Acessibilidade / Reportar erro

Recepções do ideário marxista pelo pensamento administrativo: da oposição indireta à assimilação relativa

The receptions of marxists ideas by the administrative thought: from an indirect opposition to a relative assimilation

Resumo

O objetivo do presente estudo é explicitar de maneira crítica as formas pelas quais o ideário marxista se apresentou para Taylor, Mayo, Drucker, Fayol e Etzioni, importantes expoentes do pensamento administrativo, entendendo este último como formação ideal particular e expressão teórica dos interesses da classe dominante. Metodologicamente, a pesquisa foi desenvolvida a partir da leitura dedicada dos materiais mais importantes dos autores, limitando a abrangência aos anos de 1911 a 1969. Adotou-se também uma delimitação temporal do pensamento administrativo ao capitalismo, distinguiu-se os marxismos e seus traços e utilizou-se procedimentos mais detalhados para especificação das obras visitadas dos autores. A pesquisa mostra que as formas de recepção foram a de recusa indireta, de recusa direta, de aceite indireto e de assimilação relativa. Chama a atenção o fato de que não persiste apenas o movimento de oposição pelo pensamento administrativo em relação ao ideário marxista, mas surge também esforço de assimilação de elementos teóricos importantes. A pesquisa mostra também que mesmo essas assimilações, assim como as formas de oposição direta, apresentam problemas na apreensão precisa daquele ideário, denotando contato por meio de suas formas distorcidas.

Palavras-chave
Marxismo; Pensamento administrativo; Relações de classe

Abstract

This study aims at describing in a critical manner the forms, which assumes the reception of Marxist thinking by the exponents of administrative thought (Taylor, Mayo, Drucker, Fayol and Etzioni). We understand the administrative thought as a particular ideal formation and theoretical expression of interests of ruler classes. Methodologically, the research was conducted through dedicated reading of author’s most important texts, limiting its scope from 1911 until 1969. We adopted also a temporal delimitation of administrative thought to the capitalism, a differentiation of Marxism’s paths, besides the detailed procedures to a specification of visited texts. The research shows that the forms of reception were four: indirect opposition, direct opposition, indirect acceptance and relative assimilation. It is important the fact that there is not only a movement of opposition inner the administrative thought, but appears also an effort of assimilation of relevant theoretical elements. The research shows also that even this assimilation as the forms of direct opposition have both difficulties to construct a precise understanding of such Marxist thinking. It can indicate that the contact between such thinking and the administrative thought possibly was made through distorted forms of the first.

Keywords
Marxism; Administrative thought; Class relation

Introdução: relações de classe e produção das ideias

Uma constatação básica que se ergue a partir do estudo em profundidade daqueles autores, reconhecidamente constitutivos do que se convencionou chamar de teoria geral da administração, não é outra senão aquela que insinua haver maior complexidade e desenvolvimento do que os livros didáticos foram capazes, até agora, de expressar. Se essa dificuldade é patente, o que dizer dos possíveis contatos desses autores com formas de pensamento que frequentemente surgem como opostas às premissas básicas desse corpo teórico da administração?

O objetivo do presente estudo é explicitar de maneira crítica as formas pelas quais o ideário marxista se apresentou para importantes autores daquilo que aqui denominaremos pensamento administrativo. Apreender as formas de recepção do marxismo para um tipo de elaboração teórica alinhada aos interesses econômicos dominantes parece ser, à primeira vista, algo desnecessário, já que a administração e o marxismo não estabelecem qualquer relação proveitosa, a não ser a oposição. Mas uma compreensão mais ampla do pensamento administrativo não estaria nunca bem direcionada se abandonasse ao inapropriado esquecimento as influências de um ideário que deixou profundas marcas nos séculos XIX, XX e também no século corrente. Contrariamente às expectativas, no entanto, as recepções – como pretendemos mostrar – não são sempre diretas e não são também sempre em oposição. O propósito é mostrar criticamente tais formas de recepção, seus limites e alcances. Particularmente interessante é apreender que o ponto de vista mais desenvolvido do pensamento administrativo, isto é, aquele que consegue capturar mais aproximadamente as contradições efetivas por meio das quais a realidade mesma opera, é precisamente aquele que assumiu uma recepção mais direta e amistosa com relação ao ideário marxista, mas não sem limites.

