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Os cavalos de abdera

FICÇÃO

Os cavalos de abdera

Leopoldo Lugones

Apresentação e tradução de Samuel Titan Jr.1 [1 ] Agradeço a leitura e as sugestões de Adriane Duarte, Ana Paula Pacheco, Marta Kawano, Bernardo Carvalho, Flávio Moura, Márcio Suzuki e Paulo Schiller.

DE BORGES A LUGONES

Num breve artigo, escrito quando a fama de Borges nem de longe chegara à escala que já se sabe, o filólogo Raimundo Lida notava como, "por sua mera presença, a obra de Borges transforma, corrói e reduz a lugar-comum boa parte da literatura que convive com ela e mesmo daquela que a precedeu". Para verificar a tese, citava um trecho de Cuentos fatales (1924), coletânea de Leopoldo Lugones que, à sombra dos contos de Ficciones (1944) e El Aleph (1949), ganhava inadvertidamente um "tom de pastiche zombeteiro" por obra de seu parentesco visível e propriamente fatal com as páginas posteriores de Borges.2 [2 ] Raimundo Lida, "Notas a Borges", in Cuadernos Americanos 2, março-abril de 1951, pp. 286-288, recolhido in J. Alazraki (org.), Jorge Luis Borges (Madrid: Taurus, 1976), pp. 75-77; o grifo é meu.

O exemplo não vinha à toa. Figura de máximo destaque nas letras argentinas das primeiras décadas do século XX, Lugones (1874-1938) foi um divisor de águas para seus contemporâneos e sucessores imediatos. Frutos maduros do modernismo de José Martí e Rubén Darío, os poemas de Los crepúsculos del jardín (1905) e sobretudo do Lunario sentimental (1909) rematavam a aclimatação dos achados do parnaso-simbolismo europeu e rompiam com a pesada herança da poesia espanhola. Não seria pouco. Mas somem-se a isso o pendor doutrinário, o gosto pela polêmica e a incansável atividade em todos os gêneros literários, e não será difícil imaginar como Lugones veio a ser um marco incontornável e um dos alvos preferenciais das várias vanguardas dos anos de 1920. Em 1924, por exemplo, o jovem Borges não hesitava em resenhar desdenhosamente o Romancero do poeta mais velho.3 [3 ] Cf. "Leopoldo Lugones, Romancero" (1924), in El tamaño de mi esperanza (Buenos Aires: Seix Barral, 1994 [1926]) Nesse ambiente, o apego à rima, o preciosismo do vocabulário, as metáforas abstrusas, tudo parecia conspirar para fazer de Lugones o bode expiatório da nova poesia — o que, de resto, não deixava de sublinhar a centralidade do autor.4 [4 ] Cf. a respeito Gwen Kirkpatrick, The Dissonant Legacy of Modernismo (Berkeley: University of California Press, 1989), capítulo 2.

O próprio Borges não tardou a percebê-lo: distanciando-se do vanguardismo, notava em que medida as "novas gerações" eram, afinal de contas, compostas de "involuntários e fatais alunos [...] do abjurado Lunario sentimental".5 [5 ] "Las 'nuevas generaciones' literarias", artigo publicado em 1937 na revista El Hogar e recolhido por Borges e Betina Edelberg no volume Leopoldo Lugones (1955 e 1965); cf. J. L. Borges, Obras completas en colaboración (Buenos Aires: Emecé, 1991), p. 498. Não era propriamente uma reabilitação integral, mas ao menos o panorama tornava-se menos unívoco, à medida que o sabor irônico e laforguiano do Lunario se impunha ao ranço parnasiano de Lugones. A partir de então, foi-se estabelecendo um delicado jogo de espelhismos, recusas e filiações que repontam aqui e ali nos ensaios e poemas do Borges maduro.

Não será então absurdo dizer que, assim como o afasta, "corrói e reduz a lugar-comum", Borges também torna Lugones novamente legível. O raciocínio não pareceria tortuoso ao autor de "Kafka e seus precursores", para quem "cada escritor cria seus precursores. Seu labor modifica nossa concepção do passado assim como há de modificar o futuro".6 [6 ] "Kafka y sus precursores" (1951), incluído em Otras inquisiciones (1952); cf. Obras completas (Buenos Aires: Emecé, 1985) p. 712. É claro que isso não se dá sem ironia, e sobretudo não em toda linha: basta pensar no repúdio de Borges às posições políticas de Lugones, que se aproxima mais e mais do fascismo. No que toca à poesia de Lugones, os resultados desse vaivém da fama e da infâmia literária dificilmente irão além do âmbito argentino ou hispânico. Mas a reviravolta crítica vale também para parte da narrativa de Lugones — e nesse caso, quem sabe, com proveito para o leitor estrangeiro. É o que procuramos sugerir com a tradução de "Os cavalos de Abdera", que segue adiante.

