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NOTA INTRODUTÓRIA SOBRE SOCIEDADES COM ALVOS DIRECIONADOS: UMA BREVE HISTÓRIA DOS CORPOS ESQUEMÁTICOS* * Publicado originalmente em Jef Klak, maio de 2015. Publicado com permissão do autor.

PATTERNS OF LIFE: A VERY STORY OF SCHEMATIC BODIES

RESUMO

O objeto do poder não é aqui o indivíduo, tomado como elemento numa massa, nem o dividual, tomado como número numa base de dados, e sim outra coisa: individualidades-trajetórias tecidas de dividualidades estatísticas e recortadas numa trama de atividades em que elas se singularizam no tempo como unidades perceptíveis. A produção dessa forma de individualidade não se remete à disciplina, como também não ao controle e sim ao direcionamento de alvos em suas formas mais contemporâneas. Seja ele policial, militar ou comercial, tem sempre os mesmos traços formais. Uma hipótese provável é que, para além das sociedades de disciplina ou de controle, estejamos agora entrando em sociedades de direcionamento de alvos.

PALAVRAS-CHAVE:
disciplina; controle; cronogeografia

ABSTRACT

The corresponding object of power here is neither the individual taken as an element in a mass, nor the dividual appearing with a code in a databank, but something else: a patterned individuality that is woven out of statistical dividualities and cut out onto a thread of reticular activities, against which it progressively silhouettes in time as a distinctive perceptible unit in the eyes of the machine. The production of this form of individuality belongs neither to discipline nor to control, but to something else: to targeting in its most contemporary procedures, whose formal features are shared today among fields as diverse as policing, military reconnaissance and marketing. It might well be, for that matter, that we are entering targeted societies.

KEYWORDS:
discipline; control; time-space geography

I

Em “Théorie de la derive”, de 1956, Guy Debord comentou um mapa de Paris mostrando “o traçado de todos os percursos efetuados ao longo de um ano por uma estudante moradora do 16o arrondissement: os percursos formam um triângulo de dimensão reduzida, sem escapadas, e cujos três picos são a Escola de Ciências Políticas, a residência da jovem e a do seu professor de piano”1 1 Debord, Guy. “Théorie de la derive”. Les Lèvres nues, no 9, novembro de 1956. In: Internationale situationniste. Paris: Allia, 1985, p. 312. .


“Trajetos de uma jovem do 16o arrondissement, ao longo de um ano”, de Paul Henry Chombart de Lauwe, 19522 2 Chombart de Lauwe, Paul Henry. Paris et l’agglomération parisienne, v. 1. Paris: Presses Universitaires de France, 1952, p. 106. .

A objetivação cartográfica de uma forma de vida serviu ali como ponto de partida para uma crítica poética e política da vida cotidiana - crítica de sua estreiteza, de suas rotinas e da consequente redução do mundo experiencial. Debord concluía: “É bem provável que tais esquemas, exemplos de uma poesia moderna capaz de provocar fortes reações afetivas - nesse caso a indignação quanto a ser possível viver de tal maneira -, [...] sirvam aos progressos da deriva”3 3 Debord, op. cit. .

II

Alguns artistas criativos de São Francisco propõem atualmente joias bastante estranhas. São pequenos medalhões com formas geométricas, que mais parecem teias de aranha ou estruturas de cristais. Os temas, na verdade, são os trajetos de locomoção das pessoas. A Meshu - é o nome dessa pequena empresa de ourivesaria de novo gênero - parte dos dados de rastreamento coletados pelo smartphone do cliente para daí extrair um mapa esquematizado das suas peregrinações. É esse grafo, visualização de dados cronoespaciais, que serve de modelo para recortar, no metal ou na madeira, um penduricalho personalizado.

O histórico espacial dos seus trajetos se torna, desse modo, um sinal críptico que se pode exibir como adorno.É também um emblema pessoal, expressão de uma nova arte do retrato.


O mapa dos trajetos de uma pessoa em San Francisco, convertido pela Meshu em pingente4 4 Disponível em: http://thecre-atorsproject.vice. com/blog/turn-your-foursquare-check-in-data-into-jewelry. .

III

Enquanto objetos culturais, esses grafos podem remeter a um dos seus ancestrais: o retrato “em silhueta” do final do século XVIII. Com a invenção da “máquina segura e cômoda para fazer silhuetas”, de Johann Kaspar Lavater, o perfil em sombra chinesa proliferou como mania popular, uma verdadeira moda que veiculava códigos estéticos inéditos para a representação de si, mas também novos suportes para um saber antropológico que pretensamente decifrava os traços da personalidade a partir das linhas do rosto.


Um perfil-silhueta de Lavater5 5 Lavater, Johann Kaspar. L’art de connaitre les hommes par la physionomie. Patis: Prudhomme, 1806 (frontispício). .

O perfil cronoespacial compartilha com o antigo perfil skiagráfico - do grego “desenho da sombra” ou “escrita da sombra” - a mesma polivalência de usos. A diferença, evidentemente, é que o traçado se desloca do contorno morfológico do corpo para focar as linhas imaginárias dos seus movimentos. O perfil, nesse caso, deve ser entendido num sentido metafórico: ele não se aplica mais à forma estática do corpo e sim à sua forma dinâmica, à forma das suas trajetórias6 6 O que de forma alguma quer dizer que as lógicas de identificação biométricas se atenuem, cedendo vez a esse outro modo de representação — longe disso. . É esse tipo de corpo esquemático que compõe, no presente texto, meu tema de investigação.

IV

Desde o século XIX, os paleontólogos fazem uma esclarecedora distinção entre corpos fósseis e traços fósseis (“body fossils”/“trace fossils”). Nesse sentido, Alcide d’Orbigny escreveu, em 1849:

Falando de marcas impressas, de fôrmas, de contramarcas impressas, nos referimos apenas a traços orgânicos fósseis de partes sólidas de animais enterrados sob camadas, mas há também outros vestígios fósseis deixados pelo corpo, vivendo em sedimentos não consolidados e que remetem nem tanto às partes sólidas dos corpos, mas antes a seus hábitos vitais e fisiológicos.Referimo-nos a pegadas de animais,a sulcos, a caneluras,a excrescências deixados por órgãos de animais que andam ou nadam.7 7 D’Orbigny, Alcide. Cours élémentaire de paléontologie et de géologie stratigraphiques, v. i. Paris: Masson, 1849, p. 27.

Edward Hitchcock batizou esse tipo de fósseis “ichnitas”. Em alemão, são igualmente chamados Lebenspurren: traços de vida ou “vestígios fósseis de vida”.


