Acessibilidade / Reportar erro

Big data, rastreabilidade e assimetrias de informação: opacidade, ingerência e democracia

Big Data, Traceability and Information Asymmetries: Opacity, Interference and Democracy

Resumo

O objetivo deste trabalho é duplo: por um lado, pretendo estudar as principais características dos diferentes mercados ligados às plataformas eletrônicas e às redes sociais e, por outro lado, elaborar uma função de bem-estar social para tentar capturar as externalidades positivas e negativas produzidas pelo desenvolvimento desses mercados. Ressaltarei as assimetrias da informação que caracterizam a dinâmica desses mercados e estudarei as implicações ligadas à opacidade deste sistema. Em uma primeira parte, ressaltarei as principais características dos mercados ligados a esta economia digital. Em uma segunda parte, estudarei esta economia em relação a uma função específica de bem-estar. Em uma terceira parte, mostrarei em que medida aparecem novas formas de assimetrias da Informação nesses mercados, e estudarei as implicações em termos de bem-estar social, a partir das dimensões econômicas, jurídicas e políticas.

Palavras chaves:
Economia Digital; Externalidades; Bem-Estar Social; Democracia

Abstract

This paper aims two goals: on the one hand, I will study the main characteristics of the different markets linked to electronic platforms and social networks. On the other hand, I will elaborate a function of social welfare to capture the positive and negative externalities produced by the development of these markets. I will highlight the information asymmetries that characterize the dynamics of these markets and study the implications linked to the opacity of this system. In a first part, I will highlight the main characteristics of the markets linked to this digital economy. In a second part, I will study this economy in relation to a specific welfare function. In a third part, I will show to what extent new forms of information asymmetries appear in these markets, and I will study the implications in terms of social welfare, emphasizing the economic, legal and political dimensions.

Keywords:
Digital Economy; Externalities; Social Welfare; Democracy

1 Introdução

«La publicite est la sauvegarde du peuple. »

(A Publicidade é a salvaguarda do povo. Frase pronunciada em Paris, no dia 13 de agosto de 1789, por Jean-Sylvain Bailly, o primeiro prefeito da Comuna de Paris.)

1.1 O objetivo deste trabalho é duplo: por um lado, estudarei os principais mecanismos econômicos que caracterizam os diferentes mercados ligados às plataformas eletrônicas e às redes sociais, e definirei a natureza econômica dos bens e dos serviços e as modalidades concretas de criação de valor. Por outro lado, vou elaborar uma função de bem-estar social para capturar as externalidades positivas e negativas produzidas pelo desenvolvimento desses mercados. No que diz respeito às externalidades negativas, darei uma atenção particular às assimetrias de informação que esses mercados produzem, e ressaltarei a opacidade dessa economia digital. Para alcançar tal objetivo, utilizarei amplamente os trabalhos de Akerlof (1970AKERLOF, G. A. The market for “lemons”: quality uncertainty and the market mechanism. The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, p. 488-500, Ago. 1970.) e de Grossman e Stiglitz (1976GROSSMAN, S. J.; STIGLITZ, J. Information and competitive price system. American Economic Review, v. 66, n. 2, p. 246-253, May 1976.; 1980) que tratam das assimetrias de informação e de suas implicações em termos de bem-estar social.

1.2 À luz dessas análises, questionarei as interpretações neoclássicas e suas principais conclusões, e proporei uma explicação alternativa. A abordagem neoclássica considera que o sistema dos Big Data é uma ferramenta neutra que permite revelar com mais precisão as preferências dos indivíduos e prever seus comportamentos:

  • a) Para Varian (2013VARIAN, H. R. Beyond Big Data. Presented at the NABE Annual Meeting, Sept. 10, San Francisco, CA, 2013.), por exemplo, o objeto da economia digital dos Big Data consiste em extrair dados, em definir com uma precisão maior o perfil dos diferentes grupos de consumidores, em prever os comportamentos de compra e em monitorar seus comportamentos quando se estabelece um contrato (o caso dos contratos de seguro, por exemplo).

  • b) Esse autor (2001, p. 27) afirma que

(…) 3) a perfectly discriminating monopolist can capture all surplus for itself and therefore produce Pareto efficient output, and 4) competition among perfectly discriminating monopolists will transfer this surplus to consumers, yielding the same outcome as pure competition.

Esse resultado é parecido com aquele da teoria dos mercados contestáveis de Baumol (1982BAUMOL W. J. Contestable markets: An uprising in the theory of industry structure, American Economic Review, v. 72, n. 1, 1982.): trata-se de uma abordagem normativa, as empresas maximizam seu lucro, igualando custo marginal e receita marginal, e a eficiência social é avaliada a partir do ótimo de Pareto.

Obviamente, Varian mostra que esses mercados não são mercados de concorrência pura e perfeita. Não obstante, o referencial teórico continua sendo neoclássico: a realidade é estudada a partir dos desvios que ela apresenta, em relação a um estado concorrencial, sendo que essa concorrência é definida pela contestabilidade dos mercados; a discriminação pelos preços permite manter essas condições concorrenciais (Varian, 2001, p. 27).

  • c) Finalmente, o sistema dos Big Data é concebido como a concretização do sistema de preços concorrenciais: ele transmite, sem custos, as informações que permitem alcançar uma situação de ótimo social (Arrow, 1974ARROW, K. J. General economic equilibrium: purpose, analytic techniques, collective choice. The American Economic Review, v. 64, n. 3 (June 1974), p. 253-272, 1974.) (a hipótese do self enforcement).

A problemática aqui trabalhada se situa no mesmo nível analítico que os trabalhos dos autores com os quais dialogo: apesar de citar várias referências empíricas, a argumentação é essencialmente teórica, no sentido de ela não ser baseada sobre verificações empíricas sistemáticas.1 1 Sem entrar no debate epistemológico, que não cabe no âmbito deste artigo, é preciso observar que a epistemologia moderna pós-popperiana reconhece que a verificação empírica não permite definir um critério de demarcação (Lakatos, 1970; Kuhn, 1962).

1.3 Nas ciências sociais, e mais especificamente na ciência econômica, são dois tipos de interpretações, no que diz respeito a essa economia digital liderada pelos Big Data:

  • a) A primeira tese, sustentada pelos economistas neoclássicos, interpreta essa economia como uma concretização da concorrência, a partir do conceito de contestabilidade dos mercados, e da eficiência social que lhe é ligada; é a posição de Varian, em seus diversos trabalhos.

As ferramentas utilizadas pelas plataformas são neutras: elas permitem conhecer com maior profundidade as preferências dos indivíduos sem modificá-las. Até que ponto os algoritmos, que têm por objetivo uma análise do comportamento dos consumidores, não são utilizados para modificar esse comportamento? A suposta neutralidade parte do pressuposto segundo o qual as ferramentas utilizadas permitem estudar “objetivamente” o comportamento dos consumidores sem modificá-lo.

A partir das atividades de previsão, essas ferramentas permitem reduzir drasticamente a incerteza, o que corresponde à hipótese de ergodicidade, ou seja, ao fato de as expectativas serem realizadas.

Por outro lado, os algoritmos utilizados pelos Big Data permitem igualmente realizar os ajustamentos instantâneos dos preços, em relação às variações da oferta e da demanda. Os preços são totalmente flexíveis e transmitem a totalidade da informação para os agentes que participam das transações.2 2 Essa mesma hipótese é adotada por Fama (1998) e Tirole (2016), por exemplo, quando esses autores estudam os mercados financeiros.

Na sociologia, essa abordagem corresponde às teses que concebem a internet como um meio técnico que conseguiu superar as contradições do sistema capitalista: os cidadãos teriam acesso à inteligência coletiva, isto sendo comparado com a democracia grega (Lévy, 1990LÉVY, P. Les technologies de l’intelligence. L’avenir de la pensée à l’ère informatique, Paris: La Découverte. Coll. Sciences et Société, 1990.), ou com o acesso ao conhecimento comum (Negri; Lazzarato, 2001NEGRI, A; LAZZARATO, M. Trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.).

  • b) A segunda tese, ao contrário, formula conclusões totalmente diferentes: a partir dos conceitos de assimetria da informação, na continuidade dos trabalhos seminais de Akerlof (1970AKERLOF, G. A. The market for “lemons”: quality uncertainty and the market mechanism. The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, p. 488-500, Ago. 1970.), Arrow (1974ARROW, K. J. General economic equilibrium: purpose, analytic techniques, collective choice. The American Economic Review, v. 64, n. 3 (June 1974), p. 253-272, 1974.), Grossman e Stiglitz (1976GROSSMAN, S. J.; STIGLITZ, J. Information and competitive price system. American Economic Review, v. 66, n. 2, p. 246-253, May 1976.), é possível afirmar que o jogo do mercado não é socialmente eficiente. A opacidade intrínseca do sistema, e os comportamentos oportunistas que essa opacidade permite desenvolver, fazem com que o jogo do mercado deixe de ser socialmente eficiente: isso se traduz, concretamente, pela intensificação da desigualdade de renda e pelo fortalecimento das posições dominantes nesses mercados.