Publicado em Las fuerzas extrañas, de 1906, o conto compõe, ao lado de "A chuva de fogo", "A estátua de sal" e "Yzur", todos do mesmo volume, um quarteto que Borges contava entre as páginas "mais bem logradas das literaturas de língua espanhola".7 [7 ] J. L. Borges, Leopoldo Lugones, ed. cit., p. 495. Borges incluiu os quatro na antologia de Lugones que preparou para sua coleção Biblioteca de Babel: La estatua de sal (Madrid: Siruela, 1986). Com esses relatos, Lugones não só incorporava ao idioma o conto fantástico de feitio à E. A. Poe como ainda engrossava, ao lado do uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937), a corrente fantástica na literatura rio-pratense.

De todo modo, já não há como ler "Os cavalos de Abdera" sem pensar imediatamente na ficção de Borges, que projeta sua sombra retroativa sobre o conto de Lugones. Além da matéria fantástica, aqui está o mesmo tom pseudo-historiográfico, a mesma erudição inesperada que alimenta a invenção ficcional — elementos que mais tarde, sem peias parnasianas, Borges levará à máxima potência irônica. Deste último, ademais, já se disse que "a leitura está na raiz da invenção",8 [8 ] Davi Arrigucci Jr., "Enigma e comentário", in Enigma e comentário (São Paulo: Companhia das Letras, 1987), p. 228. e o mesmo valerá para o outro. Neste caso, o conto nasce de uma reminiscência dos trabalhos de Hércules, associada a episódios da Ilíada — Lugones traduziu-a em alexandrinos rimados —, que vêm à tona nos nomes de vários dos cavalos, e ainda ao verso final de um soneto de Hérédia, "Fuite des centaures", que talvez tenha inspirado o desfecho:

La gigantesque horreur de l'ombre Herculéenne.9 [9 ] Cf. a edição dos Cuentos fantásticos aos cuidados de Pedro Luis Barcia (Madrid: Castalia, 1987), p. 38.

Ora, ocorre ainda que o universo imaginativo de Borges, ao contrário do que quer a opinião mais habitual, não é feito exclusivamente de citações e refrações, mas se abre por vias inesperadas para o contexto histórico em que surge10 [10 ] Cf., entre outros, Davi Arrigucci Jr., "Da fama e da infâmia", in Enigma e comentário, ed. cit., pp. 193-226; Marina Kaplan, "'Tlön, Uqbar, Orbis Tertius' y Urn Burial", in Comparative Literature 36.4 (1984), pp. 328-342; Beatriz Sarlo, Borges, un escritor en las orillas (Buenos Aires: Seix Barral, 2003 [1993]); e Daniel Balderston, ¿Fuera de contexto? (Rosario: Beatriz Viterbo, 1996 [1993]. — e talvez valha a pena sugerir o mesmo a propósito do relato de Lugones. Nesse caso, "Os cavalos de Abdera" seria menos fantasia à antiga que aproximação tortuosa de uma visão histórica: uma cidade e uma civilização inteira à beira da catástrofe, à mercê da massa, da multidão urbana inquieta e logo revoltosa que elas mesmas engendraram, finalmente resgatadas pela intervenção de um super-homem, um duce, cuja aparição causa alívio e pavor em igual medida.

O tema da multidão comparecerá em vários contos de Borges, além de ser uma das idéias-fixas do narrador de A invenção de Morel (1940), de Bioy Casares; para Lugones, mais que de um tema, tratava-se de verdadeira obsessão. Da juventude militante, quando mesclava socialismo, xenofobia anti-imigração e orgulho criollo, até a adesão, na última década de vida, ao fascismo de corte mussoliniano, o autor sempre manteve a massa urbana no centro de sua doutrinação política. Contudo, o leitor logo verá que o conto é bem mais que a tradução ficcional de um programa político, muito pelo contrário. O ambíguo e poderoso do desfecho talvez explique a admiração de Borges, para quem o recurso, geralmente "tosco", ao deus ex machina não só não maculava o conto como era dotado de "tremenda e espantosa eficácia".11 [11 ] J. L. Borges, Leopoldo Lugones, ed. cit., p. 495. O relato culmina numa fantasmagoria histórica em que o horror da massa revoltosa encontra par na imagem terrível do redentor semi-divino. A imagem literária não se deixa reduzir a vinheta de propaganda, e o narrador de 1906 antecipa e desmente o futuro demagogo de 1930.

