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"Povo das armas" versus "Povo do Bolsa Família": imaginário e voto popular em 2018

"People in arms" versus "People of the Bolsa família": imaginary and the popular vote in 2018

El "Pueblo de las armas" versus el "Pueblo de la Bolsa Familia": imaginario y voto popular en 2018

Le "Peuple des armes" contre le "Peuple du Bolsa Família": imaginaire et vote populaire en 2018

O artigo discute as motivações e sentidos do voto popular na eleição presidencial que levou o bolsonarismo ao poder, analisando dados qualitativos de um estudo realizado entre 2018 e 2019 em duas regiões: no Ceará (Juazeiro do Norte, Crato e Araripe) e em São Paulo (Marília e cidade de São Paulo). Mostramos uma cisão em relação ao que, até então, as camadas populares esperavam da política, entre a continuidade do lulismo, por um lado, e uma mudança radical, por outro. Assim, os resultados confirmaram uma rachadura na base lulista no plano mais profundo das crenças, valores e expectativas. No âmbito do imaginário, verificamos uma mediação religiosa nos embates das expectativas populares, ligada às crenças messiânicas, que historicamente entrelaçaram política e religião.

comportamento eleitoral; bolsonarismo; classes populares; lulismo; eleições 2018


Abstract

The article discusses the motivations for and meanings of the popular vote in the presidential election that brought bolsonarismo to power, analyzing qualitative data from a study conducted between 2018 and 2019 in two regions: in Ceará (Juazeiro do Norte, Crato and Araripe) and in São Paulo (Marília and the city of São Paulo). The analysis reveals that a split emerged in what until then the popular classes expected from politics, between a continuity of lulismo, on one hand, and a radical change, on the other. Thus, the results confirmed that there was a division in the Lula base at the deepest level of beliefs, values and expectations. In the realm of the imaginary, we found a religious mediation in the clashes of popular expectations, linked to messianic beliefs that historically intertwined politics and religion in the country.

electoral behavior; Bolsonarismo; popular classes; Lulismo; 2018 presidential elections

Resumen

El artículo discute los motivos y sentidos del voto popular en la elección que llevó al bolsonarismo al poder, analizando los datos cualitativos de un estudio realizado entre 2018 y 2019 en dos regiones: en Ceará (Juazeiro do Norte, Crato e Araripe) y en São Paulo (Marília y ciudad de São Paulo). Mostramos que hubo una división en relación a lo que, hasta entonces, las camadas populares esperaban de la política, entre la continuidad del lulismo, por un lado, y un cambio radical, por otro, y que se expresaba en la intención del voto. De ese modo, los resultados confirmaron que hubo una rotura en la base social lulista que se dio en el plano más profundo de las creencias, valores y expectativas. En el ámbito del imaginario, verificamos una mediación religiosa en los embates de las expectativas populares, vinculadas a las creencias mesiánicas, que históricamente entrelazaron política y religión.

comportamiento electoral; bolsonarismo; clases populares; lulismo; elecciones de 2018

Résumé

L'article traite des motivations et des significations du vote populaire lors de l'élection qui a porté le bolsonarisme au pouvoir, en analysant les données qualitatives d'une étude réalisée entre 2018 et 2019 dans deux régions : le Ceará (Juazeiro do Norte, Crato et Araripe) et l'état de São Paulo (Marília et la ville de São Paulo). Nous montrons qu'il y avait un clivage dans ce que, jusqu'alors, les couches populaires attendaient de la politique, entre la continuité du lulisme, d'une part, et un changement radical, d'autre part, qui s'exprimait dans les intentions de vote. Ainsi, les résultats ont confirmé qu'il y avait une scission au sein du soutien à Lula qui s'est produite au niveau le plus profond des croyances, des valeurs et des attentes. Dans le domaine de l'imaginaire, nous avons constaté une médiation religieuse dans les heurts des attentes populaires, liées aux croyances messianiques, qui ont historiquement entremêlé politique et religion dans le pays.

comportement électoral; bolsonarisme; classes populaires; lulisme; élections de 2018

"É muito grande a religiosidade daquela gente, e, com o declínio do prestígio da igreja, ficou como os açudes do Departamento de Obras Contra as Secas: inúteis, porque não completados pelos canais de irrigação. A religiosidade do caboclo está trancada. Deus virou um poço inútil dentro de cada camponês. Quem soubesse, não importa com que finalidade, liberar aquelas águas vivas ficaria dono de um rio caudaloso" (Antonio Callado, Tempo de Arraes: padres e comunistas na revolução sem violência, 1964, p. 61).

Introdução

Chegamos cedo ao Jaraguá, Zona Oeste de São Paulo, no sábado 6 de outubro, às vésperas do primeiro turno das eleições de 2018. Logo no início do percurso conversamos com um jovem casal. Alberto, então com 30 anos, era metalúrgico, e Eliana, 26 anos, vendia bolos no bairro. Ele nasceu em São Paulo, e ela na Bahia. Lá, seus pais trabalhavam "na fazenda" e sua mãe tomou a decisão de migrar "em busca de um trabalho melhor aqui", quando Eliana tinha três anos de idade. Já havia trabalhado no telemarketing e como ajudante de cozinha, antes de ser dispensada do último emprego. Alberto, por sua vez, havia conseguido se segurar no trabalho ao longo de três anos, mesmo quando a empresa reduziu drasticamente o número de funcionários. O desemprego era geral, na percepção do casal, inclusive entre os que contavam com ensino superior: "Muita gente com estudo, faculdade e tudo". Por isso, as pessoas estavam "se virando, igual ela [Eliana] tá... fazendo, vendendo as coisinha pra ganhar um dinheiro pra ter um sustento, né, e poder fazer... pra pagar contas". Quando entramos no tema das eleições, o que veio à tona foi um confronto de expectativas entre os que apoiavam o candidato da extrema-direita e os que queriam a continuidade do lulismo. A divisão, segundo o casal, dava-se em termos da formação de dois "povos": "Porque metade quer armas, metade quer o Bolsa Família". O clima descrito nos sugeria uma rachadura em relação ao que, até então, se esperava da política, representada pelo carro-chefe da engenharia social-lulista, conforme foi possível constatar.

Em 2014, as fendas abertas na base social lulista foram expressas pela estreita margem percentual (51,64% contra 48,36%) da vitória de Dilma, concretizada pelos votos do Nordeste, que compensou a perda de apoio no Sul e Sudeste (Nicolau, 2020Nicolau, J. O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.). Na cidade de São Paulo, por exemplo, houve uma virada eleitoral a favor do campo de oposição ao lulismo em bairros que vinham lhe dando a vitória em pleitos anteriores, como Itaquera e a Brasilândia, e em que as fronteiras internamente se diluem entre grupos sociais médios-baixos, que na primeira década dos anos 2000 estabeleceram meios de mobilidade social, e mais pauperizados (Marques, 2014Marques, E. "Estrutura Social e segregação em São Paulo: transformações na Década de 2000". DADOS - Revista de Ciências Sociais, vol. 57, nº 3, p. 675-710, 2014.; Pavez, 2015Pavez, T. "Crime, trabalho e política: um estudo de caso entre jovens da periferia de São Paulo". Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.). Ao passo que, nas áreas mais extremas, com maior concentração ainda de precariedade urbana e socioeconômica, o Partido dos Trabalhadores (PT) permaneceu vitorioso. Em 2018, o raio das fissuras da base lulista se expandiu, alcançando quase todo o restante da periferia paulistana e grandes cidades do Nordeste (Maceió, João Pessoa e Natal). Perdendo, ainda, o primeiro turno em capitais como Recife. De acordo com a análise de Nicolau (2020)Nicolau, J. O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., Bolsonaro recebeu apoio significativo dos eleitores com menor escolaridade nas regiões Sudeste, Sul e Norte/Centro-Oeste. De outro lado, assegura o autor, o lulismo parece ter mantido uma força eleitoral dominante apenas em pequenas cidades, de até 50 mil habitantes, do Nordeste - onde se concentram os eleitores com menor renda do país e a população rural da região.

Como entender essa divisão no interior das classes populares? Em que consiste ideologicamente a separação entre "dois povos"? Responder a essas perguntas é a principal tarefa deste artigo. Com base no estudo qualitativo realizado entre 2018 e 2019 no Ceará (Juazeiro do Norte, Crato e Araripe) e em São Paulo (Marília e cidade de São Paulo), foi possível abordar aspectos do imaginário social exprimidos nas expectativas, ideias, afetos, crenças e valores dos eleitores. Por meio da condução de entrevistas e observações de campo, foram coletados depoimentos orais, narrativas, produções mentais e imagens visuais (retratos, fotografias, quadros) no interior das casas, e que nos permitiram examinar o sistema de representações e as intenções em torno da ação prática do voto2 2 Adotamos a definição de imaginário, sugerida por Jean-Jaques Wunenburger no campo das ciências sociais em "O imaginário" (2007), como "um conjunto de produções, mentais ou materializadas em obras, com base em imagens visuais (quadro, desenho, fotografia) e linguísticas (metáfora, símbolo, relato), formando conjuntos coerentes e dinâmicos, referentes a uma função simbólica no sentido de um ajuste de sentidos próprios e figurados" (p. 11). . Desse modo, a análise se concentrou nos elementos-chave, e na constelação destes (associações, oposições, etc.), que surgiram nas narrativas dos eleitores e na composição das imagens. Abordamos, então, a ideologia como crenças e valores expressos pelo indivíduo articulados a elementos do imaginário social.

Como se sabe, o lulismo encontrou sua base social entre pauperizados, desempregados permanentes, trabalhadores precarizados, trabalhadores por conta própria e sem vínculo formal, que se encontram predominantemente fora do proletariado, alcançando uma sequência de vitórias nas eleições presidenciais que lhe permitiu governar o país por mais de uma década3 3 André Singer (2009) observou que a base social lulista teria se formado entre o "subproletariado", categoria formulada originalmente por Paul Singer, em "Dominação e desigualdade. Estrutura de classe e repartição de renda no Brasil" (1981). Para Singer, o subproletariado não era integrado apenas pelos desempregados, mas por pobres que trabalhavam. Para o autor, esses trabalhadores apresentavam uma inserção "excessivamente precária", com vistas à sobrevivência enquanto "a oportunidade de emprego normal" não se dava, dificultando a caracterização desse grupo pela sua inserção nas relações de produção. Além disso, suas condições de existência não eram nem transitórias nem temporárias, como a produzida pela perda do emprego. Francisco de Oliveira em seu ensaio "Crítica à razão dualista" (2013) demonstrou que essa população, que não se enquadra nas categorias fundamentais do capitalismo, podia ser super-explorada com baixos salários e transferindo a ela os custos da sua própria sobrevivência, como ocorreu no processo de periferização das grandes cidades. Daí termos uma massa fora do núcleo organizado da economia, mas que tem um papel no processo de acumulação do capitalismo brasileiro. Para uma revisão recente sobre a contribuição das ciências sociais e da historiografia brasileira para a categorização dessas parcelas da sociedade, ver Lincoln Secco (2020). . Isso significava que o fenômeno teria feito convergir, grosso modo, o voto popular nos polos históricos de fluxos migratórios de origem e destino, que alcançou grandes proporções entre as décadas de 1950 e 1970, no processo de acelerada industrialização, do qual o ex-presidente Lula e o seu percurso se apresentaram como típicos. Desse ponto de vista, as classes populares das grandes cidades tendem a ser predominantemente a segunda, terceira ou quarta gerações de migrantes, vindos principalmente de pequenos municípios do interior do Nordeste (Ipea, 2011Ipea. “Perfil dos migrantes de São Paulo”. Comunicados do Ipea, nº 115, 2011.; Seade, 2014Seade. “Migrantes nordestinos ainda são maioria na Região Metropolitana de São Paulo”. Boletim Seade, ano 4, nº 47, nov. 2014. Disponível em: < https://www.seade.gov.br/wp content/uploads/2014/11/Boletim_Seade_47.pdf>. Acesso em: 13 maio 2020.
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), onde se concentra a população rural.

Essa massa "sem expressão, disseminada, sobretudo, no Brasil rústico e marginalizado" (Martins, 2017Martins, J. S. A política do Brasil: lúmpen e místico. São Paulo: Contexto, 2017., p. 10) e nas grandes periferias urbanas, deu a vitória a Collor em 1989 (Singer, 1990Singer, A. “O impacto de Collor na periferia de São Paulo”. In: Anais 14º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, Minas Gerais, 22 a 26 out., 1990.) - um daqueles filhos da oligarquia nordestina que, desde os anos 1950, se metamorfosearam em empresários capitalistas (Oliveira, 1992Oliveira, F. Collor: a falsificação da ira. Rio de Janeiro: Imago, 1992., p. 17). O ex-governador de Alagoas buscou reativar a ideia de um salvador entre as massas desorganizadas socialmente (Velho, 1989Velho, G. “O fenômeno Collor”. Jornal do Brasil, p. 11, 17 nov. 1989.; Oliveira, 1992Oliveira, F. Collor: a falsificação da ira. Rio de Janeiro: Imago, 1992.; Tavares, 1998Tavares, O. Fernando Collor: o discurso messiânico e o clamor do sagrado. São Paulo: Annablume, 1998.), com apelo a uma "conjuntura messiânica", segundo Francisco de Oliveira (2006Oliveira, F. “O momento Lênin”. Novos Estudos, nº 75, p. 23-47, jul., 2006., p. 28), de crise do capitalismo e da credibilidade da política e dos políticos na Nova República.

