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A imanência entre a teoria crítica e a pesquisa empírica: contribuições para os estudos organizacionais

The immanence between critical theory and empirical research: contributions to the organizational studies

Resumo

Muitas pesquisas no campo da administração têm se baseado no referencial da teoria crítica para o desenvolvimento de análises das situações sociais próprias ao campo. Dentre os diversos autores que compõem essa escola, Adorno tem sido largamente utilizado, principalmente por seus conceitos de indústria cultural, sociedade administrada e educação crítica. No entanto, a teoria crítica tem sido muito utilizada para balizar estudos de natureza teórica e ensaística. Esse uso restrito dessa teoria cria um viés (ou parte dele) de que a pesquisa oriunda do referencial frankfurtiano não pode ser baseada em dados empíricos ou mesmo na tradicional forma de pesquisa de campo, como entrevistas e surveys, muito comuns à área da administração. O objetivo deste artigo é, portanto, revelar a imanente relação entre teoria crítica e pesquisa empírica. Uma vez posta à mesa, criam-se as condições para a reflexão crítica e para o “resgate do instante de realização da filosofia” (ADORNO, 2009, p. 11). Propusemo-nos a tal ao resgatarmos o projeto empírico da teoria crítica, em especial Adorno. Buscamos, com esse esforço, contribuir para a área de estudos organizacionais por meio da definição de que as pesquisas empíricas muito comuns a esse campo podem sim ser baseadas nos princípios teóricos desenvolvidos por Adorno e seus colegas do Instituto de Pesquisa Social.

Palavras-chave
Administração; Teoria crítica; Sociologia; Pesquisa empírica; Adorno

Abstract

A lot of research in the field of administration are based on the benchmark of critical theory to the analysis of social situations development own the field. Among the various authors that make up this school, Adorno has been widely used, primarily through its concepts of cultural industry, a company administered and critical education. However, critical theory has been widely used to provide a theoretical nature studies and essayistic. This restricted use of this theory creates a bias (or part thereof) that the research from the frankfurtiano benchmark cannot be based on empirical data or even in the traditional form of field research such as interviews and surveys, very common to the area. The purpose of this article is, therefore, reveal the inherent relationship between critical theory and empirical research. Once put to the table, create the conditions for critical reflection and to the “rescue of the moment of realization of philosophy” (ADORNO, 2009, p. 11). We proposed the one to rescue the empirical design of critical theory, in particular in decoration. We seek with this effort contribute to the field of organizational studies through the definition of the empirical research very common to this field can be based on theoretical principles developed by Adorno and his colleagues at the Institute for Social research.

Keywords
Administration; Critical theory; Sociology; Empirical research; Adorno

Introdução

“A sociedade ludibria o homem de ciência com as supostas exigências concretas que lhe impõe, nega-lhe o tempo e a independência necessários à meditação e restringe o seu horizonte a fenômenos exteriores. O aspecto político dessa tendência consiste num conformismo regressivo” (HORKHEIMER; ADORNO, [1956] 1978HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Sociologia e investigação social empírica. In: HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, [1956], 1978., p. 12).

Muitas pesquisas no campo da administração têm se baseado no referencial da teoria crítica para o desenvolvimento de análises das situações sociais próprias ao campo. Dentre os diversos autores que compõem essa escola, Adorno tem sido largamente utilizado, principalmente por seus conceitos de indústria cultural, sociedade administrada e educação crítica.

No entanto, a teoria crítica tem sido muito utilizada para balizar estudos de natureza teórica e ensaística. Esse uso restrito dessa teoria cria um viés (ou parte dele) de que a pesquisa oriunda do referencial frankfurtiano não pode ser baseada em dados empíricos ou mesmo na tradicional forma de pesquisa de campo, como entrevistas e surveys, muito comuns à área da administração.

Essa concepção sobre o empreendimento teórico desses filósofos/sociólogos é errônea e joga por terra diversos projetos liderados por eles no campo da pesquisa empírica. Ao analisarmos o discurso de posse de Horkheimer no Instituto de Pesquisa Social, por exemplo, percebemos uma clara vinculação deste com o propósito sociológico da filosofia. Horkheimer aponta para a “necessidade de interpenetração progressiva entre a filosofia e as ciências particulares, defendendo também a importância de um filósofo estar à frente de um empreendimento de pesquisa empírica meticulosamente planejado” (DUARTE, 2003DUARTE, R. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003., p. 16). A proposta era o desenvolvimento de pesquisas sociais que resgatassem elementos filosóficos do marxismo, associando-os às ciências humanas “burguesas” (psicanálise e tópicos da sociologia de Max Weber), a fim de organizarem-se para os desafios do capitalismo “monopolista” ou “não concorrencial” (DUARTE, 2003DUARTE, R. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003.).

As principais influências teóricas da teoria crítica, que determinaram muitas das formas de seus estudiosos de fazer pesquisa e apreender a realidade, foram: (1) Weber (ou o círculo weberiano) e as novas posições da ciência social; (2) o marxismo como ciência social, diferente do marxismo do movimento operário/crescimento; além de (3) a crise do movimento operário/dissidências e enfraquecimento político (VILELA, 2006VILELA, R. A. A teoria critica da educação de Theodor Adorno e sua apropriação para análise das questões atuais sobre currículo e práticas escolares. Belo Horizonte: CNPQ, 2006. (Relatório de Pesquisa.)).

No campo da administração, há uma jovem, mas intensa área de estudos denominados estudos críticos organizacionais. Essa área se dedica à denúncia das formas de opressão e alienação das organizações sobre os sujeitos e a sociedade. Para tal, utiliza um aporte teórico diverso, indo do pós-modernismo ao marxismo ortodoxo. A teoria crítica é um dos utilizados nesses estudos. O foco deste artigo é reforçar entre os pesquisadores críticos que utilizam a teoria crítica como aporte teórico que ela é também aporte metodológico. Isso será apresentado pela descrição das incursões empíricas feitas pelos frankfurtianos, pelas discussões que Adorno e Horkheimer travam com o campo da sociologia e da filosofia, e na demonstração de que há diversos estudiosos de Adorno que estudam sua obra no sentido de evidenciar a metodologia que se acredita ali presente.

Impedir que a teoria crítica seja utilizada como aporte para pesquisas empíricas críticas é negar o potencial do legado frankfurtiano. Da mesma maneira, amalgamar as pesquisas empíricas críticas com aporte na teoria frankfurtiana de reacionárias, empiristas, positivistas ou até mesmo vazias, é também uma demonstração de desconhecimento tanto teórico quanto prático do que foi a Escola de Frankfurt.

Para tal, apresentaremos inicialmente o conceito de pesquisa sociológica em Adorno para, em seguida, evidenciarmos os inúmeros projetos de pesquisa empírica (pesquisas quantitativas e qualitativas) realizados por ele. A obra Dialética negativa será brevemente apresentada, dada sua relevância na definição de conceitos de metodologia de pesquisa para Adorno. Por fim, será apresentada a mesma obra como estratégia metodológica no campo das pesquisas críticas sociais.

A pesquisa sociológica em Adorno

“No exato momento em que a veloz lebre positivista estaca e descansa, a infatigável tartaruga dialética encontra seu alento para prosseguir em seu rumo crítico, dilatando ao extremo os limites do campo” (COHN, 2008COHN, G. A sociologia como ciência impura. In: ADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008., p. 48).

No texto “O conceito de sociologia”, escrito com Horkheimer, Adorno (1977a)ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. O conceito de sociologia. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix; USP, 1977a. apresenta o seu desconforto com a separação acadêmica ocorrida entre a filosofia e a sociologia. Ele observou uma grande diferença entre a doutrina filosófica da sociedade desde Platão e Aristóteles, e até Hegel, com a visão que foi desenvolvida por Comte, para quem a sociologia deveria buscar, a exemplo do que ocorre nas ciências naturais, se conformar a vínculos causais regulares, em um método chamado de “positivo”, no qual o investigador deve buscar apenas os dados, eliminando o desejo, estabelecendo uma relação positiva com o existente – seja ela boa ou má.