Com isso não queremos propor uma classificação exaustiva, o que também não seria possível. Os grandes traços caracterizadores de tendências no pensamento administrativo são úteis para sustentar o argumento de que as formas de recepção variam da oposição direta a um tipo de assimilação não necessariamente plena ou autêntica do ideário marxista. Particularmente, no presente trabalho, concentraremos a atenção sobre a elaboração de Taylor, Fayol, Mayo, Drucker e Etzioni, abrangendo o período de 1911 a 1969.

A análise do material estará calcada na apreensão dos nexos não mecânicos entre as posições sociais dos autores no interior das relações de classe, como homens práticos e como intelectuais, sobretudo na elaboração das ideias que analisamos. Queremos, com isso, dizer que a formação ideal (ou, com menor precisão: elaboração teórica) não é imune aos interesses sociais, sobretudo em se tratando de uma forma de pensamento que se ergue com vínculos profundos com as necessidades da produção capitalista e com os embates entre capital e trabalho, como é o caso do pensamento administrativo (TRAGTENBERG, 1974TRAGTENBERG, M. Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática, 1974.; MOTTA, 2001MOTTA, F. C. P. Teoria das organizações: evolução e crítica. 2. ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001.; FARIA, 2004FARIA, J. H. Economia política do poder. Curitiba: Juará, 2004.; GURGEL; JUSTEN, 2015GURGEL, C.; JUSTEN, A. Teorias organizacionais e materialismo histórico. Organizações & Sociedade, Salvador, v. 22, n. 73, p. 199-221, abr./jun. 2015.). Na verdade, a vida material é condição real para toda e qualquer forma de pensamento; ela é a pressuposição não passiva das formas de pensamento. O estágio da luta de classes, assim como os interesses materiais daí provenientes, está envolvido como condição ativa e forma o pano de fundo para as constatações dos problemas e para as soluções práticas evocadas pelos autores investigados do pensamento administrativo. Com efeito, tal pensamento se torna incompreensível se analisado em desconexão com os interesses e classes sociais no capitalismo.

Nessa direção, seguimos de perto a determinação de Marx e Engels (2007)MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. de que as ideias dominantes são também as ideias das classes dominantes. Essas classes não dominam apenas os meios de produção material, mas também os meios de produção das ideias, das teorias. Essas “[...] ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação” (MARX; ENGELS, 2007MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 47).

Na própria classe dominante opera uma divisão do trabalho em que uma parte se encarrega de elementos diretamente práticos da produção (homens de negócios, executivos), e outra parte que se constitui dos “pensadores dessa classe, como seus ideólogos ativos, criadores de conceitos” (MARX; ENGELS, 2007MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 48). Compreensivelmente, essa divisão possui limites em determinados casos concretos, uma vez que podemos encontrar homens profundamente práticos (sobretudo Fayol) espelhando idealmente as necessidades da produção capitalista: em um só homem coexistem o homem prático e o representante teórico dos interesses da classe. Em outros casos (Mayo e Etzioni, como professores universitários), essa divisão se marca com bastante força. E ainda em outros (Taylor e Drucker) podemos encontrar um momento mais intermediário, por conta de suas atividades específicas como “teóricos”, difusores, e como profissionais que prestaram serviços de consultoria a empresas. As formas de recepção no interior do pensamento administrativo, com relação a um ideário marxista, estão certamente implicadas com essas questões das relações de classe e a dominação dos meios de produção das ideias (que tem na produção material sua condição real). Isso é verdade, sobretudo pela natureza da crítica que aquele ideário marxista apresenta às relações sociais de produção capitalista, ideário este como expressão teórica dos interesses das classes dominadas. Trata-se de uma crítica que sugere indiretamente os vínculos profundos e complexos (material e idealmente) entre o pensamento administrativo e as classes dominantes.