A partir de uma perspectiva ligada à sociologia política, o desenvolvimento da economia digital pode representar uma ameaça no que diz respeito à manutenção das condições que correspondem ao exercício do jogo democrático (Zuboff, 2019ZUBOFF, S. (2019). Un capitalisme de surveillance. Le Monde Diplomatique, janv. 2019.; van Dijck, 2014). Em última instância, essa interpretação refuta a tese da neutralidade das ferramentas utilizadas pelas redes sociais e pelos Big Data: “Researchers endorsing the datafication paradigm tend to echo these claims concerning the nature of social media data as natural traces and of platforms as neutral facilitators.” (van Dicjk, 2013, p. 199). Neste trabalho, propõe-me questionar, do duplo ponto de vista econômico e sociológico, a pretendida neutralidade da ferramenta tecnológica com as quais atuam os Big Data.

1.4 A passagem de um capitalismo industrial e fordista para um capitalismo “imaterial”, ou seja, pós-fordista, corresponde exatamente à hipótese braudeliana (Braudel, 1985BRAUDEL, F. La dynamique du capitalisme. Paris: Champs Flammarion, 1985.; Herscovici, 2014HERSCOVICI, A. As metamorfoses do valor: capital intangível e hipótese substancial. Reflexões a respeito da historicidade do valor. Liinc em Revista, v. 10, n. 2, 2014. Disponível em: <http://revista.ibict.br/liinc/article/view/3588>. Acesso em: 4 set. 2018.
http://revista.ibict.br/liinc/article/vi...
): o capitalismo se desenvolve a partir de uma extensão social e geográfica da lógica de mercado. Em outras palavras, o capitalismo não se desenvolve mais a partir de uma primazia da indústria, mas a partir da extensão da lógica mercantil aplicada a várias áreas da produção social: produção simbólica e cultural, a partir do século XVII e, hoje, conhecimento e informação. O desenvolvimento das plataformas digitais e das redes sociais se inscreve nessas evoluções de longo prazo; essas mudanças se traduzem por modificações substanciais no que diz respeito à própria dicotomia entre o Econômico e o extraeconômico, à natureza do capital e do trabalho e às suas modalidades de remuneração.

1.5 Em uma primeira parte, ressaltarei as principais características dos mercados ligados a essa economia digital. Em uma segunda parte, analisarei essa economia em relação a uma função específica de bem-estar. Em uma terceira parte, mostrarei em que medida aparecem novas formas de assimetrias da informação nesses mercados, e estudarei as implicações em termos de bem-estar social.

2 As novas formas de expansão dos mercados: o desenvolvimento das redes sociais

2.1 As lógicas globais

2.1.1 Os diferentes tipos de mercado

A partir dos anos 2000, é possível falar em consolidação e expansão da economia digital: o sistema superou a fase deficitária que caracteriza a criação de uma rede e alcançou a massa crítica a partir da qual essas redes se tornaram rentáveis. O sistema conseguiu construir um modo de regulação setorial economicamente viável, baseado sobre o desenvolvimento dos mercados intermediários, ou seja, sobre a venda de audiência e, posteriormente, de dados, para os diferentes anunciantes e agentes. As diversas plataformas eletrônicas desenvolvem uma estratégia de double-sided markets: é possível alcançar de maneira eficiente públicos específicos e garantir, assim, uma eficiência maior da mensagem publicitária.

A passagem do fordismo para a fase atual implicou profundas modificações relativas às modalidades de regulação dos Sistemas de Informação e de Comunicação. A utilização crescente de algoritmos cada vez mais complexos e sofisticados teve as seguintes implicações: permitiu coletar uma série de dados, determinar as trajetórias sociais e culturais dos diferentes usuários e orientar essas trajetórias; isso representa, sem dúvida, uma fonte de financiamento importante para essas plataformas eletrônicas. Nos limites permitidos pelas regulamentações vigentes, e também além desses limites, esses dados podem ser vendidos a diferentes atores e utilizados, por esses mesmos atores, a fins econômicos e/ou políticos.

A esse respeito, é preciso formular as seguintes observações:

  • a) O desenvolvimento ligado à venda desses dados corresponde a uma mercantilização crescente das atividades sociais, mercantilização que caracteriza o capitalismo. Assim, não é possível separar, analiticamente, o desenvolvimento dos mercados ligados à venda de audiência daqueles ligados à venda desses dados.

  • b) À medida que esses dados podem ser utilizados tanto para fins comerciais quanto políticos, não é possível estudar separadamente as esferas econômica e política. Não existe neutralidade das ferramentas econômicas; a regulamentação desse setor não pode se limitar às atividades “puramente” econômicas, mas tem que atuar igualmente na esfera política.

É preciso ressaltar que essa dataveillance3 3 Esse conceito utilizado por van Dijck (2014) significa que o controle é implementado a partir da coleta quase exaustiva de dados relativos aos usuários das plataformas. é intrinsecamente diferente do conceito tradicional de controle (surveillance em francês): na concepção tradicional, o controle é exercido geralmente de maneira descontínua, em relação a um objeto específico, no que concerne a apenas uma parte da população. A dataveillance, ao contrário, é exercida de maneira contínua, sobre a quase totalidade da população, sem definir um objeto específico de controle: os dados assim recolhidos podem ser objetos de vários tipos de utilizações, essas utilizações não sendo conhecidas pelos usuários (van Dijck, 2014, p. 12).

Essa dataveillance não se limita ao comportamento econômico dos usuários/consumidores: à medida que ela se relaciona com os perfis culturais, psicológicos e políticos das audiências, ela pode ser um instrumento particularmente eficiente de “manipulação”. Por exemplo, é possível definir de uma maneira muito mais precisa o impacto efetivo de determinadas fake news, a partir do conhecimento aprofundado de certos segmentos do público; assim, é possível induzir certas escolhas econômicas e/ou políticas.

Finalmente, a eficiência informativa desses algoritmos permite elaborar expectativas muito mais confiáveis, pelo fato de elas serem estabelecidas a partir de uma amostra muito mais representativa do público. Conforme reconhece o próprio Varian (2013VARIAN, H. R. Beyond Big Data. Presented at the NABE Annual Meeting, Sept. 10, San Francisco, CA, 2013.), a coleta e a análise dos dados, a partir de algoritmos cada vez mais potentes, permitem elaborar previsões muito mais finas e, consequentemente, diminuir consideravelmente a margem de erro dessas previsões, tanto no que diz respeito às compras realizadas pelo consumidor quanto a seus comportamentos, no caso dos seguros, por exemplo: a esse respeito, Shoshana Zuboff (2019ZUBOFF, S. (2019). Un capitalisme de surveillance. Le Monde Diplomatique, janv. 2019., p. 9) afirma que “(...) a certeza substitui a incerteza (...)”.

2.1.2 As redes sociais e as plataformas digitais

As redes sociais e as plataformas digitais constituem espaços de legitimação e de acumulação do capital simbólico; essas plataformas têm que ser concebidas como espaços sociais “extraeconômicos” dentro dos quais se cria o valor de uso, ou seja, a utilidade social de determinados bens e serviços. A informação assim produzida aparece como “gratuita” à medida em que releva de uma lógica de acumulação simbólica à la Bourdieu (1977BOURDIEU, P. La production de la croyance: contribution à une économie des biens symboliques. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 13, févr. p. 4-44, 1977.) (a denegação das práticas econômicas usuais), dos processos de legitimação no seio desse novo espaço público, ou de uma economia da dádiva, no sentido definido por Mauss (1923-1924).

Em que medida as estratégias desenvolvidas pelos Big Data se traduzem por uma redefinição da dicotomia entre o Econômico e o Social? Polanyi afirma que “(...) o sistema econômico é uma simples função da organização social” (1983POLANYI, K. La grande transformation. Aux origines politiques et économiques de notre temps. Paris: Gallimard, 1983., p. 79); não obstante, conforme mostrarei neste trabalho, a perda de autonomia do Social em relação ao Econômico inverte a relação de causalidade. Segundo Polanyi, a regulação do sistema se explica a partir de variáveis não econômicas (Idem.). Esta inversão de causalidade significa que o Social é regulado pelo Econômico; o sistema econômico regula o conjunto dos sistemas sociais, políticos, culturais etc. Se o mercado não é uma instância autorreguladora, coloca-se o problema da ausência de regulação da sociedade e das fraturas próprias a este tipo de situação.

2.2 A extensão da lógica de mercado e a natureza econômica da informação: da venda de audiência ao rastreamento.

2.2.1 A diferentes modalidades de ampliação da lógica de mercado

Essa extensão da lógica de mercado, no sentido braudeliano, foi implementada a partir de duas dimensões: a primeira se relaciona diretamente com uma extensão social e geográfica. Por exemplo, a partir dos trabalhos da New Law and Economics, de Chicago, foram criados mercados ligados à troca dos direitos de poluição entre os diferentes países; é possível falar assim em ampliação extensiva.

Da mesma maneira que o capitalismo, durante a primeira revolução industrial, se desenvolveu a partir da exploração dos recursos naturais, atualmente, ele amplia sua lógica para os recursos imateriais e simbólicos4 4 A respeito dos recursos simbólicos, ver o conceito de Economia da Diferenciação (Herscovici, 1995). , notadamente, a informação. Essa exploração sistemática só se tornou possível com o desenvolvimento das modalidades de codificação, de digitalização, de compressão e de disponibilização virtual dessas informações.

