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Comida em Parati

CONTO

Comida em Parati

Beatriz Bracher

Há muitos anos, em uma festa da cumeeira na casa de um amigo, vendo os homens comerem tudo de tudo, B. se perguntou como podia caber tanta comida em um corpo. Uma imagem da mesma cena com livros sendo oferecidos passou por sua cabeça e ela soube que faria da mesma forma.

Neste momento de escuridão agitada, o pensamento se formando com pontos e vírgulas, mas ainda antes de escrever, outras lembranças chegam. O rosto vermelho de Haroldo de Campos lendo fragmentos de Galáxias, a sua voz transbordando e se oferecendo imensa; a lembrança de sua alegria, segura de que a luz da voz restaria no livro cada vez que o lesse novamente.

Comida e livro. Nunca experimentara o enfartamento de ler, nunca passara fome.

Outra lembrança, agora da sua época de editora. Um autor comparando o editor a um vendedor de salsichas. Ele gostaria que o editor não tivesse pudor com seu livro, que o vendesse como se vendem salsichas, sem frescuras nem glamour. A questão, pensou B., não era apenas o desejo de vender muito, ganhar dinheiro e mundo, mas também de não dividir o processo livro com o seu comerciante. Embutir a obra e seu autor dentro de uma camada gordurosa e compacta de salsicha, chegar inteiro, são e salvo, ao leitor individual, à leitura silenciosa.

A preocupação de B. era o seu corpo, com carne, osso, músculo e voz. Pediram que lesse um texto seu em público. Era a primeira vez que acontecia. Era como comer carne crua. Ser a carne crua.

Filé tartar é moído e temperado, quibe cru também. Falo de carne vermelha, nosso assunto aqui nesta mesa. Mas cortar, abrir assim em público e comer ainda quente, pulsando? O estômago de B. revira-se, mas insiste, percebe um ponto a destrinchar, não sabe qual. Lagostas são esquartejadas vivas na frente do cliente, provavelmente mais pela cena do que por garantia de frescor. E que verdade ou frescor há de se revelar numa leitura pública? Não, apenas outras peles. A leitura de Haroldo, é verdade. Mas a voz de B. nunca tivera esta intenção de poder; seu texto sim, gostava de acreditar, a voz tinha apenas medo.

E mais, ela sabia, mais que medo, a voz carregava consigo chaves falsas. A chave da vida do autor, com cor, idade, movimento, peso, hálito. Solidez e autonomia em excesso a competir com a pulsação sempre por se formar da escrita.

Pensou então em defender idéias, em vez de proporcionar a ficção. Idéias sobre a ficção. Impressionada com o mundo de Kenzaburo Oe, que descobrira há pouco, pensou em iniciar assim:

"Kenzaburo Oe, escritor japonês, prêmio Nobel de Literatura, criou com a personagem Jin uma das figuras impressionantes com que a ficção é capaz de cortar a pele que envolve a nossa compreensão do mundo. E nesse ato de cortar, a ficção cria e modifica as entranhas úmidas que alimentam e oxigenam a pele cortada. Em um primeiro momento, a visão das vísceras esparramadas nos ameaça de morte, de ausência de significado, e nos revela uma verdade. Às vezes simples: somos feitos de pele, osso, intestino e história; outras vezes tão ameaçadora que conseguimos enxergar e sentir, mas não entender.

Diferente do corpo animal, que morreria se as coisas não voltassem a seu lugar, o mundo cortado se refaz em nova forma. Outra pele recobre o interior exposto e voltam a ser forma, mas com protuberâncias e vãos que não existiam antes. Por um tempo coexistem em nossa lembrança o antigo e o novo ser, e o contraste contamina nossa inteligência, torna nosso olhar mais aguçado, sensível e comovido. Esquecido o antigo, o novo transforma-se em mundo como sempre foi.

A personagem Jin, do romance Um grito silencioso, cria e modifica o que sempre esteve lá, alimentando a forma de mundo.

Jin é a caseira de uma propriedade rural esquecida por seus donos. Após anos de ausência, os dois últimos herdeiros, os irmãos Taka e Mitsu, retornam à casa e encontram uma Jin obesa. É considerada a mulher mais gorda do Japão. Os filhos e o marido se desdobram para alimentá-la. Ela não pode sentir fome, tem acessos. Não consegue mais se locomover, seus olhos são luzes negras afundadas na pele lisa e esticada de um rosto jovem. É uma pessoa desgraçada. Não pode fazer mais nada na vida a não ser comer. O vale está cada dia mais pobre. O novo supermercado de um coreano levou à falência os comerciantes locais, todos os habitantes, de uma maneira ou de outra, passam a depender do Imperador, o coreano.

Taka, ao mesmo tempo em que vende a propriedade familiar ao Imperador, começa a treinar jovens do vale, inspirando-os no louvor à virilidade e à violência, e no amor pela tragédia. A primeira ação pública do grupo é abrir o supermercado ao saque da população, todos são incitados a ir pegar sua parte no butim.