Impressões fósseis descobertas em Gill, Massachusetts, no século XIX8 8 Estampa tirada de Hitchcock, Edward. Elementary geology. Nova York:Ivison and Phinney,1855,p.187. .

Enquanto a fôrma de um corpo morto, preso na argila, mostra o decalque de um sólido com seus volumes e texturas, uma série de impressões encontradas no solo fornece apenas uma listagem dos seus movimentos. Nesse segundo caso, a impressão não foi simultânea, e sim sucessiva. O traço de atividade é uma precipitação de acontecimentos sucessivos na simultaneidade de um espaço, com solidificação durável no plano de uma superfície de inscrição. É a imagem de uma duração espacializada.

V

Em 1790, Kant escreveu: “Toda forma de objetos de sentido [...] é figura ou então jogo e, nesse último caso, jogo de figuras (no espaço: a mímica e a dança) ou simples jogo de sensações (no tempo)”9 9 Kant, Immanuel. Critique de la faculté de juger. Paris: Vrin, 1993, p. 91. . A forma de uma dança, ou, de maneira mais geral, de um movimento que se percebe,não é a de uma coisa com seus contornos fixos (a forma de um vaso). É um “jogo de figuras” que só pode autenticamente se apresentar na dupla diferenciação de espaço e de tempo.


Duas estampas ilustrando notações de passos de dança no século XVIII10 10 Estampas tiradas de Tomlinson, Kellom. The art of dancing explained by reading and figures (1735). Cf. http:// earlydance.org/content/6477-minuet. .

Na mesma época, inventava-se a estenocoreografia: sistema de notação coreográfica. Nos tratados referentes ao tema, uma dança se apresentava sob a forma de frases movimentadas, escritas numa curiosa linguagem simbólica. No espaço da página, elas avançavam sob o eixo cronológico horizontal da partitura musical. O traçado do jogo de formas deixava de ser simples listagem. Tornava-se um script que transcrevia a atividade para melhor ainda dirigi-la na prática.

VI

Nos anos 1910, dois discípulos de Taylor11 11 Frederick Winslow Taylor (1856-1915), engenheiro americano, o mais conhecido promotor da organização científica do trabalho e da administração científica: o taylorismo. , Lillian e Frank B. Gilbreth,adequaram um dispositivo por eles chamado “cronociclógrafo”. Depois de fixarem pequenas lâmpadas elétricas nas mãos de um trabalhador,eles o fotografavam,com um tempo longo de exposição,executando a sua tarefa.Obtinham com isso uma imagem representando “a trajetória contínua de um ciclo de movimentos”12 12 Gilbreth, Frank Bunker; Gilbreth, Lillian Moller. Applied motion study: a collection of papers on the efficient method to industrial preparedness. Nova York:Sturgis and Walton,1917,p.46. que aparecia como linhas brancas na película fotográfica.


Lillian e Frank Gilbreth, “Estudo sobre o movimento eficiente”, cerca de 191413 13 Fotografia do fundo do National Museum of American History, Behring Center, Division of Work and Industry Collection. .

“Uma boa maneira de ilustrar como um modelo de movimento nos permite visualizá-lo e compará-lo aos sulcos deixados por um navio no oceano”, explicava, na época, o jovem e entusiasmado casal de engenheiros14 14 Gilbreth; Gilbreth, op.cit., p. 207. .De modo mais geral,as diferenças técnicas a que me refiro têm em comum o fato de serem maneiras de capturar esses sulcos ou de acrescentar efeitos de arrasto mais ou menos duráveis a atividades que nem sempre os apresentam espontaneamente15 15 Sobre essas noções, ver Didi-Huberman, Georges. Phalènes. Paris: Éditions de Minuit, 2013. .

Nesse caso específico, a tarefa de extração da trajetória foi confiada à fotografia - ou mais precisamente à cronofotografia: tratando a fonte luminosa como “tinta espacial-temporal”, os meios cronofotográficos “de certa maneira constituem mexidas, ‘arrastos’, diria Didi-Huberman, no sentido de que mostram um deslocamento do objeto móvel, com sua presença estendida por diferentes pontos da imagem,parecendo,com isso,simultâneas”16 16 Chik, Caroline. L’image paradoxale: fixité et mouvement. Villeneuve-d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2011, p. 90. .Torna-se,assim,visível o invisível. Mas é igualmente verdadeiro que esse processo de visualização cobre uma operação concomitante de invisibilização ou apagamento. Nas fotos de Gilbreth, o corpo do trabalhador se esvai como halo indistinto no fundo. O corpo desaparece literalmente por trás das linhas do seu gesto. Do corpo evanescente resta apenas o fóssil resplendente dos seus movimentos passados.

Michel Foucault mostrou que os dispositivos disciplinares dos séculos XVIII e XIX mobilizavam “um tipo de esquema anatômico-cronológico do comportamento”17 17 Foucault, Michel. Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975, p. 153. .Mas não é mais exatamente do que se trata aqui. O esquema até se mantém ainda num sentido cronológico (e inclusive cronoespacial), mas não mais anatômico. Do corpo vivo do trabalhador,guarda-se apenas “a órbita do movimento”18 18 Gilbreth;Gilbreth,op.cit.,p.46. .Uma “órbita” - a metáfora é significativa: por assim dizer, passamos de uma anatomia a uma microastronomia do gesto produtivo, em que o brilho das pequenas lâmpadas elétricas substitui o dos astros, mesmo que para um estudo bem diferente.

Mas não se trata de apenas visualizar tais órbitas e sim de também modelizá-las,para melhor então transformá-las.Quando analisamos trajetórias de movimento,é com a intenção de depurar,de livrá-las dos seus desvios inúteis: princípio “de eliminação dos resíduos”19 19 Ibidem, p. 130. . A modelização é um prelúdio à padronização: “Comparando esses grafos ou modelos que mostram as trajetórias de diferentes operadores fazendo o mesmo tipo de trabalho,é possível deduzir um método mais eficiente e, a partir disso, torná-lo padrão”20 20 Ibidem, p. 91. . Etimologicamente,o método é o caminho a seguir.O padrão é o caminho mais curto,mais econômico21 21 O padrão é não apenas o melhor itinerário gestual em termos de produtividade para determinada atividade, mas também uma norma transferível. Consultando um repertório de gestos eficazes, numa espécie de ancestral da lógica de benchmarking, pode-se exportar de uma atividade ou profissão para outra o segmento mais econômico de gestos. Ibidem, p. 92. .

