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Desigualdades e Resistências no Organizar de Práticas Festivas Marginalizadas

Resumo

Davel, 2016Davel, E. (2016). A festa como organização: cultura, criatividade e empreendedorismo. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia. Hall (2003, 20Hall, S. (2003). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG. 2011Hall, S. (2011). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, RJ: DP&A. Sansone (2004)Sansone, L. (2004). Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra do Brasil. Salvador, BA: EdUFBA.

congo capixaba; não-lugares; festas afro-brasileiras; micropolíticas; desigualdade

Abstract

This article is based on the understanding of festivals as organizations and events that are multiform and establish mediations with society (Amaral, 1998a; Davel, 2016). Based on a multi-political perspective, our objective was to reflect on the social production of inequalities and forms of resistance in the organization of the congo capixaba festival, in the state of Espírito Santo. Our theoretical reflections were grounded in Certeau’s (Certeau, 1985, 2008, 2012; Certeau, Giard, & Mayol, 2003), Hall’s (2003, 2011) and Sansone’s (2004) discussions and reflections regarding contemporary black culture. Our empirical field of investigation was the Carnaval de Congo de Máscaras [Congo Masquerade Carnival], in Roda D’água, where we employed the ethnographic method as a data production and interpretation strategy. Our findings indicate the existence of “non-places” as products of historically produced conditions of social marginality, as well as an ethnic-racial invisibility reinforced in the festival’s organizational context. These non-places operate in the religious, touristic, and cultural macropolitical fields. On the other hand, we highlight how the subjects of such conditions deal with them by employing certain micropolitical tactics, which figure prominently in their everyday lives, and articulate themselves around a sense of tradition and belonging.

congo capixaba, non-places; Afro-Brazilian festivals; micropolitics; inequality

Introdução

As festas de Congo, conhecidas também como Congada, Congado, Cacumbi, Ticumbi, Baile de Congo, dentre várias outras nomenclaturas, são festividades consideradas tipicamente representativas da cultura afro-brasileira, que celebram e reinterpretam no território nacional a coroação de reis negros de antigos reinos da África Ocidental (Barros, 1983Barros, P. (1983). Banda de congo da Barra do Jucu: estado do Espírito Santo. Vitória, ES: Sub-Reitoria Comunitária.; Santos, 2013Santos, J. (2013). Processos organizativos e identidade afro-brasileira: a transmissão cultural do congo em Cariacica/ES. (Master’s thesis), Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES.). No contexto capixaba, o congo se organiza em diferentes festas, sendo uma delas a estudada neste artigo, o chamado Carnaval de Congo de Máscaras de Roda D’água, que se dá anualmente na zona rural de Cariacica, periferia da região metropolitana da capital Vitória.

A festa, de caráter sacro-profano (Amaral, 2008Amaral, R. de C. de M. P. (2008). Festas, festivais, festividades: algumas notas para a discussão de métodos e técnicas de pesquisa sobre festejar no Brasil. Paper presented at 2nd Colóquio Festas e Sociabilidades, Natal, RN.), homenageia Nossa Senhora da Penha1, padroeira do estado, e se insere no calendário católico, ocorrendo no contexto local há mais de um século, segundo relatam os moradores da região. O Carnaval de Congo de Máscaras se insere, também, no âmbito das manifestações culturais entendidas enquanto empreendimentos coletivos, aqui reforçados na perspectiva de uma produção cultural afro-brasileira, dadas as matrizes étnicas reclamadas por seus atores. Assim, operando nas esferas das produções tanto materiais, quanto imateriais, o Carnaval se constitui na atualidade integrando-se ao escopo das políticas e da economia da cultura.

Essa constituição do congo como festividade em tal contexto político, econômico, cultural e identitário, contudo, não ocorre de forma monolítica ou homogênea. Ao contrário: as festividades dadas em torno dessa manifestação cultural constroem-se como palco de tensões e conflitos diversos. Historicamente destinadas a lugares de marginalidade, as festas se expressam, por exemplo, nas complexas configurações das relações raciais no Brasil e na problemática de um racismo velado e indissociado das classes sociais. Evidenciam tensões envoltas no encontro das práticas religiosas e expressões culturais africanas com religiosidades de matriz cristã; tensões entre tradição e modernidade; entre espaço público e espaço privado; entre forças de resistência e movimentos de assimilação.

Ao entender que elementos étnicos, religiosos, sociais e políticos se imbricam nessa complexa teia de significados produzidos e reproduzidos, é interessante evidenciar o entendimento de Certeau (2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes., 2012Certeau, M. de (2012). A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus.) de que a cultura articula conflitos de diferentes naturezas. O autor propõe, assim, a adoção de uma análise polemológica, isto é, uma análise que traz à tona a politização das práticas cotidianas ao observarem as ações ordinárias no campo de forças em que se edifica a sociedade. Desse modo, considerando que uma festa reflete as realidades sociais, econômicas e políticas do contexto em que se organiza (Marques & Brandão, 2015Marques, L., Brandão, C. (2015). As festas populares como objeto de estudo: contribuições geográficas a partir de uma análise escalar. Revista Ateliê Geográfico, 9(3), 7-26. doi:10.5216/ag.v9i3.33822
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), o Carnaval de Congo de Máscaras se apresenta como campo para o desvendamento e debate da produção e reprodução de desigualdades econômicas, sociais e étnico-raciais.

Desse modo, este artigo posiciona-se dentro do campo dos Estudos Baseados em Práticas na Administração, dialogando com a Teoria das Práticas no contexto dos Estudos Organizacionais, arcabouço teórico calcado no cotidiano, naquilo que as pessoas realmente fazem na organização (Feldman & Orlikowski, 2011Feldman, M. S., Orlikowski, W. J. (2011). Theorizing practice and practicing theory. Organization Science, 22(5), 1240-1253. doi:10.1287/orsc.1100.0612
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). Considerando a grande heterogeneidade de perspectivas dentro da Teoria das Práticas, adotamos Michel de Certeau como principal teórico. Isso implica entender o organizar em uma perspectiva processual e espacial, tomando como referência o fazer no e do cotidiano e o espaço como produto destas “feituras”, como fissuras que atravessam os lugares demarcados pela ordem dominante, criando novas possibilidades (Certeau, 2008). Compreendemos, nesse contexto, a festa como organização e como organizadora, como instância multiforme e mediadora (Amaral, 1998; Davel, 2016)Davel, E. (2016). A festa como organização: cultura, criatividade e empreendedorismo. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia., de forma que escolhemos como lócus de pesquisa o Carnaval de Congo de Máscaras de Roda D’água, no Espírito Santo.

Considerando o que foi apresentado até aqui, destacamos que o objetivo deste artigo é refletir sobre a produção social de desigualdades e resistências na organização do congo capixaba, a partir de uma perspectiva micropolítica das práticas cotidianas. Evidenciamos, assim, os não-lugares do congo como produtos de condições de marginalidade e invisibilidade étnica-racial que são reforçadas no contexto organizacional da festa.

Nesse sentido, oferecemos como contribuição teórica mostrar como o processo organizativo da festa pode mobilizar táticas que, produzidas cotidianamente e calcadas na ancestralidade, engendram-se nas fissuras dos lugares de poder, negociando espaços no cenário cultural, religioso e institucional. Desvendamos, igualmente, os modos contestatórios empreendidos pelos sujeitos destas condições de não-lugar, operados no campo das micropolíticas, no nível do cotidiano. Pois, nos interessa expor os mecanismos ainda latentes de opressão e silenciamento do povo negro, especialmente o que é habitante de territórios periféricos geográfica e politicamente e, sobretudo, acentuar a não-passividade popular e o caráter político de uma produção cultural afro-brasileira.

