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Tropical, de Anita Malfatti: reorientando uma velha questão

Resumos

A partir da análise de Tropical, tela pintada por Anita Malfatti em 1917, este artigo propõe que a artista procedia a uma mudança em sua linguagem pictórica, afastando-se das concepções de vanguarda que adotara até então para, aderindo ao clima de retorno à ordem internacional, aproximar-se das discussões sobre o nacionalismo na arte, presentes na cena paulistana. Assim, a imagem de mulher insegura que mudou sua perspectiva por causa da crítica de Monteiro Lobato adquire outra conotação. Os modernistas teriam preferido essa interpretação a efetuar uma análise da obra de Anita Malfatti, por meio da qual se poderia desvelar uma deserção do programa vanguardista feita de forma consciente pela artista.

Anita Malfatti; modernismo; modernismo na arte; retorno à ordem no Brasil; Monteiro Lobato


Looking back at the issue of a lecture given at Pinacoteca do Estado (São Paulo, Brazil) in 2003, this article, based on the analysis of Tropical, canvas painted by Anita Malfatti in 1917, proposes that the artist, contrary to what has traditionally been stated, was undergoing a change in her pictorial language, distancing herself from the vanguard conceptions she had been embracing up to that date. In so doing, she would align with the international trend of the Rappel à l'ordre and approach the discussions on nationalism in art, present in the art millieu of São Paulo city. Thus, the image of an insecure woman who changed her perspective because of the famous review by Monteiro Lobato, acquires another connotation. Modernists would have preferred, and reiterated, this interpretation instead of making an analysis of Anita Malfatti's work per se, through which a volunteer desertion from the vanguard program could be unveiled.

Anita Malfatti; modernism; modernism in art; rappel à l'ordre; Monteiro Lobato


ARTIGOS

Tropical, de Anita Malfatti: reorientando uma velha questão1 [1 ] Este texto serviu de base para uma palestra sobre a obra Tropical, de Anita Malfatti, proferida na Pinacoteca do Estado, em agosto de 2003.

Tadeu Chiarelli

Professor na Escola de Comunicações e Artes da USP

RESUMO

A partir da análise de Tropical, tela pintada por Anita Malfatti em 1917, este artigo propõe que a artista procedia a uma mudança em sua linguagem pictórica, afastando-se das concepções de vanguarda que adotara até então para, aderindo ao clima de retorno à ordem internacional, aproximar-se das discussões sobre o nacionalismo na arte, presentes na cena paulistana. Assim, a imagem de mulher insegura que mudou sua perspectiva por causa da crítica de Monteiro Lobato adquire outra conotação. Os modernistas teriam preferido essa interpretação a efetuar uma análise da obra de Anita Malfatti, por meio da qual se poderia desvelar uma deserção do programa vanguardista feita de forma consciente pela artista.

Palavras-chave: Anita Malfatti; modernismo; modernismo na arte; retorno à ordem no Brasil; Monteiro Lobato.

ABSTRACT

Looking back at the issue of a lecture given at Pinacoteca do Estado (São Paulo, Brazil) in 2003, this article, based on the analysis of Tropical, canvas painted by Anita Malfatti in 1917, proposes that the artist, contrary to what has traditionally been stated, was undergoing a change in her pictorial language, distancing herself from the vanguard conceptions she had been embracing up to that date. In so doing, she would align with the international trend of the Rappel à l'ordre and approach the discussions on nationalism in art, present in the art millieu of São Paulo city. Thus, the image of an insecure woman who changed her perspective because of the famous review by Monteiro Lobato, acquires another connotation. Modernists would have preferred, and reiterated, this interpretation instead of making an analysis of Anita Malfatti's work per se, through which a volunteer desertion from the vanguard program could be unveiled.

Keywords: Anita Malfatti; modernism; modernism in art; rappel à l'ordre; Monteiro Lobato.

A tela Tropical, pertencente à coleção da Pinacoteca do Estado, faz parte de uma série de obras pouco conhecidas de Anita Malfatti, apresentada pela artista na exposição por ela protagonizada, em dezembro de 1917, mostra em que a artista exibiu, ao lado de telas pintadas naquele ano no Brasil, outros trabalhos produzidos em seu estágio, em Nova York. Além de Tropical, ao que se sabe, teria sobrevivido apenas o pastel intitulado Índia, daquele mesmo ano, pertencente à coleção Gilberto Chateaubriand/MAM-RJ. Hoje desaparecidas, da série também faziam parte A palmeira; Rancho de sapé; Capanga e Caboclinha. Segundo a principal estudiosa da obra da artista, Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti produziu essas telas antes daquela mostra, porque já estava sensível ao debate sobre o nacionalismo na arte — a grande questão em pauta no circuito artístico paulistano, naquele período2 [2 ] Batista, Marta T. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: IBM do Brasil, 1985, p. 61. .