Uma das consequências de querer ser uma ciência nos moldes das ciências naturais, constituídas como dominação da natureza (ADORNO; HORKHEIMER, [1944] 1985ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.), é que, por incluir em seu objeto o seu próprio sujeito – a sociedade –, da mesma forma que as ciências naturais reivindicam um poder em relação à natureza, a sociologia acaba por reivindicá-lo em relação à sociedade.

Adorno observa que essa é uma sociologia que, além de desprezar a teoria, foi dividida tanto externamente (família, partido político, comunidade, etc.) como internamente (metodologia, teoria do conhecimento e outras disciplinas formais). Ainda, que em nome da divisão do trabalho científico, seu campo de ação foi delimitado em relação a outras áreas de interface, como a economia, a psicologia e a história. O resultado final foi a identificação ou de um campo específico de atuação na constituição da sociedade ou a um sociologismo, reduzindo tudo o que é humano a social, e a afirmação de um primado científico da sociologia sobre as outras disciplinas (ADORNO; HORKHEIMER, 1977aADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. O conceito de sociologia. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix; USP, 1977a.).

Essa sociologia corre o perigo de perder sua consciência crítica, pois tudo que difere do positivo – nos obrigando a interrogar a sua legitimidade como entidade social –, ao invés de ficar comprovado como dado verificável, se transforma em alvo de suspeita. Além disso, a ciência só pode ser mais do que a simples duplicação da realidade no pensamento se estiver impregnada de espírito crítico, que para Adorno significa confrontar a coisa com seu próprio conceito (ADORNO; HORKHEIMER, 1977aADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. O conceito de sociologia. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix; USP, 1977a.).

A formação de métodos próprios (e, com eles, certo fetichismo relacionado aos métodos) possibilitou o avanço das ciências em geral. Mas uma ciência como a sociologia, que lida com conceitos como reificação, fetichização e ideologia, assume a autossuficiência das outras ciências sem incorporar uma reflexão sobre si mesma e sobre sua relação com os objetos, se deforma. Por isso, a diferença entre a sociologia frankfurtiana e o de outras escolas está no fato de que a Escola de Frankfurt procura não se deixar levar por esse fetichismo (ADORNO, [1968] 2008aADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a.). As outras, com seus métodos imanentes e nexos de fundamentação, acabam por converter a ciência em fim por si mesma, sem referências àquilo de que deveria se ocupar.

Uma ciência verdadeira deveria, segundo Adorno (2008a)ADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a., ter claros os objetivos do seu conhecimento, estabelecendo a partir daí uma racionalidade orientada ao objeto – incluindo as questões referentes à escolha da amostra. Não devem ser o método e a pureza metodológica, os meios, o que se deve idolatrar. Ao contrário, o método é que deve ser desenvolvido a partir do assunto. Como exemplo, Adorno cita a produção de escalas, como “Guttman”, “Thurstone” e “Likert”1 1 Guttman: é um exemplo de escala chamada de “cumulativa” – nela, os itens da escala se relacionam entre si, de modo que a resposta favorável a um item deve ter resposta que seja coerente com os itens anteriores. Foi elaborada de modo a se poder inferir nas respostas parciais do resultado final da escala.Thurnstone: é um exemplo de escala chamada de “diferencial” – nela, a posição dos itens tem uma ordenação que é previamente determinada, que leva em conta as medianas de atribuição de significado dos itens. A mediana do item assinalado é interpretada como sendo a indicação de sua posição numa escala de atitude favorável-desfavorável com relação ao objeto.Likert: é um exemplo de escala chamada de “somatória” – nela os indivíduos respondem a cada item, especificando o grau de acordo ou desacordo com o item apresentado. Tem como finalidade uma tentativa de quantificação de uma posição de acordo ou desacordo. . A “Guttman”, que seria um avanço metodológico sobre as mais antigas, traria a desvantagem de diminuir a fecundidade das informações obtidas. Ao contrário, a escala F que Adorno desenvolve em The authoritarian personality (ADORNO et al., 1982ADORNO, T. W. et al. The authoritarian personality. New York: W.W. Norton & Company, 1982.) possui como vantagem a possibilidade de, graças à ambiguidade de certas perguntas, “acertar várias moscas em um só golpe” (ADORNO, [1968] 2008aADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a., p. 189). Para o autor, a eliminação de ambiguidades, por um lado, aumenta a confiabilidade da escala e a confiança no item, por outro, reduz a riqueza de conhecimentos possível (ADORNO, 2008aADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a.).

Em uma aula sobre a questão do método usado em pesquisa empírica na sociologia, Adorno (2008a)ADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a. afirma que a sociologia não deve possuir um método único. A diferença entre as escolas positivistas e a de Frankfurt, com relação à pesquisa empírica, estaria mais na concepção de que o método em sociologia não deveria ter uma forma abstrata, geral – separando de modo instrumental o objeto –, mas deve buscar adequar o método aos objetos, suprimindo a separação que o positivismo coloca entre os dois.

Para Adorno (2008a)ADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a., a validade estatística da amostra está ligada mais a um comportamento cego das pessoas – algo que se poderia considerar como discutível, em um momento no qual pessoas emancipadas pudessem decidir conscientemente em função de seu desejo. Ele não põe em dúvida o fato de que um dado quantitativo é confiável. Mas, reconhece que para obter os números é preciso renunciar à diferenciação dos instrumentos de pesquisa que forneceriam conhecimentos detalhados produtivos.

Ao se confiar no método qualitativo, se por um lado se obtêm as coisas mais fecundas, de outro nos deparamos com um problema: ao compreender como conhecimentos gerais a abundância de resultados, eles podem ser generalizados ou se sustentam apenas em casos particulares? (ADORNO, [1968] 2008aADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a.). Adorno também vê dificuldades na análise de conteúdo: para ele, entre o objeto da sociologia e o sujeito conhecedor, não há a antítese material, a qual é suposta como dada nas ciências naturais.

Retomando um conceito kantiano, na sociologia é possível conhecer o objeto a partir de seu interior, ao contrário da física nuclear ou da tabela periódica. Ao invés disso, ao se aproximar do pragmatismo americano, que adapta técnicas de investigação a objetivos comerciais e administrativos, o resultado acaba sendo uma ciência que oferece saber de domínio, e não de cultura (ADORNO, [1968] 2008aADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a.). É de se esperar que os interesses sejam diversos quando o que se pretende não é eliminar um inconveniente (como em pesquisa para a administração), mas sim mudar a estrutura da sociedade.

No curso das discussões com Lazarsfeld (1941)LAZARSFELD, P. F. Remarks on administrative and critical communications research. Studies in Philosophy and Social Science, v. 4, n. 1, 1941., com quem Adorno trabalhou nos primeiros anos nos Estados Unidos, ficou claro haver duas concepções inconciliáveis da sociologia: a que constata fatos sociais, preparando-os e disponibilizando-os para posicionamentos administrativos de qualquer ordem (que Adorno caracteriza como “pesquisa administrativa”), e de outro a investigação crítica da comunicação. A diferença entre as duas não estaria apenas nos fins: uma considera o tratamento dos homens como objeto (p. ex., a indústria cultural, que quer saber como arranjar seus programas, para maximizar sua comercialização), enquanto a outra insiste no potencial da sociedade como sujeito. E é da primeira visão a reivindicação de poder pela sociologia, a totalização da reivindicação administrativa da sociedade – o que pode ser interpretado como qualquer coisa, menos uma posição de neutralidade (ADORNO, [1968] 2008aADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a.).