Nos anos 2000, elementos semelhantes se apresentaram, com sinais invertidos. Lula (PT), que havia sido adversário de Collor, venceu com maciço apoio popular. Seu conterrâneo, expressão com frequência usada em entrevistas na periferia de São Paulo para se referir a Lula (Pavez, 2015Pavez, T. "Crime, trabalho e política: um estudo de caso entre jovens da periferia de São Paulo". Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.), no entanto, vinha da mesma massa empobrecida dos seus eleitores e, aproveitando as condições favoráveis do boom das commodities, realizou o "milagre" que atendeu às expectativas de melhoria de vida e de ampliação do consumo. A palavra "conterrâneo", na nossa hipótese, revela a identificação recíproca entre os sujeitos dessa massa com um líder que retorna no imaginário popular como um "homem providencial" (Oliveira; Gianotti, 2008Oliveira, F.; Gianotti, J. A. "Despindo o 'país da fantasia'". Debate mediado por Laura Greenhalgh e Rinaldo Gama. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 164, 21 dez., 2008., p. 164), com traços messiânicos, ligado ao seu passado rural. Experimentamos aqui a conjectura de que existe um entrelaçamento histórico do imaginário político e religioso popular. Nesse sistema, o milagre é entendido não apenas como uma expressão de poder místico, mas também como um poder de realização prático de melhorias materiais.

A hipótese central defendida neste artigo é que incialmente a liderança lulista teria despertado nessas massas, "os pobres", representações de uma tradição ligada às crenças messiânicas rurais, vinculadas historicamente à população situada na margem da sociedade. Avivada a fé nas melhorias futuras, teria sido possível repetir o tipo de ligação afetiva com esses líderes carismáticos. Em um plano mais profundo, propomos também que houve um nexo entre a base social lulista, para além do voto, que responderia a uma ligação afetiva primordial de identificação com o líder político. Em consequência, avivou-se a percepção de algo em comum, precipitando uma "alma coletiva", "os pobres", por meio de laços de identificação mútua, conforme a descrição freudiana, característicos da mentalidade de massas (Freud, 2011 [1921]). Como adverte Ab'Sáber (2014Ab'sáber, T. Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica. 2ª ed. São Paulo: Hedra, 2014., p. 44), ao falar sobre uma das faces da liderança lulista, "para os pobres, Lula era uma espécie de igual, deslocado na direção do poder social". Ao identificar-se com o líder, "os pobres" participavam também da sua grandeza e podiam sentir-se elevados, confundindo-se com o próprio presidente: em diversas ocasiões, Lula declarou que o "povo brasileiro" se via com a "autoestima elevada" em seu governo.

No entanto, entre 2013 e 2014, um "ceticismo" fermentava nessa base, conforme as considerações de Henrique Costa (2018)Costa, H. Entre o lulismo e o ceticismo: um estudo com bolsistas do Prouni de São Paulo. São Paulo: Alameda, 2018. sobre os jovens prounistas em São Paulo, sugerindo que esse elo tinha se perdido em parte dos eleitores quando se viram frustradas as promessas de progresso e ascensão social. Na eleição de 2018, verificamos o aprofundamento desse ceticismo, e descobrimos algo mais: uma descontinuidade em relação às expectativas políticas, inédita, salvo engano, no período de redemocratização. Havia uma expectativa de mudança radical associada ao voto na extrema-direita. Ligada à candidatura bolsonarista, ou à vinda de um emissário destruidor, uma escatologia começa a aparecer no imaginário popular como caminho para essa transformação. Nesse terreno, registramos a extensão do front de uma guerra ideológica no Nordeste conduzida por igrejas pentecostais e que se expressava, inclusive, materialmente nas imagens coladas nas paredes das casas dos entrevistados. Estes constituem os principais resultados da investigação a serem apresentados neste artigo.

Na primeira parte, analisamos brevemente a percepção do lulismo na sua base social até 2014 e, em seguida, apresentamos o material empírico coletado no âmbito das eleições presidenciais de 2018. Na terceira parte, desdobramos as hipóteses enunciadas, retomando aspectos históricos do entrelaçamento do imaginário político e religioso no país.

O milagre lulista

A volta da figura messiânica ao âmago da política seguiu um roteiro místico. Num contexto de crise de acumulação, endividamento estatal e deterioração dos serviços públicos (Oliveira, 1992Oliveira, F. Collor: a falsificação da ira. Rio de Janeiro: Imago, 1992.), a chegada do "fim dos tempos", na década de 1980, com a ruína do mundo do trabalho que mal havia chegado a se constituir no país, ressuscitou a rotatividade, a intermitência das ocupações e, sobretudo, a imprevisibilidade ligada à condição histórica das massas sobrantes de viver a "deus-dará", inteiramente às cegas e à mercê da violência cotidiana (Ferreira, 2002Ferreira, M. I. “A ronda da pobreza: violência e morte na solidariedade”. Novos Estudos, nº 63, p. 167-177, jul., 2002.). Na década seguinte, outro sinal surgiu: acompanhando a curva ascendente do desemprego, a taxa de homicídios nas periferias das grandes cidades elevou-se de forma extraordinária em função da guerra travada entre facções do crime e os policiais pelo varejo do mercado de drogas. Esses anos de consolidação democrática e de ingresso no moderno mercado global passariam a ser rememorados nas periferias como a "época das guerras" (Rui; Feltran, 2015Rui, T.; Feltran, G. Guerra e pacificação: palavra-chave do conflito urbano contemporâneo. Nota do Comitê Migrações e de Deslocamento da Associação Brasileira de Antropologia, 2015.).

Nesse contexto cataclísmico em que a vida popular nas metrópoles se desagregava, o que se viu como resposta foi uma "força integradora negativa" (Adorno, 2007Adorno, T. Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In: Adorno, T. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, p. 153-190, 2007. [1951], p. 176), vinda de baixo, com o aumento da violência contra um outgroup, cuja contrapartida positiva se encontrava na expectativa de progresso para as famílias e na irmandade interna. Um caso exemplar foi o incremento da hostilidade entre grupos religiosos, vista nos ataques neopentecostais às religiões afro-brasileiras. Em meados dos anos 1980, a "guerra espiritual" para reverter a obra do mal (Mariano, 2014Mariano, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Editora Loyola, 2014. [1999]) começa a se espalhar, arregimentando "soldados" para o "exército de Cristo", cuja novidade consistia em uma atitude de enfrentamento (Mariano, 2014Mariano, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Editora Loyola, 2014. [1999]; Silva, 2015Silva, V. G. (org.). Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2015.). O ponto crítico desse processo ocorreu com o episódio do "chute da santa", em 1995, quando um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus chutou a imagem da Nossa Senhora Aparecida, durante um programa na Record4 4 Ver Almeida, 2015. . Predicando a prosperidade terrena, as igrejas adotaram o "evangelismo midiático" (Mariano, 2008Mariano, R. “Crescimento pentecostal no Brasil: fatores internos”. Revista de Estudos da Religião, p. 68-95, dez., 2008., p. 75) e uma administração negocial num mercado religioso expansionista. Como resultado da união desses fatores, ocorreu nos anos 1990 o crescimento espetacular da IURD, do bispo Edir Macedo, que, dotado de uma "voz rouca e carismática", conseguiu "ganhar a lealdade e a obediência das pessoas que lotavam seus templos. Essas pessoas viam-no como 'fazedor de milagres'" (Justino, 1995Justino, M. Nos bastidores do reino de Deus: a vida secreta na Igreja Universal do Reino de Deus. São Paulo: Geração Editorial, 1995., p. 29). Ao mesmo tempo, essas "grandes famílias" (conforme a lógica da irmandade) passaram a disputar cargos na política em eleições locais e legislativas.

Antecedido por outros messias locais e por um candidato a "salvador da pátria", no caso collorido, o advento do lulismo funcionou como um verdadeiro milagre social no imaginário popular. Aproveitando a brecha das commodities e por meio de uma engenharia de programas sociais, fez "chover dinheiro" com a oferta de crédito, a valorização do salário-mínimo e transferências monetárias para os mais pobres, dando condições de consumo a quem não tinha. Multiplicou empregos, ainda que mal remunerados e precarizados. Fez "chover água" e "trouxe luz" ao Nordeste, instalando cisternas e expandindo a rede elétrica no sertão, levando modernização. Um dos feitos mais notáveis foi a diminuição da insegurança alimentar (IBGE, 2020Ibge. “10,3 milhões de pessoas moram em domicílios com insegurança alimentar grave”. Agência de Notícias, set. 2020. Disponível em: < https://agenciadenoticias. ibge.gov.br>. Acesso em: 1 ago. 2021.
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). Em particular, seus eleitores valorizaram o aumento do consumo de carne, cuja escassez histórica na alimentação dos mais pobres, como veremos, foi associada por Antonio Candido à "fome psíquica" entre os caipiras (Candido, 2010 [1954]). O argumento aqui é que o conjunto de "milagres" avivou no imaginário popular a figura de um líder providencial, associada às crenças messiânicas, passando a influir ideologicamente de maneira decisiva no pensamento e nas motivações eleitorais.

Assim, a formação lulista subsumiu temporariamente o voto popular ao redor de uma liderança com quem a massa passou a se identificar e na qual depositou as esperanças de progresso. Com esse nexo em comum, precipitou-se uma identificação mútua entre "os pobres" e o seu "conterrâneo". Amplas parcelas das classes populares, nas grandes cidades e no sertão, começaram então a votar no candidato do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais. Eleitores evangélicos em São Paulo reconheciam o que o lulismo tinha feito pelo Nordeste (Marcondes, 2016Marcondes, C. "A cruz e o lulismo: um estudo de caso na periferia de São Paulo com fiéis da Igreja Universal nas eleições de 2014". Dissertação de Mestrado em Ciência Política, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016.), onde a maioria ainda é católica, atendendo suas expectativas materiais. Mas essa posição conviveu com o peso maior que as indicações dos candidatos das igrejas tinham nas eleições legislativas (Valle, 2013Valle, V. "Pentecostalismo e lulismo na periferia de São Paulo. Estudo de caso sobre uma Assembleia de Deus na eleição municipal de 2012". Dissertação de Mestrado em Ciência Política, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013.; Marcondes, 2016Marcondes, C. "A cruz e o lulismo: um estudo de caso na periferia de São Paulo com fiéis da Igreja Universal nas eleições de 2014". Dissertação de Mestrado em Ciência Política, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016.). Em síntese, o lulismo encontrou nexos de integração, não na consciência das classes que já não conseguia organizar, mas no imaginário social e no fundo da vida psíquica, por meio da mentalidade de massas e do seu ingresso no mercado de consumo.

Esse fervilhar de esperanças e de expectativas acabou desaguando, no entanto, num "ceticismo popular", identificado originalmente por Henrique Costa (2018)Costa, H. Entre o lulismo e o ceticismo: um estudo com bolsistas do Prouni de São Paulo. São Paulo: Alameda, 2018. entre jovens prounistas. Entre 2013 e 2014, eles viam-se às voltas com a impossibilidade de ocupar vagas qualificadas no mercado de trabalho, a despeito do investimento no ensino superior. Pavez (2015)Pavez, T. "Crime, trabalho e política: um estudo de caso entre jovens da periferia de São Paulo". Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015. observou um fenômeno semelhante em entrevistas conduzidas nesse período com jovens da periferia de São Paulo, que se equilibravam no vaivém entre a esfera do trabalho e do crime. Vivia-se uma fortíssima tensão diante das alternativas a eles apresentadas: um caminho cujo destino era incontornável, sintetizado na expressão popular dos "3 Cs" (Cadeia, Cadeira de rodas ou Cemitério) - salvo se um golpe de sorte os tornasse ricos -, e outro que, em seus próprios termos, "não dava certo, mas também não dava errado" (Pavez, 2015Pavez, T. "Crime, trabalho e política: um estudo de caso entre jovens da periferia de São Paulo". Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015., p. 111), com baixos salários e uma rotina estafante no transporte urbano. Havia também um ressentimento entre mulheres jovens "não beneficiários", categoria produzida pela segmentação dos programas sociais, que se viam excluídas dos programas monetários do governo, notadamente o Bolsa Família (Ávila, 2013; Pavez, 2015Pavez, T. "Crime, trabalho e política: um estudo de caso entre jovens da periferia de São Paulo". Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.). Entrevistas qualitativas feitas em São Carlos (SP) apontaram a existência de uma percepção que relacionava o benefício a um sorteio ou a uma loteria. Já as "beneficiárias" concebiam o dinheiro como uma bênção outorgada pelo próprio Deus (Ávila, 2013; Pavez, 2015Pavez, T. "Crime, trabalho e política: um estudo de caso entre jovens da periferia de São Paulo". Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.). Salta aos olhos uma exasperação que se acumulava diante de uma experiência labiríntica, em que os caminhos percorridos levavam a lugar nenhum, e de uma engenharia de programas em meio aos quais se podia dar o azar de ficar sem nada, inclusive sem nenhum alívio.

Se, acompanhando os argumentos anteriores, reconhecemos a fermentação de um ceticismo, chegamos ao fato notável de que "os pobres" constituíam uma massa que começa a se desintegrar quando a face milagreira do lulismo é contestada pela vivência cotidiana. Na eleição de 2014, num contexto em que o país já dava sinais de recessão, às vésperas do segundo turno, foram narradas desavenças e brigas entre colegas de trabalho, entre familiares na periferia de São Paulo e no transporte público, e indicações de sentimentos hostis contra "beneficiários" dos programas sociais, em geral associados aos nordestinos. Dilma, então, começou a ser descrita como a imagem exatamente inversa de Lula, como seu negativo, aglutinando-se em torno da sua figura a exasperação e a decepção com a experiência desses anos do governo. Como buscamos demonstrar, no interior da mentalidade de massa, suprimia-se o nexo de identidade entre "os pobres", com a perda da ligação de afeto primordial em relação à figura da liderança lulista.

Imaginário popular no cenário eleitoral de 2018

A base empírica para este artigo é uma pesquisa qualitativa realizada em 2018 e 2019. No total, foram aplicados 117 questionários semiestruturados e realizadas 43 entrevistas, com grupos de baixa renda familiar (com até 2 salários-mínimos) e de estratos médios-baixo (de 2 a 5 salários-mínimos). Coletamos também material audiovisual no interior das casas, em festas populares e nos percursos pelo bairro. Em sua maioria, os entrevistados ocupavam-se em empregos fora do mercado formal de trabalho (feirantes, diaristas, vendedoras de bolos porta a porta, vendedores no comércio informal de rua), em empregos temporários na construção civil ou no campo, tinham pequenos comércios próprios (bares e comércio em casa, confecções de fundo de quintal) ou estavam desempregados. Na região Nordeste, o desemprego mostrava-se mais agudo e havia famílias que dependiam inteiramente dos programas de transferência monetária.