De fato, Malfatti, em meados de 1917, não estava apenas atenta ao debate nacionalista, como resolvera, de maneira efetiva, dele participar. Como exemplo desse engajamento, ela, naquele mesmo ano, envolveu-se num concurso cujo objetivo era fazer com que os artistas brasileiros caracterizassem a imagem do saci, na pintura e na escultura. Figura mítica da cultura popular brasileira, o saci até então estava ausente na produção visual local. Esse concurso foi organizado por Monteiro Lobato, então o principal crítico de arte da cidade, por meio do jornal O Estado de S. Paulo.

Malfatti foi uma das raras brasileiras a enviar um trabalho para o certame. A maioria dos participantes era composta por artistas de outros países emigrados para o Brasil. Para a ocasião, a pintora mandou uma obra hoje desaparecida. Sabemos como ela se configurava pela descrição que Monteiro Lobato faz da obra, em artigo publicado na Revista do Brasil:

[...] Nacionais compareceram em pintura apenas dois trabalhos, uma aquarela ligeira do sr. Celso Mendes, bando de cavalos que o Saci dispersa à noite, e o Saci do Paraná do sr. Joab de Castro, que é uma criança e pertence ao número de "curiosos". A sra. Malfatti também deu sua contribuição em ismo. Um viandante e o seu cavalo, em pacato jornadear por uma estrada vermelha degringolam-se numa crise de terror ao deparar-se-lhes pendente duma vara de bambu uma coisa do outro mundo. Degringola-se o cavaleiro, degringola-se o cavalo tentando arrancar-se do pescoço, o qual estira-se longo como feito da melhor borracha do Pará. Gênero degringolismo. Como todos os quadros do gênero ismo, cubismo, futurismo, impressionismo, marinetismo, está hors concours.

Não cabe à crítica falar dele porque o não entende: a crítica neste pormenor corre parelha com o público que também não entende. É de crer que os artistas autores entendam-nos tanto como a crítica e o público. Em meio deste não entendimento geral é de bom aviso tirar o chapéu e passar adiante...3 [3 ] Lobato, Monteiro. "A Exposição do Saci". Revista do Brasil, ano 2 6(23),São Paulo, nov. 1917, pp.403-413, apud Batista, op. cit., p. 64.

Por essa descrição, a artista produzira uma obra alinhada à proposição do concurso. No entanto, se do ponto de vista do tema Malfatti parecia adequada às necessidades do certame, do ponto de vista da fatura, ela, pelas considerações do crítico, parecia muito distante.

Narrado este fato — que confirma o interesse de Malfatti em intervir no debate nacionalista, antes da mostra de dezembro de 1917 —, creio que seria oportuno voltar a Tropical.

Em primeiro lugar, não podemos esquecer que o título primitivo dessa obra era Negra baiana, fato que conecta a pintura a um gosto de cunho naturalista — como Caboclinha, ou Índia —, ao contrário de Tropical, que lhe confere um caráter mais "nobre", menos circunstancial, investindo-a de uma característica alegórica que, por sua vez, a retira de uma filiação de caráter naturalista — uma herança incômoda de se manter, sobretudo após sua autora ter sido entronizada como a mártir do modernismo paulistano.

Se ficarmos temporariamente com o título Negra baiana será visto que a pintora sustenta um alinhamento com a estética naturalista. Afinal, a mulher ali retratada não foi apenas um pretexto para a realização da pintura. Diferente da Mulher de cabelos verdes, também de Malfatti, pintada em Nova York, Negra baiana recebeu esse título porque a artista queria enfatizar, na mulher retratada, uma raça específica — a negra —, e um determinado local de nascimento —, um estado brasileiro, a Bahia. Ao contrário, a pintura Mulher de cabelos verdes recebeu esse título não pelo fato de a figura retratada usar cabelos verdes (dado bastante improvável), mas porque, dentro da economia do quadro, a área verde, correspondente ao cabelo da figura, cria uma tensão com o vermelho presente em uma linha na base da pintura, que representa um elemento da cadeira em que a figura está sentada. Usar uma área verde em contraposição a uma área vermelha (cores complementares), obedece a uma exigência formal, interna à obra, e não a uma descrição do tema proposto.