O que se tem estudado são alguns setores delimitados da estrutura social. O estudo de objetos retirados do contexto social exclui o tratamento da sociedade como totalidade, donde o caráter de informação gerada é útil apenas para fins administrativos (ADORNO; HORKHEIMER, 1977bADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Sociologia e investigação social empírica. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix; USP, 1977b.). É por isso que os métodos em ciência social empírica se prestam com tanta facilidade a servir aos interesses da manipulação social.

A administrative research, termo cunhado por Adorno para referir-se a um determinado tipo de pesquisa, pode ser resumida da seguinte forma:

Quando não se dispõe de poder, quando a resignação domina, os investigadores limitam-se, voluntariamente, já que as informações sobre o mercado são muito apreciadas nesses períodos, a determinar que uma tarefa previamente fixada – por exemplo, a venda de uma mercadoria, a influência que se deseja obter sobre determinado grupo humano, etc. – seja resolvida com a máxima eficácia e em condições econômicas perfeitas (ADORNO; HORKHEIMER, 1977bADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Sociologia e investigação social empírica. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix; USP, 1977b., p. 129).

Sob o predomínio da administrative research, a sociologia empírica acaba por se desenvolver de modo unilateral, na medida em que se formou seu potencial para assegurar informações úteis, enquanto todos os aspectos com implicações críticas, que poderiam ser investigados de modo empírico, são negligenciados. Essa limitação reside no fato de que esse tipo de conhecimento pressupõe teoria – que é pobre, na administrative research. Para Adorno e Horkheimer (1977b)ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Sociologia e investigação social empírica. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix; USP, 1977b., na investigação sociológica empírica é tão necessário o conhecimento dos resultados como a reflexão sobre seus princípios, e principalmente a sua autorreflexão. O elemento “crítica” está eliminado da investigação social empírica, em uma sociologia que se propõe “isenta de valores, postulada há cinquenta anos por Max Weber e seu círculo de colaboradores” (ADORNO; HORKHEIMER, 1977bADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Sociologia e investigação social empírica. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix; USP, 1977b., p. 123).

Para Adorno e Horkheimer (1977b)ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Sociologia e investigação social empírica. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix; USP, 1977b., o que se revela empiricamente em pesquisas, como nas “de opinião”, muitas vezes é apenas o epifenômeno. Nessas pesquisas, deve-se considerar que:

Sabemos que os homens de que tratamos permanecem, desde então, homens com sua capacidade de formar livremente sua opinião e com sua espontaneidade quando são integrados a relações que eles próprios não conseguem distinguir, e sabemos que a lei dos grandes números tem seus limites com esse elemento espontâneo e consciente (ADORNO, [1965; 1966] 2008bADORNO, T. W. Lectures on negative dialetics. Cambridge: Polity Press, 2008b., p. 65).

Seu esforço na defesa da pesquisa social empírica (PSE) se concentrava nos pontos em que ela significava mais do que técnicas sutis de entrevistas. Há muito ela havia elaborado, por si mesma, com a psicologia, os métodos graças aos quais ela podia contrabalançar a superficialidade, como os questionários indiretos, os testes, as entrevistas em profundidade e a discussão em grupo. Adorno enfatizava o papel dos “líderes de opinião” e a opinião de que eram necessárias análises qualitativas para haver condições de instaurar a teoria crítica da sociedade como elemento constitutivo da pesquisa sociológica empírica.

Adorno considerava que a sociologia não é ciência humana positivista, sendo suas questões não as de consciência ou do inconsciente, mas do conflito entre o homem e a natureza e das formas objetivas de socialização. Na sua visão, a PSE deveria se lançar contra as especulações guiadas pela ideologia, usando para isso além da “pesquisa de opinião” pesquisas que elucidassem também o lado subjetivo. Pesquisas de opinião, para Adorno, só teriam sentido se estudassem as relações entre processos econômicos, psiquismo e a cultura (ADORNO, [1968] 2008aADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a.). A sociologia tem a obrigação de extrapolar seus muros disciplinares (“desconsideração soberana pelas fronteiras intelectuais” – ADORNO, [1968] 2008aADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a., p. 98) e lançar-se a discussões críticas, fazendo uso dos mais diversos aparatos filosóficos e teóricos, tais como a psicanálise, a filosofia, a literatura e as artes, por exemplo. Cohn (2008, p. 34)COHN, G. A sociologia como ciência impura. In: ADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008. descreve essa perspectiva sociológica crítica adotada por Adorno ([1965/1966]) como a escolha por uma sociologia impura: “a sociologia recebe, destarte, a incumbência de ousar ser impura sem deixar de ser ela mesma: ciência da sociedade que não hesita em perturbar o severo rigor do método com ruídos da crítica, do entrelaçamento com outras ciências e das exigências normativas”.

A busca de leis essenciais não costuma ser objeto da maioria das descobertas empíricas. Entretanto, sem uma reflexão crítica sobre seus resultados, a investigação social empírica pode ser enganada pelos seus próprios resultados. E para um julgamento equilibrado, ela deve, além de se emancipar de muitos de seus preconceitos, estar fundada em teoria. Para Adorno, a investigação social empírica não é possível sem teoria, a qual deve ser admitida como “hipótese figurada”, e não como “instância legítima”, a ser tencionada com os achados da pesquisa.

A metodologia em sociologia deveria ponderar cada caso – incluindo aqui a ponderação de que resultados qualitativos, que parecem individuais, encontrados com questões sociológicas como opiniões arraigadas, comportamentos, atitudes e ideologias não correspondem apenas aos indivíduos, mas são socialmente mediadas. Deve-se refletir sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade. Ao contrário do que ocorre na pesquisa de opinião, Adorno considera sociais fatos que a sociologia empírica atribuiria apenas aos indivíduos. Esses fatos são generalizados ao serem remetidos à estatística, de forma que o aparentemente específico adquire valor mais geral do que parecia ao olhar ingênuo. Adorno atribui esse apego ao método a medo ou insegurança intelectual (nesse sentido, ver também Horkheimer, 2007HORKHEIMER, M. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2007.). E como o ideal da metodologia é o tautológico – ou seja, o conhecimento tem determinação operacional, correspondendo às exigências do método –, para ele só são produtivos os conhecimentos que ultrapassam esse caráter tautológico-instrumental. Disputas metodológicas, para Adorno (2008a)ADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a., não só escondem divergências sobre conteúdos, como podem conter aspectos antinômicos substanciais do assunto tratado.

A estatística, para Adorno e Horkheimer (1977b)ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Sociologia e investigação social empírica. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix; USP, 1977b., deveria servir mais para organizar os dados que para gerar concepções – as quais, em geral, devem nascer de estudos profundos de casos particulares. A crítica que se pode fazer a uma utilização cega de modelos estatísticos é que a construção de modelos válidos chegou a um ponto que, para muitos pesquisadores, bastaria seguir os critérios por ela estabelecidos para se ter a garantia de idoneidade. Entretanto, um modelo rigoroso, aplicado a problemas para os quais o método é inadequado ou incompatível, pode conduzir a resultados errados ou absurdos. Na sociedade, tendências essenciais, como certos desenvolvimentos políticos, por exemplo, não atuam de maneira uniforme (segundo amostragem estatística), mas de acordo com interesses mais poderosos e com a eficácia de ação de quem consegue fabricar a opinião pública. É por isso que uma teoria da sociedade passa a ser necessária para uma adequada interpretação das descobertas científicas (ADORNO; HORKHEIMER, 1977bADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Sociologia e investigação social empírica. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix; USP, 1977b.).