Os Gilbreth igualmente esculpiam com arame esses modelos de movimento em três dimensões e os utilizavam “para mostrar a trajetória do movimento”22 22 Ibidem, p. 125. aos operadores. O gesto do trabalhador, redesenhado em laboratório, volta ao local de trabalho sob forma modificada - agora como fio condutor ao qual os corpos produtivos devem conformar a sua dança.

VII

Lá pela metade dos anos 1960, um pesquisador da Academia Soviética de Ciências,Alfred Yarbus,publicou um livro que revolucionou o estudo da visão23 23 Yarbus, Alfred. Eye movements and vision. Nova York: Plenum, 1967. . Em suas experiências, ele utilizou uma máquina aperfeiçoada,mais ou menos como o aparelho em que se apoia o queixo num consultório de oftalmologista, mas equipado com câmeras. Depois de registrar os movimentos dos olhos, ele podia refazer o rápido percurso que inconscientemente efetua um sujeito que olha um quadro. Esses desenhos, com suas paradas intermitentes e pontos de fixação, se parecem muito com as fotografias dos Gilbreth. São também uma forma de mapa dos gestos, só que gestos oculares, em que o objeto da visualização outro não é senão o próprio gesto de ver24 24 Ver a esse respeito o trabalho do artista Julien Prévieux. “Esthétique des statistiques”. In: em Bruno, Isabelle et al. (orgs.). Statactivisme: comment lutter avec des nombres. Paris: Zones/La Découverte, 2014. Disponível em: http://www.previeux.net/ html/textes/statact.html. .


Alfred Yarbus, traços da movimentação dos olhos de um sujeito olhando um quadro25 25 Yarbus, op. cit., p. 174. .

As tecnologias de eye tracking estão hoje em dia mobilizadas em pesquisas de marketing.Em nossa época de economia da atenção,metodicamente se observa o olhar do utilizador, ou do cliente, para melhor captá-lo.Produzem-se assim “mapas térmicos” dos movimentos oculares que permitem operar “testes de usabilidade” e escolher a design route mais eficaz para determinado grafismo.


Análise do olhar numa página da internet, por eye tracking heat map26 26 Disponívelem:http://blog.normalmodes.com/blog/2009/09/28/ eye-tracking-heatmap-gallery-a-preview-discussion-of-ui-considerations. .

Esse método de análise se aplica ao design de páginas da internet e à embalagem de produtos, mas também à própria arquitetura dos espaços de venda. Algumas lojas, hoje em dia, conectam os vídeos das suas câmeras de vigilância ao sinal dos smartphones captados pela rede wi-fi, buscando retraçar as deambulações dos clientes27 27 Ver Clifford, Stephanie e Hardy, Quentin. “Big data hits real life”. New York Times, 14/7/2013. Disponível em: http://www.nytimes. com/2013/07/15/business/attention-shopper-stores-are-tracking-your-cell.html. . No espaço físico, o cliente é um olho,mas um olho com pernas.Em função dos dados comportamentais assim obtidos,pode-se reconfigurar a disposição do espaço de venda,a fim de otimizar suas propriedades de captura da atenção.


Captura de tela: dispositivo de tracking da clientela numa loja americana.28 28 Imagem de tela do vídeo “Big Data hits real life”, de Erica Berenstein,site do NewYork Times,14/7/2013: http://www.nytimes.com/video/ business/100000002206849/big-data-hits-real-life.html.

Apesar da semelhança entre esses grafos e os dos Gilbreth, o tipo de normatividade em ação não é o mesmo. A relação salarial é estruturada por um jogo de obrigações que, fundamentalmente, dá à norma um valor de mandamento. Na esfera mercantil, é por meios mais tortuosos que um esquema de atividade se prescreve aos corpos. A estratégia, nesse caso, consiste em redesenhar o espaço do visível, a fim de orientar e atrair as mobilidades oculares e corporais segundo itinerários de navegação preestabelecidos. Essa normatividade atua seguindo táticas de captação por design.

VIII

No início dos anos 1960, etnólogos americanos começaram a utilizar novos transmissores radioelétricos para estudar os deslocamentos de animais selvagens. Os aparelhos, presos no corpo de coelhos-de-rabo-branco e de cervos da Virgínia, faziam com que se soubesse onde estavam, permitindo que se traçassem seus itinerários29 29 Ver por exemplo Tester, John R. et al. “A radio-tracking system for studying movements of deer”. The Journal of Wildlife Management. Bethesda: The Wildlife Society, v. 28, no 1, pp. 42-5, janeiro de 1964. . Diante da quantidade de dados rapidamente coletada pelo sistema de radio tracking, procurou-se também, com os meios da época, conceber programas informáticos capazes de automaticamente converter esses dados em mapas.


Mapa das trajetórias da lebre no 201 entre os dias 3 e 4 de maio de 1964.30 30 Ilustração tirada de Siniff, Donald B. e Tester, John R. “Biotelemetry”. BioScience. [S.l.]: [s.n.], v. 15, no 2, pp. 104-8, 107, fevereiro de 1965.

A difusão das tecnologias de telemetria igualmente inspirou outras disciplinas. Em 1964, em Harvard, Ralph Schwitzgebel, com seu irmão gêmeo Robert, ambos psicólogos do comportamento, montou um “sistema de supervisão comportamental por pulseira emissora”. O aparelho, testado em “jovens delinquentes”, foi um precursor da pulseira eletrônica em seguida adotada pelo sistema penal. Sonhava-se em poder substituir as velhas técnicas de aprisionamento por novas tecnologias de controle ao ar livre. Os irmãos gêmeos imaginaram para tanto um pequeno aparelho portátil capaz de gravar e transmitir por ondas radioelétricas diversos dados comportamentais,entre os quais a posição geográfica do usuário, além de informações sobre “as suas pulsações e ondas cerebrais, o consumo de álcool e outros fatores fisiológicos”31 31 “Anthropotelemetr y : dr. Schwitzgebel’s machine”. Harvard Law Review. Cambridge: The Harvard Law Review Assocation, v. 80, no 2, pp. 403-21, 409, dezembro de 1966. . Se os captores do delator eletrônico indicassem um comportamento de risco,localizava-se o indivíduo e,se necessário, intervinha-se preventivamente.