Os locais da pesquisa foram escolhidos seguindo critérios de heterogeneidade da força política lulista, tendo como referência os resultados da eleição de 2014. Com esse critério em vista, realizamos o estudo em Marília no estado de São Paulo, nos bairros de Itaquera e do Jaraguá na cidade de São Paulo, e em Juazeiro do Norte, Crato e Araripe no Ceará5 5 a) Juazeiro do Norte, Crato e Araripe (CE) - "lulismo forte": cidades pequenas (menos de 50 mil habitantes) e médias (100 a 500 mil habitantes) do interior da região Nordeste que apresentaram cerca de 70 e 80% de apoio ao candidato do PT; b) Itaquera e Jaraguá na cidade de São Paulo (SP) - "lulismo médio": regiões periféricas das metrópoles, em particular do Sul e do Sudeste, que apresentaram uma inversão da tendência de vitórias consecutivas do PT; e c) Marília (SP) - "lulismo fraco": cidades médias do interior do estado de São Paulo (100 a 500 mil habitantes), que apresentaram cerca 80% de votação nos candidatos de oposição. . O trabalho de campo se estendeu de junho a outubro do ano da eleição presidencial de 20186 6 Contamos com uma equipe de pesquisa de estudantes de graduação e pós-graduação em Ciências Sociais da Unesp-Marília e pesquisadoras do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC). e, no ano seguinte, retornamos a Juazeiro do Norte e a Crato para acompanhar as romarias do dia de finados. Nas cidades de São Paulo e de Marília, percorremos bairros populares, buscando o contato espontâneo com seus moradores em suas casas, comércios e na rua. Na região Nordeste, contamos com agentes comunitários de saúde e lideranças vinculadas à igreja católica, que tinham um contato cotidiano com os moradores, para ingressar nos bairros das cidades e na área rural de Araripe.

Conduzimos o trabalho de entrevistas com um senso qualitativo de atenção aos aspectos e detalhes significativos das narrativas, e dos espaços visitados. Buscando as conexões e associações espontâneas dos entrevistados, apresentamos a pesquisa de forma ampla, ou seja, informando que o objetivo era entender o cotidiano dos trabalhadores e o que pensavam da situação do país para, posteriormente, abordar o assunto das eleições. Muitas das entrevistas foram feitas dentro das casas, o que nos permitiu reconhecer elementos do imaginário e da história dos seus moradores, objetivados nas imagens dispostas nas paredes e nas fotografias. Rodeados pelas paredes, também foi possível falar sobre assuntos que, em ambientes externos e fora do contexto da escuta atenta às narrativas, tendiam a ser obliterados, como era marcadamente o caso da violência.

O material empírico reunido nos mostrou três momentos vinculados ao voto: primeiro, o nexo comum de identificação visto no lulismo encontrava-se ainda ativo na expectativa de continuidade; segundo, o elo tinha se desfeito, fato registrado na atitude cética de negar o voto novamente no candidato lulista; terceiro, havia uma expectativa de mudança radical associada ao voto na extrema-direita. Nesse cenário, em 2018, Juazeiro do Norte (CE) encabeçou a lista das cidades com mais de 150 mil habitantes em que Fernando Haddad (PT) alcançou a maior votação proporcional (76,1%). Já a cidade de Marília (SP) ficou entre as dez cidades médias em que Jair Bolsonaro (ex-PSL) foi mais votado (80%). No pequeno município rural de Araripe (CE), o candidato lulista obteve 91,39% dos votos e, no Crato (CE), 84,59%. Em contraste, na periferia da metrópole paulistana, Bolsonaro venceu com 59,53% em Itaquera e com 57,05% no Jaraguá. Buscamos mostrar, a seguir, como esses três tempos se apresentaram nos depoimentos coletados em distintas regiões sobre as motivações ideológicas do voto articulados com elementos do imaginário popular. Desse modo, são esses aspectos imaginativos destacados que organizam a exposição.

São Paulo e Marília

Mais uma vez

Mesmo nas entrevistas em que o vínculo com o lulismo se encontrava ativo, havia uma percepção de que a situação tinha chegado a uma espécie de fundo do poço, que desaconselhava a expectativa de uma melhora futura caso nada fosse feito. Reclamava-se, em geral, do desemprego, dos assaltos, do preço dos alimentos, da saúde pública, das dificuldades financeiras, das invasões noturnas da polícia. O descalabro da vida popular, em síntese, era descrito como uma verdadeira "bagunça". Impregnado de um sentimento de imprevisibilidade e de que um limite havia sido alcançado, o voto era concebido numa atmosfera de jogo de azar, como uma aposta, e as motivações orbitavam entre a fé e o ceticismo em relação ao lulismo e uma perspectiva de mudança.

Noel7 7 Os nomes dos eleitores entrevistados e citados no artigo foram alterados. , 49 anos, pedreiro e dono de um pequeno comércio, migrou do interior de Pernambuco e morava em Itaquera havia trinta anos. Em 2016, tinha votado em Russomanno (PRB), mas naquele momento estava disposto a votar em Haddad:

Tá feia a coisa, tá uma bagunça medonha, tá difícil melhorar. [p: O que você acha que é a pior questão?] Olha, está precisando de um presidente de verdade, porque do jeito que estão as coisas a tendência é piorar, não tenho nem esperança mais de que venha melhoria. Na época quando o Lula estava, estava até melhor, a Dilma entrou, melhorou. No segundo mandato, já ficou pior né [...] Eu preferiria que o Haddad ganhasse, essa é a minha opinião, porque todo mundo roubou né [...] Eu por mim votaria no Haddad 10 vezes, sem medo. [p: E se o Lula fosse candidato, você votaria?] Sim, eu tenho um vídeo aqui que eu gravei para a turma daqui, dizendo assim: "se o Lula saísse da cadeia e não tivesse onde morar eu dava pra ele esse sobrado aqui". O Lula fez muito pelo Nordeste e eu votaria nele sem me arrepender [...] vejo difícil [o Haddad vencer], eu acho que o Bolsonaro tem muita chance, a turma tá muito revoltada, tá exaltada já, tá difícil. O Haddad, na verdade, foi um péssimo prefeito, mas por causa do Lula que tem aquela história né: "se o Lula mandar, eu voto numa formiga". Eu só vou votar no Haddad por causa do Lula (Noel, Itaquera, véspera do 2º turno, 27 out. 2018).

Três elementos merecem destaque nesse trecho quanto ao vínculo lulista: a existência da ligação de afeto primordial com o ex-presidente, sua influência como mandante do voto e a negociação feita com o próprio ceticismo, que se nota numa frase popularizada nessa eleição, "votaria 10 vezes", que expressa a fé impregnada pelo sentimento de aposta numa escolha a ser feita num contexto muito incerto. Também havia algo mais, o reconhecimento de uma possível derrota diante do sentimento de revolta e de exaltação popular acumulado, que reforçaria a vitória da extrema-direita.

Fim da espera

Tendo se mostrado instável na percepção da experiência popular, o lulismo era associado também a um momento "bagunçado" na vida dos entrevistados. Henrique, 29 anos, havia estudado Administração e conseguido recentemente uma ocupação na construção civil após um período de desemprego. Os anos lulistas eram menos luminosos no seu imaginário: "Eu fiquei desempregado na época do PT, pra mim foi a verdadeira crise". Em 2014, havia votado em Aécio Neves (PSDB): "Por conta disso, na época estava desempregado, a situação estava ruim, não conseguia emprego, fiquei desempregado quase três anos". Segundo seu relato, chegou a votar em Lula e em Haddad em pleitos anteriores, mas tinha se arrependido. Sobre o governo do ex-presidente, afirmou: "A única coisa que ele fez foi facilitar o crédito, e tem muita gente apertada por conta disso". Considerava os governos de Dilma um desfalque por causa do desemprego: "Não agregou em nada". E tinha uma percepção semelhante sobre a administração na Prefeitura: "Foi multa para todo lado. Foi uma prefeitura que não agregou em nada". O impeachment, contudo, não tinha resolvido a situação: o tal do Temer "só ajudou a afundar, a piorar".

Perdida qualquer esperança no lulismo, o ceticismo aparecia como uma atitude de precaução contra uma nova decepção. Hernani negava-se a votar em Fernando Haddad. Mesmo reconhecendo motivos materiais que o levariam a votar nele, como a isenção de impostos para quem ganhasse até 5 salários-mínimos, o ceticismo era determinante: "Votaria nele, mas eu não acredito, ninguém acredita mais. Eu acho que o Haddad tem proposta boa, mas ninguém acredita, perdeu credibilidade, ele está aí como fantoche". Anselmo, um colega de trabalho que acompanhou a entrevista, complementou: "Perdeu credibilidade, o povo quer mudança, por isso que o Bolsonaro está na frente". De fato, Hernani, que havia justificado a ausência no primeiro turno, estava disposto a votar em Bolsonaro no dia seguinte. Ponderava que o candidato era "um pouco radical" e que a economia tinha dado uma aquecida (o que permitiria a ele encontrar um emprego), mas ainda assim "tá bagunçado".

[p: Quando ele perdeu a credibilidade?] [Anselmo] A credibilidade ele perdeu no mandato de São Paulo. Exemplo: se eu te adoro, aí você diz; "Anselmo, estou lá 9 horas da manhã" e chego lá às 9 e fico te esperando e você não aparece, ia perder a credibilidade. "Essa menina aí, meu, botava maior fé nela" [...] [p: E o governo Bolsonaro, como é o que vai ser o governo?] [Hernani] Ah, ninguém sabe. Aí o que existe é isso, é a mudança, agora todo mundo tem um ponto de interrogação [...] [Anselmo] Mas o povo quer mudar, não aguenta mais, tá cansado. [Hernani] O povo já chegou numa situação, que olha, encheu o saco (Hernani e Anselmo, Itaquera, véspera do 2º turno, 27 out. 2018).

Um fato a ser notado nesse trecho é a comparação com uma "espera frustrada" por alguém em quem se tinha fé. Tanto Dilma como Haddad, como candidatos indicados de Lula, sugeriam em conjunto com o ex-presidente uma perspectiva muito ambígua da liderança lulista. Foram frequentes nas entrevistas frases como "[Dilma] desfez muitas coisas que Lula fez" (Adriana, comerciante informal de rua, 36 anos, Marília, 27 jul. 2018); Lula fez o papel de presidente, "de pai de família", já Dilma "não teve pulso firme" (Joana, desempregada, 26 anos, Marília, 12 ago. 2018); "eu achava que ele [Lula] era um superpresidente e hoje eu já estou decepcionada com o que ele anda fazendo". Em relação ao governo Dilma, "político conta história da carochinha, coisa que não vai acontecer, e tem o povo que ainda acredita" (Mirella, empregada doméstica, 38 anos, Marília, 29 set. 2018). A frustração das expectativas expunha as limitações da experiência lulista, feitos e desfeitos seus milagres, o que revelava o peso das suas contradições na percepção desencantada dos entrevistados. Buscava-se outra saída para uma vida insuportável, ainda que reconhecidamente às escuras.

Radical na política

Para que houvesse uma mudança, valia a pena correr o risco e votar em Bolsonaro. Foi o que nos disse Paula, 36 anos, comerciante de rua informal, que inicialmente havia ficado na dúvida entre votar no ex-capitão ou no cabo Daciolo. Ela e seu filho Rodnei, de 15 anos, vendiam DVDs piratas na porta de uma padaria no Jaraguá às vésperas do primeiro turno. Paula traçou uma analogia, no seu relato, entre a sua situação de vida e a doença crônica da mãe, que esperava havia três anos por uma cirurgia vascular na perna. Com o passar do tempo, e sem ter condições de buscar uma alternativa privada, sua situação se deteriorara; uma úlcera varicosa provocou feridas e manchas arroxeadas no seu corpo: "Então eu sei que vai chegar uma época que ela vai piorar e eu não vou conseguir fazer nada por ela, porque eu não tenho dinheiro". Se nada fosse feito, vaticinava um tempo futuro ainda pior, com a falta de tudo e o fim da linha: "Porque se continuar assim, no meu ponto de vista, minha fia, vai chegar uma época que vai ter menos emprego, menos médico. Talvez cê vai morrer de uma gripe dentro de casa [...]. Vai chegar o tempo que não vai ter remédio nenhum". Além disso, contra o aumento da violência, só contavam com a proteção divina: "A gente acaba meio que esquecido, que a gente fica mais protegido colocando Deus na frente e seguindo". Ao decidir finalmente votar em Bolsonaro, concluía que era "melhor arriscar do que você continuar ali sempre na mesmice".

A ideia de "mesmice", associada ao voto no candidato lulista, apresentava-se no imaginário popular como o prolongamento de uma experiência sem força de transformação. Entre os entrevistados que haviam votado no PT em outros pleitos, foram registrados relatos como o de Edna, que trabalhava com seus sogros num pequeno negócio do bairro: "Porque ele [Haddad] não foi um bom prefeito, ele vai continuar com os projetos do PT e nunca vai mudar isso. A gente não vê uma esperança com eles, acho que vai continuar piorando" (Edna, 25 anos, Jaraguá, 20 out. 2018). A maioria da família do jovem Junior, 18 anos, auxiliar de pedreiro, havia decidido mudar o voto, conforme nos relatou, "porque o PT tá há não sei quantos anos no... já três, três geração o PT tá [...] não mudou nada o Brasil. Não mudou nada. Pra mim não mudou nada". Seu primeiro voto seria para o ex-capitão, "todo mundo tá acreditando que o Bolsonaro pode mudar alguma coisa". Como outros entrevistados, reconhecia aspectos benéficos do lulismo, mas insuficientes para curar definitivamente a situação crônica dos pobres:

Eu sei que antigamente quem podia pagar alguma coisa à vista normalmente era os ricos, né? E o Lula deu pros pobres uma ajuda, como, digamos, parcelar. [p: Sim, crédito.] O pobre pode comprar esse potinho aqui em não sei quantas vezes. Acho que o Lula deu uma força nisso, né, pros pobre [...] Mas ele roubou, mas também ajudou. Por isso que as pessoas ainda votam no PT, porque ajudou um pouco [...] se o PT tivesse lá em cima, eu creio que o PT ia fazer alguma coisa. Entendeu? Alguém sempre faz alguma coisa. Mas chega uma hora que, sabe, não é o suficiente (Junior, Jaraguá, 20 out. 2018).