Reconhecendo o superficialismo que existe na ideia de que “ciência é medida”, Adorno e Horkheimer (1977b)ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Sociologia e investigação social empírica. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix; USP, 1977b. defende que a ponte entre os métodos estatísticos e sua aplicação é em geral formada por elementos qualitativos. Mas, também chama a atenção para o cuidado que se deve ter contra uma atitude de superioridade em relação aos métodos qualitativos: deve-se considerar que no momento em que a vida social contemporânea está padronizada, métodos padronizados são não só a expressão dessa situação como um instrumento adequado para entendê-la e descrevê-la. A resistência contra a ampliação dos métodos das ciências da natureza às ciências “do espírito” não levam em consideração a “naturalidade” dos objetos das ciências sociais, conferida pela própria sociedade, para a qual esses objetos não são determinações espirituais. Para Adorno e Horkheimer, “a falta de humanismo dos métodos empíricos é mais humana que a interpretação humanista do que não é humano” (1977b, p. 127).

Conforme Adorno (2008a)ADORNO, T. W. Introdução à sociologia. São Paulo: Unesp, 2008a., a dialética é o melhor método de pesquisa empírica da sociedade, uma vez que nele se encontram as melhores condições para a união dos dois momentos contrapostos da sociedade: (a) sua opacidade e ausência de inteligibilidade e, por outro lado, o (b) seu caráter redutível ao que é humano, portanto, compreensível. O erro do positivismo seria o de não evoluir para esse resultado do pensamento, ficando preso na “ingenuidade obtusa da imediatez”.

Aqui, então, já estamos em condições de discutir especificamente a sua experiência com a pesquisa empírica em administração.

Adorno e a pesquisa empírica em administração

Em 1954, Horkheimer aceita uma encomenda da Mannesmann Inc. O grupo do Instituto para Pesquisa Social (IPS) praticamente não tinha experiência em sociologia empresarial, mas Horkheimer aceita o encargo com forte pressão de prazos. A diretoria da Mannesmann procurava resposta para a seguinte pergunta: “O que pensa e o que quer o pessoal de nossa empresa, e porque pensa e quer assim?”. Ou seja, a diretoria queria estar informada do clima organizacional e dos fatores que eram decisivos para esse clima. Queria conhecer as causas profundas, fundamentos conceituais e raízes sentimentais da formação das opiniões, pois julgava que a partir daí a pesquisa poderia ser utilizada para resolver os problemas da empresa, o que tornava o IPS promissor, por sua orientação metodológica – lembrando que em seu programa constava a ambição de penetrar a superfície das opiniões (WIGGERSHAUS, 2006WIGGERSHAUS, R. A escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de Janeiro: Difel, 2006.).

A metodologia utilizada foi a seguinte: 15 entrevistadores experientes entrevistaram 1.172 operários e empregados, escolhidos por amostragem aleatória entre os pouco mais de 35 mil empregados. Contramestres ou representantes do pessoal eram informados pela direção, pouco antes, e convocados para um local reservado das fábricas onde ocorriam as entrevistas, que se compunham de entrevistas orais individuais, de aproximadamente 50 minutos, seguidas da aplicação de um questionário. Depois, assistentes do ISF organizaram discussões em grupo, envolvendo 539 participantes. Para essas discussões, o estímulo fundamental compreendia os pontos que uma pesquisa preliminar, realizada por meio de um questionário, considerou como importantes para a satisfação ou insatisfação nas fábricas. O rascunho do relatório foi entregue à presidência da sociedade em janeiro de 1955, e em junho de 1955 o relatório principal (WIGGERSHAUS, 2006WIGGERSHAUS, R. A escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de Janeiro: Difel, 2006.).

A questão mais importante foi saber, de uma lista de oito, quais seriam os fatores mais importantes para os assalariados. Para determinar a importância de diferentes fatores para a atitude dos empregados para com a fábrica e, em um segundo momento, o ambiente da empresa que se procurava conhecer, procedeu-se de forma indireta, pois as pessoas interrogadas não eram consideradas capazes de indicar diretamente os fatores decisivos de sua atitude para com a fábrica. Foram feitas perguntas específicas – como “há um trabalho que você preferiria realizar?”, na parte relativa à atitude para com o cargo –, usando-se respostas positivas e negativas como critério de satisfação ou insatisfação em cada setor.

A expectativa que Adorno tinha para o estudo era o de combinar a análise quantitativa dos resultados das entrevistas, ou a representatividade da amostra, com a análise qualitativa dos relatórios das discussões de grupo, visando a psicologia profunda, como realizado em The authoritarian personality. Entretanto, no relatório, só se pôde perceber vestígios da teoria crítica na introdução, chamada de Problemática, que trazia claramente a marca de Adorno. Nela, percebe-se uma consciência aguda das graves limitações do estudo, explicando que faltava uma análise dos personagens-chave (diretor e principais executivos) e de suas opiniões. E chamando a atenção para a dimensão histórico-social, desprezada pelo estudo, quando aborda a ideia de representação dos assalariados por pessoas qualificadas (no contexto do tema da cogestão), a tendência à apatia surgia nos pontos em que não se encontra uma situação democrática historicamente estabelecida (WIGGERSHAUS, 2006WIGGERSHAUS, R. A escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de Janeiro: Difel, 2006.).

O capítulo “Observações metodológicas” desse estudo indicava que, graças ao contato imediato com a pessoa interrogada, o entrevistador dispunha também de impressões globais, cujo único defeito era o de resistirem à eliminação do fator constituído por sua subjetividade. E, em um raciocínio com a marca de Adorno, explicava que “é precisamente a capacidade total de reação subjetiva do entrevistador que se torna, aqui, um ‘instrumento de pesquisa’ que é ainda o mais adequado a seu objeto imponderável em sua dinâmica e sua complexidade, a relação com a fábrica” (WIGGERSHAUS, 2006WIGGERSHAUS, R. A escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de Janeiro: Difel, 2006., p. 527). O que concordava com o fato de que as entrevistas haviam sido confiadas a 15 pesquisadores que, ao final, apenas indicavam sua impressão geral quanto ao grau de cooperação do entrevistado, qualidade do contato, sinceridade das respostas, dedicação à empresa do sujeito interrogado e intensidade da atividade sindical. Mas, quanto ao grau com que a “inteira capacidade de reação subjetiva” dos “assistentes” do ISF encarregados de conduzir as discussões em grupo melhorava os resultados, o relatório não disse uma palavra.

Adorno não completa os estudos empíricos críticos com os quais sonhava. Em um manuscrito de 1957, Teamwork in der sozialforschung, ele radicaliza a autocrítica da pesquisa sociológica empírica; entre esta e a crítica ele via dois elementos dissociados e incompatíveis na prática. Em suas palavras, “quem conhece a prática da pesquisa social por ter ele próprio trabalhado nela foi obrigado a observar que, na área dessas pesquisas, o teamwork não pode ser substituído pelo trabalho do erudito isolado à moda antiga. Os one man studies são sempre dúbios e, na maior parte, trabalho de amadores” (WIGGERSHAUS, 2006WIGGERSHAUS, R. A escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de Janeiro: Difel, 2006., p. 531). E quem quiser ser levado a sério por seus colegas não pode dispensar controles que só são possíveis com o teamwork, como o inventário ou a classificação dos dados de acordo com as categorias que acompanham a opinião, para eliminar a subjetividade.