O que, no entanto, mais motivava essa invenção, e muito profundamente, era da ordem da libido sciendi32 32 Libido sciendi: desejo de conhecer. . Automatizando a coleta à distância de dados comportamentais, a pulseira eletrônica permitiria às ciências do comportamento, o tempo todo, quantidade de informações detalhadas sobre fatos e gestos da vida cotidiana.Por que não poderia o psicólogo,como o etnólogo,se conectar em sua própria rede de pulseiras transmissoras presas em animais humanos? Essa arte da medição à distância aplicada aos comportamentos humanos foi batizada de “antropotelemetria”.

A tarefa de coleta que seria confiada a captores especiais é, nos dias de hoje, parcialmente cumprida por indivíduos que documentam as suas próprias atividades, num contexto de traçabilidade generalizada. Tom MacWright é um engenheiro especializado em sistemas de informação geográfica. Em suas horas vagas, é também corredor amador e recentemente criou um aplicativo que lhe permite simultaneamente visualizar o trajeto percorrido na cidade e as variações do seu ritmo cardíaco.


Visualização dos dados correspondentes aos itinerários de corrida e às pulsações cardíacas de Tom MacWright (a aceleração dos batimentos aparece no traçado pela variação de intensidade da cor azul).33 33 Disponível em: http://www. macwright.org/running/.

Esse mapa ilustra um princípio importante, que é o da “fusão de dados” (data fusion): dados recolhidos a partir de fontes heterogêneas podem ser fixados num mesmo corpo esquemático cronoespacial. Basta, para tal, que essas informações tenham sido previamente referenciadas segundo coordenadas espaçotemporais.

IX

Ainda nos anos 1960, uma corrente bem inovadora da geografia humana deu início a uma revolução na sua disciplina: foi o projeto da cronogeografia (time-geography). A ideia fundamental era ser possível uma visão das vidas humanas tratadas como trajetórias (paths) no espaço-tempo. Entre outras coisas, isso implicava a invenção de mapas de outro tipo,mapas que integrassem o tempo ao espaço.Torsten Hägerstrand, um dos fundadores dessa metodologia, assim resumiu os seus postulados:

No espaço-tempo, o indivíduo descreve uma trajetória [path] [...]. O conceito de trajetória de vida (ou de trajetória intermediária, como por exemplo a trajetória de um dia, a trajetória de uma semana etc.) pode facilmente ser exposto num gráfico,à condição de se dobrar o espaço tridimensional numa [...] faixa plana de duas dimensões e introduzir um eixo perpendicular que represente o tempo.34 34 Hägerstrand, Trosten. “What about people in regional science?”. Papers of the Regional Science Association. [S.l.]: [s.n.], v. 24, no 1, 1970, pp. 6-21, 10, 1970.

Abaixo, um primeiro exemplo desse tipo de representação tridimensional, ainda bastante rudimentar. Num mapa em relevo foram aplicadas hastes verticais, pelas quais passa um fio que fornece a imagem do itinerário de um indivíduo ao longo de determinado período:


Modelização cronogeográfica das atividades de um indivíduo.35 35 Tirado de Lenntorp, B. “A time-geographic simulation model of individual activity programmes”. In: Carlstein, T. et al. (orgs.). Human activity and time geography. Londres: Edward Arnold, 1978, pp. 162-80.

Esse tipo de representação cartográfica é atualmente aplicado a poderosos sistemas de informação geográfica utilizados em estudos de “análise geovisual”.


Visualização das trajetórias cronoespaciais e das atividades individuais no programa ARCGIS.36 36 Tela de um grafo cronoespacial obtido com o módulo de visualização 3D ArcScene do programa ARCGIS da empresa americana ESRI: http://web. utk.edu/~sshaw/NSF-Project-Website/pages/activities.htm.

Como sublinhou Mark Monmonier, esse tipo de objeto basicamente se situa

na cartografia [mapping] mais do que como simples mapas [maps], na medida em que a cartografia não se reduz a mapas estáticos impressos em papel ou estampados em telas de computador. Nas novas cartografias da vigilância, os mapas que olhamos têm menos importância que os sistemas espaciais que estocam e que integram um conjunto de fatos a respeito dos locais em que vivemos ou trabalhamos.37 37 Monmonier, Mark. Spying with maps: surveillance technologies and the future of privacy. Chicago: University of Chicago Press, 2004, p. 1.

Os instrumentos da cronogeografia elaborados nos anos 1960 foram pensados principalmente como meios de planificação urbana e social associados a metas políticas reformistas. Hoje em dia, novas e bem menos afáveis funções são cada vez mais exigidas da time-geography. De fato, o seu postulado fundamental, “as biografias individuais podem ser seguidas e retraçadas como ‘trajetórias no espaço-tempo’”38 38 Harvey, David. The condition of postmodernity. Londres: Wiley-Blackwell, 1991, p. 211. , está em vias de se tornar a base epistemológica de apoio para todo tipo de prática do poder.

X

Desde 2010, as mais altas autoridades do serviço de inteligência estadunidense vêm ditando os princípios de um novo paradigma. Trata-se da doutrina de Activity Based Intelligence (abi), “informação fundada na atividade”, elaborada sob a égide da irmã siamesa ainda pouco conhecida da National Security Agency (nsa),a National Geospatial-Intelligence Agency (NGA)39 39 A NGA, ou Agência Nacional de Inteligência Geoespacial, é a agência de informação americana encarregada da coleta e análise de imagens, diferentemente da NSA, historicamente concentrada na emissão de sinais. . Os teóricos da informação descrevem essa reviravolta como conversão rumo a uma nova filosofia, um novo método de conhecimento.

Como resume o geógrafo Derek Gregory, trata-se de “seguir diversos indivíduos através de diferentes redes sociais, com o intuito de estabelecer uma forma ou ‘esquema de vida’ [pattern of life] em conformidade com o paradigma da ‘informação baseada na atividade’, que constitui hoje o centro da doutrina contrainsurrecional”40 40 Gregory, Derek “Lines of descent”, Open democracy, 8 de novembro de 2011. Disponível em: http:// www.opendemocracy.net/derek-gregory/lines-of-descent. Sobre patterns of life, ver o artigo de Derek Gregory publicado em Radical Philosophy e traduzido em francês no número 1 de Jef Klak, “Marabout”, “Géographies du drone”, e também o livro Teoria do Drone (Cosac Naify, 2015) de Grégoire Chamayou, ed. La Fabrique. . Gregory descreve essa atividade de maneira muito evocadora como “uma espécie de ritmo-análise militarizada” ou até mesmo como “uma geografia do tempo, armada até os dentes”, baseada no uso de programas que “fusionam e visualizam dados geoespaciais e temporais que a informação coleta a partir de diversas fontes (‘combinando o onde, o quando e o quem’) e dispondo-os num parâmetro tridimensional que retoma os diagramas standard da cronogeografia desenvolvida pelo geógrafo sueco Torsten Hägerstrand nos anos 1960 e 1970”41 41 Gregory, Derek. “From a view to a kill: drones and late modern war”. Theory, Culture and Society. [S.l.]: sage,v. 28, no 6, pp. 188-215, 195, 208, 2011. .