Em Negra baiana, ao invés de tratar de questões intrínsecas à linguagem — como fazia em suas obras norte-americanas —, Malfatti operava questões extrínsecas à pintura, utilizando-se dela para emitir valores de nacionalidade. O título Negra baiana, ao investir nos aspectos raciais e regionais da figura, estava endereçado a intervir no debate sobre o nacionalismo na arte brasileira e, para tanto, valia-se do caráter descritivo de uma cultura visual de cunho naturalista. Essa posição da artista, no entanto, não logrou nenhum reconhecimento imediato junto aos críticos, mesmo estando eles impregnados pelo debate nacionalista da época (do qual se sobressaía Monteiro Lobato).

Mas esse ajustar-se ao debate nacionalista/naturalista, visível no título da obra, teria correspondência na composição da pintura?

Dentre os textos que seriam escritos sobre a exposição de dezembro de 1917, houve um, pouco mencionado, que a certa altura trata exatamente dessa obra, atentando para um aspecto que havia passado despercebido por Lobato em sua famosa crítica sobre a mesma exposição. Publicado na Revista do Brasil, o artigo era assinado por N, inicial usada pelo jornalista Nestor Pestana. Após alinhar uma série de defeitos da pintura "futurista" — era dessa maneira que ele se referia à obra —, Pestana assim se pronuncia:

A senhorita Malfatti aceitou as franquias dessa pseudo-escola para fazer sua Negra baiana, que é para nós, pobres mortais, um caso teratológico em anatomia. Mas, ao lado dela, pôs uns abacaxis tão bem desenhados e tão acabadinhos que fariam as delícias de um botânico(...)

Onde está a escola, o método, o sistema? 4 [4 ] N. [Nestor Pestana]. "Exposição Malfatti". Revista do Brasil, nº 25, São Paulo, jan. 1918, p. 83.

O crítico percebe na obra certa contradição no tratamento das partes. Na figura de mulher, a artista teria seguido as regras "futuristas" ou da "teratologia". Já na natureza-morta, valeu-se de procedimentos naturalistas que agradariam muito a um botânico.

Existe, de fato, uma diferença no tratamento da figura e das frutas. O detalhamento dessas últimas, quando comparadas ao caráter excessivamente sintético da figura, causa certo desconforto em quem observa a pintura. Porém, é preciso salientar um dado: embora a diferença de tratamento exista, o modo como a figura da mulher foi resolvida também não está adequado à maneira como Malfatti resolvia plasticamente as figuras em suas pinturas anteriores. Se compararmos Negra baiana com A boba, por exemplo, veremos que na segunda os elementos descritivos do rosto são apenas delineados em negro e funcionam quase como "valores cromáticos", disputando a cena, por assim dizer, com os vermelhos e amarelos que predominam no rosto da figura. Já em Negra baiana, a necessidade de descrever a etnia da retratada parece que leva a artista a refrear seu ímpeto expressivo, muito embora ela não o troque por uma execução de cunho francamente naturalista. Na figura da mulher, pautada num tipo de realismo sintético, Malfatti já parece uma artista diferente daquela que, não fazia muito tempo, atuara com ímpeto vanguardista.

Levando-se em conta as duas remanescentes de sua série de obras nacionalistas, Negra baiana e Índia, pode-se dizer que nelas Malfatti não propriamente refreia ou atenua seu modo expressivo-cubo-futurista de pintar: ela muda de procedimento. O que não significa, no entanto, que Malfatti tenha se tornado uma pintora naturalista a partir dali. Ela apenas nunca mais estará diretamente alinhada às pesquisas plásticas ligadas às vanguardas. Para resolver plasticamente sua negra baiana Malfatti exercita um realismo que busca representar a figura da maneira mais econômica sem, no entanto, perder seu objetivo primordial, que seria trazer para a tela a imagem de uma mulher específica: negra e "baiana". A artista consegue esse feito, constituindo uma figura que fica num lugar muito próprio, entre o naturalismo mais minucioso das frutas do primeiro plano da tela em estudo e as nervosas sínteses de suas figuras pintadas em Nova York.

Aquela figura, embora descreva sua raça com traços característicos, está tratada dentro de uma busca de síntese, tendente, é preciso frisar, à transcendência do indivíduo, para buscar nele o tipo ou o protótipo. Neste sentido é que poderíamos entender por que a obra não se chamou "Uma" negra baiana e sim Negra baiana. Afinal, não se tratava ali do retrato de uma pessoa determinada, mas de um tipo racial, um tipo de mulher de uma raça precisa. Daí também porque foi possível usar nela um tratamento realista mais sintético, muito próximo a uma visualidade "primitiva", em contraste com o caráter mais meticuloso do tratamento das frutas.