A questão estava no fato de que, se o responsável pela pesquisa tentasse reunir ao final tudo o que forneceu de pessoal no início e que se perdeu durante o processo institucionalizado da pesquisa, a relação com os dados seria irremediavelmente rompida, e as suas reflexões seriam sem fundamento, podendo ser no máximo toleradas como hipóteses para outros estudos – que provavelmente não surgiriam. Em suas palavras:

A falta, sempre lamentada, de pessoas capazes de concluir com êxito a redação final dos estudos não se explica por uma ausência de dons literários. Um relatório desse tipo não é uma questão de prática literária, mas exige uma compreensão completa da pesquisa. O problema reside antes na aporia: tal relatório final deve apresentar uma espécie de sentido do conjunto, ao passo que o sentido imanente do método sobre o qual tudo se baseia é precisamente a negação desse sentido de conjunto, e a decomposição em pura factualidade. Presta-se, pois, uma homenagem puramente verbal à teoria, porque o objetivo da tendência imanente da research não é chegar a uma teoria por meio dos fatos – mas chegar aos diagramas (WIGGERSHAUS, 2006WIGGERSHAUS, R. A escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de Janeiro: Difel, 2006., p. 531-532).

Adorno rompe com a pesquisa denominada de teamwork para voltar-se aos one studies man. Ele o faz por perceber que a pressão por identificação entre dados e realidade; hipóteses e dados está sempre permeando os estudos empíricos, quando estes perdem sua criticidade. A consequência dessa ruptura de Adorno com a PSE foi a de fazer o que pudesse fazer sozinho. Dois anos depois, ele inicia a redação da Dialética negativa (2009), na qual se volta para a tese de que os fatos importantes se escondem diante da abordagem empírica. A sua crítica estava voltada para a pesquisa estabelecida, e não ao projeto de uma pesquisa sociológica empírica crítica, que lhe daria os meios para se concentrar na teoria filosófica sem deixar de insistir na necessidade de uma pesquisa de campo para a sociologia crítica.

A dialética negativa: consolidação da importância da pesquisa empírica

Em 1966, Adorno publica o livro que passou a ser uma de suas grandes obras, ao lado de Teoria estética. Considerado por muitos um marco da teoria crítica, Dialética negativa contém o fechamento das ideias de Adorno sobre a crítica à sociedade tecnificada e imersa na racionalidade instrumental:

As ciências, diferentes da filosofia, pelo fato de estarem imbricadas em “normas”, procedimentos, metodologias e pressupostos quase inquestionáveis (se não fosse assim dificilmente caracterizar-se-iam ciência) são responsáveis pela passagem da passividade para a proatividade no processo de mudança e controle da natureza. Os instrumentos, objetos, conhecimentos ou produtos das ciências formam a prova material de que é possível que determinadas leis da natureza sejam entendidas, sobretudo, quando os indivíduos se tornam os senhores da mudança da realidade (FARIA; MENEGHETTI, 2007FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. Dialética negativa: Adorno e o atentado contra a tradição epistemológica nos estudos organizacionais. In: ENANPAD, 31., 2007, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPAD, 2007., p. 107).

Já no início do sumário do livro, Adorno alerta-nos para o estranhamento de muitos com o título adotado: “dialética negativa”. Por defender um tipo de dialética sem síntese, “a expressão dialética negativa subverte a tradição” (ADORNO, 2009ADORNO, T. W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., p. 7). Ela se propõe a tarefa de libertar a dialética da lógica da identidade: “ela é o indício da não verdade da identidade, da dissolução sem resíduos daquilo que é concebido no conceito” (ADORNO, 2009ADORNO, T. W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., p. 12). Dessa maneira, ela deve ser capaz de descobrir as razões que configuram o homem como incapaz de passar por experiências formativas e experienciar a realidade para além da aparência.

Adorno (2009)ADORNO, T. W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. realiza o que foi considerado um “novo giro na filosofia”, ao desarticular a lógica identificatória da dialética, derivada de uma visão idealista da filosofia. Ao desenvolver o conceito de dialética negativa, Adorno propõe uma dialética sem síntese e sem a tentativa de classificar a totalidade dos fenômenos sociais pelas categorias de análise. Esse giro na filosofia parte de um materialismo não dogmático, caracterizando a ideia como objeto e desvelando o sentido dos conceitos, por meio do seu próprio processo de constituição: “A dialética negativa deslinda no pensamento o que ele não é e, com isso, mostra ao pensamento o que ele, de fato, deve ser [...] e no lugar do falso conceito, revela-se sua materialidade, é revelado, então, o primado do objeto2 2 Adorno não estabelece uma prioridade hierárquica entre sujeito de objeto. Sua perspectiva materialista não dogmática refere-se ao fato de a ideia ser objeto. Trata-se, portanto, de mais sujeito no processo dialético. , esse é o momento em que a dialética negativa se instala” (ADORNO, 2009ADORNO, T. W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., p. 195; 197).

Por intermédio dela, torna-se possível empreender uma crítica social. Essa crítica não se configura como a exaltação do pessimismo – como encontramos em diversos aforismos de Minima moralia ([1951] 1993). Adorno reforça, a todo o momento, que só se pode evidenciar as falhas de um determinado sistema se são apontadas saídas. No caso desse autor, as saídas propostas são do âmbito da estética e da crítica imanente, conforme estabelecido na Dialética negativa. Para Jameson (1997, p. 104)JAMESON, F. O marxismo tardio: Adorno, ou a persistência da dialética. São Paulo: Unesp; Boitempo, 1997.:

A filosofia “crítica” ou “negatividade-dialética” de Adorno – não mais tomado como método, mas como conjunto de resultados e conceitos filosóficos substanciais – pode, nesse sentido, ser considerada correspondendo ao que Sartre (de maneira não totalmente feliz) chamou “ideologia”, uma correção à concepção do marxismo como a “única filosofia insuperável de nossa época”, uma flexibilização daquilo que havia enrijecido dogmaticamente esse último, e uma lembrança dessas questões – com tanta frequência chamadas “fator subjetivo”, consciência ou cultura – que se situam além de suas fronteiras oficiais (JAMESON, 1997JAMESON, F. O marxismo tardio: Adorno, ou a persistência da dialética. São Paulo: Unesp; Boitempo, 1997., p. 104).

Também nas palavras de Vilela (2009, p. 4)VILELA, R. A. A presença da teoria crítica no debate e na pesquisa educacional no Brasil e na Alemanha no período de 1995 à atualidade. Belo Horizonte: CNPQ, 2009. (Relatório de Pesquisa.), o conceito de dialética negativa “encarna a perspectiva ideológica do projeto da teoria crítica: o desvendamento dos problemas da sociedade implicava em recusar sua permanência e implicava em que a teoria tinha o compromisso de apontar possibilidades de agir sobre eles”.

A análise sociológica crítica, a única que deveria existir de acordo com Adorno (2009)ADORNO, T. W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., é a materialização da dialética negativa, enquanto método e filosofia: “O que é diferenciado aparece como divergente, dissonante, negativo, até o momento em que a consciência, segundo a sua própria formação, se vê impelida a impor unidade: até o momento em que ela passa a avaliar o que não lhe é idêntico a partir de sua pretensão de totalidade” (ADORNO, 2009ADORNO, T. W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., p. 13).

A grande contribuição dessa teoria está em buscar resgatar a historicidade dos fatos – “tentar encontrar no coração desses momentos os apelos de sua historicidade” (PUCCI, 2007PUCCI, B. Anotações sobre teoria e práxis educativa. In: PUCCI, B.; GOERGEN, P.; FRANCO, R. (Org.). Dialética negativa, estética e educação. Campinas: Alínea, 2007., p. 110) – sem submetê-los à lógica da identidade entre as categorias teóricas e uma realidade particular. A crítica imanente é exatamente a postura crítica de buscar re-historicizar os fatos sociais, sem colá-los às categorias (mesmo as “críticas”) preexistentes. Por isso, Adorno adota como eixo a máxima de se confrontar o conceito pelo conceito. Para Adorno, apenas o conceito pode dizer o que ele é: “para o conceito, o que se torna urgente é o que ele não alcança, o que é eliminado pelo seu mecanismo de abstração, o que deixa de ser um mero exemplar do conceito” (ADORNO, 2009ADORNO, T. W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., p. 15). O conceito é, no sentido que os objetos têm primazia, porém, ele se constitui enquanto objeto a partir dos significados atribuídos pelos sujeitos e pela sua historicidade (do próprio objeto). Por isso, Adorno (2009)ADORNO, T. W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. utiliza-se das matrizes expressão e constelação de ideias para buscar desvendar o conceito pelo conceito.