O anseio de mudança indicava ainda o apoio a uma via política mais radical. Rodnei, o filho adolescente de Paula, assegurou que também votaria em Bolsonaro caso tivesse idade para participar do pleito: "A maioria da proposta o pessoal está gostando e estão falando que querem votar nele, porque ele chegou mais radical na política. E suas propostas poderiam mudar o país". Ao relatar a troca de ideias com um ex-militar adepto ao candidato da extrema-direita, frequentador da mesma igreja evangélica, Junior destacou também uma percepção que julgava interessante: aquela eleição era diferente das outras porque trouxe mais "revolução", "as pessoas se importam mais". Mesmo com dúvidas, com um "pé atrás", como relatou Edna, e diante dos rumores de que a situação poderia se tornar pior com a eclosão de uma guerra de "bandido contra polícia" devido ao aumento do armamento, o voto em Bolsonaro associava-se à expectativa de uma viravolta. A ideia de guerra circulava no imaginário popular e foi registrada também no Cariri, criando um lapso de tempo em que, ainda que com temor, se fantasiava um conflito.

Sem radar

O novo contexto de divisão de expectativas intensificava a tensão em relação ao voto. A perda da referência em comum no ambiente popular produziu um sentimento de desorientação e de angústia quanto à escolha do candidato. Já não se podia contar com a confiança na mentalidade coletiva que tinha se formado em torno do lulismo, comprovada no cotidiano principalmente pelas convicções e ideias da maioria da família. Entre o "povo das armas" e o "povo do Bolsa Família", sentia-se uma insegurança a respeito de como votar: "Muitas pessoas tão falando pra mim: em quem a gente vai votar? A pessoa tá meio assim de colocar uma pessoa errada lá e o país sofrer" (Alberto e Eliana, Jaraguá, véspera do 1º turno, 6 out. 2018). Referindo-se a essa divisão, Edson, 38 anos, dono de um bar que abriu no bairro depois de perder o emprego, nos explicou:

Eu acho que assim, tá um debate legal, só que o povo brasileiro tá com medo também, a escolha é nossa, né, a gente que vai escolher, mas e se a gente escolher errado? Porque já tá ruim, e se a gente escolher uma pessoa que só vai piorar?

Ele já havia errado no passado, como nos relatou, ao votar em Lula, que fez "mas não o suficiente para deixar a gente bem". Por outro lado, valorizava as propostas de Bolsonaro para a segurança pública. Mas não tinha certeza ainda do seu voto.

A volta da seca

Com o avanço da conversa, Edson se aprofundou sobre a escolha do voto: "Não é porque a pessoa tá indecisa, umas pode até estar indecisa, mas as outras estão com medo". Vejamos seu relato:

[...] só que muitos também estão com medo, gente, daqui uns dias a gente vai voltar àquela fase lá que rico comia bem, que rico bebia bem, que rico fumava o melhor cigarro, que teve uma época, antigamente, que quem fumava cigarro era só rico, quem tomava uma cerveja era só rico, videocassete ainda que era o quatro cabeças e tal, era só rico que tinha, infelizmente vai acabar voltando essa época aí, que pobre vai continuar vivendo só com aquilo, é aquilo que você tem para sobreviver, é aquilo que você tem para criar sua família, aquilo que você vai ter para poder sabe... se sustentar, enquanto isso o rico vai esbanjando. A represa secou, acabou a água, a piscina dos rico tava tudo cheia. Mas na sua torneira não tinha água para você tomar, não tinha uma água para você se lavar, para você lavar o rosto e para tomar um banho, cê tá entendendo? Você vai lá comprar uma mistura, vai comprar uma carne, você olha assim pra carne e fala: "porra mano, vou ter que comer ovo de novo", só que o rico, o freezer dele tá cheio, cê tá entendendo? Infelizmente tá voltando essa era (Edson, Jaraguá, véspera do 1º turno, 6 out. 2018).

A iminência de um cenário de subsistência estrita, visto nas referências à falta de água, de alimentos e de outros itens de consumo desejados, colocaria os pobres diante do mínimo para sobreviver, com um "mundo que estava acabando para eles", enquanto os ricos tinham acesso a tudo. A volta "dessa era", no relato, referia-se provavelmente à década de 1980 (quando chegou o videocassete) e também ao período mais recente da crise hídrica, que em 2014 levou ao racionamento de água na periferia. Além disso, com o fim do milagre lulista, entre 2013 e 2017-2018, a insegurança alimentar aumentou 62,4% no país, interrompendo a sequência de queda registrada desde 2004. A carne encontrava-se entre os alimentos com maior restrição de acesso ao consumo (IBGE, 2020Ibge. “10,3 milhões de pessoas moram em domicílios com insegurança alimentar grave”. Agência de Notícias, set. 2020. Disponível em: < https://agenciadenoticias. ibge.gov.br>. Acesso em: 1 ago. 2021.
https://agenciadenoticias. ibge.gov.br...
). O sentimento de subsistência, de cada vez mais ter acesso apenas ao mínimo, contrastava nesse cenário com a maneira como viviam os políticos, conforme nos explicou Mirella:

Para eles é mais fácil sobreviver, porque eles ganham bem e ainda, além de ganhar bem, ainda rouba a população e a gente tem que viver com o mínimo dos mínimos. Então, é complicado e isso aí te entristece e não me dá credibilidade, eu não tenho fé na política". Os políticos, assim como os ricos, estavam ligados a um mundo que os excluía, pondo em evidência na consciência a assimetria abissal existente entre eles. Desse modo, abandonados ao deus-dará: "É cada um por si e é Deus por todos" (Mirella, diarista, Marília, 29 set. 2018).

Insurgência

O descontentamento e a revolta com essa situação podiam, no entanto, na ideação de Edson, tomar uma forma inesperada:

O povo não apoia e faz protesto, quebra tudo, mas isso não é uma forma legal de se protestar; para tudo, sem briga, sem fechar estrada, para comércio, para loja, para empresas, apaga tudo, fica todo mundo em casa [...] já pensou que legal no dia da eleição ninguém fosse votar?

Via-se nessa proposição a imagem de um grande blackout, em vez de manifestações na rua. Finalmente, "apertei 17", nos confirmou dias depois.

Escatologia

Já apontamos o medo de que a vida piorasse ainda mais após a eleição. Mas a antecipação dessa calamidade mostrou uma passagem para outro plano da mentalidade popular, em que o "fim do mundo", tal como descrito por Edson, passava a ser esperado e não mais temido, numa escatologia sobre a volta de Jesus, associada à candidatura de Bolsonaro e profetizada em igrejas pentecostais. Essa passagem associava-se a uma ideia de aprofundamento religioso. No dia anterior ao segundo turno, Larissa, 39 anos, comentou sobre "aquela briga" entre o "povo querendo tirar o PT" e "o outro [povo] falando que vai ser pior de que o PT". No entanto, a angústia e a desorientação em relação ao voto, nela, mostravam-se atenuadas. Por um lado, pensava em anular o voto, pois nenhuma transformação havia sido feita pela política, tal como implementada até então: "O tempo passa e você não vê que muda, fica desgostosa de votar". Ela reconhecia que Lula, como Maluf, "roubou e fez alguma coisinha", mas nem adiantava se "iludir" com os políticos: "Fizeram o bilhete único e aí tiraram [...] fizeram o Bolsa Família, aí já arrancaram o Bolsa Família". Em síntese, "ilude ali e fica e depois tira... é só pra enganar o povo". Por outro lado, se Bolsonaro fosse o vencedor, como afirmava seu marido, "ou melhora ou piora de vez", sugerindo a disposição para uma aposta radical. Sem ter mais o que esperar, e sem a premência vista em outros relatos, o fim do mundo adquiria, no entanto, um reforço imaginativo:

Então, não vou querer nenhum deles eu acho, eu não quero opinar de mais nada. Eu estou assim, eu tô me aprofundando na minha religião, se Jesus voltar hoje, eu quero estar na presença de Deus, fazer a vontade de Deus, sendo bom, não matando, não roubando, tentando caminhar pra quando Jesus voltar eu ir lá morar com ele, então, depois de ver tanta coisa, durante tantos anos tanta roubalheira, um entra e outro sai, e nada se resolve, só vai piorando, então só vou acreditar na vinda de Jesus, é só isso que eu quero, me aprofundar na religião, na presença de Deus, porque, se vier, se vier coisa boa, beleza, graças a Deus mudou, né? Se Bolsonaro vir a mudar... e se vier coisa ruim, Deus a gente ajuda a passar" (Larissa, Itaquera, véspera do 2º turno, 27 out. 2018).

Na igreja pentecostal frequentada por Larissa, o advento de Bolsonaro era associado a uma escatologia da volta de Cristo, conforme nos foi transmitido por ela:

Aí o povo já está antecipando isso como se já é a volta de Cristo, é esse o comentário dentro da igreja [...] tirando o PT, depois de tantos anos no comando, e entrando outro, de outro partido, eles estão entrando com essa ideia de que o partido que vai entrar agora vai trazer esse período de falsa paz para depois começar o período do processo da volta de Cristo.

Ela estaria à espera, então, caso a profecia fosse efetivamente cumprida (havia a dúvida, uma vez que as previsões referentes aos anos 2000 não se realizaram): "Se for pra acontecer, bem, estamos na presença de Deus e ele vai vir buscar a gente, né, assim, a gente fica aguardando no senhor". Uma alteração significativa no sentido da espera por melhorias nos levou a conjecturar que estávamos diante de um fenômeno que mudava o aspecto do ceticismo como alerta a uma nova ilusão. Se não havia expectativa de melhorias no horizonte, nem de "milagres" lulistas, o que se aguardava?

O mito

O relato de Antonio, 38 anos, torneiro mecânico, trouxe observações esclarecedoras sobre essa espera. Comentando sobre o clima de forte divisão popular, ele disse:

Um dia até comentei com alguns, com um grupo que a gente tem [de whatsapp], pessoal de futebol, a gente começou um debate político lá. E quando eu falei que a visão política de muitos é uma posição messiânica, a visão de colocar uma pessoa como um messias, uma pessoa que vai chegar, estralar os dedos e vai resolver todos os problemas do país, e falei, "gente, não vai ser isso", mas as pessoas me responderam: "não, vai fazer, vai destruir, bandido vai tomar tiro na cara". Você vê como as pessoas estão, as pessoas estão tão fragilizadas com a violência, fragilizadas com a dificuldade financeira, com o medo de perder aquilo que conquistou, que as pessoas estão levando tudo para o extremo. Ou ele vem destrói tudo, e bate de frente com tudo, ou acha que não vai resolver. Eu acho que não é bem essa a solução (Antonio, Itaquera, véspera do 2º turno, 27 out. 2018).

Podemos dizer que passou a existir uma expectativa de destruição, associada a uma ideia de mudança radical uma vez quebrada a fé popular no progresso com o aprofundamento do ceticismo. Pinheiro-Machado e Scalco (2018)Pinheiro-Machado, R.; Scalco, L. M. Da esperança ao ódio: a juventude periférica bolsonarista. In: Solano, E. (org.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. já haviam notado em entrevistas realizadas com jovens na periferia de Porto Alegre, no ano anterior às eleições, uma "no armamento da população" (p. 58, grifo nosso), defendido por Bolsonaro. Considerado um mito, o candidato era também descrito como uma figura de "pulso" ou "mão forte" e era admirado pela sua figura militar. Era apresentado, segundo as autoras, como um "último recurso", como uma "solução radical" de "salvação de uma vida indigna" (Pinheiro-Machado; Scalco, 2018Pinheiro-Machado, R.; Scalco, L. M. Da esperança ao ódio: a juventude periférica bolsonarista. In: Solano, E. (org.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018., grifo nosso). Recentemente, Kalil, Pinheiro-Machado e Scalco (2022) demonstraram que possuir armas associava-se à ideia de impor medo aos criminosos e se defender de possíveis assaltos, e à defesa dos seus bens e das suas famílias para eleitores que apoiaram Bolsonaro em 2018. Assim, aqueles que se orgulham de ter conseguido os meios para ascender socialmente ou de ter comprado bens por seus próprios méritos (trabalhando ou empreendendo) e não roubando (ou contando com programas sociais) explicam, buscam "proteger as poucas coisas que têm" (Kalil; Pinheiro-Machado; Scalco, 2022, p. 117). As armas, na conclusão das autoras "são símbolos que materializam a luta do 'bem contra o mal', a luta de um lado superior e nobre. Da humanidade que se dedica à família e à obtenção de bens por mérito individual e pela vida do trabalho" (Kalil; Pinheiro-Machado; Scalco, 2022, p. 118). Ao passo que, "o outro lado da moeda" teria ganhado força nos governos lulistas. Bandidos, "preguiçosos" e corruptos entrariam na categoria do campo opositor.