Essa metodologia se apoia, entre outras coisas, no uso do data mining42 42 Data mining:sondagem ou prospecção de dados.O termo designa um conjunto de métodos informáticos visando extrair saber pertinente a partir de massas de dados brutos. aplicado a trajetórias de movimentos,com a finalidade de descobrir,no meio de gigantescos emaranhados de trajetos,“periodicpatterns” ou “assinaturas” correspondendo a segmentos de hábitos característicos. Para além de uma listagem dos diferentes itinerários singulares, visa-se, no caso, outra coisa: a extração progressiva de esquemas de atividade. Os traços de trajetos regularmente feitos vão progressivamente se tornando mais consistentes na tela, da mesma maneira que os itinerários frequentemente percorridos por animais de um rebanho aprofundam as trilhas na relva de um campo.

A título de exemplo, temos abaixo um dos mapas produzidos por um módulo de Activity Based Intelligence elaborado por engenheiros da Lockheed Martin e testado em trajetos de táxi de uma cidade americana:


Rede espacial e nodes (nós) detectados nos dados de circulação de uma frota de táxi.43 43 Rimey, Ray et al. “Network exploitation using WAMI tracks”. Defense Transformation and net-centric Systems. Orlando: spie, 27-28 de april de 2011.

É claro,o que serve para corridas de táxi pode perfeitamente se aplicar a outros objetos,inclusive a trajetos pedestres de habitantes de um vilarejo iraquiano, observados pela câmera de um drone:


Análise de deslocamentos a pé, perto de Al Mahmudiyah, no Iraque.44 44 Ibidem.

XI

De início, a cronogeografia surgiu como recusa da predominância dos métodos estritamente estatísticos em ciência social. Quando nos contentamos em descrever a realidade social pela agregação de números elevados, como por exemplo os que fornecem um recenseamento, lamentava Hägerstrand, “estamos considerando a população como se fosse formada por ‘dividuais’ e não por indivíduos”45 45 Hägerstrand, op. cit., p. 9. . Agregados estatísticos (trata-se realmente de um agregado estatístico?), tais como o PIB ou as faixas de rendimentos, não nos dão acesso a um saber primário relativo aos indivíduos, mas apenas, de maneira indireta, a seres estatísticos que reconstruímos como frações de um número global.

A cronogeografia, pelo contrário, buscou distribuir os indivíduos tais como eles existem, de maneira contínua, enquanto pontos físicos submetidos a trajetórias espaço-temporais. A convicção é que, entre o trabalho do biógrafo e o do estatístico, “há uma zona intermediária a se explorar, em que a ideia fundamental é que as pessoas conservam a sua identidade ao longo do tempo [...] e que os agregados de comportamento também não escapam a essa regra”46 46 Ibidem. . Em outras palavras, como resume o geógrafo Nigel Thrift, a cronogeografia parte de um princípio metodológico de “indivisibilidade do ser humano”47 47 Thrift, Nigel. An introduction to time geography. Londres: Institute of British Geographers, 1977, p. 6. . O que então se propôs às ciências sociais foi que se reconstruíssem agregados de dados a partir da granularidade insecável de indivíduos cuja “corporeidade viva” possa ser esquematicamente apreendida por trajetórias traçáveis e mensuráveis no espaço-tempo.

Chama a atenção constatar que,para exprimir essa ideia,Hägerstrand tenha recorrido a um vocabulário que Deleuze igualmente emprega, mais de vinte anos depois, para caracterizar o que ele denomina “sociedades de controle”: “Não nos encontramos mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos se tornaram ‘dividuais’ e as massas amostragens, dados”, diagnostica o filósofo48 48 Deleuze, Gilles. “Post-scriptum sur les sociétés de controle”.In:Pourparlers. Paris: Éditions de Minuit, 1990, pp. 240-7, 244. . De um lado, teríamos então sociedades de disciplina, estruturadas pela relação entre indivíduo e massa, e, de outro, sociedades de controle, articuladas pelo par dividual/base de dados. De um lado, instituições de aprisionamento, de outro,dispositivos de controle aplicados em meios abertos.De um lado, a assinatura e a matrícula, tomadas como sinais da individualidade disciplinar,e,de outro,o número e a senha,tomados como chave para os portais de controle...

Essa distinção nocional entre dividual e individual, Hägerstrand e Deleuze tiraram de pesquisas sobre a forma que o pintor Paul Klee realizou no período entre as duas grandes guerras mundiais. Para ele, a questão se esquematizava da seguinte maneira:


Dividual (1) e individual (2) segundo Klee.49 49 Klee, Paul. “Formal analysis of 1935/3: Grid dance”. In: Notebooks, v. 2, The nature of nature. Londres: Lund Humphries, 1973, p. 284. As figuras explicativas são, na verdade, do editor do livro, Jürg Spiller.

O individual é ilustrado por uma figura linear, a de um corpo (figura 2). Ela se define negativamente como aquilo de que não se pode tirar uma parte sem destruir a totalidade, sem torná-lo irreconhecível. Nesse sentido,o individual é antes de tudo um indivisível:sua divisão teria como efeito,por mutilação,destruir a sua unidade orgânica constitutiva. O dividual se assinala, em contrapartida, pela divisibilidade. Pode-se dividir ou recortar as linhas da figura 1, desfazer-se de uma ou de várias delas, e nem por isso o tema se dissolve. Ele permanece, apesar da extração.É a diferença entre o padrão de uma tapeçaria,com ritmos repetitivos, e o desenho da forma orgânica de um corpo.

O que, no início da década de 1970, Hägerstrand basicamente prescrevia como método é que se deve passar de (1) a (2), isto é, substituir a dividualidade estatística pela individualidade cronoespacial, como elemento de base do saber.

O que, no final da década de 1990, Deleuze disse, mas dessa vez como diagnóstico histórico e político, é que, de certa maneira, estaríamos em vias de passar de (2) a (1) - isto é, as antigas máquinas de poder centradas na individualidade (isolável e com contornos determinados) estariam sendo substituídas por novas, tendo como objeto o “dividual” (o tempo todo subdividido e no qual se podem então multiplicar os pontos de controle).