Mitsu, o narrador, homem deprimido que luta para permanecer alheio ao vale e às ações do irmão, conversa com Jin. Ela fala: 'Fico feliz que todo mundo no povoado esteja igualmente desgraçado'. À sua volta pilhas de comida enlatada. 'Você sabe, Mitsusaburo — disse —, graças ao tumulto de Takashi, pela primeira vez tenho mais comida do que posso comer. É tudo enlatado, mas há mais do que sou capaz de enfrentar, de verdade! Se ao menos pudesse engolir tudo de uma vez, jamais teria que comer de novo. Ficaria magra como antigamente, depois enfraqueceria aos poucos até morrer.'

Lembrei-me das pessoas que hoje têm o que comer porque são pobres. Um alimento que não vem do trabalho, porque trabalho não há, que não vem da sua terra, pois que você não tem ou nunca teve terra, ou a terra que tem não produz, uma comida que vem porque você é pobre, porque você é doente, porque a história e a terra secaram para o seu lado. Então você precisa ser pobre para ter direito à comida. E quando eu comer, e comer e comer, e todos formos igualmente desgraçados, obesos a ponto de não conseguirmos nos locomover, então, saciada, eu poderei novamente emagrecer e morrer. Quando viver torna-se o sentido da vida."

B. teria que reescrever, assim não chegaria a lugar algum. Quando eu comer! Quando eu morrer! Maldita primeira pessoa, maldito e pesado eu a devorar sua tentativa de prosa impessoal. B. tinha esta dificuldade, o sentido só se completava se o eu tomasse a si a responsabilidade. A ausência do eu subtraía a verdade e atribuía ao narrador impessoal uma superioridade tola e um conhecimento oco. Frases de objetos sem sujeito, frases vagabundas, cadelas sem dono. O eu, porém, era uma cara gordo com botinas sujas, sua pisada faz barulho e enlameia o caminho por onde passa.

Quando B. contou a história de Oe para um escritor e antropólogo angolano, disse que pensava em falar sobre isso na primeira vez em que era chamada a se expor em público como escritora; quando contou a ele, estavam já no final de um farto jantar brasileiro, regado a bom vinho português. Antes do jantar, B. já havia comentado sua dúvida sobre o que falar nesta ocasião, e ele respondeu que nada importava o que falasse, pois, nesses eventos, o que conta é apenas a pessoa, o fetiche do autor, e não as palavras. Ele é um angolano branco que lutou na guerra de libertação de Angola. Em geral, disse, quando comparece de corpo presente, sua cor torna os ouvidos dos brasileiros moucos às suas palavras. Portanto, que falasse qualquer coisa, a platéia já estaria ou comovida ou surda antes de sua leitura, e assim permaneceria. Mas, no final do jantar, quando ela contou de sua idéia sobre o texto de Oe, ele, com o olhar entre severo e irônico, perguntou: "Você já passou fome?". E B., sabendo o destino daquilo, como um cordeiro educado (ela era a anfitriã), entregou seu pescoço e respondeu: "Não, nunca passei fome". Com um suspiro enfático, o escritor disse: "Ah! Pois eu já". Ele tinha a pele errada, mas pior ainda B., com a vida errada.

Ela então pensou que melhor seria ler um conto, tal como haviam pedido. Lembrou-se de Coetzee, escritor sul-africano, e sua personagem Elizabeth Costello. Chamado a dar uma palestra, ele lê um conto sobre uma escritora australiana chamada a dar uma palestra. Costello fala sobre o holocausto que significa a morte diária de animais para nos alimentar. Fala ainda do macaco do conto de Kafka, treinado por humanos e dando palestras em uma universidade. Na ficção, pensou B., há uma cápsula de vida, de uma vida própria, é um ser que não depende mais de nós, os autores. Sim, agora via com clareza, esse era o ponto que a paralisava. Se o bom conto, ou romance, é o ser fora de nós, um ser vivo no mundo, que sentido faria reapropriar-me dele com a minha voz, ser eu a tirar-lhe do estado de cristal, em que toda escrita morre temporariamente, e soprar-lhe a vida da leitura? Não era vergonha, isso também havia, porém ela se esforçava para separar suas dificuldades, a palavra certa é pudor. Pudor de misturar-se com seus narradores e personagens, de dar-lhes um rosto e uma voz que nunca foram deles. Pudor de criar uma pessoa, desejo de embalar-se cozida e compacta em uma pele de salsicha. Na verdade, pensou já longe da mesa onde o carneiro fora sacrificado, na verdade, o medo era de criar a pessoa da autora, pois sabia que sobre esta, diferente do que acontecia com seus personagens, não teria qualquer controle.

Escreveu um conto em terceira pessoa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2007
  • Data do Fascículo
    Jul 2007
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