Acresce um descrédito em relação à justiça e às leis, registrado por Pinheiro-Machado e Scalco entre os jovens, consideradas o motivo pelo qual os "bandidos" agiam livremente. Nesse sentido, o estudo "O conservadorismo e as questões sociais" (Fundação Tide Setúbal, 2019), conduzido por Rocha e Solano, identificou um sentimento difuso de "decadência moral generalizada" e de uma "inversão de valores" principalmente ligado ao aumento da violência, do crime e da corrupção. Fátima, 50 anos, desempregada que cuidava de duas pessoas com problemas de saúde em sua casa, preocupava-se com o futuro do filho diante da possibilidade de envolvimento com o tráfico ou de uma morte violenta. Votaria em Bolsonaro já no primeiro turno, com a expectativa de

(...) ele mudar essa justiça aí que cada um faz o que quer, mata e continua, rouba, né? [...] Aí alguém comentou: 'Ah, mas vai ter a ROTA na rua'. Falei: Amém, né? [...] Que eles vão fazer, eles vão pensar mil vezes antes de matar alguém, tirar a vida de um pai de família (Fátima, Marília, 29 set., 2018).

Sem mencionar o candidato lulista ou o PT, referia-se indiretamente a eles como preocupados com outros assuntos que "não tem nada a ver", em vez de mudar a lei, colocar medicamento nos postos de saúde etc. Empenhavam-se, explicou, na implantação de diretrizes sexuais nas escolas relacionadas às questões de gênero, que alterariam o "núcleo básico familiar". Seu pastor, de fato, já havia se mobilizado contra isso em Marília. Vale mencionar o registro do entrelaçamento desses elementos no imaginário popular simbolizado pelas constelações de fotos de filhos e crianças da família expostas dentro das casas. Foi notório o caso da "criança fardada", encontrado em Marília e no Crato. Na casa de Lurdes, as fotos, dispostas sobre uma mesa em que também havia uma bíblia, retratavam os filhos trajando fantasias de roupas militares, de bombeiro e da Polícia Militar, e abraçados com uma pastora.

Ainda sobre a questão da escatologia, cabe destacar que as ideações de fim encontravam seu momento de verdade na própria realidade. Nesse sentido, a concepção de "fome psíquica" formulada por Antonio Candido - desejo pelos alimentos prediletos escassos numa situação de crise social - pode fornecer um ponto de contato com as nossas conjecturas. Contribuindo para a formação de miragens e de fugas imaginárias compensatórias, o tema da carne como alimento aparecia nas histórias dos caipiras, nos desafios do cururu em certos temas apocalípticos. Num mito escatológico analisado, o crítico destaca o aspecto redentor da catástrofe, com a eleição dos justos, que matariam a fome e comeriam carne. Desse modo, podemos supor que a perspectiva de sobreviver com o mínimo, e ainda assim sob o risco de perder o que restou (seja pela criminalidade, seja pela corrupção política), presente nos relatos, pode ter atiçado a "fome psíquica" e dado lastro às fantasias de fim de mundo que eram, por sua vez, avivadas nas igrejas evangélicas, como foi possível constatar.

Por fim, a interpretação de Feltran (2021)Feltran, G. “Formas elementares da vida política: sobre o movimento totalitário no Brasil (2013-)”. Blog Novos Estudos, mar., 2021. sobre o movimento ideológico que impulsiona a liderança de Bolsonaro lança luz sobre nossos achados. De acordo com o sociólogo, esse movimento, articulado por pastores e policiais no cotidiano das periferias urbanas, colocou em ação uma "promessa redentora: de limpar a cidade dos bandidos e o Brasil, dos corruptos" (Feltran, 2021Feltran, G. “Formas elementares da vida política: sobre o movimento totalitário no Brasil (2013-)”. Blog Novos Estudos, mar., 2021., p. 1). É plausível pensar que esse movimento político teria canalizado as expectativas populares de transformação aqui descritas. Feltran explica que, por meio de uma "guerra revolucionária" (Feltran, 2021), se alcançaria, no final, a nação de Cristo, resultante da comunidade redimida. Tal movimento retoma, a nosso ver, elementos messiânicos, com uma escatologia própria8 8 Sobre a disseminação da concepção de "nação cristã", ver Flora (2020). , na tentativa ativa de alcançar o mundo do milênio, figurado na ideia de "pátria cristã". As bases materiais desse movimento, conforme descrito pelo autor, localizam-se principalmente nos mercados de proteção e segurança privada e nos mercados religiosos em contínua expansão no país.

Cariri9 9 O trabalho de campo foi realizado entre os dias 1º e 8 de setembro de 2018, momento em que a candidatura de Lula já havia sido impugnada, mas o PT ainda não havia indicado oficialmente Fernando Haddad. Durante as entrevistas, no dia 6 de setembro, ocorreu o evento da facada contra o candidato da extrema-direita.

No transcorrer da pesquisa, foi notável uma ofensiva religiosa em curso no sertão. Registramos, com frequência, relatos de invasão das casas dos fiéis por parte de pastores com a finalidade de quebrar, destruir ou descartar os santos e as imagens do catolicismo popular coladas nas paredes. Muitas vezes eram os próprios conversos ou seus familiares que pressionavam para "jogar fora" esses objetos. Parecia evidente que o objetivo dos ataques era quebrar a fé depositada nos santos e acabar com o sentimento de proximidade em relação a eles. Junto com as fotografias e pôsteres da família, as imagens cobriam as paredes, expressando uma relação particularmente estreita com "os santos de casa" (Machado, 2014Machado, C. E. “Os santos da casa: um estudo sobre família, comunidade e religião no menor município brasileiro”. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Ciências Sociais. FFC, Universidade Estadual Paulista. Marília, 2014.). A intensidade do ataque neopentecostal nessa região era verificada, assim, na ampliação das investidas públicas de um grupo religioso contra outro dentro dos espaços de intimidade, no interior das casas, como descrito por Silva (2015)Silva, V. G. (org.). Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2015.. Desse modo, as paredes e a disposição simbólica dos objetos, que expressavam o imaginário popular, eram uma frente dessa batalha ideológica de valores, expectativas e crenças em curso.

A expansão do mercado religioso na região, no processo de intensificação do crescimento evangélico entre 2000 e 2010 (Russo; Oliveira, 2011Russo, M.; Oliveira, G. R. “Devagar e sempre, com fé em Deus: evangélicos cearenses nos censos demográficos”. Revista de Ciências Sociais, vol. 42, nº 1, p. 129-150, jan.-jun., 2011.; Alves et al., 2017Alves, J. E., et al. “Distribuição espacial da transição religiosa no Brasil”. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, vol. 29, nº 2, ago., 2017.), acompanhou a metamorfose da cidade de Juazeiro do Norte, alcançada por uma onda de empreendimentos imobiliários, no influxo do capital financeiro, que transformou a cidade preexistente (Queiroz, 2013Queiroz, I. “A metrópole do Cariri: institucionalização no âmbito estadual e a dinâmica urbano-regional da aglomeração Crajubar”. Tese de Doutorado em Desenvolvimento Urbano, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2013.), epicentro de multitudinárias romarias dos devotos do Padre Cícero - cuja estátua se eleva no seu ponto mais alto - e de grandes festas religiosas. Nos anos lulistas, multiplicaram-se shoppings, torres empresariais e condomínios verticais - entre estes, o mais alto foi nomeado Spazio Bezerra de Menezes, em homenagem a um poderoso ex-coronel transformado em empresário, além de condomínios horizontais fechados, inclusive em cidades conurbadas, como Crato e Barbalha, e com eles o mercado de segurança privada, com a oferta de cercas elétricas, guaritas, guardas armados etc. (Soares, 2019Soares, A. R. "Nas tramas do vivido: contradições do bairro João Cabral em meio à metamorfose da cidade de Juazeiro do Norte - CE". Dissertação de Mestrado em Geografia Humana, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2019.).

Houve também a expansão do mercado ilícito de armas e de drogas e da "guerra das facções" no Nordeste (Sá; Aquino, 2018Sá, L.; Aquino, J. "A 'guerra das facções' no Ceará (2013-2018): socialidade armada e disposição viril para matar ou morrer". In: Anais 42º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, Minas Gerais, 22 a 26 out., 2018.; Ipea, 2019Ipea. “Fórum Brasileiro de Segurança Pública”. Atlas da Violência. Brasília, 2019.). A escalada da violência entre facções inimigas e as forças policiais levou o Ceará a se tornar o estado com maior crescimento na taxa de homicídios em 2017 (Ipea, 2019Ipea. “Fórum Brasileiro de Segurança Pública”. Atlas da Violência. Brasília, 2019.). Nesse contexto, igrejas evangélicas oferecem apoio material e espiritual às famílias cujos filhos se envolvem com o tráfico, com o uso de drogas ou foram vítimas de violência. Muitas vezes é o único socorro com que contam. Além disso, dão um suporte social mais amplo, por exemplo, ajudando a encontrar emprego, vagas em clínicas de desintoxicação e no cuidado dos filhos pequenos. Ao mesmo tempo, estimulam uma visão empreendedora para obtenção de meios próprios de mobilidade social e de recursos próprios, que vem se materializando na proliferação de pequenos negócios em bairros populares (Spyer, 2020Spyer, J. Povo de Deus: quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração Editorial, 2020.).

O devorador

A extrema violência no cotidiano popular provocava forte tensão, e as pessoas comentavam com muito medo os roubos e crimes recentes. No bairro do Frei Damião, onde realizamos as entrevistas em Juazeiro, ocorreu uma chacina na semana anterior à nossa chegada, com a morte de onze pessoas em menos de 24 horas. Somava-se a isso o declínio das condições materiais. Maria, 56 anos, tinha uma pequena confecção no fundo da sua casa e seu marido vendia seus produtos na feira da cidade. "Eu era macumbeira", nos disse, ao relatar a sua conversão havia cinco anos, quando passou a frequentar a Assembleia de Deus. "Meu terreiro" relatou, ainda com perceptível orgulho, "era o mais respeitado que tinha aqui dentro desse bairro", mas havia ficado sem dinheiro para levá-lo em frente. As pessoas haviam deixado de jogar os búzios ou ler as cartas, conforme nos explicou: "A fonte secou". Diante da impotência de não poder salvar o terreiro, tomou a decisão de "acabar" com ele, jogando fora todos os seus santos. E, segundo o relato da sua vizinha, mostrava-se furiosa e hostil com as imagens nas paredes das outras casas. Contava exclusivamente com a renda da confecção. Seu marido, com problemas na coluna, não havia conseguido se aposentar por invalidez e tampouco havia recebido transferências monetárias do governo:

Eu não tenho outro tipo de renda nenhuma, porque a renda que o povo sempre tem por aí é o negócio do Bolsa Família, o Bolsa Família eu fiz, eu ainda me arrisquei três vezes e não tive uma oportunidade, entendeu, não tive uma oportunidade de ser sorteada, que nem diz o outro, que isso aí é uma coisa que é um sorteio mesmo, é pra uns e outros não, só que eu vejo que é umas coisas muito errada, eu vejo quem tem carro na garagem tem Bolsa Família, quem tem um mercantil em casa tem Bolsa Família, e eu só tenho a graça de Deus, e não tenho o Bolsa Família (Maria, Juazeiro do Norte, 5 set. 2018).

Mesmo ressentida por não ter dado sorte com o Bolsa Família, ela estava disposta a votar em Lula ou no seu indicado com toda "certeza e segurança". No passado, o ex-presidente havia feito chover dinheiro, explicou:

Onde o pobre pôde ter crédito pra fazer uma compra em uma loja, que antes dele o pobre não tinha, o Lula foi quem trouxe o CredAmigo, que encheu os bolsos aí de muita gente e ainda hoje enche, né [...] Da época do Lula pra cá, gatos e cachorros têm uma moto e um carro, e antes? (Maria, Juazeiro do Norte, 5 set., 2018).

O passado e o presente assim caracterizados, na descrição da fartura popular, opõem-se às penúrias que ela passou, com a perda do terreiro no qual havia investido afeto, dedicação e dinheiro, e a dificuldade de ter acesso às transferências monetárias do governo. De fato, reencontramos na sua entrevista a escatologia associada a uma expectativa de mudança radical, que começou a surgir no imaginário popular:

[p: O que você acha que poderia melhorar hoje no seu dia a dia?] Homem, pra esse mundo melhorar só se Jesus voltasse, aí sim, aí ele saía logo tocando fogo em quem não fosse dele, e ele ia escolhendo só os dele. [p: E você acha que isso... como vai ser isso?] Se vai acontecer? Mais cedo ou mais tarde vai, vai porque a palavra de Deus, na Bíblia, é o que fala: "Jesus está voltando". Vocês já viram um vídeo de uma criança que nasceu com as mãos coladas? [p: Como é?] Ela nasceu com as mãos coladas, aí quando o médico descolou, aí tava o nome: "Jesus está voltando". Aí, em poucos minutos ela faleceu. [p: E como vai ser quando ele voltar?] Ele vai levar os escolhidos e os outros o devorador toma de conta. [p: E como é esses escolhidos?] É que nem fala no Apocalipse... é como fala no Apocalipse (Maria, Juazeiro do Norte, 5 set. 2018).

Espera-se a volta de Jesus, acompanhada de um "devorador", que agiria para destruir, representando eles mesmos o fogo e a morte. A catástrofe seria, assim, necessária para uma real transformação e para alcançar a redenção. Mensagens pregando a volta do salvador também se espalhavam nas redes sociais cerca de um mês antes do primeiro turno, atiçando a ideação escatológica, como foi possível verificar quando Maria reproduziu o vídeo. A voz estereofônica assegurava, inclusive, que a própria divulgação da mensagem realizaria milagres: "Uma mulher estava doente e dormindo, sonhou com Jesus dando água para beber e acordou curada, um policial viu o texto e transmitiu a treze pessoas, foi imediatamente promovido no trabalho". Também circulava a ideia da guerra associada ao candidato da extrema-direita, presente na entrevista com a vizinha de Maria. Mesmo antes do evento da facada, Nivalda, 35 anos, confirmou que já tinha ouvido falar de Bolsonaro, que contava com um apoio menor comparado ao candidato lulista (Lula ou seu indicado). Ainda assim, no seu relato é possível mais uma vez reconhecer evidências da divisão popular:

Ah, esse aí [Bolsonaro] é bem falado. [p: É bem falado aqui no bairro?] É. Todo mundo fala dele aí, das loucuras dele. [p: Mas fala bem ou fala...] Uns falam bem, outros falam mal, né. Uns diz que ele tá certo, outros diz que ele tá errado. É aquelas coisas que ele diz que vai fazer, tem uns que apoiam e outros não apoiam. (Nivalda, Juazeiro do Norte, 5 set. 2018)

Ao se referir à liberação de armas, que dividia opiniões, introduziu a ideação do conflito: "Ele vai liberar o porte de arma, que eu também não acho certo. Porque o mundo já tá do jeito que tá, se liberar vai ficar pior ainda. Vai virar guerra" (Nivalda, 35 anos, desempregada, Juazeiro do Norte, 5 set. 2018).