É preciso esclarecer que não se trata de determinismo econômico, nem algo linear e mecânico, mas do reconhecimento da operação complexa do nexo entre a posição social e a formação ideal no esforço de teorização da realidade, em que estão implicadas neste último aspecto (da teorização) as constatações e as medidas práticas de atuação sobre os problemas identificados. Em outros termos, a produção das ideias interfere por caminhos diversos na vida social. Esse não determinismo ficará claro quando forem observados nossos principais achados, segundo os quais podemos encontrar algum emprego de terminologia e de constatações que contrariam, ainda que em parte, os interesses mais imediatos das classes às quais pertencem tais autores. Veremos que isso sugere que não se trata de reduzir o pensamento administrativo à falsa consciência, isto é, a uma apreensão distorcida da realidade (cf. nota de rodapé 1, adiante). Além do mais, não se pode deixar de ter em conta a reciprocidade entre as condições reais e a formação ideal, de modo que esta reflui sobre aquelas de formas muito complexas. Tenhamos em mente, como exemplo, os efeitos do taylorismo no território estadunidense em meio às relações conflituosas entre capital e trabalho (levando a uma investigação por parte da comissão da House of Representatives, cf. COPLEY, 1923COPLEY, F. B. Frederick W. Taylor: father of scientific management. [s.l.]: Harper and Brothers, 1923. v. 1., p. 9). Ou ainda, para além desse país, os efeitos ao fornecer indicações para os ganhos de produtividade concomitantemente à diminuição dos custos totais com a força de trabalho, indicações as quais serviram de guia para inúmeras práticas nas unidades produtivas singulares – expressando a tendência de diminuição do capital variável na composição orgânica do capital. Para um segundo e último exemplo, basta recordar dos mais de 50 livros publicados por Drucker e que são considerados, entre os homens práticos e também teóricos, imprescindíveis para qualquer um que se aventure no chamado “mundo corporativo”. Não por menos, carrega o “guru” como adjetivação: uma identificação necessariamente religiosa para os dogmas que sustenta.

Com efeito, para apresentar as formas por meio das quais o ideário marxista surge no interior do pensamento administrativo, dividimos o presente estudo em três partes além desta introdução. Na parte seguinte, desenvolvemos em detalhes os problemas metodológicos envolvidos para a delimitação do ideário marxista e do pensamento administrativo, além de elementos que orientam a exposição das formas de recepção. Depois, apresentamos os grandes traços das formas de recepção. Por fim, há as considerações finais do presente estudo.

Questão de método

Existem pelo menos três grandes problemas de ordem metodológica que precisam ser explicitados: (1) o aqui chamado pensamento administrativo; (2) marxismo, marxismos e seus traços; e (3) os procedimentos mais detalhados para especificação das obras visitadas.

(1) O primeiro ponto se resume à delimitação da natureza e abrangência. Em termos de abrangência, não existe uma classificação exaustiva para delimitar quais autores podem ou não ser compreendidos como ligados a um pensamento administrativo. Mesmo que sua natureza possa ser mais bem determinada, como faremos em breve, a abrangência é algo difícil de estabelecer, uma vez que equivaleria à construção de cercas imaginárias e arbitrárias. Em um corte temporal, tomemos como exemplo o texto Econômico, de Xenofonte (1999)XENOFONTE. Econômico. São Paulo: Martins Fontes, 1999., ao apresentar o diálogo de Sócrates na busca pela conduta exemplar do homem “belo e bom” a ser seguida na Ática antiga; compare-se à prática corrente nos negócios atuais de imitação entre concorrentes, recomendada como princípio por uma vasta coleção de textos gerenciais. Nesse caso, o princípio facilmente cairia como componente de um pensamento administrativo, mas Xenofonte, que parece sugerir algo semelhante na Ática antiga, não. Para efeito de abrangência, portanto, consideramos o pensamento administrativo como um desenvolvimento mais moderno, ligado fundamentalmente ao desenvolvimento do capitalismo. Trata-se, pois, de uma formação ideal particular correspondente a um estágio desse desenvolvimento.