E talvez seja esse mesmo fato que tenha tornado possível, mais tarde, a obra mudar seu nome para Tropical. Afinal, desde o início aquela figura de mulher era abstrata o suficiente enquanto tipo para ser alinhada a uma idéia mais abrangente de região. Ela não precisava manter-se ligada a um estado de um país do Hemisfério Sul, mas poderia passar a simbolizar toda uma parte do planeta, repleta de sensual altivez, uma sensualidade que se desdobra em frutos. Esse caráter prototípico bastante impregnado na figura dessa mulher ganharia certa radicalização em Índia. Nessa obra, para que tal caráter se tornasse ainda mais potente, a artista imprimiu na figura da mulher um caráter hierático. Ela também descreve um tipo. As cores usadas por Malfatti para representar o cabelo e a pele da figura (assim como a vegetação) possuem relação direta com o real. No entanto, ali a figura está representada toda contornada pela linha suave, definindo não uma índia, mas a índia.

Se um dia fossem encontradas as outras obras que formam a série de trabalhos nacionalistas de Anita Malfatti, seria possível estipularmos com maior rigor os elementos perceptíveis nessas duas peças aqui comentadas. Com mais obras poderíamos investigar se a artista oscilou nas outras pinturas entre o realismo mais sintético e o naturalismo, ou se o hieratismo percebido em Índia era a tônica da maioria das outras obras que compunham a série.

De qualquer maneira, mesmo restringindo os comentários às duas pinturas, o que não se deve esquecer é que Anita Malfatti, na exposição que protagonizou em dezembro de 1917, teria apresentado todas as obras dessa série, ao lado daquelas produzidas em Nova York.

E o que isso significa?

Se compararmos Tropical e Índia a qualquer obra da fase nova-iorquina de Malfatti, perceberemos que as primeiras denunciam um recuo em relação às investigações formais que a artista desenvolveu em seu estágio norte-americano. Em Tropical e em Índia a necessidade de dar conta de problemas extraplásticos (as questões racial e cultural) obrigou Malfatti a refrear seu ímpeto expressivo cubo-futurista. Fez com que ela recuasse de seu experimentalismo e buscasse criar uma mescla possível entre certas soluções formais conseguidas junto aos movimentos de vanguarda e a tradição pictórica anterior a eles.

Tal constatação faz emergir duas questões importantes que nos obrigarão a estabelecer um embate com a história do modernismo paulistano.

A primeira diz respeito à crença que se estabeleceu dentro da história do modernismo de São Paulo de que teria sido somente após a exposição de dezembro de 1917 — e após a crítica que Monteiro Lobato publicou sobre esta —, que Anita Malfatti teria recuado frente à sua produção mais experimental. O fato de Lobato não ter dado a devida atenção para as obras que a artista produzira logo após sua volta dos Estados Unidos não significa que elas tivessem sido produzidas posteriormente ao artigo citado. Elas estavam lá na exposição de dezembro de 1917, denunciando que Malfatti já se desviava do caráter que sua pintura vinha ensaiando assumir em Nova York. É possível até que o texto de Lobato tenha levado Malfatti a aprofundar esse seu redirecionamento artístico e estético rumo à tradição anterior à eclosão das vanguardas históricas. No entanto, não teria sido o crítico o causador do desvio de rota. Como mencionado, a artista tornou-se atenta ao debate artístico paulistano assim que chegou de seu estágio norte-americano. A pauta do nacional na arte a sensibilizou e Malfatti dela quis tomar parte, criando estratégias para que tal desejo se concretizasse.

No entanto, caberia perguntar: será que Anita Malfatti começou a mudar o endereçamento de sua poética devido apenas à pregação nacionalista que consistia a tônica principal da crítica de arte da cidade? Será que ela se deixou influenciar pelo debate local, aparentemente desconectado com tudo o que se fazia internacionalmente?

Certa vez, a pesquisadora Marta Rossetti Batista afirmou que, quando pesquisou o que teria ocorrido com os artistas norte-americanos que estudaram com Anita Malfatti em Nova York, descobriu que todos haviam se tornado artistas da "cena americana"5 [5 ] Esta expressão designa os artistas regionalistas norte-americanos que atuaram entre os anos de 1920 até os anos de 1940 registrando sobretudo o interior dos Estados Unidos, dentro de um viés realista. Dentro deste grupo sobressaem os nomes de Grant Wood, John Sloan, Thomas Hart Benton, Edward Hopper e Reginald Marsh, entre outros (sobre o assunto consultar, entre outros: Heller, Nancy e Williams, Julia. Painters of the american scene. New York: Galahad Books, 1982). . O que significa que eles teriam abandonado as pesquisas alinhadas às vanguardas do início do século XX para — assumindo procedimentos ligados ao realismo ou ao naturalismo —, pintarem a paisagem humana do país6 [6 ] Esta informação foi transmitida na disciplina "As artes plásticas em São Paulo", ministrada por Marta R. Batista junto ao Departamento de Pós-Graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, no primeiro semestre de 1982. . Num primeiro momento, então, poderia ser dito que o que teria ocorrido com Anita Malfatti — que abandonou o experimentalismo das vanguardas, redirecionando suas obras para uma vertente mais realista — também teria ocorrido com seus colegas norte-americanos. Com tal constatação em mente, é possível dizer, então, que a atitude da artista poderia não ter sido tomada apenas pela situação nacionalista que encontrou em São Paulo. Afinal, seus colegas dos Estados Unidos, vivenciando outras experiências estético-ideológicas, também teriam abandonado suas práticas experimentais vanguardistas, rumo a uma produção mais conectada com a tradição realista.