A atitude de identificar as realidades particulares nas categorias idealmente concebidas sobre a própria realidade é ideologia. Se elas não permitirem questionamento acerca de sua própria relevância e poder explicativo de situações particulares, tornam-se matrizes de alienação, mesmo quando são categorias explicativas em oposição ao sistema capitalista. Essa é uma das principais restrições de Adorno às filosofias idealistas, pois elas identificam totalitariamente as categorias abstratas nas particularidades da realidade concreta: “Na Alemanha, persiste a tendência para revestir os fenômenos para completamente materiais da práxis com pretensiosas categorias, as quais adotam hoje em dia, uma tônica nitidamente existencial e ontológica” (HORKHEIMER; ADORNO, [1956] 1978HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Sociologia e investigação social empírica. In: HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, [1956], 1978., p. 126).

O termo “crítica imanente” já estava presente nas teorias marxistas. Adorno, no entanto, reconceitua-o como a necessidade de recuperação da primazia do objeto:

O procedimento imanente como o mais essencialmente dialético [...] leva a sério o princípio de que não é a ideologia em si que seria falsa, mas a sua pretensão de coincidir com a realidade. Crítica imanente de formações espirituais significa entender, na análise de sua estrutura e de seu sentido, a contradição entre a ideia objetiva dessas formações e aquela pretensão, nomeando aquilo que expressa a consistência e a inconsistência dessas formações em si, em face da constituição do estado de coisas existente (ADORNO, 2015ADORNO, T. W. Para a metacrítica da teoria do conhecimento. São Paulo: Unesp, 2015., p. 49).

Para Duarte (2007)DUARTE, R. Reflexões sobre dialética negativa, estética e educação. In: PUCCI, B.; GOERGEN, P.; FRANCO, R. (Org.). Dialética negativa, estética e educação. Campinas: Alínea, 2007., a Dialética negativa é constituída de duas facetas importantes: a expressão e a constelação de ideias. A expressão consiste na recuperação do momento expressivo da filosofia “na relação estabelecida entre expressão e irreconciliabilidade, por um lado, e impotência, por outro” (DUARTE, 2007DUARTE, R. Reflexões sobre dialética negativa, estética e educação. In: PUCCI, B.; GOERGEN, P.; FRANCO, R. (Org.). Dialética negativa, estética e educação. Campinas: Alínea, 2007., p. 19). Um de seus objetivos principais é a consciência, por parte da filosofia, da necessidade de que “o sofrimento radical experimentado pelo homem contemporâneo, atônito diante da opressão e massacres de efeito multiplicado pela tecnologia, manifeste-se a partir do núcleo mesmo do discurso filosófico, não como algo externo, adicionado a partir de fora” (DUARTE, 2007DUARTE, R. Reflexões sobre dialética negativa, estética e educação. In: PUCCI, B.; GOERGEN, P.; FRANCO, R. (Org.). Dialética negativa, estética e educação. Campinas: Alínea, 2007., p. 19).

Outra faceta importante de Dialética negativa é a incorporação do procedimento constelatório. “As ideias [...] são, constelações – configurações que não descrevem, não conceituam nem enquadram os fenômenos, mas constituem, por outro lado, sua interpretação objetiva” (DUARTE, 2007DUARTE, R. Reflexões sobre dialética negativa, estética e educação. In: PUCCI, B.; GOERGEN, P.; FRANCO, R. (Org.). Dialética negativa, estética e educação. Campinas: Alínea, 2007., p. 24). Elas relacionam-se às coisas como as constelações às estrelas. Isso quer dizer antes de tudo:

elas não são nem seus conceitos, nem suas leis. Elas não servem ao conhecimento dos fenômenos e esses não podem ser, de modo algum, critérios para a existência de ideias. Ao contrário, o significado dos fenômenos para as ideias se esgotam em seus elementos conceituais [...] as ideias são constelações eternas e, no que os elementos são concebidos como pontos naquele tipo de constelações, os fenômenos são, simultaneamente, fracionados e salvos (ADORNO, [1965/1966] 2008bADORNO, T. W. Lectures on negative dialetics. Cambridge: Polity Press, 2008b., p. 99).

Adorno (2008b)ADORNO, T. W. Lectures on negative dialetics. Cambridge: Polity Press, 2008b. vai na contramão da tendência filosófica e social da época, que buscava classificar os elementos particulares em esquemas mais amplos, capazes de abranger o máximo de situações sociais, criando-se uma espécie de lógica superestrutural. Adorno (2008b)ADORNO, T. W. Lectures on negative dialetics. Cambridge: Polity Press, 2008b., no entanto, reforça que a verdadeira dialética é aquela em que são preservadas as particularidades do objeto, inserindo-o em um acervo crítico amplo.

O sentido imanente seria obstruído pela aparência, em que ideias se realizam ainda que como felicidade na infelicidade, ruptura privada da alienação ou eternização do transitório. Ou seja, como falsa realização, ou melhor: realização da falsidade. “O novo da indústria cultural” – atualização da função ideológica – “é o primado imediato e confesso do efeito”. O efeito seria justamente a subjetivação do sentido, a privatização da práxis, a remissão moral da realidade prejudicada (MAAR, 1998MAAR, W. L. A formação em questão: Lukács, Marcuse e Adorno. A gênese da indústria cultural. In: ZUIN, A. Á. S.; PUCCI, B.; RAMOS-DE-OLIVEIRA, N. (Org.). A educação danificada: contribuições à teoria crítica da educação. Petrópolis; São Carlos: Vozes; UFSCar, 1998., p. 46).

Muitos estudiosos da Dialética negativa buscam extrair dela uma proposta metodológica de análise social. Essa metodologia tem início na obra Dialética do esclarecimento ([1944] 1985), é depois amadurecida em Minima moralia ([1951] 1993) e finalmente apresentada no livro em questão.

Explorar essa proposta metodológica tem sido a agenda de muitos pesquisadores que trabalham com o legado de Frankfurt, incluindo aí os chamados intelectuais da terceira geração.

A dialética negativa como estratégia metodológica

Conforme discutido anteriormente, o IPS surge com uma proposta de pesquisa social empírica muito definida. Essa faceta do Instituto é ainda muito pouco explorada, o que leva a errôneas conclusões de que o projeto da teoria crítica não pode ser realizado em pesquisas empíricas. A vinculação com o mundo empírico pode ser comprovada pelos diversos estudos do tipo survey realizados, como “Personalidade autoritária”, “Estudos sobre a família” e “Princeton radio research” (todos da década de 1950).

Acentuar essa face social empírica do IPS é fundamental para se compreender devidamente o sentido (ou seja, para onde aponta) das críticas elaboradas por eles sobre a indústria cultural, a educação, o progresso e o positivismo. A própria compreensão de Dialética negativa e a oposição de Adorno ao idealismo tornam-se mais fluidas havendo a compreensão do IPS como um centro de pesquisa social empírica.

A concepção de dialética utilizada por Adorno é a proposta de recuperação do mundo real, das coisas empíricas. A realidade está na interação dialética entre o objeto e sua totalidade. A categoria de crítica imanente estabelece que a necessidade de identificação da totalidade – categoria intelectual de análise do real – com todos os particulares é ideologia. As categorizações do real tendem à equivalência dos elementos particulares que compõem a realidade, gerando um conceito ideológico de mundo, pois se aplainam as diferenças, exaltando-se a aparência e reduzindo-se as incongruências entre o particular e a totalidade.