Reflexões teóricas

A concepção de prática adotada neste estudo se situa no campo dos Estudos Baseados em Práticas, que, por sua vez, emergiu das Teorias Culturais, de forma que consideram-se práticas não como meras ações rotineiras ou como a reprodutibilidade de uma dada ação (Reckwitz, 2002Reckwitz, A. (2002). Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, 5(2), 243-263. doi:10.1177/13684310222225432
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). Tal campo, que versa sobre as práticas nas organizações, configura-se como diverso e heterogêneo, tendo sido revisado por Feldman e Orlikowski (2011)Feldman, M. S., Orlikowski, W. J. (2011). Theorizing practice and practicing theory. Organization Science, 22(5), 1240-1253. doi:10.1287/orsc.1100.0612
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que o sistematizaram a partir de três possibilidades de análise: a empírica, a teórica e a filosófica. De acordo com as autoras, a abordagem empírica lança luzes sobre a ação cotidiana das pessoas no contexto organizacional. Já a perspectiva teórica discute a operacionalização e a produção das práticas de forma situada no tempo e no espaço. Finalmente, o enfoque filosófico baseia-se na compreensão da prática como produtora da realidade social (Feldman & Orlikowski, 2011Feldman, M. S., Orlikowski, W. J. (2011). Theorizing practice and practicing theory. Organization Science, 22(5), 1240-1253. doi:10.1287/orsc.1100.0612
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).

Ao dialogarmos com a abordagem filosófica das práticas, elaboramos nosso quadro teórico de referência a partir das proposições do historiador, filósofo e antropólogo Michel de Certeau (2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes., 2012Certeau, M. de (2012). A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus.), autor cujas discussões vêm sendo mobilizadas nos Estudos Organizacionais no Brasil e no exterior (Faria & Leite-da-Silva, 2017Faria, A. M., Leite-da-Silva, A. R. (2017). Estudos organizacionais baseados em Michel de Certeau: a produção internacional entre 2006 e 2015. Revista Alcance, 24(2), 209-226. doi:10.14210/alcance.v24n2.p209-226
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; Machado, Fernandes, & Silva, 2018). Segundo tal perspectiva, as práticas corresponderiam a modos de fazer que se utilizam de criatividade e saberes práticos para se estabelecerem em campos de forças desiguais. Em outras palavras, as práticas que se desenvolvem no cotidiano dos sujeitos comuns são modos operatórios que buscam – ainda que não explicitamente – driblar as adversidades de um sistema de dominação. Para o autor, os sujeitos estão sempre usando táticas frente às estratégias dominantes (Certeau, 2008)Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes..

Por estratégias, Certeau (2008)Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes. entende o cálculo das relações de forças, possibilitadas quando um sujeito de saber e poder é isolado de um contexto. É a prática sob um lugar visto de cima, onde tudo se mede e se controla no momento em que nada escapa à visão, concebida em um lugar de quem detém o poder e o utiliza em seu agir para estabelecer direcionamentos que mantenham seu status (Certeau, 2012Certeau, M. de (2012). A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus.). A estratégia domina o tempo, capitaliza as vantagens conquistadas dos seus cálculos; é, portanto, independente à variação das circunstâncias (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.).

Já as táticas, ao contrário, dependem do tempo. Dão-se fora da posição de poder, na ausência de um próprio (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.). A tática, para o autor, é a arte do fraco: calcula-se sobre o lugar do outro e transforma-se em ocasiões as ordenações para que, golpe a golpe, se tire proveito das forças exteriores que lhes atinge. Supondo táticas as práticas cotidianas, ao passo que o cotidiano “nos pressiona dia após dia, nos oprime” (Certeau et al., 2003Certeau, M. de, Giard, L., & Mayol, P. (2003). A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 31), compreende-se que é nele que se opera o jogo manipulativo do sujeito e a transformação do lugar em espaço, em lugar praticado. Assim, a estratégia determina lugares, já as táticas estabelecem os espaços, e, em sua natureza de enfretamento diária, constituem o lugar da criação (Neubauer, 1999Neubauer, J. (1999). Cultural history after Foucault. New York: Aldine de Gruyter.).

É preciso pontuar, porém, que, na dinamicidade do cotidiano, os sujeitos encontram-se imbricados em diversas redes de relações e, no jogo social, ora podem perfazer estratégias, ora táticas; ora produzem determinações espaciais, ora subvertem. Assim, em autores como Roberts (2006)Roberts, J. (2006). Prologue: dangerous memories. In J. Roberts (Org.), Philosophizing the everyday revolutionary praxis and the fate of cultural theory (pp. 1-15). London: Pluto., em relação a busca do sentido filosófico e político das práticas diárias, a visão defendida por Certeau seria desprovida de um caráter ideológico e revolucionário, porque trata de ações que não necessariamente instauram uma ruptura do status quo.

Faria e Leite-da-Silva (2017)Faria, A. M., Leite-da-Silva, A. R. (2017). Estudos organizacionais baseados em Michel de Certeau: a produção internacional entre 2006 e 2015. Revista Alcance, 24(2), 209-226. doi:10.14210/alcance.v24n2.p209-226
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, no entanto, argumentam que um dos potenciais que marcam as contribuições da abordagem certeauniana às pesquisas que a operacionalizam residiria justamente na crítica a uma suposta inclinação de submissão à manutenção desse status quo. Tal crítica, segundo os autores, teria grande influência nos estudos que se baseiam nessa abordagem, marcando muitas possibilidades de contribuição para o campo dos Estudos Organizacionais (Faria & Leite-da-Silva, 2017Faria, A. M., Leite-da-Silva, A. R. (2017). Estudos organizacionais baseados em Michel de Certeau: a produção internacional entre 2006 e 2015. Revista Alcance, 24(2), 209-226. doi:10.14210/alcance.v24n2.p209-226
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). Talvez seja por isso que parte significativa das pesquisas teórico-empíricas desenvolvidas com o aporte certeauniano tenha sido realizada em organizações fora do formato considerado tradicional pelo chamado mainstream, isto é, empresas de médio e grande porte (Machado et al., 2018)Machado, F. C. L., Fernandes, T. A., Silva, A. R. L. da (2018). Michel de Certeau e estudos organizacionais: uma leitura do cenário brasileiro. Caderno de Administração, 25(2), 24-43. doi:10.4025/cadadm.v25i2.37869
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Por outro lado, autoras como Oliveira e Cavedon (2013)Oliveira, J. S. de, & Cavedon, N. R. (2013). Micropolíticas das práticas cotidianas: etnografando uma organização circense. Revista de Administração de Empresas, 53(2), 156-168. doi:10.1590/S0034-75902013000200004
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, debruçando-se sobre a percepção certeuniana, ao analisarem práticas de gestão em uma organização circense, vão evidenciar a contestação da ordem através das micropráticas, de gestos políticos que imputam resistências cotidianas às normatizações enfrentadas pelos sujeitos em suas práticas diárias.

O trabalho de Quaresma Junior, Peixoto e Carrieri (2013), por sua vez, ao analisar o cotidiano de cooperativas, traz a percepção de que táticas empreendidas no interior da cooperativa foram responsáveis por uma tomada de poder frente à diretoria, mesmo que praticadas sem esta pretensão. Da análise, os autores apreendem que houve uma movimentação do poder no contexto organizacional observado, consequente das ações táticas. Isto é, sob à ótica de Certeau (2008)Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes., as microações estabelecidas no seio social explicitaram práticas anônimas que confrontam as opressões e desestabilizam os lugares de poder.

Ao situar as práticas como manifestação de força e poder, Certeau (2008)Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes. confere, também, centralidade à dimensão espacial. O autor estabelece uma distinção entre lugar e espaço que é balizada pelos modos operatórios. Por exemplo, ao pensarmos os espaços da cidade, o lugar compreenderia as delimitações dos planos urbanos, dos projetos arquitetônicos, as delimitações estratégicas que não esgotam as múltiplas maneiras que as pessoas praticam e constituem modos próprios de utilizar e significar esse lugar imposto. Dessa forma, se concebe que o espaço é a prática do lugar.