Quebrando os santos

João, 27 anos, estava desempregado e morava no bairro conhecido como Batateiras, no Crato. Ele e a sua esposa, Vanderlane, 28 anos, empregada doméstica, tinham afixadas na parede de casa imagens de santos, da virgem e uma estátua do Padre Cícero. Parte desses objetos era da sua mãe e haviam sido trazidos e preservados ali após o ataque de um pastor. Ela tinha se convertido à religião evangélica por insistência de outro filho, que havia encontrado ajuda na igreja quando se envolveu com drogas, conforme foi narrado:

Quando eu cheguei, não vi os santos na parede e perguntei: "Mãe, cadê os santos? Se a senhora é evangélica, eu e meu irmão não somos". Aí ela falou: "Não fui eu não, foi ele [pastor], também não gostei não, pode ir atrás". Aí fomos atrás e não achei... aí no outro dia ela foi e encontrou perto lá da ponte. Aí ela pegou e me deu. Pra você ver como é, ele [pastor] jogou da ponte para baixo, e ele [estátua do Padre Cícero] caiu e não quebrou. Nem os santos dela não quebrou. Estão todos aí graças a Deus, tem uns que foi a mãe dela que deu pra ela quando ela era nova. Ele [pastor] arrancou, ele pegou tudo (João, Crato, 5 set. 2018).

Relatos como esse repetiam-se em outras entrevistas. Dona Selma, também moradora do bairro, tinha entre seus santos um Coração de Jesus que, conforme nos explicou, "foi uma mulher que ia jogar fora, aí eu não deixei, pedi a ela, e ela me deu. Porque ela era crente ela ia jogar fora" (bairro das Batateiras, Crato, 4 set. 2018). As tentativas de eliminar a devoção popular passavam por atos de destruição material e por afirmações que desautorizavam o poder da santidade do Padrinho. Percebemos novamente, de fato, a existência de um campo de enfrentamento ideológico ao sermos interpelados pela nora de Dona Selma, ligada a uma igreja evangélica, no ano seguinte quando voltamos ao Crato. Ao nos ver acompanhados de Pedro, uma liderança local da paróquia católica do bairro, interrompeu a conversa perguntando sobre a pesquisa que realizávamos. Logo em seguida introduziu sua percepção sobre os problemas do bairro e da política, fazendo uma crítica ao Padre Cícero no seu papel como líder político e, em particular, como prefeito. No passado, tal como todos os políticos, ele também teria feito apenas promessas. Depois, passou a relatar como sua igreja ajudava realmente aos pobres, inclusive na África.

Do mesmo modo, um médico para o qual João havia trabalhado costumava falar "muito mal" do Padre Cícero, afirmando que, em vez de santo, era bruxo: "Ele falava direto, ele também não gosta do Lula, diz que o Lula é ladrão... Aí, sabendo ele que aqui, o Lula aqui no Nordeste, ele é muito querido, aqui no Nordeste anda junto com nós". A analogia entre ambos os líderes podia ser notada na dimensão afetiva e também nas lembranças dos entrevistados, ou de seus antepassados, como figuras cujo traço em comum era mobilizar multidões, como pode ser verificado nas narrações a seguir:

Mas o Padre Cícero foi uma pessoa boa, ele fez muita coisa aqui pelo Crato. Fez muito milagre. Ajudava as pessoas, os pobres ele ajudava muito. Porque ele tinha carinho pelas pessoas. Meu avô foi quem conseguiu conviver com o Padre Cícero. Conheceu. Dizia que não deu para chegar perto porque tinha muita gente, não deu para chegar perto. Muita gente tem fé nele. Minha mãe virou evangélica, mas até hoje ela fala que Padre Cícero é um santo (João, Crato, 5 set. 2018).

Nas lembranças de Tanyelle, 20 anos, a descrição é semelhante. Ela tinha como único ingresso o Bolsa Família e o dinheiro que recebia em períodos de eleições, por "trabalhar na política". Afirmando que iria vender seu voto na eleição para deputado estadual, também nos assegurou que votaria em Lula para presidente, a quem já havia visto pessoalmente:

Uma vez eu vi ele [Lula] na praça da Sé [Crato], tinha tanta gente que não dava pra chegar nem perto. Vi de longe. O povo gritava querendo pegar na mão dele. Não tinha como abraçar todo mundo. Tinha uma multidão, parecia que estava descendo nosso senhor do céu. Tinha gente, gente, gente, mesmo... o povo ficava "Lula chegou, ô Lula..." na animação, gritando, cantando a música dele (Tanyelle, Crato, 4 set. 2018).

Por outro lado, notava-se que o passar do tempo tinha se mostrado impiedoso na vida da jovem e de sua família, algo que se refletia na disposição dos objetos dentro da casa. Apesar da ausência de santos nas paredes, havia fotografias dos irmãos e sobrinhos bebês ou crianças. Ao mostrar as imagens, surgiu a história da tortura e assassinato do seu irmão de dez anos - fardado na foto - pelo crime. A mãe, segundo ela, era católica e entrou numa forte depressão após a morte do filho e, em seguida, converteu-se à igreja evangélica. Reencontramos assim elementos similares aos de Marília quanto à organização da constelação de objetos no interior das casas, como a criança com trajes militares na foto, bem como a extrema violência e morticínio enfrentados pelas classes populares.

Nós, os pobres

Os relatos coletados forneceram uma visão detalhada das características do nexo lulista com o remanescente da sua base social. Cristina, 37 anos, feirante em Juazeiro e no Crato, assim falou sobre o voto para presidente:

Pra Lula. Lula. Eu mesmo, pode vir Lula cem vezes, que eu voto nele mil vezes. [p: Por quê?] Porque gosto, porque ele botou nós lá em cima. Os pobres. [...] Para roubar, os outros roubam muito, ele roubou é pouco [risos]. Ele roubou pouco e está lá [preso] [...] Pobre sempre é assim, as coisas só cai no lado mais fraco [...] Por um certo era para ele estar livre, pra nós, mas nós mesmo assim, nós vamos botar ele lá em cima, mesmo que ele não se eleja, não ganhe, não assuma, mas nós vamos votar nele, nós vamos estar junto com ele [...] (Cristina, Crato, 3 set. 2018).

Já havíamos destacado anteriormente como a fé na escolha pela volta de Lula, ou do seu indicado, afirmava-se numa expressão que se popularizou. No entanto, foi possível capturar outro aspecto nos relatos do Cariri: a identificação do líder com "os pobres", que se alternava nos relatos com o pronome "nós", dava-se também por acreditarem na proximidade com ele. Essa relação estreita permitia a participação na grandeza da sua figura e a sensação de que haviam sido levados junto com ele à presidência. Em muitos momentos havia mesmo uma indiferenciação na mentalidade popular entre a imagem deles e a do ex-presidente. E isso em distintos exemplos. Da mesma maneira que "os pobres", Lula também foi injustiçado com a prisão. A recriação da sua história e das suas feridas era também as deles. Em Marília, conversamos com um trabalhador temporário da construção civil vindo do Maranhão, que afirmou que Lula havia sido "quebrador de coco no Nordeste, perdeu o dedo quebrando coco" (Cleyton, 19 anos, Marília, 8 jul. 2018), tarefa comum também destinada às crianças dessa região. Uma dimensão pessoal se destacava nos relatos dos encontros com o ex-presidente, em que era valorizado o tratamento "dos pobres" como pessoas dignas. Cristina havia conversado com Lula na feira, anos antes, em Juazeiro, num mutirão, e destacou: "Ele não tinha nojo de nós".

Havia também o reconhecimento de uma associação de lealdade, em agradecimento aos benefícios e ajuda recebidos, cuja contrapartida dava-se numa retribuição equivalente. Por tê-los salvado do "buraco grande", por ter tirado "o Nordeste do fundo do buraco", como relatado respectivamente por Cristina e Cleyton, manteriam seu apoio à liderança lulista:

Toda vida que fala de Lula, estou no pé da televisão. Falou nele, eu corro. Eu posso não entender, mas falou de Lula tô dentro. [p: E o povo?] Os que for dele, fala igual eu estou falando. Agora os que não for covarde, que não fala dele, né. Porque ele está preso mesmo, para a maioria ele foi preso pelos pobres, entendeu? Mesmo que ele tenha esse sítio que ele pegou, que ele não pegou, mas ele ajudou muita gente pobre, ajudou muito. Enquanto o rico comia carne, nós comia gordura. É a verdade, tem que ser dita. Aí quando nós começamos a comer carne igual o rico, aí pronto [risos] aí tiraram ele, tiraram Dilma. Pronto [p: Como era isso de comer gordura?] Era naqueles tempo, antigamente, era mais fraco. Carne era pra rico. Antes de Lula, quem comia carne era só gente rica. Pobre comia carne não. Comia era aquelas coisinhas mais fracas; bofes, ubre, coisa mais carne mais fraca, o povo da roça [...] comia, bem dizer, o resto do rico (Cristina, Crato, 3 set. 2018).

Como se vê, havia o reconhecimento da outorga de condições mínimas de existência, inclusive comer carne, num cenário de extrema escassez, que contornava a humilhação e a experiência de inferiorização em relação aos mais ricos. E, ainda, tendo acesso a algo mais: "Onde foi que a gente um dia sonhou em ter moto?", nos explicou Cleyton.

Nesse ponto chegamos ao que parece ser um divisor de águas das expectativas populares. Já vimos, por um lado, a dimensão que excedia ou transcendia, no imaginário popular, aquilo que a política lulista havia realizado no passado. De outro, onde observamos o nexo ativo, as expectativas encontravam-se contidas nas possibilidades de acesso ao consumo e na oferta dos programas sociais. Assim, aquele "pouco" descrito pelos entrevistados, em vez de ser interpretado como insuficiente, era considerado um alívio ou, quando muito, um sonho de consumo. Como nos explicou Pedro, nos governos de Lula havia mais emprego e, principalmente, "[...] na época dele a gente não passava tanto sufoco, né, de tudo a gente tinha um pouco, mas de tudo a gente tinha, um pouco, né?". Mesmo reconhecendo os parcos ganhos, ao menos "a gente respirava melhor" (Juazeiro do Norte, 5 set. 2018). Por sua vez, alguns já se sentiam descontentes com esses limites, como no relato de Nivalda: "Uma coisa que eu acho mesmo assim é sobre o Bolsa Família, porque, assim, tem algumas pessoas que têm uma criança só e recebe o mesmo valor que eu recebo. E eu tenho três, e eu acho que é muito pouco" (Juazeiro do Norte, 5 set. 2018).

O enviado

Chegamos em Araripe um dia após o evento da facada. O cenário mostrava vestígios do lulismo ao lado da extrema precariedade da vida popular. Numa das casas, a televisão ligada transmitia, ao vivo, as cenas de Bolsonaro sendo levado ao hospital. À medida que entrávamos na área rural, as casas ficavam mais esparsas. Paramos quando divisamos uma moto estacionada na entrada de uma delas. Encontramos Seô Gabriel, 57 anos, que estava de visita na casa do seu amigo Paulo, 49 anos, ambos agricultores. A casa era de taipa e contava com uma cisterna. Na mesa da cozinha havia uma tábua com gordura cortada, sinalizando que esse seria o almoço. Nas narrações a seguir identificamos elementos recorrentes das crenças messiânicas:

Aqui no sertão o melhor é assim, esperar por Deus. Eu penso que vem, que já trouxeram coisa... [p: E como é essa espera do senhor?] Esperar por Deus? É Deus mandar alguma coisa que a gente precisa, a gente trabalha, mas espera por Deus. [Paulo] Esperar pela chuva. [Seô Gabriel] Trabalhar sem Deus não é nada, porque é só ele que pode ajudar nós, então nós espera ele. Mas trabalhando, parado não, "faz por ti que eu te ajudarei" (Seô Gabriel e Paulo, Araripe, 7 set. 2018).

Nota-se que a espera providencial caracteriza-se como o único recurso contra condições de existência extremamente adversas, em que já se chegara ao ponto de não haver carne e somente a ajuda divina poderia oferecer socorro nesse contexto. A fé em tempos melhores mantinha-se sólida. Milagres, afirmaram, já haviam se realizado no passado:

[aumenta o tom da fala] E aqui teve um tempo bom graças a Deus, porque meu tempo de menino aqui nós comia massa de feijão, era água de sal, quando nossos pais arrumavam depois de um dia de trabalho, um pouco de feijão, e um pouco de farinha. Nós fomos criado assim, aí teve um milagre muito grande que eu conheci, que era um milagre, eu acho que foi um milagre de Deus [aponta para cima], que enviou aquele homem a ser presidente e ele comandou oito anos e mudou. Hoje aqui no Nordeste é fraco, mas todo mundo faz uma [refeição]... almoça e janta, e antigamente nós dormia com fome. Aqui foi o Lula, mas está é preso! [Paulo] Não saiu ainda não... [Seô Gabriel] Saiu é nada, enquanto não passar a eleição... (Seô Gabriel e Paulo, Araripe, 7 set. 2018).