Por outro lado, é comum também alguma confusão entre administração, economia, sociologia etc. Os currículos dos cursos de administração tradicionalmente trazem a presença de uma “sociologia aplicada à administração”, por exemplo. De alguma forma, esse cenário, sem mencionar as deturpações comuns aos livros didáticos, contribui para a atribuição de determinadas características aos autores da sociologia, mas por emanação das necessidades práticas dadas pela aplicação. Max Weber (1999)WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: UnB, 1999. v. 2. e sua sociologia da dominação, por exemplo, foram convertidos em “pai” da burocracia e prescrição administrativa em busca da eficiência, respectivamente. Mas o simples fato de Weber ter descrito em seus termos a burocratização moderna não o torna diretamente um autor do pensamento administrativo, embora este tenha se apropriado largamente de algumas de suas indicações mais famosas – não sem distorções. Para um critério mais limitado, determinamos uma proximidade mais clara com as necessidades práticas da produção de mercadorias como elemento demarcador do pensamento administrativo, abstraindo, portanto, outras possibilidades.

Por esses dois elementos, temos então a proximidade com as necessidades práticas da produção capitalista como critério de delimitação da abrangência do pensamento administrativo. Temos consciência das problemáticas dessa delimitação, ao abstrairmos a dimensão do Estado e outras afinidades mais amplas. Porém, trata-se de um corte metodológico para especificar a abrangência aqui considerada.

A polêmica maior reside na natureza do pensamento administrativo. Não basta designar como algo ligado às necessidades práticas da produção capitalista. A mecânica e a química, por exemplo, também estão diretamente ligadas a necessidades dessa produção, e nem por isso teriam o mesmo estatuto que o pensamento administrativo. Uma distinção importante é que, na qualidade de expressão das ciências do homem sobre o homem, o pensamento administrativo se constitui inicialmente a partir da necessidade de extração da maior produtividade por unidade de trabalho que marca o capitalismo (WOOD, 2001WOOD, E. As origens do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.), isto é, como expressão teórica dessa necessidade, e se desenvolve depois, mantendo isso ao fundo, instruindo a manipulabilidade de aspectos objetivos e subjetivos no ímpeto de obrigar os trabalhadores a se venderem voluntariamente, parafraseando Marx (2013)MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1.. Em outros termos, participa na atuação sobre as consciências durante a formação, por meio de muitas mediações, de uma classe trabalhadora que apreende as “leis econômicas” como “leis da natureza”. O pensamento administrativo, portanto, não apenas tem por condição a luta de classes como atua diretamente em seu interior. Na verdade, é possível dizer que tal elaboração tem por condição os antagonismos de classe. Tomadas as considerações feitas na introdução deste trabalho, é nesse sentido que podemos apreender tal pensamento como expressão teórica dos interesses materiais mais profundamente ligados aos proprietários dos meios de produção, ainda que superficialmente e marginalmente apresentem alguma preocupação com a classe trabalhadora em um sincretismo historicamente forjado a partir das lutas intestinas entre capital e trabalho, sobretudo a partir das revoluções do século XIX na Europa e suas ressonâncias em todo o século XX e, por que não, também no século XXI. Dito de outro modo, as concessões econômicas e políticas aos trabalhadores foram uma necessidade da própria reprodução do modo de produção capitalista, e isso, de alguma forma, se expressa também no pensamento administrativo, como melhorias das condições de trabalho, diminuição das insatisfações etc. Trata-se, pois, da forma teórica do interesse prático do capital.