Já a proposição de um “não-lugar” não parte, somente, do contrário do lugar propriamente dito. Porque, dessa forma, sob a visão da produtividade popular defendida por Certeau (2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes., 2012Certeau, M. de (2012). A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus.), poderia ressoar como sua falta, já que não produziria espaços. Na visão do autor, o não-lugar é entendido como ausência do próprio, sendo o mote à desordem que cria o espaço. Para uma reflexão mais robusta entre lugares e não-lugares, as proposições de Augé (2012)Augé, M. (2012). Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo, SP: Papirus. nos auxiliam a interpretar o conceito. Para o autor, os não-lugares estão no polo oposto do espaço personalizado, do espaço em que se investe em presença, são lugares acentuados pelas condições espaço-temporais da supermodernidade.

Oposto ao lugar definido por seu caráter antropológico, “identitário, relacional e histórico” (Augé, 2012Augé, M. (2012). Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo, SP: Papirus., p. 73), os não-lugares definem-se pela existência efêmera, pela mobilidade e não fixação, são os aeroportos, as estações de trem e metrô das grandes cidades, ocupações transitórias e provisórias. Desse modo, considerando as relações assimétricas de força e poder que edificam os lugares, o não-lugar se delineia pelos mecanismos de supressão dos “fracos”, imputando-os experiências isolantes na dinâmica dos lugares e espaços sociais, de forma que é possível compreendê-los em seu triplo caráter: físico, simbólico e político.

No que se refere à reflexão dos espaços produzidos por determinados grupos sociais, as contribuições de Hall (2003Hall, S. (2003). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG., 2011Hall, S. (2011). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, RJ: DP&A.) são importantes para ambientar as teorizações de Certeau (2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes., 2012Certeau, M. de (2012). A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus.; Certeau et al., 2003Certeau, M. de, Giard, L., & Mayol, P. (2003). A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. Petrópolis, RJ: Vozes.) no contexto étnico e social que a pesquisa abarcou. Por pautar suas discussões nas produções da cultura popular negra, nas esferas da cultura de massa e das indústrias culturais, onde se dialoga o massivo (popular) e o mainstream (cultura dominante), em relações não de contraposição, mas de aproximações e cisões dialéticas, se proporciona o olhar aos usos políticos das produções culturais negras, bem como as pressões e deslocamentos exercidas nas configurações hegemônicas de poder.

Outra contribuição importante está na noção de identidade, apontada em suas conceituações como sendo “um lugar que se assume, uma costura de posição e contexto” (Hall, 2003Hall, S. (2003). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG., p. 15) e, ainda, de uma produção situacional (Hall, 2003Hall, S. (2003). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.). Estas noções agregam ao campo das construções cambiantes que se edificam no nosso cotidiano, instaurando “modos de ser”, de se identificar, a partir de estruturas de sentidos e práticas relacionais.

Neste âmbito de reflexão sob dimensões étnicas e raciais, os estudos de Sansone (2004)Sansone, L. (2004). Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra do Brasil. Salvador, BA: EdUFBA. trazem importantes reforços para pensarmos a relação destes conceitos de um ponto de vista não homogêneo, ponderando suas dimensões e implicações em perspectivas globais e locais. O autor destaca em sua produção a complexidade em torno da temática de etnicidade e raça, sobressaltando a necessidade de avaliação dos contextos sob o qual se expressam, refletindo-as, então, enquanto construções relativas e interseccionadas com outras dimensões das experiências e condições sociais.

Dessa forma, na discussão da dinâmica entre estratégias e táticas (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.), no contexto da cultura popular negra contemporânea, parte-se da compreensão de que o espaço que produz é contraditório e complexo. Nesse sentido, a luta pela hegemonia cultural e a construção de lugares próprios não se dá numa posição de vitória ou dominação propriamente, mas se trata de articulações que desestabilizam as configurações do poder, sem que haja a retirada dele (Hall, 2003Hall, S. (2003). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.). Assim sendo, articula-se o entendimento de que as práticas culturais também são práticas de espaço.

Metodologia

Este artigo é um recorte de uma dissertação que adotou uma abordagem metodológica de natureza qualitativa, entendendo que esta se atrela às interpretações das realidades sociais (Bauer & Gaskell, 2002Bauer, M. W., Gaskell, G. (2002). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis, RJ: Vozes.). Em congruência com tal entendimento, optamos por um delineamento metodológico de natureza etnográfica, que, como relata Cavedon (2014)Cavedon, N. R. (2014). Método etnográfico: da etnografia clássica às pesquisas contemporâneas. In E. M. de Souza (Org.), Metodologias e analíticas qualitativas em pesquisa organizacional: uma abordagem teórico-conceitual (pp. 65-90). Vitória, ES: Edufes. significa “vivenciar a cultura a ser pesquisada no seu dia a dia” (p. 65), e corrobora o posicionamento crítico de Certeau (2008)Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes. à visão panóptica.

A etnografia foi adotada, portanto, por promover o deslocamento do eixo das macroanálises para as complexas redes de relações cotidianas, tendo se consolidado como importante aliada na reflexão das práticas, a partir das interações travadas junto aos sujeitos, dando espaço, ainda, às emoções e subjetividades encaradas pela pesquisadora em campo, contribuindo na construção do estudo de modo intersticial. Dessa forma, consideramos que a etnografia foi crucial para a apreensão das relações em meio às estruturas sociais explicitadas na organização do festejo, por concentrar-se nas microdinâmicas e, sobretudo, dar vazão aos olhares e percepções dos atores sob suas próprias práticas.

Na busca por empreender análises sob as dinâmicas cotidianas, adotamos a técnica da observação participante como principal forma de apreensão dos dados. Assim, uma das autoras deste artigo permaneceu em campo de janeiro a setembro de 2017. A inserção foi mediada por um amigo, pesquisador do congo, que apresentou a condutora do trabalho de campo para o então presidente da Associação das Bandas de Congo de Cariacica (ABCC), mestre e filho de mestre congueiro da região. Contatos também foram articulados junto à membros da Secretaria Municipal de Cultura (SEMCULT), entidade identificada durante a pesquisa como a principal aglutinadora das ações pré-Carnaval e mediadora entre os congueiros, demais atores e organizações envolvidas.

No decorrer do trabalho, inicialmente a pesquisadora em campo acompanhou reuniões referentes à organização da festa, tanto dos congueiros entre si, quanto dos congueiros com a SEMCULT. Entretanto, devido as poucas reuniões detectadas, as pausas nas atividades e a desarticulação dos envolvidos, optamos pelo acompanhamento não apenas da organização explícita do Carnaval, mas também de outras dinâmicas em torno do congo. Assim, além do Carnaval, outros dois momentos festivos foram acompanhados, sendo que a proximidade já estabelecida com uma das bandas favoreceu seu acompanhamento, incluindo momentos de ensaios e outros encontros formais e informais.

A perspectiva da participação se efetivou, principalmente, com a contribuição da autora em campo junto à banda, a pedido desta, realizando a inscrição e o acompanhamento de diferentes projetos. Cabe ressaltar que a participação das bandas de congo nos editais culturais municipais e estaduais já vinha sendo praticada nos últimos anos, tendo a autora, recebido, inclusive, o escopo de projetos anteriormente elaborados. Desta forma, sem representar a introdução de uma nova prática, a permanência em campo foi articulada com a inserção nas redes de relações das práticas da banda, condicionando o estreitamento dos vínculos afetivos e o estabelecimento de relações de reciprocidade entre pesquisadora e sujeitos.