Daí a pergunta: será que Anita, quando chega ao Brasil, vinda de Nova York, já não estaria redimensionando sua produção rumo a uma estética que revia as radicalizações das vertentes de vanguarda, colocando como contraponto uma preocupação maior com o realismo?

Pode ser até que a situação nacionalista que encontrou em São Paulo a tenha auxiliado nessa reorientação, mas nada impede que levantemos a hipótese de que Malfatti, nesse processo de redirecionamento, poderia estar seguindo uma tendência ditada não propriamente — ou não apenas — pela situação local, mas também pelo momento pelo qual passava arte internacional.

Nas últimas décadas alguns estudos tentam dar conta de uma situação que ainda não foi devidamente absorvida pela historiografia artística brasileira. Refiro-me aos dados que chamam a atenção para o fato de que, já a partir do início da Primeira Grande Guerra, começaria a se esboçar no cenário artístico internacional um processo de recuo, contrário à radicalização dos experimentos das vanguardas, e que mais tarde foi reconhecido como retorno à ordem.7 [7 ] Sobre o assunto ler, entre outros: Silver, Kenneth E. Esprit de corps: the art of the parisian avant-garde and the first world war, 1914-1925. Princeton: Princeton University Press, 1989. Segundo alguns historiadores, teria sido no âmbito da Primeira Grande Guerra que alguns artistas, até então identificados com os movimentos das vanguardas históricas, começaram a rever suas posturas, introduzindo em suas práticas soluções não mais devedoras da inquietação experimental que as havia, até então, caracterizado8 [8 ] Aqui poderiam ser lembrados artistas como Pablo Picasso, Mario Sironi, André Derain, Ardengo Sofficci e outros. . Muitos deles, aos poucos, começaram a considerar a possibilidade de rever a tradição pictórica contra a qual se rebelavam, fazendo emergir em suas produções índices evidentes de um retorno a uma prática artística em que de novo passavam a contar posicionamentos e procedimentos que haviam sido repelidos pelas vanguardas históricas.

Seria possível estabelecer uma listagem dos principais itens recuperados pelos artistas até então ligados às vanguardas. Encabeçaria essa lista a necessidade de recuperação da tradição do fazer pictórico artesanal (que havia sido relegado a segundo plano, devido às novas orientações assumidas pela maioria dos movimentos de vanguarda). Depois de alguns anos de experimentalismo, recomeçava a despertar interesse o "bem fazer", o "bem acabado", o apuro artesanal, a arte como ofício.

Em paralelo a esse novo cuidado com os aspectos artesanais da obra, houve também uma necessidade de restabelecimento de uma pintura comprometida com uma figuração reconhecível. Dentro desse contexto podemos encontrar artistas que, embora nascidos profissionalmente no interior dos movimentos de vanguarda, vão recuperar tradições realistas as mais diversas, desde aquela de teor francamente naturalista, até aquela ligada a um realismo sintético, com poucas concessões à descrição. Além dessas características, também chamaria a atenção o fato de muitos desses artistas que processavam o retorno à ordem voltarem a dar especial atenção à recuperação e à ampliação das culturas visuais de seus respectivos países.9 [9 ] Aqui poderiam ser lembrados tanto os pintores da "cena americana", que revalorizavam o realismo do país, como os muralistas mexicanos, ou os artistas do Novecento italiano, que valorizavam a cultura visual da Itália, e outros.

É o momento em que se percebe — no antigo território das vanguardas históricas, tão cosmopolitas e internacionalistas — o interesse de revigorar as tradições nacionais, em trazer para o âmbito da arte então produzida índices inequívocos das "escolas" locais. Isso significa que passava a ser importante, por exemplo, para o artista francês, que sua pintura fosse imediatamente alinhada a uma "arte francesa", o artista italiano a uma "arte italiana", e assim por diante.