Abdera, a cidade trácia do Egeu, que atualmente é Balastra e que não se deve confundir com a homônima bética, era célebre por seus cavalos.

Primar na Trácia por seus cavalos não era pouco; e Abdera primava a ponto de ser única. Todos os habitantes gabavam-se da educação de tão nobre animal; e essa paixão, cultivada com afinco durante longos anos, havia produzido efeitos maravilhosos. Os cavalos de Abdera gozavam de fama excepcional, e todos os povos trácios, dos cícones aos bisaltes, nisso eram tributários dos bístones, habitantes da mencionada cidade. Deve-se acrescentar que tal ofício, unindo o proveito à satisfação, ocupava todos, do rei ao último morador.

Essa circunstância havia também contribuído a estreitar as relações entre o bruto e seus donos, muito mais do que era e é habitual para o resto das nações; consideravam mesmo as cavalariças como uma extensão do lar e extremavam os naturais exageros de toda paixão, a ponto de se admitirem cavalos à mesa.

Eram verdadeiramente notáveis corcéis, mas ainda animais, afinal. Uns dormiam em lençóis de linho; havia estábulos com afrescos singelos, pois não poucos veterinários afirmavam o gosto artístico da raça cavalar, e o cemitério eqüino ostentava, entre pompas burguesas, decerto excessivas, duas ou três obras-primas. O templo mais belo da cidade era consagrado a Arión, o cavalo que Netuno fez sair da terra com um golpe de seu tridente; e creio que a moda de rematar as proas com cabeças de cavalo tenha igual proveniência; o que é certo, em todo caso, é que os baixos-relevos hípicos foram o ornamento mais comum de toda aquela arquitetura. O monarca era quem se mostrava mais resoluto em prol dos corcéis, chegando a tolerar verdadeiros crimes dos seus, que se tornaram singularmente bravios, de modo que os nomes de Podargo e Lampo1 [1 ] Podargo e Lampo: dois dos animais que puxam o carro de Heitor ( Ilíada VIII, 185); Podargo é ainda o nome de um dos cavalos de Menelau ( Ilíada XXIII, 295). [NT] figuravam em fábulas sombrias; pois vale dizer que os cavalos tinham nomes, como se fossem pessoas.

Tão amestrados eram aqueles animais, que as bridas eram desnecessárias; eram conservadas apenas como adornos, de resto muito apreciados pelos próprios cavalos. A palavra era o meio usual de comunicação com eles; e, observando-se que a liberdade favorecia o desenvolvimento de suas qualidades, deixavam-nos, todo o tempo não reclamado pela albarda ou pelo jaez, em liberdade de cruzar à vontade as magníficas pastagens plantadas no subúrbio às margens do Cossinito para seu recreio e alimentação.

Convocavam-nos a som de trompa quando era preciso, e tanto para o trabalho como para a ração eram pontualíssimos. Beirava o incrível sua habilidade para toda espécie de números de circo e até de salão, sua bravura nos combates, sua discrição nas cerimônias solenes. Assim, tanto o hipódromo de Abdera como as companhias de funâmbulos, a cavalaria encouraçada de bronze e os féretros haviam alcançado tal renome que de toda parte acudia gente a fim de admirá-los: mérito dividido igualmente entre domadores e corcéis.

Essa educação persistente, esse apuro forçado das qualidades e, para dizê-lo numa só palavra, essa humanização da raça eqüina engendrava um fenômeno que os bístones festejavam como outra glória nacional: a inteligência dos cavalos começava a desenvolver-se a par de sua consciência, produzindo-se casos anormais, que alimentavam o comentário geral.

Uma égua exigira espelhos em seu estábulo, arrancando-os com os dentes da própria alcova de seu dono e destruindo a coices os de três folhas, quando não quiseram atender-lhe o gosto. Concedido o capricho, dava mostras de coqueteria perfeitamente visível.

Bálio,2 [2 ] Bálio: cavalo imortal de Aquiles, filho de Zéfiro e da harpia Podarga ( Ilíada XVI, 149 e XIX, 400). [NT] o mais belo potro da comarca, um animal branco, elegante e sentimental que vinha de duas campanhas militares e manifestava deleite com a récita de hexâmetros heróicos, morrera havia pouco por amor a uma dama. Era a mulher de um general, dono do bruto enamorado, e obviamente não ocultava o acontecido. Dizia-se até que o caso lisonjeava sua vaidade, sendo isso, aliás, muito natural na eqüestre metrópole.