Como modo de apreensão dos dados, nos valemos, além da observação participante, que resultou em 23 diários de campo, de registros audiovisuais e fotográficos. Os dados produzidos durante o período de imersão foram reunidos e interpretados por ambas as autoras à luz do quadro teórico de referência mobilizado, de forma a identificar regularidades e temáticas nos dados coletados. Buscamos adotar, no processo de interpretação, uma visão êmica, que corresponde a um modo de entender os grupos estudados com foco em como essas pessoas significam suas ações (Angrosino, 2009Angrosino, M. (2009). Etnografia e observação participante. Porto Alegre, RS: Artmed.), isso é, dando ênfase a aspectos perceptíveis nas manifestações dos sujeitos estudados, de forma articulada às visões teóricas adotadas.

Apresentação do campo: Carnaval de Congo de Máscaras de Roda D’água

Conforme já apresentado neste artigo, o Carnaval de Congo de Máscaras é considerado a festa mais tradicional do município de Cariacica, significa uma homenagem a Nossa Senhora da Penha, Padroeira do Espírito Santo. Tal festa é uma expressão das congadas capixabas, que têm por característica o protagonismo das chamadas bandas de congo, que variam em termos do número de participantes e tipos de instrumentos a depender da localidade. São compostas, em maioria, por homens, contam com a presença de um mestre, registrando-se, em alguns casos, a presença de uma rainha, que conduz o estandarte com referência ao santo que a banda homenageia (Barros, 1983Barros, P. (1983). Banda de congo da Barra do Jucu: estado do Espírito Santo. Vitória, ES: Sub-Reitoria Comunitária.).

Iniciada com uma procissão, seguida de uma missa campal, ambas ao som de tambores e casacas2, posteriormente, já em outro local, a dimensão lúdica e profana se acentua, quando as bandas de congo se misturam aleatoriamente aos demais participantes, erguendo rodas de congo em que imperam a musicalidade, a dança e a espontaneidade, acompanhadas do consumo de bebidas alcóolicas.

Singularizando o Congo de Roda D’água, região rural de Cariacica (ES), as máscaras, que dão nome ao Carnaval, remetem a uma figura histórica do município: o João Bananeira (Figura 1), figura que insurge da relação cultura popular-contexto rural de um Brasil ainda escravocrata. A personagem tem o corpo encoberto por folhas de bananeiras e o rosto, também escondido, por uma máscara colorida de papel moldada no barro. Segundo relatos captados durante a condução do trabalho de campo, a origem do João Bananeira remonta ao tempo de escravidão. De acordo com um dos sujeitos pesquisados, os negros escravizados, muitos fugitivos, fantasiavam-se para desfrutar da celebração, sem que fossem reconhecidos (Diários de campo, 17 junho 2017). Há versões que contam que os próprios fazendeiros é que se escondiam, já que desejavam participar do Carnaval de Congo, mas temiam ser reconhecidos (Santos, 2013Santos, J. (2013). Processos organizativos e identidade afro-brasileira: a transmissão cultural do congo em Cariacica/ES. (Master’s thesis), Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES.).

Figura 1
O João Bananeira

O Carnaval de Congo de Máscaras se estabeleceu, assim, ainda no chamado “tempo dos antigos”, guardando relações com o contexto da escravidão, suas proibições e negociações de culto e celebração aos chamados “santos negros”, mediados pela atuação das Irmandades. Com o passar dos anos, processos de institucionalização incidiram sobre as práticas no congo, tendo como marcos a criação do Conselho das Bandas, na década de 1990 e, posteriormente, em 2003, a criação da ABCC, que redefiniu as relações das bandas entre si e destas com o poder público, representado, principalmente, pela SEMCULT. Esses novos arranjos, que viabilizaram a realização de convênios com o município e, por conseguinte, a inserção de recursos para organização do Carnaval, deram novas dimensões, configurações e sentidos à festa e ao congo para os atores envolvidos. Ao passo que, avançando no tempo, resguarda e altera configurações, sobretudo, entre negociações sociais.

Os não-lugares do congo e as micropolíticas cotidianas

A observação dos processos organizativos relacionados ao Carnaval de Congo de Máscaras descortinou um cenário marcado por intensa instabilidade nas práticas de gestão e organização com variações, principalmente, no nível de participação dos congueiros nos processos decisórios. Pelo fato de que, em 2015, a ABCC se viu envolta em dívidas, com irregularidades nas prestações de contas apresentadas relativas ao Carnaval do ano anterior. E, de lá para cá, diminuiu consideravelmente seu papel no processo organizativo do Carnaval. Ao ser registrada como inadimplente junto à Receita Municipal, tornou-se impossibilitada de firmar convênios com a Prefeitura e outras organizações, ao que outros indivíduos passaram a mediar e intervir nas articulações das bandas com os órgãos municipais, ampliando e complexificando a rede organizativa do Carnaval. A despeito das relações travadas sob esferas institucionais, as observações caminharam para a percepção do congo enquanto experiência cotidiana, envolvendo o estar em casa, o trabalhar, o credo, o gozo, entre outras dimensões, que manifestavam práticas que tornam os sujeitos habitantes das paisagens.

Um não-lugar no campo das religiões

O Carnaval de Congo obedece ao calendário católico e celebra a Santa, também católica, ao som de instrumentos percussivos e toadas nas vozes de homens e mulheres. Santos (2013)Santos, J. (2013). Processos organizativos e identidade afro-brasileira: a transmissão cultural do congo em Cariacica/ES. (Master’s thesis), Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES., ao refletir sobre o histórico das práticas religiosas no contexto do sistema colonial escravista brasileiro, chama atenção à atuação das irmandades que, por um lado, pode ser interpretada como meio de reforço da colonização; por outro, pode ser compreendida como meio para constituição de uma distinta prática católica erigida na associação entre negros e no reforço a elementos de origens comuns, com potencial de questionar a opressão do regime de escravidão. Nesse sentido, o autor ratifica que devemos atentar que a absorção dos ensinamentos católicos e o culto aos santos se efetuaram sob reinterpretações, mesclando-se a valores próprios, e, principalmente, a elementos e práticas de fé de origem africana. Dessa forma, os negros iniciaram um processo denominado de “catolicismo popular negro” (Santos, 2013, p. 44), expressão que adotaremos em nossa reflexão para definir o modo de crer dos congueiros.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2010). Censo Demográfico: Cidades. Brasília, DF: IBGE. Retrieved from de https://cidades.ibge.gov.br
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, no que se refere às práticas religiosas em Cariacica, as principais autoidentificações são: Católica Apostólica Romana e Evangélicas, ambas correspondendo a aproximadamente 41% da população, cada uma. Como indicam os dados, nas práticas religiosas de Cariacica, o catolicismo apostólico romano, que desde o colonialismo apresenta-se como a religião majoritária no Brasil, pouco a pouco perde lugar na dinâmica do campo, cedendo às religiões evangélicas. Entretanto, é importante ressaltar que o catolicismo popular negro, bricolagem de um catolicismo oficial imposto pelos colonizadores, com elementos e práticas herdados dos antepassados de origem africana, nunca usufruiu deste lugar.

Lado a lado em termos de proporção numérica dos adeptos no município, entre católicos e evangélicos, os congueiros de Roda D’água, aqueles em que a pesquisadora em campo interagiu, se identificam como praticantes do primeiro. Entretanto, é um reconhecimento de via única, já que, para muitos católicos tradicionais, causa incômodo a associação de batuques e casacas no momento da missa, por exemplo. Por outro lado, aproximações com as religiões de matrizes africanas são afastadas pelos próprios congueiros que, inclusive, dizem “não gostar” desta associação.