Essa alternativa de compreensão é mais adequada do que uma definição do pensamento administrativo como ideologia1 1 Tragtenberg (1974, grifo do autor) considera as “teorias da administração” “[...] ideológicas como falsa consciência da realidade” (p. 16). Explicou que “a teoria da administração é ideológica, na medida em que traz em si a ambiguidade básica do processo ideológico, que consiste no seguinte: vincula-se ela às determinações sociais reais, enquanto técnica (de trabalho industrial, administrativo, comercial) por mediação do trabalho; e afasta-se dessas determinações sociais reais, compondo-se num universo sistemático organizado, refletindo deformadamente o real, enquanto ideologia ” (p. 89). Realizamos nossa discussão tentando capturar o ponto máximo de desenvolvimento do pensamento administrativo na captura das contradições sociais e, por isso, não seria coerente ter como ponto de partida analítico a consideração desse pensamento como falsa consciência da realidade, como uma apreensão deformada da realidade. Ao contrário, nossa pesquisa mostra, assumindo que Tragtenberg está correto em destacar as “determinações sociais reais”, que essa “deformação do real” como produto de uma “falsa consciência” não resume bem o pensamento administrativo. Além do mais, é preciso destacar que o pensamento administrativo não é monolítico, um “universo sistemático organizado”. Trata-se do reflexo das determinações sociais, mas muito ligado aos interesses sociais. Nesse sentido, não abordamos o pensamento administrativo pelas trilhas das discussões sobre “ideologia”. As discussões são inúmeras e possuem muitas dificuldades (p. ex. KONDER, 2002; MÉSZÁROS, 1993; 2004; VAISMAN, 1996; 2010; ZIZEK, 1996). Então, deliberadamente optamos por desenvolver – como a introdução já revela ao seguirmos Marx de A ideologia alemã – a questão das ideias dominantes e as ideias adversárias ligadas às diferentes classes sociais sem prejuízo para a análise. Como mostramos na introdução, trata-se de uma apreensão, inclusive, da divisão do trabalho no interior das classes dominantes e as variações possíveis. Mas uma discussão inteiramente dedicada ao pensamento administrativo e aos problemas trazidos pelo debate sobre a ideologia requer um espaço exclusivo, o que inclui uma análise da compreensão que o próprio Tragtenberg faz sobre a ideologia. Trata-se de algo ainda em desenvolvimento, cujos traços iniciais já foram apontados por outros estudos (cf. PAÇO CUNHA; GUEDES, 2015). , conforme feita por Tragtenberg (1974)TRAGTENBERG, M. Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática, 1974., porque não se trata apenas de uma deformação da realidade ou falsa consciência, nos termos do autor, como adiantamos na introdução, mas um complexo movimento da expressão ideal marcado por interesses sociais de ocultamento no processo de explicitação e de explicitação no processo de ocultamento dos nexos e problemas reais, da efetividade mesma. Em outras palavras, a própria formação ideal aqui em pauta omite e expõe simultaneamente, dentro, porém, das condições de possibilidade objetivamente postas pelas condicionantes sociais dessa formação. Somente uma análise crítica pode revelar seus alcances, seus problemas imanentes, suas verdadeiras posições frente ao complexo de problemas que o mundo efetivo apresenta – o que inclui formas teóricas externas ou mesmo adversárias como parece ser o caso, em parte, do marxismo. Esse aspecto é verdadeiro, considerando as nossas presentes finalidades. Mas tomado o uso prático desse pensamento (instrução e doutrinação nas escolas de administração, guia para ação dos homens de negócio etc.), nossa forma de apreensão não seria suficiente. Por isso, para as nossas finalidades, basta a apreensão do pensamento administrativo como uma formação ideal de interesses materiais determinados. Dito de outra maneira, trata-se da transposição da finalidade do capital para a forma teórica: expressão ideal de interesses materiais dominantes sem necessariamente formar uma unidade intelectual linear, uma vez que comporta diferenças em seu interior, desacordos e discussões duradouras, mesmo entre os homens práticos e seus representantes teóricos nas escolas de negócio.

(2) Do ponto de vista operativo, o segundo problema é mais expressivo. Quais critérios poderiam funcionar para auxiliar na identificação das recepções ao ideário marxista?

