Acessibilidade / Reportar erro

OS INCOMODADOS QUE SE MUDEM: A subjetividade contemporânea de “Os inquilinos”, de Sérgio Bianchi 1 1 Versões preliminares desta análise foram apresentadas em dois congressos “Historical Materialism”, em junho de 2015 e novembro de 2016.

Like it or Leave it: The Contemporary Subjectivity of “The Tenants”, by Sérgio Bianchi

RESUMO

Há na literatura brasileira uma tendência de representar o país pelo uso do espaço, a exemplo do romance O cortiço (1890), em que a configuração alegórica reduz estruturalmente a “nação” a um conjunto habitacional precário, regrado pelo poder da propriedade. No cinema brasileiro recente, o espaço doméstico retorna como representação da desagregação social. Desse ponto de vista, Os inquilinos (Sérgio Bianchi, 2009) é um dos mais interessantes do cinema brasileiro contemporâneo.

PALAVRAS-CHAVE:
Os inquilinos (2009); Sérgio Bianchi; cinema brasileiro contemporâneo; era PT

ABSTRACT

There has been a tendency in Brazilian literature to represent the country through the use of space. In The Slum [O cortiço] (1890), an allegorical configuration reduces the country to a “domestic” space collectively inhabited and ruled by the power of private property. In recent Brazilian cinema, the domestic space returns as a representation of societal disintegration. The film The Tenants (Sérgio Bianchi, 2009) is in my point of view one of the most interesting recent movie productions on this issue.

KEYWORDS:
The Tenants (2009); Sérgio Bianchi; Brazilian contemporary cinema; PT era

O golpe de 2016, ou como quer que se queira chamá-lo, parece ter completado um emparedamento de perspectivas que não será fácil superar. Seu predecessor, em 1964, abriu um novo capítulo das afinidades eletivas entre capitalismo e regime de exceção contra os pobres que não terminou com a “abertura democrática” - pelo contrário, com ela se naturalizou. 2 2 Empresto o raciocínio de Paulo Arantes (2014), no ensaio “1964”, e de José Antonio Pasta (em palestra no Sesc Ipiranga, em 16 jul. 2016), que, na contracorrente da onda de presentismo em que se bate a competição crítica pelo contemporâneo, vêm refletindo sobre a tradição de golpes constitutiva do país. Recentemente, a virada após junho de 2013 mostrou mais uma vez à esquerda distraída a capacidade que têm as elites brasileiras de se organizar para reagir. Os níveis de arbítrio praticados desde então, salvo pela mobilização de estudantes secundaristas e por poucos movimentos sociais, têm nos deixado a todos paralisados. Com um riso costurado na cara, a direita age como se nada tivesse a recear. Se um narrador morto ainda pudesse dizer algo, talvez nos desse o metro do destampatório. 3 3 Como se tem visto, a política sectária gera um novo ciclo de encasulamento social, sobrerrebaixamento do trabalho, violência estatal e privada preventivas, incitação à criminalidade, incorporação da população pobre à linha de frente do tráfico de drogas, entre outras formas de precarização e extermínio. Aspectos presentes, diga se, também na era Lula, embora noutra escala e com algum contrapeso de concessão social. A título de novidade, o governo pós impeachment instituiu em velocidade recorde um novo padrão de barbárie de que fazem parte o sequestro de direitos sociais, a sabotagem dos protestos, a criminalização do pensamento (a exemplo da “Escola sem Partido”), o roubo institucionalizado e à luz do dia. No âmbito mais subjetivo, aprofundam se os níveis de indistinção e subvida, enquanto aquilo que por hábito se costumava chamar de “coletividade” compartilha uma “ética” e uma estética do medo.

Os inquilinos (2009)Os inquilinos Direção: Sérgio Bianchi. Brasil: Pandora Filmes, 2009. 103 min., de Sérgio Bianchi, é um filme radical, que volta a ter atualidade. O longa-metragem faz da casa o lugar da ameaça e da violência iminente, ao passo que o fluxo desimpedido do tráfico aparece como índice das transações de um Estado terrorista. Na linha de continuidade de uma obra incontornável da representação doméstica da nossa barbárie - O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo 4 4 Refiro me à tradição, até onde sei iniciada por Aluísio Azevedo, de representar alegoricamente o Brasil por meio de um espaço doméstico (no caso, uma habitação coletiva) regrado pelo arbítrio sobre a população socialmente rebaixada. Como o tempo passou e modificou fortemente também a dimensão espacial, que passou de soberana a inespecífica e vice versa, entraram para sua forma novos elementos, por exemplo, a atual posição relativa do país, que agora une o pós nacional ao “no man’s land” que sempre foi nosso (e que sempre teve donos); a experiência social resultante do sentimento de que a construção da sociedade depende da iniciativa, da esperteza, da inventividade de “cada um”; a situação de terra devastada proveniente da aparente independência do capital em relação ao trabalho etc. Tudo isso está no filme, mais ou menos explicitamente, como espero mostrar. - o filme dá o que pensar. 5 5 Vale notar que em filmes brasileiros mais ou menos recentes, o espaço – locus de especulação em duplo sentido – ganha o proscênio na mimese da acumulação contemporânea, de uma maneira estranhamente familiar (vejam se também, entre outros, os filmes Trabalhar cansa, de Marcos Dutra e Juliana Rojas, 2011; O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, 2012).

Por esse aspecto próximo a O invasor, Os inquilinos reduz o país, com suas relações entre facções sociais, a um espaço ao mesmo tempo caseiro e estranho, pois “invadido” pela violência. A alegoria é mais complexa do que parece à primeira vista. Basta lembrar que não há propriamente casa onde não há constelação pública, tampouco há invasão se “o jagunço somos nós”. O espaço figura, portanto, como construção social, além de literária ou cinematográfica, trazendo para dentro dos espaços privados, da cama, do quintal e da mente formas atuais da violência, dando corpo, talvez, a uma nova subjetividade. Nesta, se for possível chamá-la pelo nome, a anomia tomou o lugar da lei paterna, ao passo que a imagem de metralhadoras auráticas, distribuindo comida aos famintos ou decretando morte súbita, substituiu a antiga (hoje inimaginável) aspiração por leis impessoais no sistema capitalista. Paira em teto baixo um clima de confinamento e fim de linha. A aparência é de que a implicação recíproca entre sujeito, meio e tempo - que até pouco tempo prometia dialética - cristalizou-se numa desagregação geral e sem saídas. Game over?

