primeiro lugar, ele não tinha sex appeal. O grande consumador da filosofia do Iluminismo no século XVIII, Immanuel Kant, construiu sem dúvida uma excelente estrutura de pensamento e revolucionou tanto a teoria do conhecimento quanto a filosofia da moral. Mas Kant era árido e seu forte não era escrever.

Em segundo lugar, muitos adeptos da geração de 1968 aceitavam a ideia formulada havia duas décadas por Max Horkheimer e Theodor Adorno de que o Iluminismo reduzira a razão humana à racionalidade técnica. Pior ainda, os campos de concentração nazistas seriam uma aplicação consequente dessa razão instrumental em relação aos assassinatos em massa. O Iluminismo, no geral, se constituiria em uma realização desalmada, visto que transformava vida, política e sociedade em um projeto gerencial passível de ser otimizado. Dessa maneira, o fascismo seria quase uma consequência lógica. E, não por último, o Iluminismo teria servido apenas como encobrimento do projeto ocidental, imperialista, visando subjugar e escravizar o restante do mundo.

Os anos 1960 assistiram também à ascensão meteórica de pensadores que finalmente trouxeram novos ares ao bolorento ambiente da filosofia acadêmica. Michel Foucault mostrou que o Iluminismo, considerado tão racional e aberto, aprisionara na camisa de força de sufocantes exigências de normalidade não somente os loucos, mas também os cidadãos normais. Jacques Derrida desconstruiu com pirotecnia verbal — que, apesar de incompreensível para muitos, exatamente por isso se tornou ainda mais atraente — os textos básicos do Iluminismo; e o palhaço metafísico Jacques Lacan (copyright do epíteto: Peter Sloterdijk) evidenciou que todos nós corremos atrás da quimera de uma vida marcada pelo que é racional, embora na realidade sejamos dominados pelo desejo de ser o falo da mãe e pela ilusão do controle sobre o sentido de nossa fala, na qual somos apenas um brinquedo do jogo infinitamente intangível dos significantes.

Caso os leitores tenham achado as últimas linhas incompreensíveis, tudo bem. Os intelectuais pós-modernos tinham por obrigação ser incompreensíveis — pois a compreensão em si seria a marca da ilusão de racionalidade dos macilentos pensadores do Iluminismo, que finalmente deviam encontrar seu lugar no monte de lixo da história das ideias. Havia chegado o tempo da dissolução de todas as categorias: basta das identidades fixas, fossem elas de caráter nacional, sexual ou histórico. Todos nos tornamos livres para finalmente escapar da crispação do eu uniforme. Bem-vindos à orgia da diversidade perverso-polimorfa.

Evidentemente nem todos pensavam assim. No âmbito da língua alemã, sobretudo Jürgen Habermas — um dos intelectuais mais influentes em todo o mundo — defendia as ideias do Iluminismo. Mas inclusive pessoas que, como eu, tinham grande respeito pela seriedade moral e grandeza intelectual de Habermas sabiam que Habermas também não era dono de uma prosa cintilante — ela não continha sex appeal. Apenas depois do 11 de Setembro de 2001, quando ficou patente que o mundo ocidental precisava responder a si mesmo quais eram suas escolhas e por que tinha o direito a se defender dos ataques, é que o Iluminismo foi novamente resgatado, com susto, também por aqueles que queriam vê-lo embolorar no monte de lixo, visto que poderia talvez formar o centro do sistema de valores ocidentais.

Esse teria sido o momento em que muitos ficariam agradecidos se conhecessem a obra do historiador inglês falecido em 12 de maio deste ano: The Enlightenment: the rise of modern paganism, publicada em 1966, da qual infelizmente não há tradução em alemão. Pois teriam descoberto que os iluministas do século XVIII eram tudo menos figuras obsessivas-compulsivas como Immanuel Kant, que, apesar de exibir um estrondoso currículo, tinha uma biografia limitada às indicações banais de que nascera e morrera em Königsberg, sem nunca ter deixado a cidade em suas oito décadas de vida.

Especial fascínio era exercido pelo pequeno e pícaro grupo dos philosophes franceses, que convertera o Iluminismo de uma estrutura de pensamento em uma realidade vivida. A turma era colorida, fascinante e divertida. Principalmente, claro, François-Marie Arouet, mais conhecido sob seu nom de plume, Voltaire. No geral, ele é lembrado como satírico impiedoso e crítico incondicional da Igreja católica. Menos divulgado é o fato de ter sido, em vida, também um dramaturgo de sucesso e, mais ainda, astuto homem de negócios. Na condição de banqueiro particular, fez uso de seu capital particular para aumentar continuamente sua riqueza. Como era perseguido com frequência pelas autoridades francesas, mantinha uma casa do outro lado da fronteira, na Suíça, na qual recebia seus amigos com refeições espetaculares e os entretinha com apresentações teatrais.

A figura central desse grupo, porém, era Denis Diderot, uma personagem multifacetada. Tratava-se de brilhante conversador e bon-vivant, mas também trabalhador incansável, principalmente como redator de obra mais ambiciosa do Iluminismo, a Enciclopédia, cuja pretensão era abarcar todo o conhecimento daquele tempo. Isso fazia com que ele abraçasse não somente áreas abstratas como filosofia,matemática e física, como também conhecimento prático, da arquitetura à zoologia, da agronomia à relojoaria. Pois Diderot, como iluminista clássico, incitava a humanidade a não mais pedir a graça de uma divindade inexistente, mas tomar seu destino nas mãos, formatá-lo ativamente. Ao mesmo tempo, não nutria ilusões de que a natureza humana seria dócil e razoável. Um século e meio antes de Freud, Diderot escreveu que os meninos — se lhes fosse permitido — matariam seus pais para dormir com as mães.