MasoqueacontececomodiagnósticodeDeleuzenomomentoem que o postulado primordial da cronogeografia, baseando a agregação dos dados numa indexação individual de trajetórias cronoespaciais, se generaliza a ponto de se tornar o alicerce operacional efetivo de toda uma série de práticas de poder?

O que se obtém nesse caso, em primeira análise, é algo completamente diferente do dividual - sendo até o seu contrário: individualidades cronogeográficas tomadas como objeto tanto de conhecimento quanto de intervenção. Como explica Derek Gregory, o uso atual de “diversos meios eletrônicos para identificar, perseguir e localizar” alvos direcionados constitui, na verdade, um processo de “produção técnica de indivíduos como artefatos e algoritmos”50 50 Disponível em : http://geographicalimaginations.com/tag/glenn-greenwald/. . Gregory tem razão, ao ver nisso um modo de individuação específico, mas caracterizá-lo conceitualmente permanece sendo uma questão em aberto.

Uma das dificuldades é que tal processo se encaixa mal na categoria de individualização disciplinar lembrada por Deleuze em Post-scriptum: as tecnologias em questão certamente se propagam em meios abertos, e isso elas têm em comum com o modelo do controle, mas, ao mesmo tempo, elas se concentram também na busca de “assinaturas” - ou seja, se seguirmos Deleuze, num dos sinais preferenciais da disciplina. Além disso, mesmo que esses processos de análise se concentrem em individualidades-trajetórias pensadas como unidades cronoespaciais indivisíveis, eles procedem também por agregação de dados, por composição de matéria dividual estocada em bancos de dados e tratada de modo algorítmico. Na verdade, eles não se deixam subsumir em nenhuma das duas grandes categorias propostas por Deleuze. Não correspondem realmente à individualização da disciplina nem, realmente, à “dividualização” do controle.

Para apreender aquilo com que nos deparamos aqui, creio ser preciso mobilizar uma terceira figura, igualmente presente em Klee, a da “síntese dividual-individual”51 51 Klee, op. cit., p. 63. :


A “dança da grade”, segundo Klee.52 52 Ibidem, p. 285.

Dividual e individual não necessariamente se opõem, podem também combinar. Essa terceira figura sintética acontece quando “certas atividades engendram estruturas formais definidas que, de maneira observável, se tornam indivíduos” 53 53 Ibidem, p. 247. , ou seja, quando “as características estruturais se juntam ritmicamente numa totalidade individual”54 54 Ibidem, p. 234. . A trama dividual movimentada, em que a figura linear da individualidade se recorta ao mesmo tempo em que define o seu contorno externo, toma então o aspecto de uma “grade que dança”.

O objeto do poder não é aqui o indivíduo,tomado como elemento numa massa, nem o dividual, tomado como número numa base de dados, e sim outra coisa: individualidades-trajetórias tecidas de dividualidades estatísticas e recortadas numa trama de atividades em que elas se singularizam no tempo como unidades perceptíveis.

A produção dessa forma de individualidade não se remete à disciplina, como também não ao controle e sim ao direcionamento de alvos em suas formas mais contemporâneas. Seja ele policial, militar ou comercial, tem sempre os mesmos traços formais. Uma hipótese provável é que, para além das sociedades de disciplina ou de controle, estejamos agora entrando em sociedades de direcionamento de alvos.

XII

Para os especialistas da inteligência militar que promoveram esse tipo de metodologia na sua área, a esperança inicial era, em conformidade com um modelo de “inteligência, vigilância e reconhecimento (isr)” herdado da Guerra Fria, conseguir modelizar “assinaturas” comportamentais características de formas “terroristas” de vida.Mas essa ambição se choca com (no mínimo) um problema epistemológico fundamental. Em contextos em que os “maus” elementos em tudo se assemelham aos “bons”55 55 Phillips,Mark.“A brief overview of Abi and human domain analytics”. Trajectory Magazine,2012.Disponível em: http://trajectorymagazine.com/ web-exclusives/item/1369-human-domain-analytics.html. ,os alvos não apresentam assinatura clara que permita a sua detecção direta.

E isso os especialistas dos serviços de inteligência não ignoram. De tal forma que eles hoje baseiam o paradigma da informação na atividade, como tentativa para superar o obstáculo: “Em meios nos quais não há diferença visual alguma entre amigo e inimigo, é por suas ações que os inimigos se tornam visíveis”56 56 Tse, Edwin. “Activity based intelligence challenges”. Northrop Grumman, IMSC Spring Retreat, 7 de março de 2013. . E é essa tarefa, estabelecer distinção entre amigo e inimigo,que agora se espera poder confiar aos algoritmos.

No discurso do método redigido por tais especialistas, a formulação do problema ganha aparências quase metafísicas. O mistério é o seguinte: como descobrir “desconhecidos desconhecidos” (sic)57 57 Ibidem. ? Um desconhecido conhecido é um indivíduo do qual se ignora a identidade singular, o estado civil, mas cujos atributos identificáveis correspondem a um tipo repertoriado.Um desconhecido desconhecido é alguém que escapa tanto de uma identificação singular quanto de uma identificação genérica: não se sabe quem ele é (ignora-se o seu nome ou até mesmo o seu rosto) nem o que é (seu perfil de atividade não corresponde àqueles já catalogados).

A solução para a qual se ruma, nesse caso, de certa maneira está pré-enunciada no problema: para poder identificar formas desconhecidas, deve-se logicamente dispor de um repertório de formas conhecidas. A ideia é então delimitar o típico, para identificar o atípico. Desenvolvem-se,com esse intuito,“esquemas de vida (patterns of life) que permitam diferenciar atividades normais e atividades anormais”58 58 “From data to decisions III”. IBM Center for the Business of Government, novembro de 2013, p. 32. Disponível em: http://www.govexec.com/media/gbc/docs/pdfs- edit/111213cc1.pdf.Isso implica,diga-se de passagem, estender tendencialmente esse tipo de vigilância ou de datavigilância reforçada a todas as atividades e a todas as vidas. .

Num modelo assim, “acumulando traçados no tempo”, pode-se, por exemplo, “modelizar os movimentos de pedestres e detectar anomalias com relação a tendências comportamentais registradas”59 59 Streib, Kevin et al. “Interactive visualization and behavior analysis for video surveillance”. SIAM Data Mining International Conference on Datamining,Columbus,Ohio,2010. . Umavezidentificados,porexemplo,ositinerários“normais”dequem carrega uma bandeja de comida num refeitório,pode-se,por contraste, ver surgir um certo número de trajetórias aberrantes:


Modelização dos trajetos normais e detecção de comportamentos anormais num refeitório.60 60 Lane, Richard O. e Copsey, Keith D. Ata da conferência “Track anomaly detection with rhythm of life and bulk activity modeling”, Information Fusion (fusion), 15th International Conference, 2012.