Registravam-se igualmente casos de infanticídio que, aumentando de forma alarmante, foi necessário corrigir com a presença de velhas mulas adotivas; um gosto crescente por peixe e cânhamo, cujas plantações os animais saqueavam; e várias rebeliões isoladas que foi preciso reprimir, sendo insuficiente o látego, à força de ferro candente. Estes últimos casos repetiram-se, pois o instinto de rebelião progredia, apesar de tudo.

Os bístones, cada vez mais encantados com os cavalos, não tomavam tento. Outros fatos, mais significativos, produziram-se pouco tempo depois. Dois ou três animais de tiro haviam feito causa comum contra um carroceiro que açoitava uma égua rebelde. Os cavalos resistiam mais e mais ao arreio e à canga, a tal ponto que se começou a preferir o asno. Havia animais que não aceitavam determinado arreio; mas, como pertenciam aos ricos, transigia-se com a rebelião, comentada mimosamente, a título de capricho.

Um dia, os cavalos não acudiram ao som da trompa e foi preciso conduzi-los à força; contudo, nos dias seguintes, não se repetiu a rebelião.

Esta afinal começou certa ocasião em que a maré tornou a cobrir a praia de peixes mortos, como costumava acontecer. Os cavalos enfastiaram-se e foram vistos regressando à campina suburbana com lentidão sombria.

Era meia-noite quando estalou o singular conflito.

Subitamente, um trovejar surdo e persistente abalou o âmbito da cidade. Todos os cavalos puseram-se em movimento de uma vez, a fim de assaltá-la, como logo se soube, imperceptíveis à sombra da noite e com a surpresa do inesperado.

Como as pastagens ficavam entre as muralhas, nada pôde conter a agressão; somando-se o conhecimento minucioso que os animais tinham dos domicílios, ambas as coisas aumentaram a catástrofe.

Noite memorável entre todas, seus horrores só apareceram quando o dia veio pô-los em evidência, multiplicando-os ainda.

As portas arrebentadas a coices jaziam pelo chão, dando passagem a ferozes manadas que se sucediam quase sem interrupção. Havia corrido sangue, pois não poucos moradores caíram esmagados sob o casco e os dentes da tropa, em cujas fileiras causaram estragos também as armas humanas.

Abalada por tropéis, a cidade escurecia-se com a poeirada que engendravam; e um estranho tumulto, feito de gritos de cólera ou de dor, relinchos variados como palavras, aos quais misturava-se aqui e ali um doloroso zurro, e estampidos de coices contra as portas atacadas, vinha unir seu espanto ao pavor visível da catástrofe. Uma espécie de terremoto incessante fazia vibrar o chão com o trote da massa rebelde, volta e meia exaltado como em rajadas de furacão por frenéticos tropéis sem rumo nem alvo; pois, tendo saqueado todas as plantações de cânhamo e até mesmo algumas adegas que aqueles corcéis pervertidos pelos refinamentos da mesa cobiçavam, grupos de animais ébrios aceleravam a obra de destruição. Pelo lado do mar, era impossível fugir. Os cavalos, conhecendo a missão das naves, fechavam o acesso ao porto.

Apenas a citadela permanecia incólume, e começavam a organizar nela a resistência. Prontamente cobriam de dardos todo cavalo que passasse por ali; e, quando caía perto, arrastavam-no para o interior, como provisão.

Entre os moradores refugiados circulavam os mais estranhos rumores. O primeiro ataque não fora mais que um saque. Derrubadas as portas, as manadas introduziam-se nos cômodos, atentas tão-somente aos panos suntuosos com que tentavam vestir-se, às jóias e aos objetos brilhantes. A oposição a seus desígnios suscitara a fúria.

Outros falavam de monstruosos amores, de mulheres atacadas e esmagadas em seus próprios leitos com ímpeto bestial; e até mesmo mencionava-se uma nobre donzela que, soluçando, narrava entre duas crises suas agruras: o despertar na alcova à meia-luz do lampião, roçados seus lábios pela ignóbil cara de um potro negro que respingava os beiços de prazer, exibindo a dentadura asquerosa; o grito de pavor diante daquele animal convertido em fera, com o brilho humano e malévolo dos olhos incendiados de lubricidade; o mar de sangue com que a inundara ao cair atravessado pela espada de um criado...