Na família do mestre da banda que acompanhamos, a realidade não é muito diferente: dos seus seis filhos, dois se converteram ao evangelho e não participam das atividades relacionadas ao congo. Apesar do afastamento dos pais, suas filhas, netas do mestre, todavia, acabam entremeando-se nos dois universos. Isso porque foi observado que, sem demonstrar qualquer desconforto, ele cantava louvores evangélicos junto com sua neta, acompanhando com o batuque do tambor. Houve a oportunidade, ainda, de ouvi-lo tocar violão junto com um cunhado, também evangélico, em um reportório que incluía de composições suas à moda de viola gospel.

O caráter estético (Certeau, 1985Certeau, M. de (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In M. I. Szmrecsanyi (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo, SP: FAU-USP.) na prática religiosa do congo, no domínio familiar, é evidenciado e caracterizado por um “estilo” de fazer que se vale da conveniência, no evitar do confronto com os evangélicos. Todavia, quando a religiosidade congueira, o catolicismo popular negro, se coloca fora do âmbito familiar, as maiores articulações – e embates – se dão não com os evangélicos, com os quais não se divide o espaço, mas com o catolicismo apostólico romano, que detém um “modo de crer” que se quer oficial e relega a um não-lugar o modo de crer do povo negro. É sob este campo, então, que o caráter ético e polêmico das práticas (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.) religiosas sobressaltam-se com maior intensidade.

A ausência de lugar pode ser exemplificada no desejo do referido pesquisado de participar da Festa de Penha – “a oficial” – e se enxergar distanciado dessa possibilidade, por não saber como fazer para tocar lá. Segundo ele, trata-se de algo muito “fechado”. Fechado não por acaso ou coincidência, mas por sua prática ser considerada marginal. Ver o “congo entrando na Igreja”, para muitos católicos, é algo que não condiz com a prática religiosa oficial. Por outro lado, sem operar na zona de ambiguidade, a relação com as religiões evangélicas, no micro contexto analisado, não constituiu um embate direto com as práticas religiosas dos congueiros. Dessa forma, não se constataram efetivas disputas espaciais cotidianas. Durante o Carnaval, por exemplo, a parte evangélica da família permaneceu em casa (com exceção das crianças). Do contrário, as representações da Igreja Católica estavam presentes durante a festa, seja com a missa, com a imagem da Santa refletida em muitas camisas, crucifixos em muitos pescoços disputavam espaço físico, simbólico e político sob o credo.

Mesmo na recusa de aproximações com uma religiosidade africana, a adoção do termo “terreiro” é comum entre os congueiros para nomear os espaços em que tocam espontaneamente, fora dos momentos de “apresentação”, como nas escolas, distinguindo-os, também, do seu uso cotidiano de casa/quintal. Dá-se pela manipulação jubilatória de que falava Certeau (2008)Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes., que permite um “estar aí . . . sem o outro, mas numa relação necessária com o objeto [o lugar] desaparecido, é uma estrutura espacial original” (p. 190).

À margem, há reinvenções dos modos de crer e praticar a fé, misturando o que se impõe ao que se tem. Sem lugar próprio, a religiosidade dos congueiros segue difusa e sorrateira. Assim, “nesse lugar palimpsesto, a subjetividade se articula sobre a ausência que a estrutura como existência e a faz ‘ser aí’” (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 190). Auto-proclamados católicos, erguem terreiros em dias de festa e se apaziguam como sítio, lado a lado da Assembleia de Deus.

No momento da missa da festa (Figura 2), por exemplo, uma sede3 é transformada em Paróquia. Mas essa transformação passa pela construção cotidiana da sede como lugar de trabalho, um ambiente institucional. Um espaço de negociação, de reuniões, de atas, do conselho. Se a sede “fosse” terreiro, aceitaria o padre a missa rezar? Desta forma, a linguagem é tática em neutralizar a marginalidade e o peso histórico de ter-ser uma religião construída no popular. Assim, bricolando crenças e linguagens, na “sede” se pratica uma Paróquia particularizada: missa com padre preto, silêncio interrompido por tambores e casacas. Uns em pé, outros sentados, uns dançam, outros cantam, rezam, conversam, todos constroem ali um espaço microliberto para celebrar à sua maneira.

Figura 2
Início da missa campal

Uma percepção adicional do cenário deu-se com uma discussão na ocasião da reunião entre congueiros e SEMCULT, em torno das atribuições da Igreja Católica, representada pela Paróquia local, no que se refere ao momento sacro da festa. Este, corresponde a seus primeiros atos, em que há um cortejo que leva a Santa Padroeira homenageada da capela improvisada ao local de realização da Missa.

Uma senhora, membra da Banda Santa Izabel e devota fiel de Nossa Senhora da Penha, relatava, revoltada, como vinha sendo a levada da Santa nos últimos anos. Segundo contava, a prática tradicional, em que as mulheres da Banda Santa Izabel carregavam a Santa (Figura 3), estava sendo rompida, com as mulheres sendo substituídas por membros da Paróquia, em suas palavras: “Tradição é as mulher [levarem a santa], não os homi” (Diários de campo, 4 março de 2017).

Figura 3
Procissão com a levada da Santa ao local da missa. Na foto, integrantes da Banda de Congo Santa Izabel

Ao questionar a ruptura da tradição, ela apontava um “outro” que é, porém, o detentor do discurso sobre a sua própria crença. Este “outro”, para o congo, tem um próprio na esfera das religiões e, no “carregar a Santa”, representa o ordenamento do lugar. Calculando, então, sob o lugar que não lhe é próprio, a narrativa em torno da tradição, afastou o “outro”, sendo a tática que lhe confere o espaço. É neste ponto que se acentua o caráter político da ação (Certeau, 1985Certeau, M. de (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In M. I. Szmrecsanyi (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo, SP: FAU-USP., 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.).

Ao mesmo tempo que se reconhecem como católicos, sabem que não são por eles reconhecidos como portadores de uma mesma prática religiosa legitimada. Nesse sentido, diante de estratégias que determinam lugares (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.) de invisibilidade religiosa, constituir o catolicismo no contexto da festa como um “outro” é um jogo que momentaneamente desestabiliza as relações de força do cotidiano e abre espaço para a liberdade religiosa que finda no próprio tempo da festa.

Tal como sinalizaram Certeau (2008)Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes. e Lyra (1981)Lyra, M. B. (1981). O jogo cultural do Ticumbi. (Master’s thesis), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ. sobre os modos de crer dos populares, que, em suas apropriações e aproximações apelidando os santos, desestruturavam as hierarquias do clero católico, a acentuação do católico como sendo um “outro” delimita uma microresistência fundada no cotidiano. E, na situação narrada, na zona de ambiguidade (Amaral, 1998a) sobre as cerimônias religiosas, a “levada da Santa” é uma prática que manifesta um caráter político, desestabilizando os lugares de poder entre as congueiras e a Paróquia, valendo-se, taticamente, da tradição, sustentada pelos discursos da própria autenticidade requerida ao popular.

Um não-lugar na paisagem turística

A banda de congo em que houve mais proximidade durante a pesquisa funde-se à história da família do mestre e do próprio congo em Roda D’água. Desde a infância participando das bandas da região, criou, em 2007, uma banda com seu próprio nome, atendendo a um antigo pedido e em memória de seu pai, distinguindo-se das demais bandas que, em geral, adotam nomes em homenagem aos santos padroeiros e/ou ao bairro de origem. Seu pai era uma figura conhecida na região e falecera quando o mestre tinha por volta dos 25 anos.

Completando dez anos em 2017, contrastados com os mais de cinquenta anos de outras bandas da região, a banda vem construindo uma representação de si mesma ao reafirmar seu lugar histórico, mesmo sendo “novata” dentre as demais. O conjunto é alicerçado em narrativas que, a despeito de seu pouco tempo de fundação, acentuam seu pertencimento ao agrupamento social circunscrito pelos “congueiros”, validando os vínculos estabelecidos por seus antepassados.