Levando-se em conta o fenômeno do retorno à ordem, se voltarmos à análise da obra de Anita Malfatti é possível perceber agora que a artista, portanto, não estava sozinha no redirecionamento estético que produz em sua trajetória. Quando apresenta Negra baiana ao público, e os demais trabalhos da série, ela talvez não tivesse interessada em abrandar ou atenuar o ímpeto de suas obras anteriores apenas com o intuito de agradar a esse ou aquele grupo local. Quem sabe estivesse querendo chamar a atenção para a possibilidade de uma produção conectada com a constituição ou valorização de uma cultura visual típica do país, a partir de procedimentos estéticos vinculados nem ao naturalismo, que até então caracterizara a melhor pintura nacionalista brasileira (os paisagistas e a fase "caipira" de Almeida Jr.), e nem às experimentações vanguardistas, que caracterizaram sua produção nova-iorquina.

Em Nova York, no período em que Malfatti ali permaneceu, o debate artístico não estava apenas vinculado ao experimentalismo. Dentro daquele contexto, as idéias ligadas à superação das vanguardas rumo a uma arte mais comprometida com o real ampliavam a complexidade do debate artístico ali travado. Neste sentido, a opção de Malfatti por mudar sua produção rumo à aproximação de um realismo de viés sintético — não de todo surdo a certas soluções ligadas às vanguardas, mas positivamente alinhado a uma possibilidade de leitura mais fácil por parte do grande público — pode ter sido uma opção para responder também, e em primeiro lugar, ao debate internacional, e não apenas à discussão nacionalista que encontrou em São Paulo.

Os trabalhos que realizou aqui, logo que chegou de Nova York, comprometidos com uma temática nativa, poderiam responder — e de uma maneira mais atualizada do que então se supunha — a uma exigência da cena internacional e não apenas local. Como foi mencionado, valorizar as culturas visuais locais passava, na época, a ser uma demanda encontrada em círculos muito seletos de artistas internacionais até então vinculados aos movimentos de vanguardas.

O que ocorreu no Brasil — com conseqüências que fogem ao assunto deste artigo — foi que, pelas circunstâncias do debate artístico que vinha desde o século XIX, essa demanda internacional se fundiu com as demandas naturalistas/nacionalistas do debate local. E será desse cruzamento de necessidades que surgirá o modernismo de São Paulo. Quando se optou por uma arte que não rompia com a figuração e que valorizava o artesanal e os temas nativos, realizava-se uma espécie de síntese entre as demandas do debate local com aquilo que de supostamente mais atual surgia no debate internacional.

Voltando a Malfatti, se for levada em consideração a possibilidade de percebê-la não como uma mulher insegura e desamparada, como a historiografia oficial a percebe, mas como uma artista profissional e atenta às demandas do campo artístico local e internacional, será visto que, mesmo sua "capitulação" em 1918 — quando foi estudar com o tradicional Pedro Alexandrino — pode ter tido uma outra razão. Até o presente, sempre se entendeu essa aproximação de Malfatti com Alexandrino como a total submissão da artista às imposições do meio artístico acanhado de São Paulo, que tinha naquele pintor o guardião da grande tradição pictórica na cidade. Porém, se levarmos em conta aquela outra demanda que então surgia na cena artística internacional, nada mais compreensível que Malfatti fosse buscar, naquele que em São Paulo era o maior executante da pintura convencional — justamente Pedro Alexandrino —, os instrumentos para que o seu particular retorno à ordem ganhasse um reconhecido lastro artesanal.

Um dado interessante é que se continua a estudar Anita Malfatti na parte introdutória de sua obra — 1914-1918 —, quando sua produção prolonga-se até sua morte, no início dos anos 1960. Se for levado em consideração todo o caminho percorrido pela artista será percebido que, mesmo tendo, de alguma maneira, perdido o vigor e a sofisticação de seus primeiros anos de produção — aqui se inclui grande parte de suas pinturas dos anos 1920 e 1930 —, Malfatti foi coerente com seu processo de retorno à ordem, sempre conectado com as trajetórias dos artistas que, em outras partes do mundo, também abandonaram suas experiências iniciais junto às vanguardas, rumo a uma produção mais comprometida com a representação do mundo.