A "vinda" do líder lulista inaugurou um tempo benéfico em que as expectativas místicas e as necessidades de existência, principalmente aquelas ligadas à fome, foram atendidas. Pode-se perceber também que se aceitava o fato de as mudanças terem sido insuficientes para transformar a situação do Nordeste, uma vez que haviam dado um alívio. É justificável dizer, portanto, que nesse imaginário mantinha-se íntegra a influência do líder entre os adeptos, que o viam sem nenhuma ambiguidade ou contradição. Nesse sentido, nos atrevemos a afirmar que, de modo oposto à atitude cética, essa percepção da realidade iluminava, sobretudo, os aspectos benevolentes do tempo lulista, cujos fragmentos se amalgamavam por meio de um nexo de identificação e de lealdade com sua liderança, mantendo sua grandiosidade sem sombras aparentes na alma coletiva remanescente.

A liderança popular na fusão do imaginário político e religioso

Com base no material empírico apresentado, podemos afirmar agora que há elementos messiânicos nas visões de mundo descritas e no movimento que dirige o embate ideológico, cuja expansão registramos no Nordeste. Vemos, a seguir, que as crenças messiânicas e o misticismo passaram a integrar o imaginário das camadas populares no meio rural e no urbano, e que suas lideranças históricas concentraram um poder político e religioso.

Os movimentos messiânicos são documentados no Brasil desde o início do século XIX, predominantemente entre as populações rurais do Nordeste e do Sul. Em seu clássico O messianismo no Brasil e no mundo, Maria Isaura Pereira de Queiroz (1977)Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977. ressalta que em um determinado momento, tendo como antecedentes as crenças sebastianistas da mitologia portuguesa, a sociedade rústica no Brasil passou a produzir seus próprios messias, entre eles Antônio Conselheiro, um dos mais conhecidos e estudados. Eles lideraram movimentos espontâneos que misturavam o misticismo a um conjunto de descontentamentos e reivindicações que fermentavam no sertão entre a grande massa economicamente supérflua, formada por mulheres e homens livres e pobres, em particular "após a consolidação da grande propriedade fundiária, que os privou dos alicerces do seu antigo estilo de vida" (Franco, 1997Franco, M. S. Homens livres na ordem escravocrata [1969]. 4ª ed., 3ª reimp. São Paulo: Editora Unesp, 1997. [1969], p. 113). Vivendo no "limbo deixado pela ordem escravista" (Schwarz, 2012Schwarz, R. Agregados antigos e modernos. In: Schwarz, R. Martinha versus Lucrecia. São Paulo: Companhia das Letras, p. 173-183, 2012., p. 174), agregados, pequenos sitiantes, posseiros, jagunços e ex-escravos (Martins, 1981Martins, J. S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1981.), figuras elementares do mundo rural, reuniram-se aos movimentos messiânicos como o de Canudos (1893-1897), na Bahia, à "guerra santa" do Contestado, em Santa Catarina (1910-1914), e também ao cangaço, que se tornou significativo na República Velha. Assim, messianismo e banditismo apresentaram elementos contestatórios e populares, "personificados no camponês rebelado" (Martins, 1981Martins, J. S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1981., p. 61), diante do poderio econômico e político da República do coronelato. Ao mesmo tempo, tais movimentos se mostravam ambíguos (Oliveira, 2008Oliveira, F. Elegia para uma re(li)gião. In: Oliveira, F. Noiva da revoluçãoçElegia para uma re(li)gião. São Paulo: Boitempo, p. 119-275, 2008.), em especial o messianismo, foco deste artigo, pela manutenção da heteronomia das massas subordinadas a uma figura considerada extraordinária.

Sonhando com a mudança na ordem presente, um tempo de expectativas messiânicas antecede sempre a chegada do líder - que poderá "corrigir as imperfeições do mundo" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 27) e permitirá o advento do paraíso terrestre -, em alguns casos vinculada a concepções de um escathon final. Espera-se pela instalação do Reino Messiânico "que tanto poderá ser algo inteiramente novo, como poderá reproduzir uma Idade de ouro que já tenha existido no passado" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 30). Desse modo, explica Queiroz (1977)Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., as crenças messiânicas podem ser confinadas no imaginário popular por longos períodos, "relegadas ao domínio místico", avivando-se subitamente para dar lugar aos movimentos messiânicos, "isto é, a tentativa ativa para criar realmente o mundo do milênio" (p. 37, grifo nosso). A autora conclui que o messianismo, apontando para a possibilidade de um futuro melhor, "pode levar - e em certas circunstâncias leva - os homens a se congregarem para conseguir, por meio da ação, os benefícios que almejam" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 37). Com isso em vista, a espera "é a fase antecedente, que precede a formação do grupo dinamicamente empenhado na realização daquilo que prometia a lenda. E este grupo forma um 'movimento messiânico'" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 37).

Para nossas hipóteses, é importante salientar, como sugere Queiroz (1977)Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., que o ciclo entre a espera e a eclosão do movimento pôde recomeçar, como nos casos envolvendo as figuras do Padre Cícero Romão (1872-1934), contemporâneo ao Conselheiro, em Juazeiro do Norte (CE), no Nordeste, e do Monge João Maria no interior de Santa Catarina, no Sul. Para a autora, quando esses personagens do catolicismo popular "passaram a figurar nos oratórios rústicos" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 282), polarizaram em torno de si a espera messiânica depois de suas existências. A partir daí, afirma, se tornaram "heróis messiânicos, e reencarnaram em várias figuras, dando lugar ora a embriões de movimentos, preste abafados, ora a movimentos que plenamente desabrocharam" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 282), como se observou no Nordeste.

Ao se referir às condições de sujeição do agregado e às saídas místicas episodicamente encontradas por ele, Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997Franco, M. S. Homens livres na ordem escravocrata [1969]. 4ª ed., 3ª reimp. São Paulo: Editora Unesp, 1997. [1969]) nota um aspecto à primeira vista paradoxal: o messianismo teve a função de integrar à sua existência, ainda que de forma incipiente, elementos de uma sociedade estratificada, com agrupamentos urbanos, um sistema político-administrativo, com artesanato, comércio etc. Referindo-se ao caso de Belo Monte, a autora destaca que o arraial liderado pelo Conselheiro ofereceu uma organização transitória da população rural nesses moldes, crescendo como centro comercial, agrícola e artesanal. Aspecto semelhante foi observado por Queiroz (1977)Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977. em Santa Brígida (BA), com o "Povo do Velho Pedro", e em de Juazeiro do Norte (CE), transformados em municípios pelos seus líderes religiosos. Nesses casos, o messianismo mostrou-se adequado para fusionar elementos místicos e racionais, apresentando-se como forma de encaminhar a situação de expropriação vivida pela massa sobrante do mundo rural, sob a condução de um líder carismático.

O messias sertanejo, portanto, apresentava duas faces indissociáveis, na condição designada pela autora: "Era chefe religioso e profano de suas comunidades" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 308). Tido como um homem providencial, respondia às expectativas místicas e às necessidades de existência de uma massa deixada historicamente a "deus-dará". Para os romeiros, comportava-se como um "pai para com seus filhos" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 299), participava da política influenciando seus adeptos quanto à escolha do voto e negociando com as autoridades e coronéis locais, que buscavam seu apoio em períodos eleitorais.

Líder bifronte

O aspecto duplo do messias brasileiro se apresentou de forma mais completa na figura do Padre Cícero (Braga, 2008Braga, A. Padre Cícero: sociologia de um padre, antropologia de um santo. Bauru: Edusc, 2008.), em Juazeiro do Norte, onde ele levou a cabo uma expansão significativa da área urbana. A cidade passou a contar com fábricas de beneficiamento de algodão, de sinos e de relógios para igrejas, com dois estabelecimentos de crédito, e era servida por estradas de rodagem e um campo de aviação. Assim, a "cidade santa" dos romeiros e das preces e a "cidade comercial e dos negócios" imbricavam-se, e ambas giravam em torno da liderança do Padrinho, como era popularmente conhecido (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977.). Sua fama de "homem extraordinário" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 255), visto inclusive como "o próprio Deus" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 256), disseminou-se pelos milagres atribuídos a ele - como o da beata Maria de Araújo e a transmutação da hóstia em sangue, no contexto da grande seca de 1888-1889 (Braga, 2008Braga, A. Padre Cícero: sociologia de um padre, antropologia de um santo. Bauru: Edusc, 2008.) - e pela transformação posterior da "sua cidade e sua região no centro mais próspero do sertão" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 262) - milagre este que pode ser mais bem associado à sua atuação como chefe político. Na explicação de Zaluar (1983)Zaluar, A. Os homens de Deus: um estudo dos santos e das festas no catolicismo popular. Rio de Janeiro: Zahar, 1983., milagre "denota toda e qualquer manifestação de poder dos santos" (p. 102). Se agentes humanos se mostrassem milagreiros, podiam passar por um processo de divinização, inclusive de aproximação à figura de Cristo. Assim, o amplo poder de realizar milagres conferiu grandiosidade aos líderes populares e à capacidade de influenciar as massas. Diferentemente do que se poderia imaginar, a fusão de magia e política integrou elementos de progresso no sertão.

Dessa forma, o poder do Padrinho "eclipsava totalmente o dos coronéis locais" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 258). Os romeiros, "a maior força eleitoral do Estado" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 258), o elegeram prefeito e foram arregimentados na insurreição de 1914 contra o governo federal, que tinha deposto o aliado político do Padre Cícero, o líder do grupo oligárquico do Ceará. A fama da sua grandiosidade dava-se também pela "ascendência sobre os camponeses pobres e sobre jagunços e cangaceiros" (Queiroz, 1977Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977., p. 258). Foi o Padre Cícero, segundo Martins (1981)Martins, J. S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1981., que tentou armar Lampião para lançá-lo contra a Coluna Prestes. Nesse sentido, Queiroz (1977)Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977. ressalta que a dimensão religiosa e a dos conflitos armados não estavam dissociadas, como visto também em Canudos e no Contestado. Da perspectiva mística, a guerra é entendida como um sinal do fim dos tempos (Martins, 1981Martins, J. S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1981., p. 53).

Talvez os casos do Padre Cícero e daquele considerado sua reencarnação nos anos 1940 - Pedro Batista da Silva, o messias de Santa Brígida (BA) - tenham levado Queiroz a concluir que os messias sertanejos, ao invés de subverterem a ordem por meio das suas reformas, deram-lhe condições para seu melhor funcionamento, trazendo "expectativas de progresso" ao interior. Para Martins (1981)Martins, J. S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1981., o Padre Cícero distinguira-se, de fato, de outros messias e outros rebeldes pelo seu aspecto conservador. De todas as maneiras, banditismo e messianismo, eclodindo espontaneamente como formas contestatórias elementares, entraram no imaginário das massas rurais e na cultura popular, notadamente na literatura de cordel (Braga, 2011Braga, G. “Entre o fanatismo e a utopia: a trajetória de Antônio Conselheiro e do beato Zé Lourenço na literatura de cordel”. Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2011.).

A impressão do passado, visível ainda hoje nos retratos desses personagens colados nas paredes das casas sertanejas ao lado das imagens de santos - sorte de herança material que ascende a dimensão mágica da oração10 10 O aspecto hereditário dos santos e imagens dispostas nas paredes das casas foi verificado pela nossa pesquisa no Cariri (CE) e por Carlos Eduardo Machado (2014) na cidade de Borá (SP). -, no nosso argumento, permaneceu conservada também como uma espécie de lembrança de uma tradição que deixou marcas na mentalidade dessas massas "sem ocupação certa" (Schwarz, 2012Schwarz, R. Agregados antigos e modernos. In: Schwarz, R. Martinha versus Lucrecia. São Paulo: Companhia das Letras, p. 173-183, 2012., p. 174). Não só pela importância na sua história, mas também pela repetição de um ciclo de reencarnação dos líderes em homens que avivaram a tradição messiânica.

Migração

Sem dúvida menos frequentes após 1930, quando começa a se configurar um mercado formal de trabalho no país (Secco, 2020Secco, L. “O sentido da informalidade”. Blog Revista de História, maio, 2020.), notícias de ativação do messianismo em contextos urbanizados contrapõem-se à previsão de que tais movimentos se restringiriam exclusivamente ao meio rural (Camargo et al., 1973Camargo, C. P., et al. Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973.). Em fins da década de 1940, migrantes do Nordeste e de cidades interioranas, que se estabeleceram na cidade do Rio de Janeiro em busca de emprego, uniram-se à Fraternidade Eclética Espiritualista Universal, sob a liderança messiânica de Yokaanam (Negrão, 2001Negrão, L. N. “Revisitando o messianismo no Brasil e profetizando seu futuro”. RBCS, vol. 16, nº 46, p. 119-129, jun., 2001.). A maioria dos seguidores, ex-católicos populares, orientavam-se por concepções espíritas, de umbanda kardecizada (Negrão, 2001Negrão, L. N. “Revisitando o messianismo no Brasil e profetizando seu futuro”. RBCS, vol. 16, nº 46, p. 119-129, jun., 2001.). Como se sabe, a conversão dos sujeitos das novas classes sociais urbanas mais pobres passou a ser disputada por religiões pentecostais e do gradiente umbandista-espírita (Camargo et al., 1973Camargo, C. P., et al. Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973.). Segundo Mariano (2008)Mariano, R. “Crescimento pentecostal no Brasil: fatores internos”. Revista de Estudos da Religião, p. 68-95, dez., 2008., o pentecostalismo - a religião que mais se expandiu desde a década de 1950 - incorporou, de fato, certas características do catolicismo popular, como a crença em demônios, experiências místicas, milagres, feitiçarias, concepções escatológicas, entre outras. Assim, a herança das crenças messiânicas e mágicas na sociedade moderna facilitou a aceitação de outras doutrinas e a evangelização de novos adeptos.