Mencionavam-se vários assassinatos em que as éguas haviam-se divertido com sanha feminina, estropiando as vítimas aos mordiscos. Os asnos foram exterminados, e as mulas sublevaram-se também, mas com torpeza inconsciente, destruindo por destruir e particularmente encarniçadas contra os cães.

O retroar das correrias ensandecidas continuava a estremecer a cidade, e o fragor dos desmoronamentos aumentava. Era urgente organizar uma surtida, por mais que o número e a força dos atacantes a tornassem singularmente perigosa, caso não quisessem abandonar a cidade à mais insensata destruição.

Os homens começaram a se armar; mas, passado o primeiro momento de desvario, os cavalos tinham-se decidido a atacar também.

Um brusco silêncio precedeu o assalto. Da citadela, distinguia-se o terrível exército que se congregava, não sem trabalho, no hipódromo. Isso tardou várias horas, pois, quando tudo parecia disposto, súbitos pinotes e agudíssimos relinchos, cuja causa era impossível discernir, desordenavam profundamente as fileiras.

O sol declinava quando se produziu a primeira carga. Não foi, se é que a frase é cabível, mais que uma demonstração, pois os animais limitaram-se a passar correndo diante da citadela. Em revanche, foram crivados pelas setas dos defensores.

Do mais remoto extremo da cidade lançaram-se uma vez mais, e seu choque contra as defesas foi formidável. A citadela retumbou inteira sob a tempestade dos cascos, e suas rijas muralhas dóricas foram, a bem da verdade, profundamente combalidas.

Sobreveio uma retirada, à qual se sucedeu logo um novo ataque.

Os que demoliam eram cavalos e mulos ferrados, que tombavam às dúzias; mas suas fileiras cerravam-se com encarniçamento furioso, sem que a massa parecesse diminuir. O pior era que alguns haviam conseguido vestir as cotas de combate, em cuja malha de aço embotavam-se os dardos. Uns traziam faixas de tecido vistoso, outros usavam colares; e, pueris mesmo em seu furor, ensaiavam inesperadas travessuras.

Das muralhas, reconheciam-nos. Dino, Éton, Amateu, Xanto!3 [3 ] Xanto: cavalo imortal de Aquiles que profetiza a morte do herói ( Ilíada XVI, 149 e XIX, 400, 405, 420); e outro dos cavalos de Heitor ( Ilíada VIII, 185), ao lado de Éton, que é também um dos cavalos do Sol nas Metamorfoses (II, 153) de Ovídio. [NT] E eles saudavam, relinchavam exultantes, arqueavam o rabo, investindo em seguida com fogosos coices. Um deles, certamente um chefe, erguendo-se sobre os jarretes, caminhou assim um trecho, golpeando galhardamente o ar, como se dançasse um marcial bailado, meneando o pescoço com serpentina elegância, até que um dardo se lhe cravou em pleno peito...

Enquanto isso, o ataque triunfava. As muralhas começavam a ceder.

Subitamente, um alarme paralisou os animais. Uns sobre os outros, apoiando-se em ancas e lombos, esticaram o pescoço na direção da alameda que bordejava a margem do Cossinito; e os defensores, voltando-se na mesma direção, contemplaram um tremendo espetáculo.

Dominando o arvoredo negro, espantosa contra o céu da tarde, uma colossal cabeça de leão fitava a cidade. Era uma dessas feras antediluvianas cujos exemplares, cada vez mais raros, devastavam de tempo em tempo os montes Ródopes. Mas nunca se vira nada tão monstruoso, pois aquela cabeça dominava as mais altas árvores, misturando às folhas tingidas de crepúsculo as grenhas de sua melena.

Brilhavam claramente as enormes presas, percebiam-se os olhos apertados contra a luz, chegava com o hálito da brisa o olor bravio. Imóvel entre a palpitação da folhagem, a juba gigantesca enferrujada pelo sol até quase se dourar, erguia-se contra o horizonte como um desses blocos em que o pelasgo, contemporâneo das montanhas, esculpiu suas bárbaras divindades.

E de repente começou a andar, lento como o oceano. Ouvia-se o rumor das copas que seu peito apartava, a respiração de fornalha que sem dúvida faria estremecer a cidade, ao se transformar em rugido.

Apesar de sua força prodigiosa e de seu número, os cavalos sublevados não suportaram semelhante aproximação. Um só ímpeto arrastou-os pela praia, em direção à Macedônia, levantando um verdadeiro furacão de areia e de espuma, pois não poucos disparavam através das ondas.