O que explica essa pouca atenção dada à trajetória global da artista talvez não seja apenas a paulatina perda de qualidade sofrida por suas produções. Tão importante quanto essa constatação talvez seja o papel que Malfatti assumiu na constituição idealizada da história do modernismo paulistano. A artista e sua produção inicial sofreram um processo de instrumentalização por parte dos principais historiadores daquele movimento — Mário de Andrade e outros modernistas históricos — que não quiseram se deter, com efetivo interesse de compreensão, sobre o redirecionamento que a própria Malfatti impôs à sua trajetória10 [10 ] Pode causar estranheza perceber que Mário de Andrade — um crítico comprometido com a questão do retorno à ordem no Brasil — não tenha dado atenção ao trabalho de Malfatti quando ela mergulha no clima do retorno à ordem, também professado pelo crítico. A explicação para esse aparente paradoxo talvez esteja no fato de que, para Andrade, a manutenção de uma visualidade comprometida com a figuração deveria estar aliada a uma temática de cunho "brasílico". Como Malfatti, no decorrer de sua produção, não abraçou esse segundo quesito, o crítico não se sentiu comprometido em apoiá-la (sobre as relações entre Mário de Andrade e o retorno à ordem consultar Chiarelli, Tadeu. Pintura não é só beleza. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007). . É de se acreditar que para aqueles que, desde o início, se esforçavam para construir uma história ascendente e triunfalista do modernismo paulistano não podia interessar deparar-se com a necessidade de tentar entender as razões que levaram uma das primeiras artistas locais a se dedicar aos experimentalismos vanguardistas a abandonar tal encaminhamento para abraçar a tradição. Talvez acreditassem que aprofundar tal problema — salientando que a decisão por esse novo encaminhamento teria sido responsabilidade da própria artista —, poderia macular a história ideal do modernismo. Afinal, como dar credibilidade a um movimento estético-ideológico cuja primeira grande artista abandona seus postulados para começar a abraçar aqueles que, teoricamente, deveriam ter sido superados?

A estratégia usada pelos modernistas para tirar a atenção sobre os reais motivos da artista para o desvio que colocou para sua própria obra é do conhecimento de todos. Em vez de se deterem nas razões da artista para tal reorientação, optaram por deslocar a atenção da obra para a crítica feita a ela. Assim, evitaram atentar para as razões intrínsecas à trajetória de Malfatti — que talvez explicassem com mais rapidez o seu processo de revisão —, e passaram a chamar a atenção para o teor da crítica escrita por Monteiro Lobato sobre a exposição protagonizada pela pintora, em dezembro de 1917. Procedendo dessa maneira, toda a responsabilidade pelos novos rumos dados por Anita Malfatti à sua obra foi imputada a alguém que estava completamente fora do movimento.

Apelando para uma argumentação desrespeitosa para com a artista — na época uma mulher que buscava a profissionalização e com experiência no exterior (o que não seria pouca coisa para uma mulher brasileira, com defeito congênito, na segunda década do século passado) —, transformaram essa profissional numa mulher apenas insegura, capaz de colocar entraves à sua própria produção a partir de uma crítica de jornal. Como se os índices precisos de sua reorientação não estivessem presentes na mostra que geraria a polêmica. Como se Negra baiana (ou Tropical) e outras pinturas da série não tivessem feito parte da referida exposição.

Se Lobato não as percebeu ou se não as considerou relevantes, também não as consideraram os críticos modernistas. Em vez de entenderem essas obras como uma tentativa concreta de reorganização da poética da artista, preferiram ignorá-las, optando por culpar Lobato por uma situação que já se configurava antes que o crítico publicasse seu artigo. Tal atitude, entre outros aspectos, chama a atenção para a importância que Monteiro Lobato, efetivamente, possuía no campo da arte paulistana do período. Era preciso destruí-lo enquanto crítico, desautorizando-o, para que o modernismo afirmasse uma vitória onde — em tese — havia uma derrota ou, pelo menos, uma deserção. Mais fácil foi transformar Malfatti em vítima e Lobato em algoz, colocá-los um contra o outro, embora — se atentarmos para as pinturas nacionalistas da artista —, ela buscasse uma participação enriquecedora no debate nacionalista capitaneado pelo crítico.11 [11 ] Como sabemos, apesar dessa disposição percebida em Anita Malfatti, Lobato nunca a reconheceu como alguém interessado em suas propostas nacionalistas. E a razão para isto talvez esteja no paulatino desencanto de Lobato em relação à sua pregação nacionalista no campo da arte após, justamente, o artigo que escreveu sobre Malfatti (Ver idem. Um Jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp, 1995).

Recebido para publicação em 20 de março de 2008.