Essas evoluções históricas ressaltam esse movimento: os primeiros mercados intermediários apareceram e se desenvolveram com a imprensa, o rádio e a televisão aberta. Esses consistiam em vender as modalidades de acesso às audiências e se tornaram uma fonte de financiamento importante para os principais veículos de comunicação durante o fordismo. Hoje, é possível falar em uma ampliação intensiva das lógicas mercantis: além de vender o acesso a determinadas audiências, ela consiste em desenvolver e expandir outras fontes de financiamento ligadas à rastreabilidade do comportamento dos usuários. Ela recompõe as trajetórias sociais desses usuários e revende esses dados para outros agentes, com fins comerciais e/ou políticos.

2.2.2 Natureza dos mercados e natureza da informação

É preciso distinguir os diferentes tipos de mercados, em função dos diferentes tipos de informação. À cada tipo de mercado corresponde um determinado tipo de informação e um determinado tipo de relação de troca.

O mercado primário se define em função de sua relação direta com o consumidor/usuário final: o leitor do jornal, o público das mídias tradicionais e o usuário das redes sociais. Nas redes sociais, a informação de primeiro grau pode ser produzida na rede ou fora desta, mas ela é distribuída gratuitamente (ou semigratuitamente) pela plataforma: os vídeos de YouTube, as fotos de Instagram, os artigos publicados em revistas e acessíveis no Google, por exemplo, etc. Este tipo de serviço é um bem coletivo, não apropriável individualmente, não (ou pouco) monetizado, não exclusivo e indivisível. Por outro lado, a informação constitui um insumo fornecido gratuitamente pelo consumidor/usuário, insumo que será explorado pelas plataformas eletrônicas e pelos diferentes agentes nos mercados intermediários.

Pelo próprio fato de frequentar as redes sociais, os usuários produzem informações relativas às suas trajetórias sociais e culturais, informações que serão rastreadas, coletadas e organizadas pelas plataformas digitais e pelos diferentes sistemas de coleta dos dados dos Big Data; qualificarei essas informações de informações de segundo grau. Nesse tipo de mercado, o usuário/consumidor produz uma informação bruta; a esse respeito, Van Dijck (2014, p. 5) fala em raw material.

A distinção entre esses dois tipos de informação é importante: enquanto as informações de primeiro grau são cedidas e disponibilizadas conscientemente na rede, pelo usuário, as informações de segundo grau não são disponibilizadas consciente nem voluntariamente pelos usuários na rede: à medida que, por exemplo, existem legislações relativas à proteção dos dados pessoais, e que as plataformas não respeitam essas legislações, essas informações são “roubadas”, sem que os usuários o saibam. As informações de segundo grau são produzidas pelos usuários, nos mercados primários, coletadas e vendidas nos mercados secundários: a opacidade nasce a partir desses mecanismos, pelo fato de os usuários não terem nenhum controle sobre as transações efetuadas nesses mercados secundários.

Esses dois tipos de informações produzidas pelos usuários são informações brutas: é um bem abundante e, consequentemente, não econômico. É uma das razões pelas quais ela aparece como gratuita. O tipo de economia que prevalece nos mercados primários é característica de uma economia de escambo, por natureza não monetizada (Rallet, 2019RALLET, A. Données personnelles et empowerment des consommateurs. Université de Paris Sud 11, févr. 2019.). A plataforma digital se apropria desses dados brutos, fornecendo aos usuários um acesso gratuito ou semigratuito a certos serviços: “(...) users have to give up part of their privacy in exchange for free convenient platform services (...) (van Dijck, 2014, p. 1).

Nos mercados primários, a informação de primeiro grau apresenta as características de não exclusão, indivisibilidade e bem coletivo:

  • a) Não exclusão, pelo fato de os usuários terem um acesso geralmente gratuito à informação disponível na rede.

  • b) Indivisibilidade, pelo fato de o serviço não ser destruído no ato do consumo.

  • c) A informação de primeiro grau é um bem coletivo no seguinte sentido: conforme mostram os diferentes estudos em termos de economia de redes, o estoque total à disposição dos usuários depende diretamente da quantidade total de usuários. As externalidades de demanda (Katz; Shapiro, 1985KATZ, M. L.; SHAPIRO, C. Network externalities, competition and compatibility. American Economic Review, v. 75, n. 3, p. 424-440, 1985.) ressaltam o fato que a utilidade de cada usuário depende diretamente da quantidade total de usuários; essa dimensão coletiva é reforçada pelo caráter cumulativo da produção de informação.

Nos mercados primários, a informação não pode ser objeto de uma apropriação individual: sua apropriação só pode ser coletiva, a partir da constituição de um estoque disponível para a totalidade da coletividade. A informação apresenta as características de um bem patrimonial (Herscovici, 1997HERSCOVICI, A. Economie des réseaux et structuration de l'espace: pour une Economie de la Culture et de la Communication. Sciences de la Société, Toulouse, v. 40, p. 25-38, 1997.): no mercado primário, ela não é objeto de exclusão pelos preços, o que dá conta de sua gratuidade aparente. Não obstante, nos mercados secundários, a informação de segundo grau é objeto de apropriação privada; em função da venda dos dados ligados aos processos de rastreamento, as modalidades de apropriação privada se ampliaram muito além da simples venda de espaços publicitários aos anunciantes.

2.2.3 Mercados secundários e informação de segundo grau: as modalidades de criação de valor

Os mercados secundários se definem pelo fato de eles não se relacionarem diretamente com o consumidor final (ou usuário): eles existem a partir do momento em que as informações “geradas” nos mercados primários já foram coletadas, organizadas e codificadas. Uma vez codificadas, essas informações podem se tornar objetos de trocas monetizadas.

Um dos paradoxos dessa economia é o seguinte: por um lado, esses bens são negociados nos mercados, mas, por outro, eles não são associados a um sistema de direitos de propriedade, sejam ele individualizado ou coletivo: os usuários não têm nenhum controle relativo à natureza dos dados coletados, às utilizações feitas e aos valores pelos quais eles serão negociados. Os agentes que atuam nesses mercados intermediários se beneficiam de uma posição dominante, em termos de informação e de renda, em detrimento dos usuários que produzem a informação bruta e das diferentes instâncias que pretendem regular esse setor.

De um ponto de vista econômico, a informação de segundo grau pode ser comparada com os recursos naturais. Como dado bruto, a informação não produz valor, da mesma maneira que as árvores da floresta também não produzem valor econômico; na sua forma bruta, ela é disponível gratuitamente5 5 É interessante observar que Shoshana Zuboff (2019, p. 5) utiliza a mesma metáfora a respeito dos dados brutos. ; enquanto ela não se torna um insumo em determinado processo mercantil, ela é a condição necessária, mas não suficiente, para gerar valor.

A informação de segundo grau é obrigatoriamente produzida a partir da informação de primeiro grau: os usuários precisam ter incentivos para frequentar a rede, para poder gerar, em um segundo momento, as informações de segundo grau. Essas últimas serão valorizadas nos mercados intermediários pelas plataformas digitais. Em outros termos, o valor social criado nas redes pela divulgação de informações de primeiro grau representa a condição necessária para poder gerar valor econômico a partir dessas informações de segundo grau. Nesse sentido, podemos falar em economia da demanda: nessa economia digital, o consumidor/usuário produz “inconscientemente” a matéria prima que será vendida nos mercados secundários.

Há, por parte dos usuários, uma reapropriação coletiva do valor assim criado, a partir do acesso gratuito às informações de primeiro grau: parcial no caso da “Economia do Google”, total no caso da economia cooperativa/solidária, como os programas livres, por exemplo.

3 Economia do Google e bem-estar social

3.1 Os mecanismos fundamentais

O estoque de informações de primeiro grau é constituído por bens complexos: esses bens são indivisíveis e geradores de externalidades. As externalidades de demanda caracterizam a economia das redes (Katz; Shapiro, 1985KATZ, M. L.; SHAPIRO, C. Network externalities, competition and compatibility. American Economic Review, v. 75, n. 3, p. 424-440, 1985.; Herscovici, 2013HERSCOVICI, A. Economia de redes, externalidades e estruturas de mercado: o conceito de concorrência qualitativa. Revista Brasileira de Inovação, v. 12, n. 1, 2013. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rbi/article/view/8649054.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
). Assim, qualquer mecanismo de exclusão, em termos de acesso, se traduz obrigatoriamente pela diminuição da utilidade de cada usuário.

Essa economia é uma economia de demanda, pelo fato de sua dinâmica ser baseada sobre a quantidade total de usuários. O conceito de utilidade social é um dos elementos-chaves da dinâmica desses mercados; o valor de troca, ou valor de mercado, é determinado a partir dessa utilidade social, ou seja, a partir do valor de uso social. A valorização nos diferentes mercados intermediários (o valor de mercado) depende da criação prévia de um determinado valor (de uso) social. Nessa perspectiva, o Social é integrado ao Econômico, assim como o Jurídico e o Político.