A compreensão do projeto filosófico do IPS como um empreendimento empírico nos possibilita desvendar a proposta metodológica presente na Dialética negativa. Vários pesquisadores têm trabalhado no sentido de estruturar essa proposta metodológica apresentada por Adorno. Muitos acreditam que uma metodologia crítica já emana dos primeiros escritos do autor, em parceria com Horkheimer. A concepção de que nas obras dos frankfurtianos, em destaque nas de Adorno, há uma proposta metodológica é uma leitura muito recente e compartilhada por alguns dos estudiosos do filósofo. Não há uma tese única sobre isso. Para a concepção deste artigo e dos argumentos aqui construídos, parte-se do princípio de que há sim uma proposta incipiente nas obras de Adorno e que seu desvendamento tem sido ativamente feito pelos atuais estudiosos do autor, principalmente aqueles ligados à área de educação, aqui no Brasil e na Alemanha.

Nessa linha de raciocínio, podemos citar, dentre os pesquisadores que têm desenvolvido essa agenda de trabalho, aqueles do principal grupo de pesquisa brasileiro sobre teoria crítica e educação, composto por: Alexandre Fernandez Vaz, Antônio Álvaro Soares Zuin, Bruno Pucci, Luiz Antonio Calmon Nabuco Lastória, Luiz Hermenegildo Fabiano, Newton Ramos de Oliveira, Renato Bueno Franco e Rita Amélia Teixeira Vilela. Podemos incluir também o grupo de pesquisa intitulado Teoria Crítica e Pesquisa Empírica em Educação, coordenado pela Profa. Rita Amélia Vilela, cujo objetivo é analisar a escola em seu conceito formativo. Todos esses esforços têm sido desenvolvidos com o intercâmbio cultural com os pesquisadores de Frankfurt, que atualmente têm desenvolvido pesquisas empíricas sobre educação, com base em duas propostas metodológicas que seus integrantes acreditam ser oriundas das análises sociais empreendidas pelos pesquisadores do IPS. São elas a hermenêutica crítica e a crítica imanente. Apesar de algumas diferenças, essas metodologias desenvolvem uma análise crítica dos fenômenos culturais da sociedade.

Podemos dizer que esboços dessas propostas metodológicas já podem ser encontrados na obra Dialética do esclarecimento. A forma de crítica social ali presente é derivada de uma reflexão hermenêutica-histórico-social, aplicada a fenômenos sociais concretos. Portanto,

Parece correto concluir que essa obra mais a Dialética negativa e a Minima moralia, juntamente com diferentes textos destinados à análise da indústria cultural, demarcam em Adorno a virada da tradição filosófico reflexiva para a tradição sociológica interpretativista. Essa virada inaugura uma sociologia com distanciamento da abordagem positivista (BUNG, 1977 apud VILELA, 2009VILELA, R. A. A presença da teoria crítica no debate e na pesquisa educacional no Brasil e na Alemanha no período de 1995 à atualidade. Belo Horizonte: CNPQ, 2009. (Relatório de Pesquisa.), p. 8).

Negt e Kluge (1999)NEGT, O.; KLUGE, A. O que há de político na política? Relações de medida em política: 15 propostas sobre a capacidade de discernimento. São Paulo: Unesp, 1999. afirmam que existem duas concepções básicas no empreendimento sociológico hermenêutico feito por Adorno: “(1) os conceitos a serem formulados e analisados abarcam a totalidade da sociedade, pois é através dela que os fenômenos particulares estudados são constituídos; e (2) que a verdade buscada pela investigação depende do esclarecimento da possibilidade incessante de mudança naquilo que foi desvelado” (NEGT; KLUGE, 1999NEGT, O.; KLUGE, A. O que há de político na política? Relações de medida em política: 15 propostas sobre a capacidade de discernimento. São Paulo: Unesp, 1999., p. 16). As diversas sociologias setoriais expressam:

A universalidade das relações sociais que formam de antemão todos os objetos e, por certo, a consciência de todos os objetos. Essa universalidade, porém, não pode ser reduzida, por sua vez, a princípios formais gerais e ainda menos reconstituída como soma de todas as possíveis áreas parciais de exame sociológico, descritas incansavelmente, uma após a outra (HORKHEIMER; ADORNO, [1956] 1978HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Sociologia e investigação social empírica. In: HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, [1956], 1978., p. 121).

A Dialética negativa nos indica uma pista metodológica: “é por dentro da análise da racionalidade imanente das instituições sociais e de suas práticas, tomadas como objeto (a escola, a educação, a indústria cultural, etc.), que se vai compondo a interpretação crítica, confrontando o conceito enunciado com o seu resultado revelado, com seu sentido” (VILELA, 2009VILELA, R. A. A presença da teoria crítica no debate e na pesquisa educacional no Brasil e na Alemanha no período de 1995 à atualidade. Belo Horizonte: CNPQ, 2009. (Relatório de Pesquisa.), p. 3).

A perspectiva social crítica teve implicações na pesquisa sociológica, principalmente no pós-guerra, com a volta de Horkheimer e Adorno para a Alemanha (VILELA, 2009VILELA, R. A. A presença da teoria crítica no debate e na pesquisa educacional no Brasil e na Alemanha no período de 1995 à atualidade. Belo Horizonte: CNPQ, 2009. (Relatório de Pesquisa.)). Essa influência se dá pela própria forma da teoria crítica de anunciar sua diferença para a pesquisa social positivista, dominante à época:

Na teoria crítica o sujeito do conhecimento vê no objeto investigado o produto de uma gênese histórica; é ativo, contribuindo para codeterminar o objeto e tomando partido, ele nega as forças de determinação [...] a prática positivista é anulada por uma prática hermenêutica que não concebe o objeto como dado na sua aparência imediata, pelo contrário, o concebe como um produto de uma história social e particular (SCHWEPPENHÄUSER, 2003, p. 85 apud VILELA, 2009VILELA, R. A. A presença da teoria crítica no debate e na pesquisa educacional no Brasil e na Alemanha no período de 1995 à atualidade. Belo Horizonte: CNPQ, 2009. (Relatório de Pesquisa.), p. 7).

Com base nessas informações, conclui-se que a teoria crítica veio inaugurar uma nova forma de se fazer pesquisa empírica. Mesmo nos levantamentos estatísticos empreendidos na Alemanha antes da Segunda Guerra, bem como os que foram realizados nos EUA, os frankfurtianos inovaram em termos metodológicos ao incluírem categorias qualitativas de análise, não se restringindo à aparência dos fatos para tirarem suas conclusões de pesquisa.

Eles sempre se questionavam sobre o sentido dos fatos e porque as relações sociais se organizavam da forma apresentada. Esse olhar crítico sobre o modo de se fazer pesquisa social foi marca do Instituto de Pesquisa Social.

Quem sente uma responsabilidade teórica deve fazer frente, sem meios termos, às aporias da teoricidade e à insuficiência do simples empirismo; e o fato de se atirar alegremente nos braços da especulação só poderá servir para agravar a situação atual. Diante da investigação sociológica empírica, é tão necessário o conhecimento profundo dos seus resultados quanto a reflexão crítica sobre seus princípios (HORKHEIMER; ADORNO, [1956] 1978HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Sociologia e investigação social empírica. In: HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, [1956], 1978., p. 122).

Essa perspectiva metodológica gerou o que hoje se apresenta como elementos orientadores de uma ciência social crítica, resumida em quatro princípios apresentados a seguir: (1) o conhecimento é construído historicamente, (2) criticamente, (3) dialeticamente e (4) hermeneuticamente (HORKHEIMER, 2002HORKHEIMER, M. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2002.).