Segundo relatava o filho do mestre, a banda inicialmente era composta apenas pelos membros mais próximos da família, irmãos, filhos e noras. Buscando validar a sua informação, ele fazia referências às fotografias antigas, em que, na interpretação do seu gesto, a observadora poderia constatar à época em que toda família tinha participação. Ao contar da formação atual, ele revelava que hoje a banda “está mais misturada um pouquinho” (Diário de campo, 4 de abril de 2017). Isso, porque, dos seus irmãos, dois não estavam mais participando, por terem se convertido à Igreja Evangélica. Sem postergar a questão, ele comentava que seu pai “não questionou isso” e, nas palavras dele, “cada um pegou sua trilha”. Dando seguimento, indicava que havia outro irmão que não morava com eles, mas que participava esporadicamente, ele “vai quando quer” (Diário de campo, 4 de abril de 2017). Restando, então, enquanto membros ativos da banda, com maior vínculo com o mestre, ele e mais dois irmãos.

Na descrição dos demais membros da formação atual, ele assumia, sem reconhecer a mudança, dissimulando-as nas palavras, confundindo-nos nos termos, ora optando por “família” ora por “parente”, tendo no segundo depositado a oportunidade de amenizar as alterações sofridas na formação da banda. Ao citá-los, ele não se concentrava em relacioná-los às suas funções na banda, indicando, primeiro, a referência ao grau de parentesco. Citando, por fim, dois membros atuais que moram na região e que, ao que lhe escapava, não seriam, efetivamente da família. Mas, aproximando-os do núcleo, conferia-lhes, por consideração, o título de “parente”: “. . . mas a gente considera como parente . . . . Porque é . . . tem um grauzinho de parentesco.. lá no finalzinho” (Diário de campo, 4 de abril). Como avisa Certeau:

Não é de se ficar espantado com essas homologias entre as astúcias práticas e os movimentos retóricos. Com relação às legalidades da sintaxe e do sentido “próprio”, isto é, com relação à definição geral de um “próprio” distinto daquilo que não é.… são manipulações da língua relativas a ocasiões e destinadas a seduzir, captar ou inverter a posição linguística do destinatário. (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 103)

De tal modo, seu “ato de fala”, que ordenava um convencimento, partia de um processo no qual estão em jogo as relações de força em um determinado espaço social (Certeau, 1985Certeau, M. de (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In M. I. Szmrecsanyi (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo, SP: FAU-USP., 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.). Dessa forma, perguntamos, o que leva a, o que ganha ou que se perde com essa defesa do familiar? Indiciando o funcionamento do crível (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.) na construção de uma verdade sob o congo, sob a banda, um há que se ser de família, abrindo aí, ao mesmo tempo, possibilidades e limitações, assim, “pode-se medir a importância dessas práticas significantes (contar lendas) como práticas inventoras de espaços” (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 188).

Por ter sido criada em meio a distinções contextuais, é que haja, talvez, interpretações de que a banda esteja “muito comercial” (Diários de campo, 4 de março de 2017), como a pesquisadora em campo ouviu por parte do poder público, sob o alerta, inclusive, de que provavelmente não representaria “o melhor lugar para pesquisar o congo daqui [de Cariacica]” (Diários de campo, 4 de março de 2017). O comentário indiciava, que, no mínimo, os modos de fazer dos sujeitos da banda têm causado incômodo. Aferiu-se, nesse sentido, que as narrativas não se dão ou visam sustentar uma individualidade que repercute de modo coletivo, por meio das representações que se erguem sob a banda como um todo.

Esses julgamentos resvalaram, já em outra instância pública, no questionamento da própria escolha do Carnaval de Congo como objeto para estudo do congo no Espírito Santo, já que existiriam outras manifestações menos afetadas por interesses – ao ver da pessoa – explicitamente políticos e financeiros. Sob estas aferições, constatam-se tentativas de ponderar a autenticidade da manifestação, distante da consideração de que porque viva – a cultura do congo – não se cristaliza e tem se reproduzido sob novos arranjos, reinventada nas novas condições de vida consequentes de novos contextos econômicos e sociais de seus atores (Amaral, 1998b; Certeau, 2012Certeau, M. de (2012). A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus.). Decerto, que é justamente no olhar às novas tramas, que podemos encontrar subsídios para discutir e ponderar estes jogos de interesses.

Nesse sentido, o questionamento de Hall (2011)Hall, S. (2011). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, RJ: DP&A., mostra-se pertinente: as mudanças, as grandes rupturas “surgem em geral de dentro da própria cultura popular ou de fatores externos que a invadem?” (p. 247). E, como ele mesmo indicia, a cultura popular não se traduz na consolidação da resistência, nem tampouco do que lhe atravessa, sendo o próprio “terreno sobre o qual as transformações são operadas” (Hall, 2011Hall, S. (2011). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, RJ: DP&A., p. 249). Ainda, indaga-se sobre a ausência desse tipo de questionamento (tanto o caráter comercial e financeiro, quanto ao de uma perda de tradições) no que se refere à própria Festa da Penha, com suas vendas de artigos religiosos e absorções tecnológicas, como a disponibilização de redes de wi-fi para os fiéis e transmissões ao vivo da programação nas redes sociais. Nada disso é questionável à sua autenticidade. Bem como a Festa da Polenta, outra grandiosa festividade do estado, realizada no município de Venda Nova do Imigrante, que une aos elementos das tradições italianas uma ampla programação de shows com atrações do universo musical pop e sertanejo universitário, acatando as tendências e interesses de consumo atuais.

Tendo em vista o que foi dito, oportuniza-se um debate tanto da tendência à cristalização daquilo que é produto de práticas culturais subalternizadas, em especial, nesse caso, da cultura afro-brasileira, quanto com a ausência destes mesmos discursos no que concerne às manifestações de matrizes europeias. Além disso, é importante destacar, no contexto do Espírito Santo, os diferentes lugares que estas ocupam nas estratégias turísticas do Estado. Temos, no exemplo dessas duas grandes festas retrocitadas, o interesse público no que concerne à primeira, em creditá-la como atrativo do turismo religioso no Espírito Santo e, à segunda, como representativa da diversidade cultural do estado.

Vale ressaltar, ainda, a observância da não articulação com órgãos estaduais no processo, bem como de instâncias relacionadas ao setor turístico de qualquer esfera, abrindo-se à consideração de um não-lugar do congo cariaciquense nas estratégias de turismo locais. Dessa forma, quanto ao Carnaval de Congo de Máscaras de Roda D’água, não se tem investidas, em nenhuma das duas perspectivas, ainda que demonstre – basta ir à festa – potencial para ocupar ambos os lugares.

A discussão apontou aos não-lugares ocupados pelas festas de congo hoje nas políticas de turismo no Espírito Santo. Entendemos que sua inserção ampliaria a paisagem afro-brasileira no estado (Figura 4), oferecendo interpretações alternativas a uma tendência à manutenção do “romance [branco] da cidade” (Certeau et al., 2003Certeau, M. de, Giard, L., & Mayol, P. (2003). A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 192) como seu cartão postal. Minimamente atravessado por poéticas de um povo miscigenado, entendemos que tal narrativa contribui ainda mais à manutenção da invisibilidade da cultura negra existente no estado.

Figura 4
Observação do público da festa

Por um lugar no campo institucionalizado da cultura

Por outro lado, ainda que ausente nas pautas turísticas municipais e/ou estaduais, é importante abrirmos brechas para pensar a que tipo de público interessa as congadas. Partindo desta discussão, destacamos que é no campo das políticas públicas culturais que o congo tem investido na tessitura de articulações.