Acompanhando a migração do fenômeno, Maria Isaura Pereira de Queiroz, em seu ensaio "Tambaú, cidade dos milagres" (1978), aborda o caso do Padre Donizette no interior do estado de São Paulo. Além da incorporação das crenças do catolicismo rural pelo catolicismo ortodoxo nas cidades, a autora mostra que os meios de comunicação de massa, em particular o rádio, foram os grandes instrumentos de difusão dos milagres do taumaturgo, aumentando a afluência de romeiros em busca da cura para as "doenças do progresso"11 11 Entre os arquivos dos milagres revisados por Queiroz, constava principalmente a cura de doenças. Tratava-se, em sua maioria, de "doenças do progresso" (Mello; Novais, 2000, p. 574): além de câncer e outras doenças crônico-degenerativas, as úlceras de estômago e as gastrites. Combinavam-se, assim, o remédio da indústria farmacêutica, em expansão no país, com as bençãos e milagres. na década de 1950. Em sua grande maioria, eram tanto "gente do sítio" (Queiroz, 1978Queiroz, M. I. P. Tambaú, cidade dos milagres. In: Queiroz, M. I. P. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo: LTC/Edusp, p.135-208, 1978., p. 159), como operários dos "arrabaldes de São Paulo" e pessoas de classe média. Desse modo, ela conclui que os novos meios colocaram-se "muito naturalmente ao serviço dessa atitude dominante da fé" (Queiroz, 1978Queiroz, M. I. P. Tambaú, cidade dos milagres. In: Queiroz, M. I. P. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo: LTC/Edusp, p.135-208, 1978., p. 205, grifo nosso).

O caso de Tambaú e de outros taumaturgos que apareceram na época (em Poá (SP), Urucânia (MG) e em Curitiba (PR)) levaram Queiroz (1978)Queiroz, M. I. P. Tambaú, cidade dos milagres. In: Queiroz, M. I. P. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo: LTC/Edusp, p.135-208, 1978. a formular a hipótese de que a presença de indivíduos "dotados de força mística fora do comum" associava-se a uma "disposição coletiva particular para a religião" por parte dessas massas (p. 201). Descrevemos essa aptidão associada a uma herança do passado rural e vimos que o misticismo em contexto urbano não foi apenas uma ativação do passado, mas sua reprodução na sociedade moderna, que aumentou seu caudal no imaginário popular e manteve a figura de um líder carismático (Bastide, 1977Bastide, R. Prefácio. In: Queiroz, M. I. P. O Messianismo no Brasil e no mundo. 2ª ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977.). Graças ao exército radiofônico, a voz forte do Padre Donizette passou a ser um aspecto do seu carisma: "uma figura imponente, voz estentórica, modos autoritários, completa confiança em si próprio e completa crença em seus poderes sobrenaturais [...] exercem um domínio visível sobre todos que dele se acercam" (Queiroz, 1978Queiroz, M. I. P. Tambaú, cidade dos milagres. In: Queiroz, M. I. P. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo: LTC/Edusp, p.135-208, 1978., p. 175, grifo nosso). Além disso, a "atitude rústica de encarar a religião como um instrumento de melhorar a vida profana" (Queiroz, 1978Queiroz, M. I. P. Tambaú, cidade dos milagres. In: Queiroz, M. I. P. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo: LTC/Edusp, p.135-208, 1978., p. 142), sob uma perspectiva mágica, tornou-se comum às religiões nas grandes cidades.

Conclusão

Três considerações podem ser feitas a partir do quadro apresentado neste artigo sobre o imaginário no voto popular em 2018. A primeira diz respeito à cisão em relação ao que, até então, se esperava da política. Vimos que, diante da "bagunça" da vida das classes populares, como era categorizado o descalabro social vivido pelos eleitores, surgiram naquele contexto expectativas de mudanças que excediam o que a política lulista havia realizado no passado. Em São Paulo e Marília, regiões em que o bolsonarismo saiu vitorioso, registramos o aprofundamento de um ceticismo em relação às promessas de progresso lulistas e aos políticos, caracterizados em geral como corruptos. Junto aos ricos, faziam parte de um sistema que os excluía, e contra esses se havia acumulado um sentimento de decepção, exasperação e insatisfação. Tal atitude aparecia, por isso, como precaução contra uma nova desilusão e se mostrou determinante na escolha do voto. Havia também a ideia de que a perspectiva de continuidade dos governos petistas não mudaria o rumo crônico da deterioração social. Assim, abriu-se a possibilidade de uma aposta radical, que acabou sendo figurada pela candidatura do ex-capitão, a quem era associada uma reviravolta.

A perspectiva de sobreviver com o mínimo, e ainda assim sob o risco de perder o que restou seja pela criminalidade, seja pela corrupção política, teria dado lastro no imaginário a uma constelação de elementos e representações que começam a se articular em torno de um conflito armado contra bandidos e corruptos, e a uma escatologia que destacava o aspecto redentor de uma destruição necessária, associada à volta de Jesus e avivada nas igrejas evangélicas. Todos esses elementos eram associados à candidatura da extrema-direita e apontam para uma mudança da "bagunça" - sentida também em relação à falta de leis e à inversão de valores, que prejudicava o trabalhador e beneficiava os criminosos, ou "preguiçosos" - para uma ordem, estabelecida por meio da violência. Assim, trabalhadores e empreendedores justificariam a defesa dos seus bens materiais, obtidos por mérito próprio, e das suas famílias mediante as armas. É plausível pensar, diante do exposto, que a ideologia do "povo das armas" se apresentaria entre os grupos sociais que, dentro de uma vida precarizada, alcançaram de alguma maneira bens materiais ou têm seus próprios negócios, em contraposição àqueles que dependem de programas sociais e vivem na extrema pauperização, como notadamente era o caso dos entrevistados do Nordeste.

Esses resultados dialogam com as hipóteses mais recentes da literatura sobre o movimento ideológico que impulsiona a liderança de Bolsonaro, articulado no cotidiano das periferias urbanas por policiais e pastores. Estes oferecem redes de solidariedade, apoio espiritual e material, proteção e incentivo ao empreendedorismo para alcançar a prosperidade. Tal movimento teria colocado em ação uma promessa de redenção, de "limpar" a cidade de bandidos e o Brasil de corruptos, alcançada ao final de uma guerra revolucionária, em que se alcançaria a "pátria cristã", e que se apresenta como uma tentativa ativa de alcançar o mundo do milênio, ligada às crenças messiânicas enraizadas no imaginário popular.

O artigo também apontou que a observação das paredes no interior das casas se mostrou uma fonte rica de produções mentais e imagens visuais (retratos, fotografias, quadros) que integram o imaginário popular. A partir desse material foi possível observar um provável enraizamento do bolsonarismo nesse plano das representações no retrato da "criança fardada", encontrado em Marília e no Crato. Na nossa hipótese, a ser verificada em futuras pesquisas, esses elementos revelavam a disseminação de uma estética militar e as expectativas em relação ao futuro dos filhos dentro do embate entre o "bem e o mal".

Um segundo aspecto dos resultados apresentados que gostaríamos de ressaltar é o do nexo lulista ativo notadamente no interior do Nordeste, no Cariri. De um lado, verificamos nos relatos a identificação dos "pobres" - o outro "povo" na divisão popular - com o líder lulista e o sentimento de proximidade com ele. Como vimos, essa relação estreita permite a participação na grandeza da sua figura e a sensação de que haviam sido levados junto com ele ao alto do poder, quando chegou à presidência. Essa proximidade os faz sentir valorizados, e em momentos observamos mesmo uma indiferenciação na mentalidade popular entre a imagem deles e a do ex-presidente. Vimos também o reconhecimento de uma associação de lealdade, em agradecimento aos benefícios e à ajuda recebida, cuja retribuição dava-se no voto. E, diferentemente, do observado em São Paulo e Marília, em que as expectativas populares excediam ou transcendiam aquilo que a política lulista havia realizado no passado, as expectativas entre "os pobres" no Cariri encontravam-se contidas nas possibilidades de acesso ao consumo e na oferta dos programas sociais. Assim, em vez de ser interpretado como insuficiente, as políticas lulistas eram consideradas um alívio.

Ainda, para descrever o contato do ex-presidente Lula com o povo e as suas realizações políticas, mobilizavam-se expressões linguísticas e lembranças no imaginário popular que remetiam às lideranças históricas entre as classes populares, em particular, a do Padre Cícero, cujo traço em comum era a proximidade com as multidões e a de ser um "realizador de milagres". Como buscamos demonstrar, dado o entrelaçamento histórico entre o imaginário político e religioso, o milagre é concebido como uma expressão de poder místico e político de um líder para melhorar a vida dos mais pobres. E no caso do Nordeste, de modernizar a região.

Por fim, uma terceira consideração diz respeito propriamente à disputa ideológica em curso e que, descobrimos, havia se estendido ao interior do Nordeste no fluxo de um emaranhado de empreendimentos e de aumento da extrema violência. Vimos que as paredes e a disposição simbólica dos objetos dentro das casas, que expressavam uma tradição dos moradores em sua maioria ligados ao catolicismo popular, eram um verdadeiro front desse conflito de valores, expectativas e crenças. Recorria-se à violência para destruir imagens e santos, e atingir a devoção ao Padre Cícero, desautorizando seu poder de "realizador de milagres". De fato, encontramos no imaginário de entrevistados de Juazeiro e do Crato elementos da ideologia bolsonarista; a fantasia de uma guerra armada, a escatologia associada a uma verdadeira mudança da ordem e a estética militar. Futuras pesquisas serão necessárias para compreender os impactos desse avanço ideológico sobre o voto popular.

Agradecimento

Agradeço ao Cenedic e aos seus pesquisadores pela oportunidade de discutir os resultados da pesquisa. Sou grata em particular a Camila Góes pelas observações feitas às versões preliminares do artigo.

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  • 2
    Adotamos a definição de imaginário, sugerida por Jean-Jaques Wunenburger no campo das ciências sociais em "O imaginário" (2007), como "um conjunto de produções, mentais ou materializadas em obras, com base em imagens visuais (quadro, desenho, fotografia) e linguísticas (metáfora, símbolo, relato), formando conjuntos coerentes e dinâmicos, referentes a uma função simbólica no sentido de um ajuste de sentidos próprios e figurados" (p. 11).
  • 3
    André Singer (2009)Singer, A. “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”. Novos Estudos, nº 85, nov., 2009. observou que a base social lulista teria se formado entre o "subproletariado", categoria formulada originalmente por Paul Singer, em "Dominação e desigualdade. Estrutura de classe e repartição de renda no Brasil" (1981). Para Singer, o subproletariado não era integrado apenas pelos desempregados, mas por pobres que trabalhavam. Para o autor, esses trabalhadores apresentavam uma inserção "excessivamente precária", com vistas à sobrevivência enquanto "a oportunidade de emprego normal" não se dava, dificultando a caracterização desse grupo pela sua inserção nas relações de produção. Além disso, suas condições de existência não eram nem transitórias nem temporárias, como a produzida pela perda do emprego. Francisco de Oliveira em seu ensaio "Crítica à razão dualista" (2013) demonstrou que essa população, que não se enquadra nas categorias fundamentais do capitalismo, podia ser super-explorada com baixos salários e transferindo a ela os custos da sua própria sobrevivência, como ocorreu no processo de periferização das grandes cidades. Daí termos uma massa fora do núcleo organizado da economia, mas que tem um papel no processo de acumulação do capitalismo brasileiro. Para uma revisão recente sobre a contribuição das ciências sociais e da historiografia brasileira para a categorização dessas parcelas da sociedade, ver Lincoln Secco (2020)Secco, L. “O sentido da informalidade”. Blog Revista de História, maio, 2020..
  • 4
    Ver Almeida, 2015Almeida, R. Dez anos do chute da Santa: a intolerância com a diferença. In: Silva, V. G. (org.). Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2015..
  • 5
    a) Juazeiro do Norte, Crato e Araripe (CE) - "lulismo forte": cidades pequenas (menos de 50 mil habitantes) e médias (100 a 500 mil habitantes) do interior da região Nordeste que apresentaram cerca de 70 e 80% de apoio ao candidato do PT; b) Itaquera e Jaraguá na cidade de São Paulo (SP) - "lulismo médio": regiões periféricas das metrópoles, em particular do Sul e do Sudeste, que apresentaram uma inversão da tendência de vitórias consecutivas do PT; e c) Marília (SP) - "lulismo fraco": cidades médias do interior do estado de São Paulo (100 a 500 mil habitantes), que apresentaram cerca 80% de votação nos candidatos de oposição.
  • 6
    Contamos com uma equipe de pesquisa de estudantes de graduação e pós-graduação em Ciências Sociais da Unesp-Marília e pesquisadoras do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC).
  • 7
    Os nomes dos eleitores entrevistados e citados no artigo foram alterados.
  • 8
    Sobre a disseminação da concepção de "nação cristã", ver Flora (2020)Flora, G. B. A construção de uma nação cristã na América Latina. In: Guadalupe, J. L. P.; Carranza, B. (orgs.). Novo ativismo evangélico no Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, p. 131-154, 2020..
  • 9
    O trabalho de campo foi realizado entre os dias 1º e 8 de setembro de 2018, momento em que a candidatura de Lula já havia sido impugnada, mas o PT ainda não havia indicado oficialmente Fernando Haddad. Durante as entrevistas, no dia 6 de setembro, ocorreu o evento da facada contra o candidato da extrema-direita.
  • 10
    O aspecto hereditário dos santos e imagens dispostas nas paredes das casas foi verificado pela nossa pesquisa no Cariri (CE) e por Carlos Eduardo Machado (2014)Machado, C. E. “Os santos da casa: um estudo sobre família, comunidade e religião no menor município brasileiro”. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Ciências Sociais. FFC, Universidade Estadual Paulista. Marília, 2014. na cidade de Borá (SP).
  • 11
    Entre os arquivos dos milagres revisados por Queiroz, constava principalmente a cura de doenças. Tratava-se, em sua maioria, de "doenças do progresso" (Mello; Novais, 2000Mello, J. M. C.; Novais, F. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: Novais, A. (coord.); Schwarcz, L. M. (org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea, vol. 4, p. 559-658. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 574): além de câncer e outras doenças crônico-degenerativas, as úlceras de estômago e as gastrites. Combinavam-se, assim, o remédio da indústria farmacêutica, em expansão no país, com as bençãos e milagres.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2021
  • Aceito
    16 Mar 2023
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