Na citadela, reinava o pânico. Que poderiam contra semelhante inimigo? Que gonzo de bronze resistiria a suas mandíbulas? Que muro a suas garras?...

Começavam já a preferir o passado risco (afinal, era uma luta contra animais civilizados), sem ânimo nem sequer para armar os arcos, quando o monstro deixou a alameda.

Não foi um rugido o que brotou de sua cara, mas um grito de guerra humano: o bélico alalé dos combates, ao que responderam com regozijo triunfal os hoyohei e os hoyotohó da fortaleza.

Glorioso prodígio!

Sob a cabeça do felino, irradiava luz superior o rosto de um nume; e, entremeados soberbamente à fulva pele, ressaltavam o peito marmóreo, os braços de azinheira, os músculos estupendos.

E um grito, um só grito de liberdade, de reconhecimento, de orgulho tomou a tarde:

— Hércules, é Hércules que chega!

  • [1
    ] Agradeço a leitura e as sugestões de Adriane Duarte, Ana Paula Pacheco, Marta Kawano, Bernardo Carvalho, Flávio Moura, Márcio Suzuki e Paulo Schiller.
  • [2
    ] Raimundo Lida, "Notas a Borges", in
    Cuadernos Americanos 2, março-abril de 1951, pp. 286-288, recolhido in J. Alazraki (org.),
    Jorge Luis Borges (Madrid: Taurus, 1976), pp. 75-77; o grifo é meu.
  • [3
    ] Cf. "Leopoldo Lugones,
    Romancero" (1924), in
    El tamaño de mi esperanza (Buenos Aires: Seix Barral, 1994 [1926])
  • [4
    ] Cf. a respeito Gwen Kirkpatrick,
    The Dissonant Legacy of Modernismo (Berkeley: University of California Press, 1989), capítulo 2.
  • [5
    ] "Las 'nuevas generaciones' literarias", artigo publicado em 1937 na revista
    El Hogar e recolhido por Borges e Betina Edelberg no volume
    Leopoldo Lugones (1955 e 1965); cf. J. L. Borges,
    Obras completas en colaboración (Buenos Aires: Emecé, 1991), p. 498.
  • [6
    ] "Kafka y sus precursores" (1951), incluído em
    Otras inquisiciones (1952); cf.
    Obras completas (Buenos Aires: Emecé, 1985) p. 712.
  • [7
    ] J. L. Borges,
    Leopoldo Lugones, ed. cit., p. 495. Borges incluiu os quatro na antologia de Lugones que preparou para sua coleção Biblioteca de Babel:
    La estatua de sal (Madrid: Siruela, 1986).
  • [8
    ] Davi Arrigucci Jr., "Enigma e comentário", in
    Enigma e comentário (São Paulo: Companhia das Letras, 1987), p. 228.
  • [9
    ] Cf. a edição dos
    Cuentos fantásticos aos cuidados de Pedro Luis Barcia (Madrid: Castalia, 1987), p. 38.
  • [10
    ] Cf., entre outros, Davi Arrigucci Jr., "Da fama e da infâmia", in
    Enigma e comentário, ed. cit., pp. 193-226; Marina Kaplan, "'Tlön, Uqbar, Orbis Tertius' y
    Urn Burial", in
    Comparative Literature 36.4 (1984), pp. 328-342; Beatriz Sarlo,
    Borges, un escritor en las orillas (Buenos Aires: Seix Barral, 2003 [1993]); e Daniel Balderston,
    ¿Fuera de contexto? (Rosario: Beatriz Viterbo, 1996 [1993].
  • [11
    ] J. L. Borges, Leopoldo Lugones, ed. cit., p. 495.
  • [1
    ] Podargo e Lampo: dois dos animais que puxam o carro de Heitor (
    Ilíada VIII, 185); Podargo é ainda o nome de um dos cavalos de Menelau (
    Ilíada XXIII, 295). [NT]
  • [2
    ] Bálio: cavalo imortal de Aquiles, filho de Zéfiro e da harpia Podarga (
    Ilíada XVI, 149 e XIX, 400). [NT]
  • [3
    ] Xanto: cavalo imortal de Aquiles que profetiza a morte do herói (
    Ilíada XVI, 149 e XIX, 400, 405, 420); e outro dos cavalos de Heitor (
    Ilíada VIII, 185), ao lado de Éton, que é também um dos cavalos do Sol nas
    Metamorfoses (II, 153) de Ovídio. [NT]
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jun 2006
    • Data do Fascículo
      Mar 2006
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