Figura 1
A economia do Google

Na economia do Google, o valor é criado a partir da utilidade social. Não obstante, não é possível assimilar essa economia a uma economia solidária ou cooperativa, contrariamente ao que afirmam vários autores (Negri; Lazzarato, 2001NEGRI, A; LAZZARATO, M. Trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.); nessa economia digital, a produção é intrinsecamente social, enquanto os lucros são auferidos, na sua maior parte, por agentes privados. Isto só se torna possível a partir das assimetrias de informação que constituem uma das principais características desses mercados.

Certos autores (Ostrom; Hess, 2007) ressaltam a existência de modalidades alternativas de governança: a gestão desses bens comuns (commons), geralmente indivisíveis e produtores de fortes externalidades, é implementada a partir de mecanismos coletivos, diferentes tanto da gestão privada quanto da gestão pública. Trata-se de uma gestão não mercantil que pode ser aplicada às mais variadas atividades de produção social: comunidades de pescadores, sistemas bancários de microcrédito, compartilhamento de produções científicas ou artísticas, por exemplo. Ela permite introduzir mais transparência nas modalidades de produção e de distribuição desses bens, pelo fato de não gerar informações de segundo grau e de não criar mercados secundários. A escolha de uma modalidade de governança desse tipo consiste, principalmente, em desconectar o Social do Econômico, e em restaurar assim as condições de uma democracia local autônoma.

3.2 As implicações em termos de bem-estar social

3.2.1 A função de bem-estar

Qual é o impacto social ligado ao desenvolvimento dessa economia digital? Ele é globalmente positivo ou negativo?

Por um lado, o critério de Pareto não é satisfatório pelas seguintes razões:6 6 No que diz respeito aos limites desse critério, ver Arrow (2000), Sen (1982) e Stiglitz (1987). (a) no âmbito de uma abordagem que se caracteriza pelo individualismo metodológico, é impossível conceber a utilidade como o produto das relações interindividuais; (b) as análises realizadas a partir do critério de Pareto consideram que a distribuição inicial da renda é determinada exogenamente; e (c) nesse tipo de abordagem, o valor utilidade é concebido a partir de uma concepção ordinal, o que não permite agregar os valores individuais.

Por outro lado, a dinâmica dos mercados secundários é totalmente incompatível com a existência de um ótimo de Pareto. As relações entre os usuários e plataformas constituem um jogo de soma nula, jogo no qual os usuários não têm conhecimento dos valores reais. Nessas condições, o aumento dos ganhos das plataformas se traduz obrigatoriamente por uma diminuição dos ganhos dos usuários, e a situação não é ótima, do ponto de vista paretiano.

Tendo em vista essas limitações, vou construir uma função de bem-estar social a partir de mecanismos totalmente diferentes: em função das observações anteriores relativas à interdependência entre as esferas econômica e política, é preciso incluir, na função de bem-estar, uma variável que dê conta dessa dimensão política: a variável D, no modelo apresentado aqui.

Essa abordagem é, teórica e metodologicamente falando, diferente daquela apresentada por Shapiro e Varian (1999SHAPIRO, C.; VARIAN, H. Information rules: a strategic guide to the network economy. Boston, Massachusetts: Harvard Business School Press, 1999., p. 311): quando se trata de bem-estar-social, a análise não pode se limitar à esfera econômica, mas ela tem que se relacionar igualmente com a esfera política.

W ( N , D ) = f 1 ( C 1 , C 2 , T C , I n g , E F ) (1)

N; nível do estoque disponível, constituído por informações de primeiro grau.

D: uma variável que dá conta do grau de abertura democrática da coletividade analisada. A partir de uma abordagem ligada à filosofia das Luzes, esse grau de abertura democrática implica o reconhecimento da autonomia do cidadão (definida pela preservação da autonomia da esfera privada, em função da Declaração Universal dos Direitos Humanos), do espaço público, no sentido definido por Habermas, e da esfera política e jurídica. Qualquer mecanismo que ameaça a autonomia dessas atividades sociais tem que ser interpretado como uma diminuição do grau de abertura democrático e, consequentemente, como uma externalidade negativa. Obviamente, as fake news e a utilização de robôs ferem essa autonomia e se assemelham a formas grosseiras de manipulação.

C1: consumo produtivo, ligado ao valor de troca, ou valor de mercado. O estoque é composto por informações de segundo grau.

C2: consumo doméstico, ligado ao valor de uso, ou valor social. O estoque é composto por informações de primeiro grau.

TC: custos de transação

Ing.: ingerência

EF: evasão fiscal

Essa função é caracterizada pelas seguintes relações:

d W d T C < 0 (2)

d W d I n g < 0 (3)

d W d E F < 0 (4)

d W d C 1 < 0 (5)

ou

d W d C 1 0 (5’)

d W d C 2 0 (6)

ou

d W d C 2 < 0 (6’)

Essas relações indicam o impacto negativo ou positivo de cada um desses componentes no que diz respeito ao bem-estar social; este depende diretamente do nível do estoque de informações de primeiro grau e da variável ligada ao grau de abertura democrática.

3.2.2 As implicações em termos de bem-estar social

Os custos de transação representam, na sua definição mais geral, aqueles que as firmas, ou as instituições, têm que assumir para poderem atuar no mercado: custos ligados à concepção, à realização e ao monitoramento dos contratos (Williamson, 2002WILLIAMSON, O. The Theory of the firm as governance structure: from choice to contract. Journal of Economic Prospective, v. 16, n. 3, Summer, 2002.), assim como aqueles ligados à implementação de um sistema de propriedade intelectual (Barzel, 1997BARZEL, Y. Economic analysis of property rights. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.). À medida que a totalidade da coletividade tem que assumir esses custos, eles representam uma dedução em termos de bem-estar, ou seja, uma externalidade negativa (relação (2))

A ingerência se relaciona diretamente com os consumidores/usuários, com o poder jurídico e fiscal e com o poder político:

  • i) A ingerência está diretamente ligada aos limites da divulgação dos dados pessoais dos usuários, por parte das plataformas eletrônicas: até onde a legislação vigente permite que esses dados sejam coletados e divulgados pelas firmas que controlam essas redes eletrônicas, e quais são os limites que essas firmas devem respeitar? Na maior parte dos casos, as legislações nacionais não são respeitadas, como mostram os recentes escândalos relativos ao vazamento de dados realizado pelas firmas Cambridge Analytica e Facebook, por exemplo.

  • ii) A ingerência pode ir além disso e, a partir do desenvolvimento de algoritmos particularmente sofisticados, tornar-se um panóptico, no sentido definido por Foucault, um sistema de controle generalizado e exaustivo.

A ingerência pode, igualmente, influenciar as escolhas políticas, como foi no caso da eleição de Trump, em 2016 nos Estados Unidos, ou de Bolsonaro, no Brasil. Nesse caso, esse mecanismo se traduz por uma limitação drástica da autonomia da esfera política e constitui uma externalidade negativa (relação (3)). Os diferentes movimentos populistas que se desenvolvem na base das teses “conspiracionistas” nascem geralmente a partir de fake news produzidas nas redes sociais: em última instância, isso pode se traduzir por ameaças reais para os mecanismos democráticos, conforme ressaltado pela recente invasão do Capitólio, nos Estados Unidos.7 7 O exemplo de Q-Anon, e do papel que essa rede social cumpriu nos movimentos pró-Trump e na invasão do Capitólio, é significativo.

É preciso observar que essa ingerência é intrinsecamente ligada (a) às assimetrias de informação e à opacidade que caracterizam essa economia digital; (b) à impossibilidade de implementar um sistema eficiente de direitos de propriedade relativo às informações de segundo grau, seja ele individual ou coletivo; e (c) à eficiência dos algoritmos desenvolvidos hoje.

Podemos notar que qualquer aumento da ingerência (essa ingerência sendo definida como qualquer limitação imposta ao grau de abertura democrática) representa uma externalidade negativa. A economia digital produz mecanismos antagônicos: ela aumenta o estoque de informações de primeiro grau disponível, o que tem que ser interpretado como uma melhoria do bem-estar. Mas, em contrapartida, o aumento da ingerência se traduz por uma diminuição do grau de abertura democrática, ou seja, por uma diminuição do bem-estar.

Finalmente, é preciso evocar os problemas ligados à evasão fiscal: essas plataformas eletrônicas atuam em mercados que são mundiais.8 8 Exceção feita a certos regimes como aqueles que prevalecem na China e na Coreia do Norte, que impediram a entrada dessas plataformas nos seus respetivos mercados. Suas estratégias consistem em implantar suas agências em paraísos fiscais e, assim, escapar às regras fiscais nacionais, aproveitando-se das regras vigentes nesses paraísos fiscais. Aqui também se trata de uma externalidade negativa (relação (4)).