Como se estivéssemos no presente do filme novamente num pré-golpe (ainda não estávamos), os sentimentos arcaicos da pequena burguesia emergem reativados. 6 6 A formulação é de Schwarz (1978). Paradoxalmente, conforme também diz o claustrofóbico enunciado espacial do filme, que ressignifica contemporaneamente tal estrutura conservadora de sentimentos, quando a propriedade privada e o salve-se quem puder neoliberal falam alto, cai por terra a linha divisória entre “o que é meu” e “o que é do outro”, sem prejuízo da proliferação de muros (talvez não seja acaso o muro baixo do bairro de classe média baixa escolhido por Bianchi). A realidade aproxima-se então de uma espécie de contrautopia, com equivalente na vida subjetiva: assim ensina o processo de descoberta, por parte do protagonista, da vizinhança entre o homem comum e o criminoso, entre normalidade, submissão e perversão. O limite entre eu e outro tornou-se, em novo sentido, indistinguível, daí o gesto afoito - social, mais do que idiossincrático - que tenta conservá-lo. Mesmo o trabalho do protagonista, de burro de carga durante o dia, carregando caixas de frutas sem carteira assinada, e de guarda da família durante a noite, parece trazer afinidades, mais do que convém admitir, com a máquina de moer gente do tráfico. 7 7 Ainda assim sua designação como parte da “classe média baixa” do Brasil contemporâneo ao segundo governo Lula nos parece importante: à diferença das classes mais baixas, o protagonista é proprietário de uma casa construída por seu pai, com trabalho, em outro momento histórico. A ideologia de uma “nova classe média” que teria surgido no Brasil neoliberal (graças a um crescimento econômico relativo e ao Bolsa Família que tirou parte da população do nível “abaixo da linha de fome”, supostamente empurrando os pobres para cima na escalada hierárquica) é desmentida de cara pelo filme: a classe média baixa ali retratada, herdeira de um momento em que o trabalho valia mais (também o vizinho, seu Dimas, e sua mulher são proprietários), vive no presente com salário de fome, mas é “privilegiada” por conseguir vender sua força de trabalho, ainda que informalmente, de maneira mais ou menos “estável”, fazendo as vezes de burro de carga. Por refração, temos um retrato do que seriam as classes mais baixas nessa sociedade.

O subtítulo de Os inquilinos é um velho provérbio português transformado em lema social brasileiro, “os incomodados que se mudem”. Além de indicar sua continuidade na história brasileira, em que o lema proprietário vale indistintamente para as esferas pública e privada, há de fato uma atualização da regra num quadro pós-nacional em que não resta alternativa de “fuga”, dentro ou fora do país. Ao significar “os incomodados que aguentem”, e não se mudem, por não terem para onde ir, o lema convida a mudanças mais efetivas, pois onde não há fuga espera-se haver enfrentamento, ou fim de mundo, ponto do qual ora partimos. (Diga-se de passagem que a ambivalência entre certo niilismo perverso e o convite à crítica e à transformação é constitutivo dos filmes de Sérgio Bianchi. Penso, porém, que Os inquilinos supera esse meio-fio ao apontar para a urgência de horizonte crítico, tirando o espectador de sua posição de conforto. Nesse sentido, é muito diferente de Cronicamente inviável, em que a caricatura de tudo e todos, a apropriação preconceituosa da voz dos moradores de rua e o gozo de um autor que paira incólume, guardando distância antibrechtiana, reafirmavam padrões de programas de humor negro da Rede Globo de televisão, vendidos como passatempo a uma audiência idealmente perversa.)

Trazendo, como se disse, afinidades com filmes relevantes no cenário contemporâneo, encabeçados por O invasor, Os inquilinos ultrapassa o caráter vingativo da “ocupação” dos territórios da classe alta e lança luz sobre o violento dia a dia pequeno-burguês, à força adaptado ao trabalho precário, a padrões de consumo e de coisificação do corpo ditados pela indústria cultural e ao convívio com o crime organizado, e não organizado, com a polícia assassina e com um Estado acionista da barbárie. “Invasores” criminosos não são exceção num estado de exceção permanente, pelo contrário, fazem parte de uma guerra civil cotidiana, ou em surdina, contornada por uma sociabilidade em todos os âmbitos sinistra.

Por outra, Os inquilinos apreende pela metáfora espacial a imagem de um Brasil contemporâneo ao segundo governo Lula e mostra, com foco na “pacata” classe média baixa, como o país se organiza, desde a ditadura, como um estado de exceção permanente. 8 8 Vista pelo ângulo da periferia urbana, onde jovens, em especial negros, são exterminados diariamente pela polícia ou pelo crime organizado (ou por ambos, já que aquela também participa deste), talvez não pareça exagerada a observação de que a ditadura civil militar marca o ponto inaugural do tempo brasileiro contemporâneo, no sentido de que o poder punitivo começava a moldar o estado de exceção que então despontava. Como formulou Paulo Arantes, tinha início a militarização do cotidiano, que sobretudo as classes baixas vivem até hoje. Sem perspectiva de integração, os pobres tornavam se mais uma vez uma fantasmagoria social, à qual o Estado respondeu com o imperativo gestionário da segurança “pública” (Arantes, 2014). Caos arquitetado, anomia consentida, criminosos comuns, criminosos organizados, sócios minoritários de interesses e dinheiros maiores sucedem-se e se confundem no quadro traçado. 9 9 Tendo a “Constituição cidadã” de 1988 incorporado todo o aparelho estatal estruturado sob a ditadura, com permanência inclusive das cláusulas relativas às Forças Armadas, Polícias Militares e Segurança Pública (Zaverucha, 2005), criou se um Estado de duas cabeças: liberal constitucional para o bem das classes confortáveis e paternalista punitivo para a “ralé”, um destino assinalado pela emergência econômica incessantemente recriada pelo mesmo Estado, guardião provedor dos mecanismos de acumulação no país. Ver Arantes (2014). Nesse sentido, a figura dos traficantes é também uma imagem espelhada da ordem. No filme, ela está tão ausente (em sentido institucional, assegurando direitos e deveres básicos) quanto presente, pelo avesso, em toda parte.

A história é de uma família de classe média baixa que tem o cotidiano alterado pela presença de locatários na casa ao lado, quando a ex-mulher do vizinho aluga “sua metade” do imóvel. Os recém-chegados não trabalham, tomam cerveja o dia todo, dão festas, trazem mulheres (e uma menina) para casa. Alterados por álcool ou drogas, batem o carro no portão, gritam acordando os vizinhos. Numa discussão entre os “baderneiros”, ouve-se que um deles furou um homem, levando-o à morte, quando o plano era fazer a vida e cair fora. Os vizinhos barulhentos, rudes, desregrados, tornam-se mais do que isso.

Aos poucos todos os limites serão ultrapassados. De cara, um paradoxo bem achado mostra o desrespeito à propriedade, invadida em nome do respeito à propriedade: afinal, a ex-mulher do vizinho tem o direito de alugar sua parte da casa a quem possa pagar, levando seu Dimas a morar com os baderneiros, sem jamais recobrar a paz “do lar”. Num lance de contiguidades igualmente bem pensado, o espaço de direito dos locatários é extensivo à casa toda, pois as paredes têm ouvidos, e afinal o sangue escorre; assim como é extensivo à rua, figurando o país “à disposição” e o sentido mais frequente de “espaço público” nestas bandas: “vago”, “sem dono”, “a quem dele se apropriar privadamente fazendo uso de poder ou força”. Mais do que por imposição dos indesejáveis vizinhos, no próprio imaginário das personagens o direito à paz tornou-se indefensável na prática.