  • [2] Batista, Marta T. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: IBM do Brasil, 1985, p. 61.
  • [3] Lobato, Monteiro. "A Exposição do Saci". Revista do Brasil, ano 2 6(23),São Paulo, nov. 1917, pp.403-413,
  • [4] N. [Nestor Pestana]. "Exposição Malfatti". Revista do Brasil, nş 25, São Paulo, jan. 1918, p. 83.
  • [7] Sobre o assunto ler, entre outros: Silver, Kenneth E. Esprit de corps: the art of the parisian avant-garde and the first world war, 1914-1925. Princeton: Princeton University Press, 1989.
  • [10] Pode causar estranheza perceber que Mário de Andrade um crítico comprometido com a questão do retorno à ordem no Brasil não tenha dado atenção ao trabalho de Malfatti quando ela mergulha no clima do retorno à ordem, também professado pelo crítico. A explicação para esse aparente paradoxo talvez esteja no fato de que, para Andrade, a manutenção de uma visualidade comprometida com a figuração deveria estar aliada a uma temática de cunho "brasílico". Como Malfatti, no decorrer de sua produção, não abraçou esse segundo quesito, o crítico não se sentiu comprometido em apoiá-la (sobre as relações entre Mário de Andrade e o retorno à ordem consultar Chiarelli, Tadeu. Pintura não é só beleza. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007).
  • [11] Como sabemos, apesar dessa disposição percebida em Anita Malfatti, Lobato nunca a reconheceu como alguém interessado em suas propostas nacionalistas. E a razão para isto talvez esteja no paulatino desencanto de Lobato em relação à sua pregação nacionalista no campo da arte após, justamente, o artigo que escreveu sobre Malfatti (Ver idem. Um Jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp, 1995).
  • [1
    ] Este texto serviu de base para uma palestra sobre a obra
    Tropical, de Anita Malfatti, proferida na Pinacoteca do Estado, em agosto de 2003.
  • [2
    ] Batista, Marta T.
    Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: IBM do Brasil, 1985, p. 61.
  • [3
    ] Lobato, Monteiro. "A Exposição do Saci".
    Revista do Brasil, ano 2 6(23),São Paulo, nov. 1917, pp.403-413, apud Batista, op. cit., p. 64.
  • [4
    ] N. [Nestor Pestana]. "Exposição Malfatti".
    Revista do Brasil, nº 25, São Paulo, jan. 1918, p. 83.
  • [5
    ] Esta expressão designa os artistas regionalistas norte-americanos que atuaram entre os anos de 1920 até os anos de 1940 registrando sobretudo o interior dos Estados Unidos, dentro de um viés realista. Dentro deste grupo sobressaem os nomes de Grant Wood, John Sloan, Thomas Hart Benton, Edward Hopper e Reginald Marsh, entre outros (sobre o assunto consultar, entre outros: Heller, Nancy e Williams, Julia.
    Painters of the american scene. New York: Galahad Books, 1982).
  • [6
    ] Esta informação foi transmitida na disciplina "As artes plásticas em São Paulo", ministrada por Marta R. Batista junto ao Departamento de Pós-Graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, no primeiro semestre de 1982.
  • [7
    ] Sobre o assunto ler, entre outros: Silver, Kenneth E.
    Esprit de corps: the art of the parisian avant-garde and the first world war, 1914-1925. Princeton: Princeton University Press, 1989.
  • [8
    ] Aqui poderiam ser lembrados artistas como Pablo Picasso, Mario Sironi, André Derain, Ardengo Sofficci e outros.
  • [9
    ] Aqui poderiam ser lembrados tanto os pintores da "cena americana", que revalorizavam o realismo do país, como os muralistas mexicanos, ou os artistas do
    Novecento italiano, que valorizavam a cultura visual da Itália, e outros.
  • [10
    ] Pode causar estranheza perceber que Mário de Andrade — um crítico comprometido com a questão do retorno à ordem no Brasil — não tenha dado atenção ao trabalho de Malfatti quando ela mergulha no clima do retorno à ordem, também professado pelo crítico. A explicação para esse aparente paradoxo talvez esteja no fato de que, para Andrade, a manutenção de uma visualidade comprometida com a figuração deveria estar aliada a uma temática de cunho "brasílico". Como Malfatti, no decorrer de sua produção, não abraçou esse segundo quesito, o crítico não se sentiu comprometido em apoiá-la (sobre as relações entre Mário de Andrade e o retorno à ordem consultar Chiarelli, Tadeu.
    Pintura não é só beleza. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007).
  • [11
    ] Como sabemos, apesar dessa disposição percebida em Anita Malfatti, Lobato nunca a reconheceu como alguém interessado em suas propostas nacionalistas. E a razão para isto talvez esteja no paulatino desencanto de Lobato em relação à sua pregação nacionalista no campo da arte após, justamente, o artigo que escreveu sobre Malfatti (Ver idem.
    Um Jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp, 1995).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Mar 2008

    Histórico

    • Aceito
      20 Mar 2008
    • Recebido
      20 Mar 2008
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