O consumo doméstico pode gerar externalidades negativas quando o estoque é composto por bens padrão, exclusivos e divisíveis. A pesca em um lago ou a terra, no caso do pasto do gado, constituem os exemplos escolhidos pelos economistas neoclássicos: nesses casos, eles querem provar que a ausência de um sistema de propriedade privada leva obrigatoriamente ao esgotamento do estoque disponível. O estoque de peixes disponíveis no lago diminui à medida que o aumento da pesca não é compatível com a reprodução dos peixes. Da mesma maneira, o aumento do gado que vai pastar sobre determinado pasto se traduz por uma deterioração da produtividade daquela terra9 9 A esse respeito, ver Herscovici e Vargas (2017). (relação (5)). Finalmente, à medida que o consumo é determinado a partir da produção (o conceito de economia da oferta), ao aumento da produção corresponde um aumento do consumo e uma deterioração do estoque disponível (relação (6´)).

Não obstante, esses resultados não podem ser generalizados pelas seguintes razões:

  • a) Essa correlação negativa entre o consumo total e o esgotamento do estoque disponível só é verificada para certos níveis de consumo; aquém de determinado nível, o consumo não implica sistematicamente o esgotamento do estoque disponível. É preciso diferenciar o impacto do consumo doméstico daquele do consumo produtivo, assim como as modalidades de governança que se relacionam com cada um desse tipo de consumo (Cole; Epstein; McGinnis, 2014COLE, D.; EPSTEIN, H. G.; MCGINNIS Mi, D. Digging deeper into Hardin's pasture: the complex institutional structure of ‘the tragedy of the commons’. Journal of Institutional Economics, 10, pp. 353-369, 2014. Doi:10.1017/S1744137414000101.
    https://doi.org/10.1017/S174413741400010...
    ). Os dois tipos de consumo são quantitativa e qualitativamente diferentes: o consumo doméstico é quantitativamente limitado e determinado a partir do valor de uso, enquanto o consumo produtivo é muito mais importante e se relaciona com o valor de troca.

  • b) Por outro lado, a relação é totalmente diferente quando os bens que compõem o estoque são indivisíveis e/ou complexos: a presença de externalidades de demanda ligadas à utilidade social é tal que qualquer restrição em termos de acesso à rede se traduz por uma externalidade negativa, ou seja, por uma diminuição da utilidade de cada usuário (relação (6)).

Na presença de bens complexos, a relação (6) é verificada. O exemplo das redes solidárias como Linux, por exemplo, ilustra perfeitamente esse caso: quando não há contribuição por parte do usuário, temos que dW/dC2 = 0; no caso de haver contribuição, dW/dC2 > 0. O mesmo mecanismo prevalece nas redes de compartilhamento de arquivos digitais como o YouTube . À medida que o consumo produtivo depende diretamente do consumo doméstico, a relação (5´) é obrigatoriamente verificada.

De um modo mais geral, as externalidades positivas produzidas no seio dessa economia digital são as seguintes: (a) ampliação e diversificação social dos públicos; (b) diminuição importante dos preços de acesso às informações de primeiro grau; e (c) aumento da diversidade proposta para os usuários: a teoria da long tail. Diante dos limites redistributivos das políticas públicas em termos de cultura e de telecomunicação, por exemplo, o desenvolvimento dessas redes representa uma melhoria em termos de bem-estar, isto é, em termos de diversificação da oferta e da demanda.

As diferenças entre as análises neoclássicas e aquelas desenvolvidas neste trabalho são as seguintes:

  • a) a função de bem-estar de inspiração neoclássica ignora, por hipótese, a dimensão ligada ao grau de abertura democrática e à ingerência: a partir do momento em que os direitos de propriedade são plenamente definidos, eficientes e gratuitos (a hipótese do self enforcement), a ingerência não pode existir.

  • b) A análise neoclássica não diferencia consumo produtivo e consumo doméstico (Cole; Epstein; McGinnis, 2014COLE, D.; EPSTEIN, H. G.; MCGINNIS Mi, D. Digging deeper into Hardin's pasture: the complex institutional structure of ‘the tragedy of the commons’. Journal of Institutional Economics, 10, pp. 353-369, 2014. Doi:10.1017/S1744137414000101.
    https://doi.org/10.1017/S174413741400010...
    ), e os custos de transação são nulos (Stigler, 1961STIGLER, S.; G. J. The economics of information. The Journal of Political Economy, The University of Chicago Press, v. 69, n. 3, p. 213-225, 1961.).

  • c) Da mesma maneira, no estoque disponível, ela não diferencia informações de primeiro e de segundo grau.

4.Assimetrias da informação, opacidade e ingerência

4.1 Assimetrias de informação e bem-estar social

4.1.1 Uma primeira aproximação

Essas assimetrias se traduzem obrigatoriamente por externalidades negativas e por perdas em termos de bem-estar social:

  • i) As relações que se estabelecem entre os consumidores/cidadãos e as plataformas são, por natureza, assimétricas: se, por um lado, a digitalização permite diminuir os custos de transação que os atores privados têm que assumir (Varian, 2001VARIAN, H. R. Economics of information technology. Berkeley: University of California, Jul. 2001. Revised. Mar. 23, 2003. Disponível em: <https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.593.996&rep=rep1&type=pdf)>. Acesso em: 21 out. 2020.
    https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/do...
    , p. 42, 43), os custos de transação relativos à implementação de um sistema de controle por parte do Estado ou das instituições aumentam, em função dessa opacidade.

  • ii) O consumidor não tem condições de tomar decisões racionais, à medida que ele ignora quais informações são negociadas nesses mercados, e qual é o valor referente a essa negociação. Em outras palavras, ele não tem condições de igualar a utilidade marginal da informação que ele acessa com a desutilidade marginal decorrente da venda de informações no mercado secundário. Isto é reforçado pelo fato de existir incerteza no que diz respeito à qualidade da informação que ele recebe.

O usuário não tem mais condições de conhecer os elementos do contexto a partir do qual ele vai tomar essas decisões: fake news, utilização de robôs etc. constituem formas de manipulação, de distorções, que impossibilitam a implementação de decisões racionais, por parte dos usuários. Nesse caso, as escolhas políticas não podem ser racionais, no sentido de elas maximizarem a utilidade efetiva dos eleitores.

À essas assimetrias de informação correspondem sistematicamente poderes assimétricos nas relações de barganha entre usuários e plataformas digitais, o que explica a posição dominante dos Big Data, hoje, posição dominante tanto em relação aos consumidores/usuários quanto às diferentes instâncias de controle e aos atores públicos: essas relações são construídas na base de uma “(...) assimetria de saber e de poder” (Zuboff, 2019ZUBOFF, S. (2019). Un capitalisme de surveillance. Le Monde Diplomatique, janv. 2019., p. 4). O contrato social estabelecido entre os cidadãos/usuários e o sistema constituído pelos Big Data é parcial e opaco, por natureza:

(...) the social contract with consumers was staked in making online sociality visible and traceable; part of this call for transparency was requiring authentic and verifiable personal information from their registered customers (…). However, platforms offered little transparency in return (…) (van Dijck, 2014, p. 9).

Varian (2013VARIAN, H. R. Beyond Big Data. Presented at the NABE Annual Meeting, Sept. 10, San Francisco, CA, 2013.) compara esta situação com uma hipoteca concedida pelo banco e afirma:

“If I want to get a mortgage, I have to send the bank two years of income tax returns, a month of paychecks, a printout of my net worth, and dozens of other documents. Why am I willing to share all this private information? Because I get something in return -- the mortgage.”

Esse argumento é pouco convincente pelas seguintes razões: esta situação se caracteriza pelo risco moral: a qualidade do serviço depende do comportamento ex-post dos agentes que participam da troca e, nesse caso particular, dos componentes da oferta; o consumidor/usuário não tem condições de avaliar ex-ante a utilidade (ou os ganhos realizados) pelo fato de esta utilidade depender do comportamento (que ele ignora) dos Big Data, no que diz respeito à utilização dos dados coletados.

4.1.2 Esfera política e esfera econômica: as diferentes modalidades de ingerência

A ingerência política se traduz por uma perda da autonomia do espação público habermasiano, e por uma “vassalização” do poder político pelo poder econômico. A esfera política perde sua autonomia em relação à esfera econômica: esta esfera política e os resultados nela obtidos não dependem mais do uso público da razão, segundo o conceito habermasiano, mas das manipulações (fake news, robôs etc.) que os políticos podem implementar a partir da compra dos serviços de agências especializadas.10 10 Firmas como Cambridge Analytica trabalham na margem da legalidade, pelo fato de utilizarem dados que nem sempre foram obtidos de maneira legal, pela divulgação de fake news e a utilização de robôs.

Surgem, então, dois tipos de questionamentos:

  • i) O primeiro se relaciona com a natureza das modalidades de legitimação e do uso da razão no seio desse processo. O debate público, à luz da razão, constitui o fundamento das modalidades de legitimação das diferentes decisões políticas no seio do espaço público. Hoje, o debate é parcialmente ausente no espaço público; ele é negado, como foi o caso das últimas eleições no Brasil, por exemplo. Por outro lado, a razão é ausente, conforme ressaltam as diferentes teses negacionistas e “conspiracionistas”. As modalidades de legitimação são ou puramente quantitativas (a quantidade de visitas no site, de liked ou de seguidores), ou diretamente ligadas à violência física, no que diz respeito aos movimentos de extrema-direita.