Não se trata, portanto, somente de bens. Também o corpo e a mente vão sendo invadidos - assim mostram os sonhos, os delírios, os desejos cada vez menos recalcados do pai de família, cujo ponto de vista a câmera subjetiva nos leva a acompanhar.

Após perturbarem de diversos modos o cotidiano dos vizinhos e do coproprietário da casa, numa passagem ao ato quase insuspeitada (andavam tão amigáveis nos últimos tempos), os inquilinos trucidam seu Dimas. Valter, que antes prometera socorrê-lo e para isso lhe dera seu número de telefone celular, na hora não atende. Na manhã seguinte, a polícia afinal aparece e os súbitos cidadãos podem enfim chamá-los de criminosos. Embora no território alugado tudo que faço é problema meu (salvo, por ora, a carnificina), depois do banho de sangue, a vizinhança quer linchar os assassinos, sem prejuízo dos policiais, como roupa suja que se lava em casa. Ou como o pano sujo que a proprietária - dando as caras para fazer a faxina da faxina (afinal, agora ela tem direito à casa toda) - esfrega no chão para limpar o sangue do ex-marido.

A sobreposição semântica não é casual: o filme obriga a repensar o léxico, começando pela palavra “sociedade” num mundo onde, desde que o tenham em abundância, todos são iguais perante o dinheiro. Afinal, quando a polícia leva os assassinos, a vida volta ao normal. Isto é, a normalidade é um estado de suspensão da violência que retornará a qualquer momento, sem aviso prévio, indicando que o que aparece aos olhos da vizinhança como o Mal não é senão uma das consequências da barbárie.

Na cena final, com um sorriso amarelo, mas inequivocamente satisfeita com a prospecção de um aluguel mais gordo, a ex-mulher do morto limpa com vigor a sujeira que restou. A vida continua. Os novos locatários 10 10 É interessante notar que um deles – branco, loiro, com aparência de classe média – parece ser um dos inquilinos do grupo anterior. Provavelmente livrado da prisão pelos chefes do tráfico, ele foi promovido a cabeça do novo e muito mais organizado grupo. Por um breve momento, ao vermos o mesmo ator, mais “tratado” e mais aparelhado para o crime, nos perguntamos: trata se do mesmo personagem ou do mesmo ator, dúvida que assinala o caráter substituível de todos no baixo escalão do tráfico, ainda que os de pele mais clara possam ter alguma chance de deixar de ser bucha de canhão. - desta vez criminosos bem mais organizados e armados até os dentes - logo vêm, numa caminhonete do “Partido”, pronta para distribuição de comida aos moradores das proximidades. 11 11 Como se sabe, “Partido” é o apelido da organização criminosa, Primeiro Comando da Capital, que atua em São Paulo e em mais 22 estados do Brasil, movimentando cerca de 200 milhões de reais por ano.

Separado dos bandidos e da proprietária pelo muro baixo, Valter assiste à cena, deseja um bom dia e marcha com dezenas de outros trabalhadores para mais uma jornada de esfola. A ideia de um lastro para as atrocidades que os inquilinos cometem - assim como a de complementaridade e ação concertada entre criminosos e Estado - irá crescer nesse final do filme. Os novos inquilinos, mais poderosos e “bem-sucedidos”, chegam exibindo metralhadoras contra a vizinhança de trabalhadores pobres, à qual também darão “proteção”, regras, punições. Intercalada pelo sangue de um homem comum, a substituição dos inquilinos por novos traficantes reintroduz no quadro várias circunscrições da violência. Para compreendê-la como um sistema, basta reparar nas metralhadoras em punho coroando o conluio, no mínimo tácito, entre Estado (terrorista-paternalista), capital e máfia do tráfico (terrorista-paternalista).

No fim da película, a imagem do rebanho humano mostra que a prisão civil dos trabalhadores - precarizados, amedrontados, desorganizados - tornou-se nosso ambiente natural. Uma marcha fúnebre, cantada por um baixo, comenta a cena, pairando sobre o plano aberto. Vista de cima, sim, mas por uma câmera que alça voo em teto fechado, a cidade mais parece um presídio ao ar livre, onde ex-futuros-cidadãos marcham para suas jornadas de mortos-vivos. 12 12 Anterior a 2013, o filme assinala um estado de coisas que as “jornadas de junho” pareciam ter vindo transformar. No entanto, após o sequestro de suas energias pela direita, quando o aparente caos anterior exibe sua face ordeira, proprietária e militarizada (para além dos limites dos bairros pobres, que sempre sofreram a militarização de seu cotidiano), o retrato dos estratos médio baixos da sociedade feito por Bianchi volta a ser eloquente, enquanto o novo status quo não é enfrentado com organização política de esquerda.

Qual a relação que o filme estabelece com o espectador, ao focar, seguindo o ponto de vista do trabalhador de classe média baixa, um cotidiano de opressão sem qualquer perspectiva de enfrentamento ou organização de luta de classes?

De início, rege o olhar sobre os inquilinos uma espécie de moral familiar pequeno-burguesa. Ligada, por um lado, ao princípio da propriedade privada como valor inconteste - na casa que alugam podem fazer o que bem entenderem, conforme pensam também os vizinhos incomodados -, por outro lado, ligada à “boa educação” machista dos filhos (como educar a filha com rapazes fazendo “zoeira” com meninas na casa ao lado?), ela talvez não convide à identificação com o protagonista apenas o espectador-família. Nesse sentido, a câmera subjetiva formaliza um olhar mais ou menos comum, generalizado pela cultura do medo e do respeito à entidade-dinheiro.

A ideologia de classe média de Iara e Valter (a despeito do cotidiano pobre) também fala alto ao senso comum. Quem não sabe que a “bagunça” é normal na favela, mas injusta num “bairro de trabalhadores”, que não estão acostumados nem merecem uma coisa dessas? Reconhecer a violência aqui torna tanto mais perturbadora a proximidade entre os espaços da cidade. O ângulo - condominial rebaixado - não esconde o critério moral: compartilhados pela vizinhança, por seu Dimas e pelo colega com quem Valter faz diariamente o caminho até o trabalho, os parâmetros do pai de família circunscrevem a violência aos locais mais pobres, a regras de conduta individuais, como se a violência não fosse de todos, isto é, socialmente gerada e reproduzida. Dessa perspectiva macaqueada dos ricos, pouco importa a guerra civil, desde que ela não respingue no meu “lar”, (pois) construído com esforço - esforço, aliás, que a vida no crime supostamente não exigiria, a despeito do que mostra uma espiadela no cotidiano do subproletariado do crime, como se vê ad infinitum no livro Cidade de Deus, de 1997.