Na visão do mestre da banda pesquisada, hoje em dia “já se considera muito mais o congo” do que no tempo dos antigos e até mesmo no tempo do seu pai: “claro que ainda tem gente que não gosta, mas já se considera muita mais o congo, hoje é outra história” (Diário de campo, 25 março de 2017). Nessa outra história que se inscreve hoje, situam-se transformações ocorridas, concentradas principalmente nos últimos 35 anos, tendo como marco local a criação da ABCC que, como citado, redefiniu as relações das bandas entre si e destas com o poder público, representado pela SEMCULT. Estes novos arranjos, que viabilizaram a realização de convênios com o município e, por conseguinte, a inserção de recursos para organização do Carnaval, deram novas dimensões, configurações e sentidos à festa e ao congo para os atores envolvidos.

Na ambiguidade das visões sobre o congo hoje, apesar de apontar melhorias, também aponta desvalorização, quando, por exemplo, criticou os baixos – em sua visão – cachês recebidos pelos congueiros no Carnaval (Diários de campo 20 de janeiro de 2017; Diário de campo 4 de março de 2017). Soma-se a isso as insatisfações com os rumos da gestão do Carnaval, tanto que o mestre ponderou a não participação na celebração de 2017 como forma de manifestar sua indignação (Diário de campo, 20 de janeiro de 2017). Esses desajustes levaram a questionar que consideração é essa que o congo supostamente receberia.

Expondo a relação do contexto com o entorno social imediato, em que a conjuntura, que lhes parece favorável, contrasta com as vivências no seu cotidiano, que segue imbricado a experiências de desigualdades e privações. Dessa forma, indagamos: será que ter mais recursos necessariamente implica em mais visibilidade? Ou, ainda, nas palavras de Certeau (2008)Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes., mais recurso implica na produção de um lugar próprio? Decerto que não.

Explicitando a contradição e embasando a afirmação, está a atual situação em que se encontra a ABCC: negativada junto à Receita Municipal e impossibilitada de assumir a assinatura dos convênios e concentrar sob si a gestão da festa, em razão de problemáticas com uma das prestações de contas apresentadas. Deste modo, abre-se este lugar a outras organizações.

Para além desta situação relatada, outras problemáticas relativas à entrada de recursos somam-se à reflexão, como o recebimento de cachês – vinculado ao número de participantes das bandas, bem como o pagamento de outras ações como a confecção das máscaras – em que poucos congueiros se envolvem. Essas complicações foram acirrando um tensionamento já pré-existente entre os grupos, atrelado, segundo contam, à própria forma a que as bandas foram surgindo no passado: em meio a traumas e dissidências (Santos, 2013Santos, J. (2013). Processos organizativos e identidade afro-brasileira: a transmissão cultural do congo em Cariacica/ES. (Master’s thesis), Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES.), contribuindo à desarticulação entre estas.

Vale ressaltar, no âmbito das políticas estaduais, o processo de visibilidade e reconhecimento do Congo como parte da identidade local, ocorrida a partir da década de 1980 (Macedo, 2013Macedo, I. (2013). A espetacularização do congo no Espírito Santo. Revista do Colóquio de Arte e Pesquisa do PPGA-UFES, 3(7), 87-106. Retrieved from http://bit.ly/2P30tEM
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). Já sobre o cenário nacional cabe pontuar o percurso das políticas públicas culturais direcionadas às chamadas culturas populares, ou culturas tradicionais no Brasil, que oscilaram da ausência, ao autoritarismo e à instabilidade (Rubim, 2007Rubim, A. A. C. (2007). Políticas culturais no Brasil: tristes tradições, enormes desafios. In A. A. C. Rubim & A. Barbalho (Orgs.), Políticas culturais no Brasil (pp. 11-36). Salvador: EdUFBA.). Sendo que, mais recentemente, foi marcado pela gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, pela compreensão das diversidades e da concepção de cultura como fator de transformação social, partindo das novas diretrizes da construção de práticas e programas que culminem na valorização, produção, difusão e democratização do acesso à cultura. Ainda que as atuais crises políticas acometidas no país tenham acentuado novamente as instabilidades, de modo geral, não destituíram o direcionamento anterior.

Nesse cenário, o mestre da banda pesquisada, em 2016, foi publicamente reconhecido como mestre de cultura popular, premiado no Edital Estadual de Cultura “Mestre Armojo do Folclore Capixaba – edição 2016”. E seu filho, no ano seguinte, também pleiteou o título – inclusive tendo sido a pesquisadora em campo a responsável por sua inscrição – ficando, todavia, em suplência.

No entanto, diante da conjuntura das ações políticas – não só culturais, mas sociais e econômicas também – é importante perceber suas incidências para além do surgimento de novos programas, mas no modo como os sujeitos de direitos dessas políticas reorganizam suas práticas – dentre elas, as narrativas – concebendo que as próprias autorrepresentações produzidas sejam afetadas por elas (Bezerra & Barbalho, 2014Bezerra, J., Barbalho, A. (2014). O popular e a política cultural: uma análise crítica do discurso da cultura popular. Paper presented at 29th Reunião Brasileira de Antropologia, Natal, RN.). Essa percepção enseja o observar do outro lado da política, uma política no cotidiano, em que o popular se reinventa em um sem-número de negociações com os elementos da esfera dominante (Certeau, 2008)Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes., por vezes, operando dentro dela.

Nesse sentido, se, por um lado, um dos papéis assumidos pela pesquisadora durante o campo, de auxiliar a banda com a inscrição de projetos, viabilizou taticamente a inserção desta nos domínios da banda, por outro, foi também mote à articulação de conhecimentos como demandas estratégicas do congo no contextual atual. Neste cenário, ficaram evidentes as narrativas que endossavam o pertencimento à família como um “estilo de uso” da própria discursividade que se tem em torno da cultura popular.

Assim, no entendimento de que as práticas também partem dos significados e dos discursos como produtos originados pelas interações dos sujeitos com o mundo que os circunda, com a ordem que o regula, a retórica do pertencimento à família revelou um modo de incorporação das lógicas que operam no amplo campo da cultura popular.

Nas narrativas a seguir, trechos de uma gravação audiovisual que fizemos, a pedido deles, com o objetivo de contarem a própria história da banda, como parte do material a ser enviado junto à inscrição de um projeto no edital de culturas populares da Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo, percebemos como, em seus atos de dizer, investem na reiteração da ancestralidade, ancorada na historicidade familiar: “A gente acompanha o círculo do congo, né? O círculo do congo é a Família . . . a gente criou a banda em versão da família . . .” (Relato registrado em meio audiovisual em 9 de setembro de 2017); “Pouco tempo . . . a pessoa olha, não . . . poxa . . . pouco tempo, mas aí a gente volta lá atrás, porque lá atrás nós também fazia parte dessa cultura” (Relato registrado em meio audiovisual em 9 de setembro de 2017). E, ainda:

É que o nosso avô, antes de falecer, que era não deixar… que o sonho dele era contribuir com uma banda da família, o sonho dele era ter uma banda só com a família. Porque a família é grande, essa banda ela é grande, tem vários antecedentes. (Relato registrado em meio audiovisual em 9 de setembro de 2017)

Diante da invisibilidade afro-brasileira em Cariacica e no Espírito Santo de modo geral, contrastadas com o mito da democracia racial, o congo possibilita um lugar estratégico. São, assim, os relatos de memória do tempo dos antigos e do tempo dos pais que constituem, se é possível assim dizer, o movimento de partida na lógica das práticas no congo. Ressaltando as solidariedades, movimentam suas memórias individuais pela oralidade das lembranças, contam suas histórias traçando pontes entre passado, presente e futuro, cuja perspectiva “de pai pra filho” é pontuada como central no processo de transmissão cultural do congo e na afirmação de um lugar comum, estruturando identificações.