  • ii) Por outro lado, é preciso definir as especificidades das fake news: em que medida elas são diferentes da ideologia e das atividades de propaganda que sempre existiram? A ideologia e a propaganda fornecem uma interpretação “tendenciosa” de um determinado fato, com o objetivo de sustentar determinadas teses; mas, fora algumas exceções, elas não negam o fato bruto. Por outro lado, sua eficiência é limitada pelas seguintes razões: ela não tem condições de controlar, de maneira exaustiva, toda a população, nem de conhecer os comportamentos e as trajetórias sociais e culturais dos indivíduos com precisão. Suas capacidades de controle e de monitoramento são “frouxas”.

    Ao contrário, os Big Data criam determinados eventos, quer a partir da produção de notícias falsas (obtidas a partir de montagens audiovisuais divulgadas nas redes sociais), quer a partir das simulações por robôs, para maximizar artificialmente as audiências e criar, assim, uma aparência de “veracidade” e de credibilidade. Em função das especificidades das redes, essa credibilidade é um elemento-chave para superar a fase do start-up e alcançar a massa crítica a partir da qual a rede se torna rentável.

É interessante observar a maneira como o espaço público se modificou (Habermas, 1978HABERMAS, J. Raison et legitimité: problèmes de légitimation dans le capitalisme avancé. Paris: Payot, 1978.): no século XVIII, o espaço público era concebido como um espaço democrático ‒ espaço de discussão no qual os diferentes membros tinham os mesmos direitos, independentemente de sua condição econômica, e sua função consistia em proteger o indivíduo11 11 No sentido definido pelo Iluminismo. do poder arbitrário do Estado. Hoje, em função das diferentes modalidades de ingerência, o espaço público não cumpre mais essa função: ao contrário, o indivíduo fica à mercê do mercado, do Estado e dos interesses cada vez mais convergentes desses dois tipos de atores (van Dijck, 2014, p. 7).

A publicidade, no sentido definido por Habermas, significa tornar pública uma informação, para ela ser objeto de discussão pública; em uma sociedade democrática, essa discussão pública permite legitimar, ou deslegitimar, qualquer tipo de decisão que afeta a coletividade: qualquer limitação desse tipo de publicidade representa ameaças aos processos democráticos. A criminalização dos atores que revelaram, publicamente, uma série de práticas políticas ou financeiras “ocultas”, constitui outra ameaça à Democracia.12 12 A esse respeito, o caso Snowden é revelador desse tipo de prática. No espaço público propiciado pelos Big Data, a credibilidade se firma a partir de mecanismos, em grande parte, alheios ao uso da Razão.

Diante da expansão das lógicas mercantis, com a intensificação das diferentes modalidades de ingerência, a esfera política está perdendo progressivamente sua autonomia em relação à esfera econômica; isso ressalta a fragilidade dos processos democráticos no capitalismo atual e suas dificuldades crescentes para manter as condições propícias à manutenção do jogo democrático herdado da filosofia das Luzes. Essa convergência de interesses entre os poderes políticos e econômicos diminui a eficiência das modalidades de controle implementadas pelo Estado ou pelas instituições, os quais não têm mais a autonomia necessária para exercer esse tipo de controle.

4.2 A opacidade do sistema

4.2.1 Opacidade e contratos incompletos

Se a informação de primeiro grau pode, em certa medida, ser objeto de um sistema de direito de propriedade que “protege” o usuário, isto não é o caso no que diz respeito à informação de segundo grau. Tal situação faz com que os contratos estabelecidos entre os usuários e/ou as instâncias de regulação, por um lado, e as plataformas digitais e os Big Data, por outro lado, sejam, por natureza, incompletos, no sentido definido por Williamson (2002WILLIAMSON, O. The Theory of the firm as governance structure: from choice to contract. Journal of Economic Prospective, v. 16, n. 3, Summer, 2002.). Os usuários das redes sociais não têm condições de controlar todas as utilizações que estão sendo feitas dos dados relativos às suas trajetórias sociais e culturais; assim, as diferentes legislações relativas à proteção dos dados individuais (notadamente, as últimas medidas adotadas na União Europeia) não são eficientes.

Esses contratos, por natureza incompletos, não são totalmente eficientes, e esse controle parcial implica custos de transação elevados (Barzel, 1997BARZEL, Y. Economic analysis of property rights. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.). Quanto mais intensa a opacidade, mais elevados serão os custos de transação relativos à implementação dos diferentes sistemas de controle, e menos eficientes esses sistemas. Podemos observar que esses resultados são incompatíveis com a hipótese de self enforcement adotada pela economia neoclássica.

  • i) O indivíduo possui capacidades limitadas de rastreamento e de controle no que diz respeito às utilizações que estão sendo feitas dos dados relativos às suas trajetórias. Ao contrário, as plataformas eletrônicas possuem capacidades muito mais amplas de rastreamento das trajetórias dos usuários, a partir da utilização de algoritmos cada vez mais potentes e eficientes. Nesses mercados, aparecem novos tipos de assimetrias de informação, em função da capacidade diferenciada de rastreamento dos diferentes grupos de agentes: “(...) it is impossible for users to keep track of who shares data with whom” (van Dijck, 2014, p. 7).

  • ii) De fato, os consumidores/usuários são prejudicados: consequentemente, eles não têm condições de negociar uma repartição favorável do valor gerado, nem de controlar as utilizações das informações que lhes concernem. No melhor dos casos, conforme observado anteriormente, a negociação entre usuários e plataformas digitais se implementa na base do escambo: troca de modalidades de acesso gratuitas ou semigratuitas contra acessibilidade a determinadas informações.

    Em função dessa opacidade, os usuários são “despossuídos” de suas informações pessoais; eles têm que assinar um “cheque em branco” e aceitar em troca o acesso gratuito a determinados serviços disponibilizados pelas plataformas. O poder de barganha do usuário é mais que limitado, e a troca (realizada na forma do escambo) particularmente desigual.

    Estamos na presença de um monopsônio ou de um oligopsônio não monetizado. Contrariamente ao que vários economistas neoclássicos afirmavam, no início dos anos 90, longe de ser sinônima de uma intensificação da concorrência, a economia digital se apresenta, hoje, como intrinsecamente ligada às assimetrias da informação e aos processos de concentração.

  • iii) Uma das possibilidades para diminuir de maneira substancial essas assimetrias de informação consiste em implementar formas de administração coletiva e não mercantil dessas informações. Aqui, a dimensão não mercantil implica que não haja produção nem venda de informações de segundo grau; nesse sentido, uma gestão de tipo solidária pode corresponder a uma diminuição das assimetrias de informação e a uma alocação mais eficiente dessas produções (Ostrom; Hess, 2007; Bowles; Ginty, 2002).

4.2.2 Assimetrias econômicas e sistemas de controle

Essa opacidade intrínseca limita a eficiência da maior parte dos sistemas de controle implementados, tanto por parte dos consumidores quanto por parte do poder político e judiciário, e se traduz por um aumento dos custos de transação relativos à implementação desses sistemas. A opacidade se manifesta concretamente pelo não respeito da proteção dos dados pessoais, pela evasão fiscal, o que implica impor limites ao jogo democrático. As condições permissivas da corrupção aparecem quando há convergência de interesses entre as instâncias controladoras e as instâncias controladas.13 13 Encontramos esse problema a respeito da implementação dos diferentes sistemas de certificação (Herscovici, 2018).

Nas análises efetuadas em termos de agente principal, o principal tenta controlar, a partir do sistema de preços, a atuação do agente. Na ausência do sistema de preços nos mercados primários, mercados nos quais são produzidos os dados vendidos nos mercados secundários, o principal é representado pelos atores públicos e pelos usuários/consumidores.

No caso clássico estudado na Economia, as penalidades permitem ao principal recuperar parte da renda do agente (Perrot, 1992PERROT, A. Asymétries d´information et contrats. Problèmes Économiques, Paris, n. 2.291, La Documentation Française, 1992.); isto é possível pelo fato de os preços serem conhecidos pelos diferentes atores que participam dessas transações. No que diz respeito à economia digital, em função dessas assimetrias da informação, o lucro marginal auferido pelo agente, em função do não respeito à lei e à regulamentação, faz mais que compensar as penalidades determinadas pelo principal. O controle exercido pelo principal é cada vez mais “frouxo”, qualquer que seja o principal: usuários e/ou autoridades públicas, no que diz respeito à elaboração das políticas econômicas, e poderes jurídico e fiscal. Concretamente, as diferentes penalidades que os estados europeus aplicaram às principais plataformas eletrônicas (notadamente, Facebook) parecem não terem diminuído substancialmente o lucro dessas empresas.

O paradoxo é o seguinte: essa economia se caracteriza por sistemas de controle cada vez mais eficientes dos consumidores/usuários, e cada vez menos eficientes, dos Big Data e das plataformas eletrônicas.

Recentemente, nos Estados Unidos, a plataforma Twitter resolveu cancelar a conta de Trump, considerando que as mensagens divulgadas incentivavam as ações violentas contra as instâncias democráticas. Enquanto essa decisão cabe, por princípio, ao poder político e/ou jurídico, tal decisão foi tomada por Twitter, e não pelas instâncias políticas e jurídicas responsáveis pelo respeito da Constituição: de fato, o poder jurídico efetivo está sendo transferido para essas plataformas eletrônicas.