No entanto, Os inquilinos não se detém no approach moral, tampouco no compartilhamento pequeno-condominial entre o espectador e Valter. Pelo contrário, trata-se de momentos do conjunto complexo de relações proposto ao público. Conforme avança a barbárie em versão dia de semana, a identificação com Valter se aprofunda - graças ao trabalho da câmera subjetiva e também a um certo apreço pelo sossego, que é de todos, ou a que levam a lei da inércia e o cansaço diários. Num crescendo, todavia, o desenrolar da trama vai mostrando que inércia e cansaço são prato cheio para a “confusão” instaurada e, bem vistas as coisas, rotinizada: é límpido o ar de família entre a vida cotidiana do (ex-)país e a imposição à força e a grito dos interesses particulares de uns poucos. Certamente existem diferenças entre inquilinos e donos, mas assim como é o caso da satisfeita vizinha - que não se incomoda de fazer a faxina se for para ganhar mais dinheiro - suas ações se orquestram. Há como negar as semelhanças entre os inquilinos praticando nossa máxima civilizada, “os incomodados que se mudem”, e o patrão de Valter dizendo que registrá-lo é prejudicá-lo e logo lhe oferecendo a porta da rua por não gostar de ver empregado insatisfeito?

Quer dizer, conforme o filme aprofunda as relações entre classes baixas dessolidarizadas, trabalho rebaixado, competição em território “for rent”, nós, espectadores - mimetizando a posição inerme de Valter, que não quer pagar o pato, muito menos enxergar que esse pato também é seu - sofremos uma queda brusca no chão atual, em que a ideologia parece ter abandonado o trabalho das aparências, deixando de lado o disfarce do particular em interesse geral. Vale dizer, com o desmanche da noção de país, parece ter evaporado a ideia de comunidade, o que cai como uma luva numa terra em que a esfera pública nem sequer chegou a se formar. 13 13 A noção de comunidade imaginada (Anderson, 1991), uma ideologia que escondia o fato de um país ser uma comunidade de proprietários – mas não sem corresponder a algum chão em que a questão da iniquidade socioeconômica poderia ser pensada a partir de um tecido social existente – parece cancelada, ao passo que o espaço público figura como uma “terra de ninguém”, ciclicamente ocupada. Por outra, onde “fala a bala” (do Estado, da polícia, do tráfico, do patrão), fala a lei do dinheiro sem concessões sociais, ou com mínimas concessões, amigas do status quo. Ver Paulani (2005).

Mais ou menos acostumado à guerra civil contemporânea, o espectador talvez demore a se dar conta da posição à qual a câmera maliciosamente o identificou. Numa imagem central, desdobrada em algumas sequências, o confronto imaginário com o “outro” (criminosos) 14 14 Vale especificar o que estamos chamando de “criminosos”, sem prejuízo da generalização que o jogo de perspectivas no filme sugere (como veremos na sequência): o PCC e demais organizações criminosas, o subproletariado do tráfico, a polícia e o Estado, portanto sem exclusão da ordem, que vem há décadas praticando uma conduta de extermínio diário da população pobre urbana brasileira, por princípio “suspeita” de crime. Vale lembrar, por exemplo, que no ano de 2015 houve 59.080 assassinatos no país. Entre 2005 e 2015, 318 mil jovens foram assassinados, o que corresponde a uma média de 87 pessoas por dia. O número ultrapassa largamente o de territórios em guerra e também o número de mortos por ataques terroristas em todos os lugares do mundo (no primeiro semestre de 2017, por exemplo, foram mortas 3.314 pessoas em ataques terroristas). Quando se considera a cor da pele das vítimas, a porcentagem de jovens negros mortos corresponde, num só ano (tomo por base 2015), a 71,9% dos homicídios no país. A ideia de um estado brasileiro terrorista não é, portanto, uma metáfora qualquer, embora a mídia prefira falar de terroristas estrangeiros. Dados tomados de: Cerqueira et al., 2017. surge como uma briga de cachorros, ou seja, como disputa primitiva-irracional em que os mais fracos sempre perdem. A nova subjetividade em questão no filme de Bianchi começa então a ser descascada.

OSSOS

A família mantém no quintal um vira-lata, preso para não destruir o pequeno canteiro de plantas. Quando os inquilinos levam a cabo a violência que estava “no ar” (furaram um homem), Iara pergunta a Valter o que fazer. “Vamos deixar o cachorro solto por uns tempos. Se ele destruir o canteiro, depois eu arrumo”. Vistas do quintal, eis as consequências da barbárie instaurada. Diante do tamanho da providência, rimos.

Pouco depois vem o constrangimento. Vemos o cão molhando os cantos do quintal, demarcando o território com seu cheiro, e na sequência Valter, que o imita. Uma cena anterior mostrava o dono brincando em posição de quatro, rosnando e latindo para provocar/“treinar” o cachorro. O filho o imitava, e ambos riam.

Não somos cachorros, mas como somos levados a agir no salve-se quem puder cotidiano?

A alegoria da briga de cães se completa quando o vizinho coproprietário da casa alugada pelos inquilinos chega mancando à procura de Valter (como vimos, Dimas é obrigado pela ex-mulher a coabitar com os locatários, solução de compromisso entre ele, que não quer vender a propriedade, e ela, que quer ganhar dinheiro com a sua metade). Dimas mostra a mordida na perna, dada por um dos “rapazes”. (Cenas antes, reclamando dos inquilinos, Dimas se abre: “Ainda arrumo uns bolinhos de carne envenenados. Melhor, carne com vidro moído. Com animal tem que ser assim. Tem que implodir.” O desrecalque irracionalista não é unilateral, parte do tecido das reciprocidades contemporâneas.)

Por insistência da câmera subjetiva, somos identificados à perspectiva de Valter, seja quando “apronta” no quintal, seja na sequência, fantasiando vingança. Ainda que ele não passe ao ato, tampouco concorde com seu Dimas, não é pouca a regressão. A perspectiva do protagonista figura uma sociedade como uma matilha de cães domésticos e cães ferozes disputando território, buscando assegurar suas partes no “caos”. Uma vez delimitado o espaço, respeitado o mijo, está dada a ilusão do limite. Como diz Iara, justificando o direito de não enxergar agressões e atos suspeitos vindos da casa ao lado, “cada vida é uma vida”. No desejo de emparedar-se vivo e fechar os olhos, o assentimento tácito é o que parece estar em jogo, como uma posição politicamente relevante.

Restritos às perspectivas de Valter e de Iara, o filme nos induz a ver o problema da violência reduzido à dimensão privada, irracional e imediata. Quase somos levados a esquecer que uma sociedade não é uma matilha. Segundo a trama que enreda o pai de família, as opções socialmente disponíveis são a inação/submissão ou o extermínio dos vizinhos armados. (A alternativa para se livrar do incômodo tão próximo passa de resto por um conselho paralegal: como no caso contado pelo colega, enfermeiro, o único jeito de livrar-se do mal é acabando com ele à bala, conforme recomenda um policial a outro “homem honesto” que vê sua casa e sua mulher tomadas por um invasor.)