Dessa forma, a participação em editais, integralizando novas práticas à dinâmica do congo, se estabelece sob processos de bricolagem (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.), com a produção de um novo (espaço, status, uma nova configuração), a partir e com a economia cultural que domina. Operam, assim, de modo tático, cindindo com a necessidade de pertencimento por eles mesmo reclamada para atuação junto ao congo, ao passo que eles viam no uso da reciprocidade para com a pesquisadora uma oportunidade momentânea de golpear o sistema seguindo a sua própria lógica.

É esse o duplo caráter da cultura popular: o movimento de conter e resistir situado em seu interior (Hall, 2003Hall, S. (2003). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.). Movimento que, segundo o autor, é a própria dialética da luta cultural. Na atualidade, essa luta se dá nas complexas linhas da “resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação” (Hall, 2003Hall, S. (2003). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG., p. 255) que trava no campo da cultura um campo de batalha permanente, “onde não se obtém vitórias definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas” (Hall, 2003Hall, S. (2003). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG., p. 255).

Essa pode ser apontada, então, como a mediação do congo (Amaral, 1998a), as articulações relativas entre o nós e os outros, a partir dos ganhos e das posições que daí se pode obter. Refletindo a partir de Amaral (1998a), que defende que as festas, que as manifestações culturais, transformam suas dicotomias em pontes, é operando entre o pertencimento que afasta o outro (estratégia) e a reciprocidade que o resgata (tática) que caminham (re)organizando seus espaços.

Considerações finais

Sem ocupar centralidade no planejamento, gestão e execução da festa, bem como em meio às invisibilidades estratégicas produzidas pelos discursos que, de um lado, ocultam a presença das manifestações afro-brasileiras frente às europeias no estado e, de outro, os questionamentos em torno da autenticidade da festa frente aos jogos de interesses que ela produz. É assim que o Carnaval de Congo de Máscaras de Roda D’água tem se organizado, tal qual se reproduz o cotidiano de seus protagonistas na sociedade brasileira: entre marginalidades estruturadas por narrativas totalizantes que determinam e estabilizam lugares de poder e astúcias que engendram modos criativos de proceder com estes ordenamentos, produzindo espaços próprios.

Assim, problematizamos a produção social de desigualdades e resistências na organização do congo capixaba, ao evidenciarmos os lugares e os não-lugares a que estão submetidas as festas de congo no estado, entendendo a produção e reprodução dos não lugares como resultado de estratégias que visam, senão o apagamento, a invisibilidade dos seus atores. Ao partirmos de uma perspectiva micropolítica, apresentamos um não-lugar no campo religioso, diante de um Catolicismo que se pretende oficial na deslegitimação das práticas religiosas afro-brasileiras. Outro não-lugar que discutimos é aquele promulgado pelas políticas de turismo – pela ausência delas, frente à promoção de outras manifestações embaladas em discursos que constroem, sob o estado do Espírito Santo, uma imagem que impera as manifestações de fé e as práticas culturais eurocêntricas. Por fim, um não-lugar na macropolítica cultural, com o afastamento da centralidade no organizar do Carnaval, encontra, nas próprias políticas culturais, possibilidades de “golpear” o sistema, agindo a partir do seu próprio mecanismo. Outrossim, atenta-se às micropolíticas presentes no cotidiano congueiro em embate a estas construções e, ainda, a percepção da festa como forma organizativa que agrega vários processos de organização.

Desvendamos, diante das novas lógicas estabelecidas pelo campo institucionalizado da cultura, a inserção do congo em esferas de práticas de trabalho, fundando novos espaços e possibilidades articulativas. No que concerne às práticas religiosas, estas se mostraram cotidianamente difusas e taticamente ancoradas nos discursos sobre tradição. Dessa forma, as práticas têm atuado irrompendo a unicidade dos lugares, pluralizando as ocupações espaciais. Nesta perspectiva, destaca-se o investimento em narrativas elaboradas sob sentidos de pertencimento, entendidas como construtivas de uma identidade étnica em torno da atividade congueira como forma de construção de um lugar próprio e constituição do espaço do outro. Assim, considera-se uma estratégia que, ao mesmo tempo em que elabora um discurso sobre o congo, opera no intento de ser “capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta” (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 46).

Imbricando ações táticas e estratégicas (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.) constituídas em torno de sentidos de pertencimento, os sujeitos do congo operam no espaço, oscilando entre a ausência e as possibilidades de um lugar vislumbrado. Negociando espaços (Certeau, 2008Certeau, M. de (2008). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.; Hall, 2003Hall, S. (2003). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.), as práticas instauram (re)existências e possibilidades de resistência às condições dos lugares que lhes foram imputados. Na busca por um lugar de prática – ao fazermos uma relação com a expressão lugar de fala discutida por Ribeiro (2017)Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte, MG: Letramento. – os congueiros narram demarcações que os identificam e os aproximam enquanto coletividade, legitimando suas práticas diante de um contexto instável e de fluidez de atores com relações assimétricas e, neste âmbito, na luta pelo lugar de fala, de prática, tem investido na inversão da posição de “quem é” o Outro (Ribeiro, 2017Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte, MG: Letramento.).

Por meio das reflexões tecidas, apresentamos como contribuição teórica da pesquisa a discussão do processo organizativo da festa como capaz de mobilizar táticas na produção cotidiana dos espaços, a partir de uma abordagem certeauniana. Festejar, nesse contexto, significa engendrar-se nas fissuras dos lugares de poder e subverter as estabilidades produzidas pelas estratégias com as quais os sujeitos se deparam cotidianamente. Ademais, entendemos igualmente como contribuição deste texto a exposição de problemáticas enfrentadas por uma manifestação afro-brasileira, problemáticas estas que reforçam as tensões, ainda latentes, quando a dimensão étnico-racial assume centralidade, mesmo que atravessada por outros aspectos, como condições materiais precárias, na produção das organizações e, por conseguinte, nas disputas espaciais. Reforçamos a não superação das hierarquias étnicas e raciais, sob a qual se estrutura a sociedade brasileira, o que torna ainda mais a necessidade de promoção dessa discussão a partir de olhares descentralizados. Apontamos, por fim, às produções no campo político possibilitadas pelas práticas culturais populares. Do ponto de vista teórico, então, reforçamos os usos políticos das estratégias e táticas empreendidos no cotidiano.

Agradecimentos

As autoras agradecem a toda e todos de Roda D’água que contribuíram para este trabalho, especialmente, Mestre Tagibe, Alcemir Ferreira e família.

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Notas

  • 1
    . Nossa Senhora da Penha é a Santa Padroeira do Espírito Santo e, em sua homenagem, é realizada a maior e mais importante festa religiosa do estado: a Festa da Penha. A Festa da Penha acontece em Vila Velha há mais de 445 anos, sendo o terceiro maior evento religioso do país em número de fiéis reunidos. Com duração de aproximadamente nove dias, envolve missas, oitavários e romarias.
  • 2
    . Casaca é um instrumento de percussão, semelhante ao reco-reco, considerado um instrumento tipicamente capixaba.
  • 3
    . Dentre as mudanças produzidas pelo processo de institucionalização das práticas no congo, encontra-se a criação de sedes próprias para a maioria das bandas.
  • Verificação de plágio
  • A O&S submete todos os documentos aprovados para a publicação à verificação de plágio, mediante o uso de ferramenta específica.
  • Disponibilidade de dados
  • A O&S incentiva o compartilhamento de dados. Entretanto, por respeito a ditames éticos, não requer a divulgação de qualquer meio de identificação dos participantes de pesquisa, preservando plenamente sua privacidade. A prática do open data busca assegurar a transparência dos resultados da pesquisa, sem que seja revelada a identidade dos participantes da pesquisa.
  • Financiamento
  • As autoras agradecem o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2018
  • Aceito
    04 Jun 2019
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