4.2.3 A qualidade da informação

A partir dos anos 60, as diferentes correntes econômicas resolveram estudar as assimetrias de informação. Essas eram estudadas em relação ao sistema de preços e à opacidade desse sistema. O aparecimento e o desenvolvimento de comportamentos oportunistas, por parte dos agentes, não permitiam alcançar uma situação de ótimo social paretiano.

Na economia digital, a natureza dessas assimetrias se modificou: elas não são mais produzidas pelo sistema de preços, mas fora desse sistema; elas se estendem para as áreas políticas e jurídicas e constituem, assim, a condição permissiva para que se desenvolvam todas as formas de comportamentos oportunistas, a partir da convergência de interesses entre o poder econômico, jurídico e político.

Na análise econômica, a qualidade se relaciona com a confiabilidade das expectativas elaboradas pelos agentes (Grossman; Stiglitz, 1976GROSSMAN, S. J.; STIGLITZ, J. Information and competitive price system. American Economic Review, v. 66, n. 2, p. 246-253, May 1976.; 1980) ou pelo fato de o sistema de preços fornecer as condições para determinar os componentes qualitativos dos bens e dos serviços (Akerlof, 1970AKERLOF, G. A. The market for “lemons”: quality uncertainty and the market mechanism. The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, p. 488-500, Ago. 1970.). A qualidade é definida objetivamente, a partir do grau de realização das expectativas ou do conhecimento prévio das qualidades técnicas do bem; quando há uma queda da qualidade média, o mercado pode desaparecer, via diminuição da demanda (Idem). Quando, em um mercado especulativo, os agentes se dão conta de seus “erros” de previsão, a demanda de mercado diminui (Herscovici, 2019HERSCOVICI, A. Essays on the historicity of capital. New York: Palgrave, 2019.).

Na análise elaborada neste trabalho, a qualidade se define em função (a) da “veracidade” da informação, ou seja, das condições a partir das quais os agentes têm condições de identificar os fake news; (b) da capacidade de os usuários reinterpretarem essa informação, evitando manipulações grosseiras, as quais influenciam as escolhas políticas; (c) da ausência de distorções voluntárias implementadas pela utilização sistemática de robôs, por exemplo; e (d) do controle dos usuários, no que diz respeito às utilizações que estão sendo feitas das informações de segundo grau. Nesse caso, a problemática relativa à informação de segundo grau é aquela dos credence goods: não é possível conhecer todos os componentes utilizados na produção desses serviços (Herscovici, 2018HERSCOVICI, A. Assimetrias de informação, qualidade e mercados da certificação: a necessidade de uma intervenção institucional. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 21, 2018.).

Contrariamente à análise econômica de Akerlof, a demanda dos agentes não diminui quando a qualidade média cai: os agentes não ou pouco informados não se dão conta de seus erros de previsão, ou de seus erros no que concerne à qualidade da informação. Isto se explica pelo fato de eles não poderem identificar a qualidade a partir de critérios técnicos objetivamente identificáveis.

Os mecanismos de manipulação explicam a queda da qualidade da informação, a qual se traduz por uma diminuição do grau de abertura democrática. A partir dos modelos de Grossman e Stiglitz (1976GROSSMAN, S. J.; STIGLITZ, J. Information and competitive price system. American Economic Review, v. 66, n. 2, p. 246-253, May 1976.; 1980), podemos deduzir que, devido às assimetrias da informação, os ganhos dos agentes informados aumentam pelo fato dos ganhos dos agentes não informados diminuírem, em função da avaliação que cada grupo de agentes faz a respeito da qualidade dos ativos (Herscovici, 2019HERSCOVICI, A. Essays on the historicity of capital. New York: Palgrave, 2019.). O mesmo mecanismo vale no que concerne à qualidade da informação: a qualidade média da informação destinada aos usuários/consumidores diminui, enquanto a qualidade média da informação coletada pelas plataformas digitais aumenta.14 14 Essa problemática lembra aquela que se relaciona com o critério de Kaldor-Hicks, a respeito da negociação dos direitos de poluição: nessa abordagem, o bem-estar social depende exclusivamente do valor da produção total, independentemente de suas modalidades de redistribuição entre os diferentes agentes que participam da negociação. As externalidades negativas se relacionam com as informações à disposição dos usuários:

  • i) Não existe informação sem metainformação: os agentes que possuem informações específicas (nível de escolaridade, por exemplo) têm condição de avaliar a qualidade real da informação divulgada nas redes. Eles não serão vítimas de informações “falsas”, ou seja, de fake news. Ao contrário, os agentes não informados serão o alvo privilegiado das fake news: eles não têm condições de avaliar a qualidade, ou seja, a “veracidade” da informação.

  • ii) Todas as formas de populismo, nos países europeus, nos Estados Unidos e na América Latina, desenvolveram esse tipo de estratégia. Assim, é possível entender por que as camadas mais pobres caíram na armadilha do populismo. Encontramos o resultado enunciado por Grossman e Stiglitz: o ganho dos agentes informados se explica a partir das perdas dos agentes não informados.

No que diz respeito à informação primária, à medida que a quantidade de informação cresce, sua qualidade média diminui. Não obstante, contrariamente ao resultado enunciado por Akerlof (1970AKERLOF, G. A. The market for “lemons”: quality uncertainty and the market mechanism. The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, p. 488-500, Ago. 1970.), o mercado não desaparece em função dessa queda da qualidade da informação, tendo em vista a incapacidade dos agentes não informados em avaliarem essa qualidade.

Na economia digital, muita informação não mata a informação, mas provoca uma queda da qualidade média dessa mesma informação, mais especificamente da informação destinada ao consumidor/usuário. Em relação aos componentes da oferta, é possível afirmar que os produtores desonestos (aqueles que divulgam informação de baixa qualidade) geram uma externalidade negativa em relação aos produtores honestos (que produzem uma informação de alta qualidade) (Herscovici, 2018HERSCOVICI, A. Assimetrias de informação, qualidade e mercados da certificação: a necessidade de uma intervenção institucional. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 21, 2018.). A queda da qualidade média da informação se traduz por uma diminuição do grau de abertura democrática e, consequentemente, do bem-estar social.

5. Conclusão

A economia digital e o desenvolvimento das redes sociais que lhe é ligado produzem externalidades mistas, algumas positivas e outras negativas. As externalidades positivas se relacionam com a ampliação das modalidades de acesso à informação de primeiro grau, com a diversificação social dos públicos alcançados e dos diferentes componentes da oferta, e com a produção decentralizada de informação. Nesse sentido, é possível assimilar a economia digital a lógicas de inclusão social.

Não obstante, a exclusão vai assumir outras formas. Em função das assimetrias da informação que são inerentes ao funcionamento desses mercados, existe uma exclusão parcial dos consumidores/usuários: pelo fato de eles não poderem controlar as utilizações que são feitas da informação que eles mesmo produziram, e de não poderem negociar uma outra redistribuição do valor captado pelas plataformas digitais.

Em função dessa opacidade crescente, os diferentes sistemas de controle se tornam menos eficientes, e isso corresponde a um acréscimo dos custos necessários à sua implementação. Isso corresponde, lógica e concretamente, ao desenvolvimento dos comportamentos oportunistas e à perenização das posições dominantes. Nessa economia, os efeitos ligados ao aumento do estoque disponível podem ser anulados pelos efeitos ligados à intensificação da ingerência, ou seja, pelas limitações crescentes dos espaços democráticos.

Esses resultados vão de encontro ao senso comum que associa a democracia à quantidade da informação disponível para todos os membros de uma determinada coletividade; se, por um lado, a quantidade de informação disponível para a coletividade aumenta, por outro, sua qualidade e o grau de abertura da democracia diminuem.

Hoje, a questão pertinente pode ser formulada nos seguintes termos: em que medida o desenvolvimento da economia digital é compatível com a manutenção das regras democráticas, ou seja, com a preservação da autonomia do espaço público, da vida privada e da esfera jurídica?

Agradecimentos

Agradeço aos dois pareceristas anônimos que comentaram a versão anterior deste trabalho. Esses comentários me permitiram definir com mais precisão certos pontos e conceitos e ampliar as referências bibliográficas. Obviamente, sou inteiramente responsável pelas teses sustentadas neste trabalho e pelas interpretações aqui elaboradas.