Em compasso mais largo, porém, essa perspectiva dominante no filme é reenquadrada a partir de outros materiais, que ressignificam o conjunto: 1. a fala de dois colegas de escola, disputando com a perspectiva ideológica de Valter o sentido social de toda violência, que de resto escapa igualmente à professora, com seu discurso regado a groselha e coreografado com gestos racistas; 2. a realidade “lá fora” (a polícia joga bombas contra a população periférica), que dá concretude e verdade ao ponto de vista de quem paga com a vida; 3. os indícios de realidade televisionados, convidando-nos a dispensar a imbecilidade programática dos âncoras e a ver a guerra civil sob a névoa do “caos urbano” (portanto a despeito da direção facistoide em que correm os noticiários e programas de auditório); 4. a insistência no ato de ver, como leitmotiv que perpassa o filme, instando o espectador a tomar posição. Juntos, tais materiais - carregados de história - propõem um descolamento em relação ao ponto de vista de Valter e dos seus. Por outra, um estado de coisas generalizado é exposto e criticado pelo filme.

Retomando em poucas palavras, nas ruínas da vizinhança entram em relação as humilhações próprias ao novo universo do trabalho, a disfunção da escola, o assassínio programático dos pobres pela polícia (como é o caso de Evandro, o colega), a infância invadida por padrões de consumo sexual, a colonização da subjetividade pelo dinheiro, a “insegurança” doméstica (ou a anomia social que desconhece limites sobretudo quando se trata de muros baixos). Nesse estado de coisas, a aparência é a de um mundo caótico - como diz a perspectiva de Valter - em que cães maiores abatem cães menores, mais fracos ou mais escrupulosos. Mas, vale insistir: se o olhar de Valter vê apenas disputa entre fortes e fracos num mundo desordenado, o jogo de olhares no filme diz de modo decisivo algo mais sobre a organização do caos aparente e do medo onipresente. À medida que os procedimentos formais de exposição de irracionalismos (de Valter, de Iara, de Dimas, da mass media, da professora, do patrão) se somam, as implicações entre o que chamamos de violência e o conjunto da sociedade neoliberal-periférica cresce. Por outra, são postos em perspectiva, convidando, inclusive, a imaginar disputas - não por ossos - em esferas maiores. Nesse sentido, é decisiva a cena em que, enquanto Valter e Iara não sabem o que fazer para proteger os filhos e salvar o lar, a tv mostra conflitos entre governo e crime organizado, pondo fogo no centro da cidade. O comentário da jornalista explica que, por causa da explosão do conflito, “a população ficou sem ônibus e sem nenhuma paciência” - eis as televisivas consequências da guerra.

OS FODÕES NOS OLHOS DE IARA E VALTER (PERSPECTIVAS)

Se está acontecendo dentro de casa, na minha casa, como é que faz? É como ter a peste. Essa doença não é minha. Mas ela está muito perto. Eu sinto o cheiro. (Seu Dimas)

A metáfora dos cães leva a rever nossa posição dentro do filme e a dar atenção ao leitmotiv do olhar, encenado desde o início e por acumulação transformado em procedimento crítico. Enganos, armadilhas e espelhamentos levam a desnaturalizar o olhar da câmera, do protagonista, de Iara, das crianças, dos vizinhos, da telenovela, do noticiário. Vejamos.

Os inquilinos se abre com um plano geral mostrando um bairro de classe média baixa cujas casas de tijolo cravam-se no morro tal qual uma parte orgânica de sua “natureza”. Contemplamos esse primeiro quadro estático em que o ton sur ton entre morro e casas sem pintura transforma a pobreza em paisagem. No centro, viceja uma grande árvore verde. É apenas uma a árvore (ali no canto da tela haverá depois mais uma), mas bela. O quadro enche os olhos e engana: a beleza da pobreza - em que as casas de tijolo (porque mais baratas sem reboco) são coroadas pela árvore frondosa - será uma miragem de abertura. As próprias imagens iniciais já tratam de desfazer o logro. Outro long shot, mais aberto do que o primeiro, mostra o bairro como parte da cidade - a câmera intervém apontando nexos onde o senso comum vê uma realidade “marginal”: “isto” é parte “daquilo” - e, na sequência, uma câmera alta nos aproxima da rua e depois da casa do protagonista. Pousamos. A vida é aquilo que se costuma chamar de real, antes embelezado pelo olhar distante.

Depois de ligar o bairro erguido na encosta do morro ao conjunto da cidade entrevisto sob a névoa, a montagem abre o campo de visão; vemos na rua a brincadeira das crianças jogando “mata um”. Em seguida, como alguém à espreita, nos aproximamos lentamente da janela da casa de Iara e Valter, sem conseguir ver o que se passa lá dentro. Ouvimos sons de um casal discutindo, com agressão física e ameaça de morte. Filtrados pela indústria cultural e sua máquina de reproduzir diariamente o medo e a barbárie - o sofrimento social sempre pode render -, realidade e imaginário confundem-se de modo perverso, dando agora corda para a expectativa de vermos brutalidade onde antes havia “natureza” e alguma parca promessa.

Testemunhado pelo ouvido, o flagrante delito é tão falso quanto a pintura distante, vindo agora desmanchar a expectativa de vermos uma realidade espetacular (porque) na periferia. Trata-se de uma telenovela a que a filha do casal - vista na altura dos nossos olhos, em plano americano - assiste. Ao passo que desmancha expectativas de encontrar um “Outro” no bairro pobre, o engano reenquadra a periferia como consumidora - e não só objeto dileto - da sociedade do espetáculo. Substituindo um engano por outro - paisagem por melodrama -, o filme começa puxando o tapete do espectador. O procedimento cederá depois ao predomínio do mergulho na câmera subjetiva, ficando porém como moldura do filme, incentivando o distanciamento.

A inicial mise-en-scène de câmera e captação sonora desiludem o horizonte de expectativas da plateia; a inocência da infância não é ingênua, e a mercadoria “violência-periférica” não é na verdade uma exceção monstruosa. Feita de luz e num bairro onde não moro, ela reforça o medo, do lado de fora da janela, para na sequência enquadrá-lo como peça fundamental da máquina de produzir, reproduzir e gerir diferença e insegurança.

A aproximação pelo ouvido é um dado estrutural a ser retido: sabemos o que veremos antes mesmo de ver. Em correspondência com o que as primeiras cenas nos apresentavam por intermédio de um olhar distante, a aproximação pelo ouvido falseia, por sua vez, o suposto contato direto. Ouvimos a cena sem vê-la, ou melhor, ouvimos mais do que vemos, induzidos a antecipar a cena clichê, um melodrama projetado pelo imaginário social sobre o bairro pobre/“violento”. O anticlímax dessa sequência põe abaixo, entre outras coisas, a ideia de um contato “transparente”, à moda do cinema convencional.

Aqui, o ato de ver é refletido pelo ouvido, os sentidos operam em disjunção, contra o mergulho, em favor do estranhamento do que nós, espectadores, suporíamos conhecer de antemão. Entre nós e a casa do protagonista, há portanto mediações que ficam em destaque desde o início: há a câmera, que se mostra como tal, podendo aliás estar “cega” para impressões enganosas (o que nos faz recordar que lentes, angulações etc. também são modos de tomar posição sobre o que se vê); os microfones na rua, fazendo ouvir a brincadeira de crianças na qual há violência real de permeio; o som ampliado do melodrama televisivo; afinal a “calmaria do lar”, onde a criança faz sua lição de casa aprendendo um padrão que entra pelos olhos.