Para além dos testes efetuados em espaço confinado,entretanto,o objetivo é estender essas metodologias de triagem comportamental a programas de “detecção de anomalias em grande escala”:

A definição do “normal” de que dispõem esses sistemas é puramente empírica:ela é entendida pela máquina com base em relatórios de frequências e repetições. E qualquer desvio desses esquemas de regularidade - mais uma anomalia do que uma anormalidade - dispara “alertas de comportamento anormal”,estampados em cor vermelho-alaranjada na tela do analista.


Detecção de anomalias por análise de assinaturas comportamentais.61 61 Borghetti, Brett. “Anomaly detection through behavior signatures”. isrcs Briefing, 10/8/2010. Nesta apresentação em powerpoint, relizada no Air Force Institute of Technology, um engenheiro apresenta os princípios da identificação de anomalias comportamentais por meio da análise de imagens em vídeo. Disponível em : https://secure. inl.gov/isrcs2010/docs/abstracts/ Borghetti.pdf

Um dos problemas clássicos com esse tipo de concepção da normalidade, como na sua época explicou o filósofo e médico Georges Canguilhem, é que “se deve considerar anormal - quer dizer, patológico - qualquer indivíduo anormal (portador de anomalias), ou seja, aberrante por relação a um tipo estatisticamente definido”62 62 Canguilhem, Georges. “Le normal et le pathologique”.In:La connaissance de la vie.Paris:Vrin,1992,p.208. .Enquanto um desvio singular pode ser interpretado de diversas maneiras,por exemplo “como um passo errado ou um teste,um erro ou uma aventura”63 63 Ibidem, p. 205. , esse tipo de dispositivo paranoico os assinala como ameaça em potencial: “alerta”.

Ironicamente, foi no seio mesmo de sociedades em que a ideologia dominante ergueu como valor sagrado a liberdade individual de seguir o seu way of life que a singularidade de um caminho passou a ser automaticamente assinalada como suspeita. Deve-se, porém, sublinhar que isso,no caso,não se apoia mais numa lógica disciplinar.Ao se servir de esquemas cronoespaciais para filtrar comportamentos, tais dispositivos não têm, por conta própria, nenhum modelo de comportamento determinado a impor aos diversos caminhos que observam. A sua normatividade sem norma é movida por outra meta, por outra forma de apetite devorador: identificar desvios para “obter alvos”, e isso dentro de um pensamento em que,sendo desconhecidos os alvos, o desconhecido se torna alvo. Dentro desses regimes de saber e de poder, outra maneira de dizer isso seria lembrando que um alvo em potencial fundamentalmente se assinala como deriva.