Na proposta metodológica da Dialética negativa, a pesquisa e o estudo das condições econômicas e institucionais que estruturam a produção e o consumo dos bens culturais é uma parte essencial do entendimento do fenômeno. Essa é a ideia básica da Dialética negativa, de se confrontar o conceito pelo próprio conceito. Vejamos essa questão nas palavras de Rüdiger (2004, p. 205)RÜDIGER, F. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural: comunicação e teoria crítica da sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.:

No método dialético, parte-se do princípio de que os fenômenos não podem ser tratados como exemplo de algo que já existe como dado ou está dispensado de se revelar em seu próprio movimento. A abordagem exige que a coisa seja explicada através de sua gênese e individualização. O sujeito, por exemplo, é um resultado: constitui-se através de um processo contingente de autoposição em condições sociais determinadas (RÜDIGER, 2004RÜDIGER, F. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural: comunicação e teoria crítica da sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004., p. 205).

O método imanente, cerne da Dialética negativa, significa a compreensão da constituição dos fenômenos sociais, mas sem buscar sua identificação com as categorias ideais da totalidade. Diz Adorno: “[o método imanente] nomeia aquilo que expressa a consistência e a inconsistência dessas formações em si, em face da constituição do estado de coisas existente” (ADORNO, 2015ADORNO, T. W. Para a metacrítica da teoria do conhecimento. São Paulo: Unesp, 2015., p. 40). Dessa forma, a análise dos fenômenos culturais (dentre eles a educação) seria motivada pelo desejo de se revelar a manutenção de certas relações de poder e articulação dos problemas sociais: “uma ciência social crítica preocupada em pesquisar a fortuna da experiência cultural humana na era da técnica” (RÜDIGER, 2004RÜDIGER, F. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural: comunicação e teoria crítica da sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004., p. 238).

Rüdiger (2004, p. 238)RÜDIGER, F. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural: comunicação e teoria crítica da sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. contribui imensamente para essa matéria, ao priorizar os princípios metodológicos contidos na obra de Adorno. São eles:

  1. A perspectiva da interpretação pensa a estrutura e função da cultura mercantil no contexto do processo histórico global da sociedade;

  2. A hipótese básica é a de que essa cultura produz e reproduz em termos econômicos, técnicos e espirituais as categorias e contradições sociais dominantes;

  3. Os fenômenos da indústria cultural são tratados como fatos sociais que devem ser julgados de acordo com certos critérios de valor imanentes e que, assim, devem ser descobertos através de uma reflexão histórica;

  4. A crítica considera o homem como sujeito e situa a indústria cultural em relação aos mecanismos existentes entre a estrutura social, as formas de consciência e o desenvolvimento psíquico do indivíduo;

  5. Finalmente, sustenta-se que os estímulos produzidos na esfera da indústria cultural “são um fenômeno histórico, e que a relação entre esses estímulos e a resposta [do público] é pré-formada e pré-estruturada pelo destino histórico do estímulo tanto quanto do sujeito que a ele responde” (LOWENTHAL apud RÜDIGER, 2004RÜDIGER, F. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural: comunicação e teoria crítica da sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004., p. 241).

Um princípio importante contido na proposta metodológica de Dialética negativa é a primazia do objeto sobre a ideia, considerando-se o que já foi contextualizado neste artigo sobre objeto e ideia. Diz Adorno, que quem exige uma análise hermenêutica é o próprio material investigado, por meio do processo de “criação da coisa”. É esse o momento crítico da criação de uma realidade e que deve ser analisado. Essa potência autorreflexiva não se cola ao objeto, identificando-se totalmente a ele. Porém, ela também não nega o próprio objeto. A essência metodológica é conseguir remeter o material empírico presente a contextos sociais mais amplos e a processos históricos mais abrangentes.

Essa perspectiva adorniana sobre a realidade apresenta-nos uma nova forma de interseção entre dois polos do pensamento filosófico: a primazia do real e a primazia da ideia. Pela Dialética negativa percebemos que a verdade está contida na inter-relação crítica entre esses dois polos. É na conexão contraditória entre eles e na sua resultante que reside o sentido da realidade. Esse sentido carrega em si todas as potencialidades contraditórias das outras inúmeras formas de sentido. Os silenciamentos de uns, o confronto com outros e a predominância de poucos é o objeto de desvendamento da crítica, que resgatará todas essas relações e analisará historicamente as razões pelas quais determinadas versões da realidade se cristalizaram como real.

Considerações finais

A compreensão aprofundada do projeto empírico próprio ao IPS foi nosso objetivo neste artigo. Pensamos que essa empreitada abre campo para o estudo adequado dos propósitos sociológicos dos filósofos frankfurtianos, em especial Adorno.

Uma vez compreendidas a fundo as estratégias metodológicas utilizadas nas análises críticas sobre a sociedade, torna-se possível o desenho de metodologias de pesquisas quantitativas e qualitativas na área de estudos organizacionais. O desenvolvimento de pesquisas empíricas nessa área auxiliará na compreensão de diversos fenômenos ainda pouco desenvolvidos, dada uma dificuldade encontrada por diversos pesquisadores no desenvolvimento de pesquisa com dados primários ou secundários.

Buscamos, portanto, trazer à tona a imanência entre teoria crítica e pesquisa empírica e desvelar a polêmica silenciosa de menosprezo por pesquisas empíricas com o aporte das teorias frankfurtianas existente ainda hoje na área de administração. Uma vez posta à mesa, criam-se as condições para a reflexão crítica e para o “resgate do instante de realização da filosofia” (ADORNO, 2009ADORNO, T. W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., p. 11).

Propusemo-nos a isso ao resgatarmos o projeto empírico da teoria crítica, em especial em Adorno. Buscamos, com esse esforço, contribuir para a área de estudos organizacionais por meio da definição de que as pesquisas empíricas muito comuns a esse campo podem sim ser baseadas nos princípios teóricos desenvolvidos por Adorno e seus colegas do Instituto de Pesquisa Social.

Estamos cientes das limitações deste estudo. No espaço definido para a redação de um artigo científico é improvável que pudéssemos tratar todos os aspectos relativos ao tema aqui exposto de maneira aprofundada, tal como aparece nos estudos realizados pelos frankfurtianos e Adorno sobre o tema da pesquisa empírica. No entanto, acreditamos ter contribuído para o desvelamento de uma faceta do IPS, pouquíssimo explorada na área de estudos organizacionais.

  • 1
    Guttman: é um exemplo de escala chamada de “cumulativa” – nela, os itens da escala se relacionam entre si, de modo que a resposta favorável a um item deve ter resposta que seja coerente com os itens anteriores. Foi elaborada de modo a se poder inferir nas respostas parciais do resultado final da escala.Thurnstone: é um exemplo de escala chamada de “diferencial” – nela, a posição dos itens tem uma ordenação que é previamente determinada, que leva em conta as medianas de atribuição de significado dos itens. A mediana do item assinalado é interpretada como sendo a indicação de sua posição numa escala de atitude favorável-desfavorável com relação ao objeto.Likert: é um exemplo de escala chamada de “somatória” – nela os indivíduos respondem a cada item, especificando o grau de acordo ou desacordo com o item apresentado. Tem como finalidade uma tentativa de quantificação de uma posição de acordo ou desacordo.
  • 2
    Adorno não estabelece uma prioridade hierárquica entre sujeito de objeto. Sua perspectiva materialista não dogmática refere-se ao fato de a ideia ser objeto. Trata-se, portanto, de mais sujeito no processo dialético.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2015
  • Aceito
    11 Out 2016
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