A (des)ilusão provocada pela montagem manda desconfiar das ilações da câmera (ou do olhar sobre a violência alheia) e examinar os olhos e ouvidos com a própria cabeça. Sintomas sociais ganham correspondência em técnicas de apresentação do bairro não frequentado pela maioria dos espectadores desse tipo de cinema.

Essa cena fictícia da tv terá paralelo numa outra em que show de horrores e “realidade” equivalem-se, pautados pela exploração do sofrimento social. Capitalizando o chamado “caos”, o apresentador Datena anuncia o assassinato de uma menina de oito anos, estuprada por três homens. Depois de mostrar a mãe e a irmã aos berros e um saco de lixo onde estão os restos mortais da criança, comenta: “Um anjo conspurcado, roxo, rasgado. […] Não dá para falar mais nada, você fica maluco com uma notícia dessa”. A incitação à vingança é direta; segundo o âncora, que toma o espectador do programa por espelho, é preciso perder a cabeça para reagir à barbárie, a qual é, por definição, do outro.

O crime aconteceu numa favela perto da casa dos protagonistas, levando Iara a repetir, sobre-excitada, a notícia ao marido, num misto de horror e gozo. É por isso que ela não deixa o filho brincar perto da favela - reafirma, embora a essa altura a presença dos inquilinos ao lado já mostrasse também a eles que a violência não mora só ao lado, escorrendo pelo vitrô da cozinha e povoando as fantasias de Iara e Valter.

As imagens da menina estuprada e do sofrimento familiar têm correspondência numa imagem anterior. De modo didático, um flash subliminar a relembra, obrigando a dar atenção à simetria e aos conteúdos recalcados da primeira cena. A filha do casal e suas amigas dançam para o pai uma coreografia sexualizada. Valter entra na brincadeira da dança, supondo-a inocente. À frente dele a câmera, focada nos quadris das meninas, nos faz acompanhar com os olhos de um possível estuprador os movimentos circulares da dança. De repente, o olhar de Valter encontra o de um sujeito na rua, com avental de trabalho (um açougueiro, um farmacêutico?), comendo as meninas com os olhos. Outra cena, adiante, fecha a triangulação.

Quando Dimas chega à casa de Valter mancando por causa da mordida de um dos inquilinos, conta-lhe o ocorrido na noite anterior. O vizinho tinha aproveitado uma festinha dos inquilinos para procurar provas de crimes; ao ouvirem barulho no quintal, os inquilinos vão até ele e esquecem a porta aberta. Enquanto apanha, Dimas entrevê uma menina dentro da casa. (Valter pergunta se a “menina” era uma criança ou uma mulher, mas o vizinho não responde, interessado em contar a parte que lhe diz respeito.) O pai de família fantasia sensualmente a criança, que se esconde/deixa ver parte do corpo nu, entreabrindo a porta da casa onde habitam os “desregrados”. Os olhos de Valter e os da menina se encontram na fantasia do pai de família - duplicado, também ele é na cena objeto do olhar -, levando-nos a refletir sobre o que vemos.

Nua, com o rosto maquiado como uma mulher, a menina olha para Valter, que a imagina. O encontro com o olhar desejante do estranho/violador na cena anterior, da rua, era tão terrível quanto especular. Tópico central do filme, a labilidade entre o homem comum e o criminoso é dada por correspondências estruturais, como indicam os cruzamentos de olhares encenados de modo recorrente. Por outra, horror e desejo se misturam numa organização da libido correspondente a uma sociedade em que tabus e limites foram descartados em prol da invasão total, legitimada pela sociedade e pelo Estado.

O desconhecimento de limites no espaço da imaginação paterna, em que o desejo se afirma violentamente - justo ali, invadindo os afetos do pai zeloso -, inscreve-se no quadro do presente neoliberal traçado pelo filme. Virando a formulação ao contrário, poderíamos dizer que também a imaginação surge como território ocupado, onde não há barragem para a afirmação do desejo como pura violência. (Em correspondência com essa caracterização subjetiva, que o cruzamento dos olhares/posições mostra, mais uma vez, não ser idiossincrática, traços significativos do nosso tempo marcam presença, como vimos, no trabalho precarizado, na anomia a calhar, no assassínio de jovens suspeitos de pobreza, na não intervenção estatal, na presença da polícia após o assassinato e no retorno dos criminosos mais organizados etc.) O desejo ilimitado, sexualizado e enfeitiçado parece no caso qualificar, desde seu íntimo, uma sociedade com horror à interdição ou, se quisermos, submetida ao princípio categórico, de feição neoliberal, do consumo e do gozo incessantes. Se a intersecção entre as cenas aponta para o inverso da “excrescência monstruosa”, incluso o insuspeito pai de família, não há exagero em dizer que o consumo imaginário do corpo da própria filha e de outras crianças testemunha a perversão de toda a sociedade, desenhada na simetria entre o olhar paterno e o do desconhecido de avental.

Aos inquilinos, reclamando do barulho na madrugada, sangrando depois de levar uma pedrada de um menino na rua, Valter formula a impossibilidade de formular a “invasão” de sua vida: “A confusão é o barulho” - gagueja alto, enraivecido, procurando palavras. “A confusão é a confusão”. Formulada a tautologia, o balbucio não toca na realidade, mas é um claro sintoma dela.

O olhar de Valter (protetor/desprotegido e imaginariamente criminoso em várias frentes, do assassínio ao estupro) tem contiguidade no olhar de sua mulher, espiando os inquilinos pelo vitrô da cozinha. Em sonhos e devaneios acordados, porém, é ele quem espia, como na cena em que um vento forte levanta peças no varal e Iara deixa as atividades domésticas para se aconchegar ao peito de um dos rapazes sem camisa. Cruzamentos de olhares, simetrias, trocas de posição social/espacial não param, desrespeitando todo contorno, inclusive o do enquadramento, que avança em direção à plateia.

Em poucas palavras: enquanto na imaginação de Valter os inquilinos, monstruosos, emitem grunhidos aterradores (efeito da distorção do som, em momentos de câmera subjetiva), a estrutura assinala simetria entre o trabalhador que zela por sua família e pequena propriedade (a casa construída por seu pai, “tijolo por tijolo”, onde ele e seus filhos nasceram) e os assassinos, criminosos não organizados. Paralelamente, a imagem dos novos inquilinos, cuja postura é paternal-ameaçadora (no caminhão, alimentos para a vizinhança, na mão, metralhadoras), assinala a proximidade entre Estado conivente/ausente e organizações criminosas, no concerto do “caos”. A “confusão” geral não é pouca e diz respeito à posição do sujeito diante dela, assim como a um amplo compasso, o qual ultrapassa aquela “invasão” mais imediata. Onde ficamos?