  • 1
    Debord, Guy. “Théorie de la derive”. Les Lèvres nues, no 9, novembro de 1956. In: Internationale situationniste. Paris: Allia, 1985, p. 312.
  • 2
    Chombart de Lauwe, Paul Henry. Paris et l’agglomération parisienne, v. 1. Paris: Presses Universitaires de France, 1952, p. 106.
  • 3
    Debord, op. cit.
  • 4
    Disponível em: http://thecre-atorsproject.vice. com/blog/turn-your-foursquare-check-in-data-into-jewelry.
  • 5
    Lavater, Johann Kaspar. L’art de connaitre les hommes par la physionomie. Patis: Prudhomme, 1806 (frontispício).
  • 6
    O que de forma alguma quer dizer que as lógicas de identificação biométricas se atenuem, cedendo vez a esse outro modo de representação — longe disso.
  • 7
    D’Orbigny, Alcide. Cours élémentaire de paléontologie et de géologie stratigraphiques, v. i. Paris: Masson, 1849, p. 27.
  • 8
    Estampa tirada de Hitchcock, Edward. Elementary geology. Nova York:Ivison and Phinney,1855,p.187.
  • 9
    Kant, Immanuel. Critique de la faculté de juger. Paris: Vrin, 1993, p. 91.
  • 10
    Estampas tiradas de Tomlinson, Kellom. The art of dancing explained by reading and figures (1735). Cf. http:// earlydance.org/content/6477-minuet.
  • 11
    Frederick Winslow Taylor (1856-1915), engenheiro americano, o mais conhecido promotor da organização científica do trabalho e da administração científica: o taylorismo.
  • 12
    Gilbreth, Frank Bunker; Gilbreth, Lillian Moller. Applied motion study: a collection of papers on the efficient method to industrial preparedness. Nova York:Sturgis and Walton,1917,p.46.
  • 13
    Fotografia do fundo do National Museum of American History, Behring Center, Division of Work and Industry Collection.
  • 14
    Gilbreth; Gilbreth, op.cit., p. 207.
  • 15
    Sobre essas noções, ver Didi-Huberman, Georges. Phalènes. Paris: Éditions de Minuit, 2013.
  • 16
    Chik, Caroline. L’image paradoxale: fixité et mouvement. Villeneuve-d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2011, p. 90.
  • 17
    Foucault, Michel. Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975, p. 153.
  • 18
    Gilbreth;Gilbreth,op.cit.,p.46.
  • 19
    Ibidem, p. 130.
  • 20
    Ibidem, p. 91.
  • 21
    O padrão é não apenas o melhor itinerário gestual em termos de produtividade para determinada atividade, mas também uma norma transferível. Consultando um repertório de gestos eficazes, numa espécie de ancestral da lógica de benchmarking, pode-se exportar de uma atividade ou profissão para outra o segmento mais econômico de gestos. Ibidem, p. 92.
  • 22
    Ibidem, p. 125.
  • 23
    Yarbus, Alfred. Eye movements and vision. Nova York: Plenum, 1967.
  • 24
    Ver a esse respeito o trabalho do artista Julien Prévieux. “Esthétique des statistiques”. In: em Bruno, Isabelle et al. (orgs.). Statactivisme: comment lutter avec des nombres. Paris: Zones/La Découverte, 2014. Disponível em: http://www.previeux.net/ html/textes/statact.html.
  • 25
    Yarbus, op. cit., p. 174.
  • 26
    Disponívelem:http://blog.normalmodes.com/blog/2009/09/28/ eye-tracking-heatmap-gallery-a-preview-discussion-of-ui-considerations.
  • 27
    Ver Clifford, Stephanie e Hardy, Quentin. “Big data hits real life”. New York Times, 14/7/2013. Disponível em: http://www.nytimes. com/2013/07/15/business/attention-shopper-stores-are-tracking-your-cell.html.
  • 28
    Imagem de tela do vídeo “Big Data hits real life”, de Erica Berenstein,site do NewYork Times,14/7/2013: http://www.nytimes.com/video/ business/100000002206849/big-data-hits-real-life.html.
  • 29
    Ver por exemplo Tester, John R. et al. “A radio-tracking system for studying movements of deer”. The Journal of Wildlife Management. Bethesda: The Wildlife Society, v. 28, no 1, pp. 42-5, janeiro de 1964.
  • 30
    Ilustração tirada de Siniff, Donald B. e Tester, John R. “Biotelemetry”. BioScience. [S.l.]: [s.n.], v. 15, no 2, pp. 104-8, 107, fevereiro de 1965.
  • 31
    “Anthropotelemetr y : dr. Schwitzgebel’s machine”. Harvard Law Review. Cambridge: The Harvard Law Review Assocation, v. 80, no 2, pp. 403-21, 409, dezembro de 1966.
  • 32
    Libido sciendi: desejo de conhecer.
  • 33
    Disponível em: http://www. macwright.org/running/.
  • 34
    Hägerstrand, Trosten. “What about people in regional science?”. Papers of the Regional Science Association. [S.l.]: [s.n.], v. 24, no 1, 1970, pp. 6-21, 10, 1970.
  • 35
    Tirado de Lenntorp, B. “A time-geographic simulation model of individual activity programmes”. In: Carlstein, T. et al. (orgs.). Human activity and time geography. Londres: Edward Arnold, 1978, pp. 162-80.
  • 36
    Tela de um grafo cronoespacial obtido com o módulo de visualização 3D ArcScene do programa ARCGIS da empresa americana ESRI: http://web. utk.edu/~sshaw/NSF-Project-Website/pages/activities.htm.
  • 37
    Monmonier, Mark. Spying with maps: surveillance technologies and the future of privacy. Chicago: University of Chicago Press, 2004, p. 1.
  • 38
    Harvey, David. The condition of postmodernity. Londres: Wiley-Blackwell, 1991, p. 211.
  • 39
    A NGA, ou Agência Nacional de Inteligência Geoespacial, é a agência de informação americana encarregada da coleta e análise de imagens, diferentemente da NSA, historicamente concentrada na emissão de sinais.
  • 40
    Gregory, Derek “Lines of descent”, Open democracy, 8 de novembro de 2011. Disponível em: http:// www.opendemocracy.net/derek-gregory/lines-of-descent. Sobre patterns of life, ver o artigo de Derek Gregory publicado em Radical Philosophy e traduzido em francês no número 1 de Jef Klak, “Marabout”, “Géographies du drone”, e também o livro Teoria do Drone (Cosac Naify, 2015) de Grégoire Chamayou, ed. La Fabrique.
  • 41
    Gregory, Derek. “From a view to a kill: drones and late modern war”. Theory, Culture and Society. [S.l.]: sage,v. 28, no 6, pp. 188-215, 195, 208, 2011.
  • 42
    Data mining:sondagem ou prospecção de dados.O termo designa um conjunto de métodos informáticos visando extrair saber pertinente a partir de massas de dados brutos.
  • 43
    Rimey, Ray et al. “Network exploitation using WAMI tracks”. Defense Transformation and net-centric Systems. Orlando: spie, 27-28 de april de 2011.
  • 44
    Ibidem.
  • 45
    Hägerstrand, op. cit., p. 9.
  • 46
    Ibidem.
  • 47
    Thrift, Nigel. An introduction to time geography. Londres: Institute of British Geographers, 1977, p. 6.
  • 48
    Deleuze, Gilles. “Post-scriptum sur les sociétés de controle”.In:Pourparlers. Paris: Éditions de Minuit, 1990, pp. 240-7, 244.
  • 49
    Klee, Paul. “Formal analysis of 1935/3: Grid dance”. In: Notebooks, v. 2, The nature of nature. Londres: Lund Humphries, 1973, p. 284. As figuras explicativas são, na verdade, do editor do livro, Jürg Spiller.
  • 50
    Disponível em : http://geographicalimaginations.com/tag/glenn-greenwald/.
  • 51
    Klee, op. cit., p. 63.
  • 52
    Ibidem, p. 285.
  • 53
    Ibidem, p. 247.
  • 54
    Ibidem, p. 234.
  • 55
    Phillips,Mark.“A brief overview of Abi and human domain analytics”. Trajectory Magazine,2012.Disponível em: http://trajectorymagazine.com/ web-exclusives/item/1369-human-domain-analytics.html.
  • 56
    Tse, Edwin. “Activity based intelligence challenges”. Northrop Grumman, IMSC Spring Retreat, 7 de março de 2013.
  • 57
    Ibidem.
  • 58
    “From data to decisions III”. IBM Center for the Business of Government, novembro de 2013, p. 32. Disponível em: http://www.govexec.com/media/gbc/docs/pdfs- edit/111213cc1.pdf.Isso implica,diga-se de passagem, estender tendencialmente esse tipo de vigilância ou de datavigilância reforçada a todas as atividades e a todas as vidas.
  • 59
    Streib, Kevin et al. “Interactive visualization and behavior analysis for video surveillance”. SIAM Data Mining International Conference on Datamining,Columbus,Ohio,2010.
  • 60
    Lane, Richard O. e Copsey, Keith D. Ata da conferência “Track anomaly detection with rhythm of life and bulk activity modeling”, Information Fusion (fusion), 15th International Conference, 2012.
  • 61
    Borghetti, Brett. “Anomaly detection through behavior signatures”. isrcs Briefing, 10/8/2010. Nesta apresentação em powerpoint, relizada no Air Force Institute of Technology, um engenheiro apresenta os princípios da identificação de anomalias comportamentais por meio da análise de imagens em vídeo. Disponível em : https://secure. inl.gov/isrcs2010/docs/abstracts/ Borghetti.pdf
  • 62
    Canguilhem, Georges. “Le normal et le pathologique”.In:La connaissance de la vie.Paris:Vrin,1992,p.208.
  • 63
    Ibidem, p. 205.
  • *
    Publicado originalmente em Jef Klak, maio de 2015. Publicado com permissão do autor.
  • 65
    Tradução de Jorge Bastos Cruz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2015

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2015
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