Lembremos ainda do barão Paul Henri Thiry d’Holbach, em cujo salão os philosophes costumavam se encontrar na maioria das vezes. Embora não apresentasse muito talento como escritor, era um apaixonado gourmand e gourmet. Seus jantares passavam com frequência dos catorze pratos, e o colesterol dispara só de ler os exemplos dos seus cardápios (que encontramos na deliciosa descrição que Philipp Blom faz do salão). Esse pequeno grupo apreciava a vida, adorava escândalos — fossem eles amorosos, literários ou políticos — e avançava sem medo contra a monarquia absolutista da França e a Igreja católica, mesmo que isso levasse muitas vezes a perseguições e, aqui e acolá, a prisões.

Peter Gay, que libertou os iluministas do cheiro de naftalina, é mais conhecido de muitos leitores como defensor da burguesia, como Oliver Pfohlmann lembrou em seu obituário. Ele escreveu mais de dez livros sobre a história da bourgeoisie do século XIX. Queria corrigir a injustiça histórica que consistia em apresentar a burguesia como um tedioso espírito de vanglória, só interessada em acumular respeito e capital. A motivação biográfica de Gay para o projeto era profunda. Nascido em Berlim em 1923 como Peter Joachim Fröhlich, sua família escapou no último instante do regime nazista apenas pela arte do improviso de seu pai. Peter americanizou o nome, e já nos anos 1940, a partir de um trabalho árduo, tornara-se um historiador muito respeitado, de prosa fluente e evocativa, algo ainda mais surpreendente visto que o inglês não era sua língua materna.

A questão de toda a vida de Peter Gay foi retratar o Iluminismo, visto por ele como núcleo da modernidade da Europa ocidental. O retrato deveria mostrar que o Iluminismo não era um instrumento de dominação desalmada, como muitos autores pós-modernos afirmavam, mas talvez a única base sobre a qual uma vida realmente civilizada é possível. Sua obra se caracteriza por uma incrível amplitude e profundidade de conhecimento: ele escrevia tão bem sobre Baudelaire como sobre Voltaire, Diderot e David Hume. Seu livro sobre o modernismo oferece uma narrativa abrangente do movimento, de Baudelaire a Mark Rothko,e muitas vezes eu simplesmente o abro ao acaso,a fim de desfrutar das caracterizações precisas e elegantes de figuras como Peter Gay tinha seus críticos. Eles o acusavam de escrever história da cultura sem se ater ao contexto social e institucional, o que é correto em certo sentido. Gay realmente não estava interessado em analisar os motivos econômicos ou políticos que possibilitavam determinadas formas de arte. Ele tratava de ideias, obras e as pessoas em si, como, por exemplo, em sua biografia de Freud, publicada em 1989 — em minha opinião, o melhor retrato de Freud escrito até então, mesmo que Gay tenha idealizado Freud em determinados pontos e aceitado, sem maiores críticas, sua teoria como verdadeira; o que já naquela época não correspondia ao estado do conhecimento na psicologia e na psicoterapia. Para Peter Gay, Freud era o representante mais completo do ethos do Iluminismo; um homem cuja vontade era de iluminar a alma humana com fria objetividade, mas que não temia o preço a ser pago por isso, a destruição das ilusões sobre nossa própria natureza.

A crise do mundo ocidental, que se viu, em 1989, vencedora sem concorrentes da história, para descobrir, doze anos depois, que o mundo de maneira nenhuma vai descansar em paz eterna sob a égide da democracia liberal, está longe de chegar ao fim. O confronto com o islamismo radical invoca muitas vezes, por meio da direita radical, o que há de pior no Ocidente: racismo, torpeza e superficialidade espiritual. Uma avalanche de problemas econômicos ameaça sufocar, sob montanhas de tratados, regulações e rinhas burocráticas, a ideia de uma civilização europeia. Por trás de todos os escândalos financeiros e das questões sobre Grexit e Brexit, de um lado, e Marie le Pen, Geert Wilders e Pegida* [*] Grexit e Brexit: dois planos políticos para uma mudança na União Europeia. No primeiro, trata-se da saída da Grécia da UE. No segundo, da Grã Bretanha. Marie le Pen e Geert Wilders são destacados políticos contrários à integração europeia e à imigração. Pegida é o acrônimo, em alemão, de “europeus patriotas contra a islamização do Ocidente”. , do outro, quem quiser se certificar novamente de qual poderia ser em realidade o sentido da ideia de Europa encontrará um apoio inspirador na obra de Peter Gay.

  • Tradução de Claudia Abeling
  • [1]
    Publicado originalmente no blog Strenger, do Neue Zürcher Zeitung, em 26 de maio de 2015.
  • [*]
    Grexit e Brexit: dois planos políticos para uma mudança na União Europeia. No primeiro, trata-se da saída da Grécia da UE. No segundo, da Grã Bretanha. Marie le Pen e Geert Wilders são destacados políticos contrários à integração europeia e à imigração. Pegida é o acrônimo, em alemão, de “europeus patriotas contra a islamização do Ocidente”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Aceito
    20 Jun 2015
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Rua Morgado de Mateus, 615, CEP: 04015-902 São Paulo/SP, Brasil, Tel: (11) 5574-0399, Fax: (11) 5574-5928 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: novosestudos@cebrap.org.br