No final do filme o jogo de olhares reitera as simetrias apontadas, com mais um cruzamento: Iara vê Valter adentrar a casa vizinha e observar de perto o lugar do crime, ainda cheio de sangue. Quando olha para ela, ocupando o espaço dos inquilinos - trocando de lugar com os criminosos que acabaram de matar Dimas -, Iara lhe sorri de maneira sensual. A câmera é novamente subjetiva e investe no jogo de espelhamentos (era Valter quem imaginava Iara observando-o, enquanto ele ocupava o lugar dos inquilinos). Com o pai nos virilizamos, experimentando no olhar-sorriso da mulher a segurança que ele não encontrou no trabalho, no estudo (que como diz seu amigo, nada renderá), tampouco na acumulação mínima dos bens familiares, passados com suor de pai para filho. Nessa inversão final de perspectiva, passamos da identificação com o olhar pasmado, respeitador da propriedade e da desordem nela lastreada (o olhar do trabalhador socialmente “correto”, potencialmente fascista, desamparado e desvirilizado), para a identificação com o olhar do criminoso potencial, que se ergue ao projetar sobre si mesmo um olhar desejante. Sorrimos para a nova perspectiva de “integração” pela criminalidade. Espectadores da falta de saídas dos cidadãos domesticados pelos novos tempos - cúmplices atônitos ou criminosos potenciais - somos parte no jogo de cena, convidados, porém, a recusar o papel, sob pena de nos tornarmos pequenos cães salvaguardando nossos pequenos territórios de confinamento.

Nesse sentido, note-se que a recorrente angulação da câmera em plongée - ou seja, vendo de cima para baixo a família - dá forma à ambivalência que constitui o limite do filme (ou da realidade). Com a câmera, estamos um pouco acima de Valter e das outras personagens, mas não muito, como se nosso olhar se situasse no teto da casa do pai de família ou, nas cenas externas, no teto baixo de uma prisão a céu aberto. Noutros momentos somos mergulhados no olhar do protagonista, por força da câmera subjetiva, identificados a posicionamentos ideológicos nada edificantes. Ao contrário da visão mais caricata responsável pela ambivalência perversa de Cronicamente inviável (o diretor parecia gozar de uma supremacia qualquer, ao identificar o espectador a uma classe privilegiada fascista ou ao identificar os miseráveis a imbecis), em Os Inquilinos, a despeito ou não das intenções de Bianchi, o resultado é outro. As mudanças da câmera, ora com o personagem, ora um pouco acima dele, formalizam um distanciamento insuficiente (supondo-se um espectador minimamente progressista); entre a câmera rasante, de modo a enxergar a situação, e o mergulho numa identificação indesejável (mas socialmente nossa), a superar. A formalização da dificuldade é um ganho, assim como a procura por perspectivas capazes de iluminar a matéria contemporânea (uma necessidade real). Isto é, numa época em que é preciso grande esforço para criar perspectiva - não está dada a distância que permite ver com alguma clareza a realidade, mas o mergulho na escuridão das personagens tampouco aponta saída -, o contrapeso dado pela necessidade e pela dificuldade, formalizadas pelo filme, de compreender o todo com recuo crítico parece superar dilemas anteriores da filmografia desse diretor.

Por fim, vale observar mais uma provocação de Sérgio Bianchi: Os inquilinos foi concebido e rodado durante o segundo mandato do governo Lula, quando a promessa de um governo para os pobres, que enfrentasse a urgência da redistribuição de renda no país, já tinha ido para o brejo, a bem das urgências financeiro-rentistas. Como vimos, Valter é uma espécie de imagem acabada do trabalhador despolitizado, que oscila entre fazer malabarismos para manter a vida e o trabalho “em ordem” e imaginar modos de inserção, de compensação e mesmo de extermínio. Se aumentássemos a escala dos cruzamentos e simetrias de posição sugeridos pelo filme, talvez fosse possível enxergar na personagem confiante na ordem e no trabalho, posto que mergulhada em trevas, um protótipo da era Lula. Um duplo, ou um Frankenstein, soprado pelo programa de “integração” neoliberal da população pobre. Valter encarna a figura da despolitização e da falta de horizontes, principal herança do governo do presidente operário, após trair seus compromissos de classe (ontem? desde as greves do ABC?), abrindo caminho para o programa de direita que se anunciou no tenebroso maio de 2016.