Referências

  • AKERLOF, G. A. The market for “lemons”: quality uncertainty and the market mechanism. The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, p. 488-500, Ago. 1970.
  • ARROW, K. J. General economic equilibrium: purpose, analytic techniques, collective choice. The American Economic Review, v. 64, n. 3 (June 1974), p. 253-272, 1974.
  • ARROW, K. J. Potentialités et limites du marché dans l’allocation des ressources. Théorie de l´information et des organisations. Paris: Dunod, p. 63-80, 2000.
  • BARZEL, Y. Economic analysis of property rights. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
  • BAUMOL W. J. Contestable markets: An uprising in the theory of industry structure, American Economic Review, v. 72, n. 1, 1982.
  • BOURDIEU, P. La production de la croyance: contribution à une économie des biens symboliques. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 13, févr. p. 4-44, 1977.
  • BOWLES, S.; GINTIS, H. (2001). Social capital and community governance. The economic journal, v.112, n. 483, p. F419-F436, 2002.
  • BRAUDEL, F. La dynamique du capitalisme. Paris: Champs Flammarion, 1985.
  • COLE, D.; EPSTEIN, H. G.; MCGINNIS Mi, D. Digging deeper into Hardin's pasture: the complex institutional structure of ‘the tragedy of the commons’. Journal of Institutional Economics, 10, pp. 353-369, 2014. Doi:10.1017/S1744137414000101.
    » https://doi.org/10.1017/S1744137414000101
  • FAMA, E. Market efficiency, long term returns and behavioral finance. Journal of Financial Economics, v. 49, n. 3, p. 283-306, Sept. 1998.
  • GROSSMAN, S. J.; STIGLITZ, J. Information and competitive price system. American Economic Review, v. 66, n. 2, p. 246-253, May 1976.
  • GROSSMAN, S. J.; STIGLITZ, J. On the impossibility of informationally efficient markets. American Economic Review, v. 70, n. 3, p. 393-408, June 1980.
  • HABERMAS, J. Raison et legitimité: problèmes de légitimation dans le capitalisme avancé. Paris: Payot, 1978.
  • HERSCOVICI, A. Essays on the historicity of capital. New York: Palgrave, 2019.
  • HERSCOVICI, A. Assimetrias de informação, qualidade e mercados da certificação: a necessidade de uma intervenção institucional. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 21, 2018.
  • HERSCOVICI, A. As metamorfoses do valor: capital intangível e hipótese substancial. Reflexões a respeito da historicidade do valor. Liinc em Revista, v. 10, n. 2, 2014. Disponível em: <http://revista.ibict.br/liinc/article/view/3588>. Acesso em: 4 set. 2018.
    » http://revista.ibict.br/liinc/article/view/3588
  • HERSCOVICI, A. Economia de redes, externalidades e estruturas de mercado: o conceito de concorrência qualitativa. Revista Brasileira de Inovação, v. 12, n. 1, 2013. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rbi/article/view/8649054
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rbi/article/view/8649054
  • HERSCOVICI, A. Economie des réseaux et structuration de l'espace: pour une Economie de la Culture et de la Communication. Sciences de la Société, Toulouse, v. 40, p. 25-38, 1997.
  • HERSCOVICI, A. Economia da cultura e da comunicação. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida/UFES, 1995.
  • HERSCOVICI, A.; VARGAS, J. A tragédia dos commons revisitada: uma análise crítica. Análise Econômica, v. 35, n. 67, 2017.
  • KATZ, M. L.; SHAPIRO, C. Network externalities, competition and compatibility. American Economic Review, v. 75, n. 3, p. 424-440, 1985.
  • KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1991 [1962].
  • LAKATOS, I. History of Science and Its Rational Reconstructions. Proceedings of the Biennial Meeting of the Philosophy of Science Association, pp. 91-136, 1970.
  • LÉVY, P. Les technologies de l’intelligence. L’avenir de la pensée à l’ère informatique, Paris: La Découverte. Coll. Sciences et Société, 1990.
  • MAUSS, M. Essai sur le don. L´Année Sociologique, 1923-1924.
  • NEGRI, A; LAZZARATO, M. Trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
  • PERROT, A. Asymétries d´information et contrats. Problèmes Économiques, Paris, n. 2.291, La Documentation Française, 1992.
  • POLANYI, K. La grande transformation. Aux origines politiques et économiques de notre temps. Paris: Gallimard, 1983.
  • RALLET, A. Données personnelles et empowerment des consommateurs. Université de Paris Sud 11, févr. 2019.
  • SEN, A. Choice, welfare and measurement. Oxford: Blackwell, 1982.
  • SHAPIRO, C.; VARIAN, H. Information rules: a strategic guide to the network economy. Boston, Massachusetts: Harvard Business School Press, 1999.
  • STIGLER, S.; G. J. The economics of information. The Journal of Political Economy, The University of Chicago Press, v. 69, n. 3, p. 213-225, 1961.
  • STIGLITZ, J. The causes and consequences of the dependence of quality on price. Journal of Economic Literature, v. XXV, p. 1-48, 1987.
  • TIROLE, J. Economie du bien commun. Paris: PUF, 2016.
  • VAN DIJCK, J. Datafication, dataism and dataveillance: Big Data between scientific paradigm and ideology. Surveillance & Society, v. 12, n. 2, p. 197-208, 2014.
  • VARIAN, H. R. Economics of information technology. Berkeley: University of California, Jul. 2001. Revised. Mar. 23, 2003. Disponível em: <https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.593.996&rep=rep1&type=pdf)>. Acesso em: 21 out. 2020.
    » https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.593.996&rep=rep1&type=pdf)
  • VARIAN, H. R. Beyond Big Data. Presented at the NABE Annual Meeting, Sept. 10, San Francisco, CA, 2013.
  • WILLIAMSON, O. The Theory of the firm as governance structure: from choice to contract. Journal of Economic Prospective, v. 16, n. 3, Summer, 2002.
  • ZUBOFF, S. (2019). Un capitalisme de surveillance. Le Monde Diplomatique, janv. 2019.
  • Código JEL:

    D86, D85, D82
  • JEL Codes:

    D86, D85, D82
  • 1
    Sem entrar no debate epistemológico, que não cabe no âmbito deste artigo, é preciso observar que a epistemologia moderna pós-popperiana reconhece que a verificação empírica não permite definir um critério de demarcação (Lakatos, 1970LAKATOS, I. History of Science and Its Rational Reconstructions. Proceedings of the Biennial Meeting of the Philosophy of Science Association, pp. 91-136, 1970.; Kuhn, 1962).
  • 2
    Essa mesma hipótese é adotada por Fama (1998FAMA, E. Market efficiency, long term returns and behavioral finance. Journal of Financial Economics, v. 49, n. 3, p. 283-306, Sept. 1998.) e Tirole (2016TIROLE, J. Economie du bien commun. Paris: PUF, 2016.), por exemplo, quando esses autores estudam os mercados financeiros.
  • 3
    Esse conceito utilizado por van Dijck (2014) significa que o controle é implementado a partir da coleta quase exaustiva de dados relativos aos usuários das plataformas.
  • 4
    A respeito dos recursos simbólicos, ver o conceito de Economia da Diferenciação (Herscovici, 1995HERSCOVICI, A. Economia da cultura e da comunicação. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida/UFES, 1995.).
  • 5
    É interessante observar que Shoshana Zuboff (2019ZUBOFF, S. (2019). Un capitalisme de surveillance. Le Monde Diplomatique, janv. 2019., p. 5) utiliza a mesma metáfora a respeito dos dados brutos.
  • 6
    No que diz respeito aos limites desse critério, ver Arrow (2000ARROW, K. J. Potentialités et limites du marché dans l’allocation des ressources. Théorie de l´information et des organisations. Paris: Dunod, p. 63-80, 2000.), Sen (1982SEN, A. Choice, welfare and measurement. Oxford: Blackwell, 1982.) e Stiglitz (1987STIGLITZ, J. The causes and consequences of the dependence of quality on price. Journal of Economic Literature, v. XXV, p. 1-48, 1987.).
  • 7
    O exemplo de Q-Anon, e do papel que essa rede social cumpriu nos movimentos pró-Trump e na invasão do Capitólio, é significativo.
  • 8
    Exceção feita a certos regimes como aqueles que prevalecem na China e na Coreia do Norte, que impediram a entrada dessas plataformas nos seus respetivos mercados.
  • 9
    A esse respeito, ver Herscovici e Vargas (2017HERSCOVICI, A.; VARGAS, J. A tragédia dos commons revisitada: uma análise crítica. Análise Econômica, v. 35, n. 67, 2017.).
  • 10
    Firmas como Cambridge Analytica trabalham na margem da legalidade, pelo fato de utilizarem dados que nem sempre foram obtidos de maneira legal, pela divulgação de fake news e a utilização de robôs.
  • 11
    No sentido definido pelo Iluminismo.
  • 12
    A esse respeito, o caso Snowden é revelador desse tipo de prática.
  • 13
    Encontramos esse problema a respeito da implementação dos diferentes sistemas de certificação (Herscovici, 2018HERSCOVICI, A. Assimetrias de informação, qualidade e mercados da certificação: a necessidade de uma intervenção institucional. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 21, 2018.).
  • 14
    Essa problemática lembra aquela que se relaciona com o critério de Kaldor-Hicks, a respeito da negociação dos direitos de poluição: nessa abordagem, o bem-estar social depende exclusivamente do valor da produção total, independentemente de suas modalidades de redistribuição entre os diferentes agentes que participam da negociação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2020
  • Aceito
    02 Fev 2021
Nova Economia FACE-UFMG, Av. Antônio Carlos, 6627, Belo Horizonte, MG, 31270-901, Tel.: +55 31 3409 7070, Fax: +55 31 3409 7062 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: ne@face.ufmg.br