REFERÊNCIAS

  • Anderson, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism Londres: Verso, 1991.
  • Arantes, Paulo. “1964”. In: ______. O novo tempo do mundo São Paulo: Boitempo, 2014.
  • Cerqueira, Daniel et al Atlas da violência 2017 Rio de Janeiro: Ipea; FBSP, 2017.Disponível em: Disponível em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017 Acesso em: 30 nov. 2017.
    » http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017
  • Os inquilinos Direção: Sérgio Bianchi. Brasil: Pandora Filmes, 2009. 103 min.
  • Paulani, Leda. “Individualismo, neoliberalismo e pós-modernismo”. In: Paulani, Leda. Modernidade e discurso econômico São Paulo: Boitempo, 2005. pp. 115-140.
  • Schwarz, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”. In: Schwarz, Roberto. O pai de família e outros estudos, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
  • Zaverucha, Jorge. FHC, Forças Armadas e política: entre o autoritarismo e a democracia, 1990-2002 Rio de Janeiro: Record, 2005.
  • 1
    Versões preliminares desta análise foram apresentadas em dois congressos “Historical Materialism”, em junho de 2015 e novembro de 2016.
  • 2
    Empresto o raciocínio de Paulo Arantes (2014)Arantes, Paulo. “1964”. In: ______. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014., no ensaio “1964”, e de José Antonio Pasta (em palestra no Sesc Ipiranga, em 16 jul. 2016), que, na contracorrente da onda de presentismo em que se bate a competição crítica pelo contemporâneo, vêm refletindo sobre a tradição de golpes constitutiva do país.
  • 3
    Como se tem visto, a política sectária gera um novo ciclo de encasulamento social, sobrerrebaixamento do trabalho, violência estatal e privada preventivas, incitação à criminalidade, incorporação da população pobre à linha de frente do tráfico de drogas, entre outras formas de precarização e extermínio. Aspectos presentes, diga se, também na era Lula, embora noutra escala e com algum contrapeso de concessão social. A título de novidade, o governo pós impeachment instituiu em velocidade recorde um novo padrão de barbárie de que fazem parte o sequestro de direitos sociais, a sabotagem dos protestos, a criminalização do pensamento (a exemplo da “Escola sem Partido”), o roubo institucionalizado e à luz do dia. No âmbito mais subjetivo, aprofundam se os níveis de indistinção e subvida, enquanto aquilo que por hábito se costumava chamar de “coletividade” compartilha uma “ética” e uma estética do medo.
  • 4
    Refiro me à tradição, até onde sei iniciada por Aluísio Azevedo, de representar alegoricamente o Brasil por meio de um espaço doméstico (no caso, uma habitação coletiva) regrado pelo arbítrio sobre a população socialmente rebaixada. Como o tempo passou e modificou fortemente também a dimensão espacial, que passou de soberana a inespecífica e vice versa, entraram para sua forma novos elementos, por exemplo, a atual posição relativa do país, que agora une o pós nacional ao “no man’s land” que sempre foi nosso (e que sempre teve donos); a experiência social resultante do sentimento de que a construção da sociedade depende da iniciativa, da esperteza, da inventividade de “cada um”; a situação de terra devastada proveniente da aparente independência do capital em relação ao trabalho etc. Tudo isso está no filme, mais ou menos explicitamente, como espero mostrar.
  • 5
    Vale notar que em filmes brasileiros mais ou menos recentes, o espaçolocus de especulação em duplo sentido – ganha o proscênio na mimese da acumulação contemporânea, de uma maneira estranhamente familiar (vejam se também, entre outros, os filmes Trabalhar cansa, de Marcos Dutra e Juliana Rojas, 2011; O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, 2012).
  • 6
    A formulação é de Schwarz (1978)Schwarz, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”. In: Schwarz, Roberto. O pai de família e outros estudos, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978..
  • 7
    Ainda assim sua designação como parte da “classe média baixa” do Brasil contemporâneo ao segundo governo Lula nos parece importante: à diferença das classes mais baixas, o protagonista é proprietário de uma casa construída por seu pai, com trabalho, em outro momento histórico. A ideologia de uma “nova classe média” que teria surgido no Brasil neoliberal (graças a um crescimento econômico relativo e ao Bolsa Família que tirou parte da população do nível “abaixo da linha de fome”, supostamente empurrando os pobres para cima na escalada hierárquica) é desmentida de cara pelo filme: a classe média baixa ali retratada, herdeira de um momento em que o trabalho valia mais (também o vizinho, seu Dimas, e sua mulher são proprietários), vive no presente com salário de fome, mas é “privilegiada” por conseguir vender sua força de trabalho, ainda que informalmente, de maneira mais ou menos “estável”, fazendo as vezes de burro de carga. Por refração, temos um retrato do que seriam as classes mais baixas nessa sociedade.
  • 8
    Vista pelo ângulo da periferia urbana, onde jovens, em especial negros, são exterminados diariamente pela polícia ou pelo crime organizado (ou por ambos, já que aquela também participa deste), talvez não pareça exagerada a observação de que a ditadura civil militar marca o ponto inaugural do tempo brasileiro contemporâneo, no sentido de que o poder punitivo começava a moldar o estado de exceção que então despontava. Como formulou Paulo Arantes, tinha início a militarização do cotidiano, que sobretudo as classes baixas vivem até hoje. Sem perspectiva de integração, os pobres tornavam se mais uma vez uma fantasmagoria social, à qual o Estado respondeu com o imperativo gestionário da segurança “pública” (Arantes, 2014Arantes, Paulo. “1964”. In: ______. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014.).
  • 9
    Tendo a “Constituição cidadã” de 1988 incorporado todo o aparelho estatal estruturado sob a ditadura, com permanência inclusive das cláusulas relativas às Forças Armadas, Polícias Militares e Segurança Pública (Zaverucha, 2005Zaverucha, Jorge. FHC, Forças Armadas e política: entre o autoritarismo e a democracia, 1990-2002. Rio de Janeiro: Record, 2005.), criou se um Estado de duas cabeças: liberal constitucional para o bem das classes confortáveis e paternalista punitivo para a “ralé”, um destino assinalado pela emergência econômica incessantemente recriada pelo mesmo Estado, guardião provedor dos mecanismos de acumulação no país. Ver Arantes (2014)Arantes, Paulo. “1964”. In: ______. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014..
  • 10
    É interessante notar que um deles – branco, loiro, com aparência de classe média – parece ser um dos inquilinos do grupo anterior. Provavelmente livrado da prisão pelos chefes do tráfico, ele foi promovido a cabeça do novo e muito mais organizado grupo. Por um breve momento, ao vermos o mesmo ator, mais “tratado” e mais aparelhado para o crime, nos perguntamos: trata se do mesmo personagem ou do mesmo ator, dúvida que assinala o caráter substituível de todos no baixo escalão do tráfico, ainda que os de pele mais clara possam ter alguma chance de deixar de ser bucha de canhão.
  • 11
    Como se sabe, “Partido” é o apelido da organização criminosa, Primeiro Comando da Capital, que atua em São Paulo e em mais 22 estados do Brasil, movimentando cerca de 200 milhões de reais por ano.
  • 12
    Anterior a 2013, o filme assinala um estado de coisas que as “jornadas de junho” pareciam ter vindo transformar. No entanto, após o sequestro de suas energias pela direita, quando o aparente caos anterior exibe sua face ordeira, proprietária e militarizada (para além dos limites dos bairros pobres, que sempre sofreram a militarização de seu cotidiano), o retrato dos estratos médio baixos da sociedade feito por Bianchi volta a ser eloquente, enquanto o novo status quo não é enfrentado com organização política de esquerda.
  • 13
    A noção de comunidade imaginada (Anderson, 1991Anderson, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Londres: Verso, 1991.), uma ideologia que escondia o fato de um país ser uma comunidade de proprietários – mas não sem corresponder a algum chão em que a questão da iniquidade socioeconômica poderia ser pensada a partir de um tecido social existente – parece cancelada, ao passo que o espaço público figura como uma “terra de ninguém”, ciclicamente ocupada. Por outra, onde “fala a bala” (do Estado, da polícia, do tráfico, do patrão), fala a lei do dinheiro sem concessões sociais, ou com mínimas concessões, amigas do status quo. Ver Paulani (2005)Paulani, Leda. “Individualismo, neoliberalismo e pós-modernismo”. In: Paulani, Leda. Modernidade e discurso econômico. São Paulo: Boitempo, 2005. pp. 115-140..
  • 14
    Vale especificar o que estamos chamando de “criminosos”, sem prejuízo da generalização que o jogo de perspectivas no filme sugere (como veremos na sequência): o PCC e demais organizações criminosas, o subproletariado do tráfico, a polícia e o Estado, portanto sem exclusão da ordem, que vem há décadas praticando uma conduta de extermínio diário da população pobre urbana brasileira, por princípio “suspeita” de crime. Vale lembrar, por exemplo, que no ano de 2015 houve 59.080 assassinatos no país. Entre 2005 e 2015, 318 mil jovens foram assassinados, o que corresponde a uma média de 87 pessoas por dia. O número ultrapassa largamente o de territórios em guerra e também o número de mortos por ataques terroristas em todos os lugares do mundo (no primeiro semestre de 2017, por exemplo, foram mortas 3.314 pessoas em ataques terroristas). Quando se considera a cor da pele das vítimas, a porcentagem de jovens negros mortos corresponde, num só ano (tomo por base 2015), a 71,9% dos homicídios no país. A ideia de um estado brasileiro terrorista não é, portanto, uma metáfora qualquer, embora a mídia prefira falar de terroristas estrangeiros. Dados tomados de: Cerqueira et al., 2017Cerqueira, Daniel et al. Atlas da violência 2017. Rio de Janeiro: Ipea; FBSP, 2017.Disponível em: Disponível em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017 . Acesso em: 30 nov. 2017.
    http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/do...
    .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Nov 2017

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2017
  • Aceito
    24 Ago 2017
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Rua Morgado de Mateus, 615, CEP: 04015-902 São Paulo/SP, Brasil, Tel: (11) 5574-0399, Fax: (11) 5574-5928 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: novosestudos@cebrap.org.br