Antes de mais nada, os traços podem servir de auxílio, porém são adversos. Os traços são importantes porque é ingênuo e imprudente esperar um tratamento ex professo pelo pensamento administrativo de questões advindas do marxismo. A adversidade, adicionalmente, se dá por não haver apenas um “marxismo”, mas variadas formas mais ou menos alinhadas que dificultam uma delimitação precisa. Como sinaliza Netto (2006, p. 8-9)NETTO, J. P. O que é marxismo. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção primeiros passos.), “não existe algo como ‘o marxismo’”, preferindo “a tese de que há marxismos, vertentes diferenciadas e alternativas de uma já larga tradição teórico-política”. Os traços, portanto, podem ser muito variados, considerando principalmente que a presença das ideias de Marx desde o final do século XIX e início do século XX marca as lutas sociais e políticas na Europa e, logo em seguida, atravessa o Atlântico. Como nos informa Konder (1992, p. 63)KONDER, L. O futuro da filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992., “trata-se, porém, de um Marx ao qual se tem acesso quase que exclusivamente através do ‘marxismo’ quer dizer, de uma doutrina organizada em função da necessidade de legitimar um movimento político comprometido com estruturas partidárias cada vez mais pesadas”. Em termos gerais, portanto, é possível determinar que o “marxismo” “foi uma construção teórica posterior à morte de Marx” (KONDER, 1992KONDER, L. O futuro da filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992., p. 75). A variedade de formas pelas quais se propagaram as ideias centrais de Marx (por isso marxianas) por seus colaboradores e adversários criou condições para modificações, reduções e deformações (daí marxismos) desde sua gênese, de tal modo que é prudente esperar que no pensamento administrativo ressoem os efeitos da propagação. De todo modo, a elaboração de Marx (2013)MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1. sobre a lógica do capital legou um conjunto de lineamentos fundamentais sobre os elementos determinantes da produção do valor e de suas consequências no mundo social. Tais lineamentos tiveram como ponto de arranque a realidade mesma, mas conjuntamente a uma crítica da economia política de seu tempo, enquanto expressão teórica dos interesses das classes proprietárias. A crítica, por seu lado, pôde se desenvolver com a elevação da luta de classes na Europa dos séculos XVIII e XIX (primeiro com os socialistas utópicos, depois com Marx e Engels e também com o anarquismo). E é com Marx que a crítica atinge seu grau mais elevado de desenvolvimento, e “na medida em que tal crítica representa uma classe específica, ela só pode representar a classe cuja missão histórica é o revolucionamento do modo de produção capitalista e a abolição final das classes: o proletariado” (MARX, 2013MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1., p. 87), isto é, aqueles que não podem viver sem vender sua força de trabalho – algo que, portanto, está para além da mera identificação dos trabalhadores manuais na indústria.

Foi-nos importante, portanto, a apreensão de traços diretamente ligados às ideias centrais de Marx, como também daqueles traços modificados, distorcidos, etc., particularmente comuns no desenrolar dos séculos XIX e XX. Isso certamente ficará mais evidenciado no tratamento dos autores específicos, os quais mais adiante nos servirão de exemplificação das formas de recepção do marxismo no pensamento administrativo. É mais importante, pois, a qualidade da recepção em duas direções fundamentais – e não uma exaustiva avaliação da precisão das avaliações por parte dos autores do pensamento administrativo nessa recepção: i) se a recepção é direta ou indireta, isto é, por meio de citação clara e tratamento imediato das ideias de Marx ou dos “marxismos” ou, por outro lado, de reverberações mais distantes, ecos daquelas ideias, incluindo as distorções e, por outro lado, as bandeiras comuns ao movimento prático de reivindicação trabalhista; e ii) se de recusa ou de aceite que podem figurar como uma clara reticência, crítica e oposição (o que seria mais logicamente esperado do pensamento aqui investigado) ou clara apreensão e assimilação de determinados aspectos. Esse recurso dicotômico (direta/indireta e recusa/aceitação) não segue necessariamente uma cronologia das obras dos autores do pensamento administrativo e não é nada além de um procedimento que auxilie na exposição (e não na investigação) da qualidade da recepção e, portanto, comporta graus relativos entre os extremos. Em termos sintéticos, essa classificação simplificada serve à explicitação dos resultados da pesquisa na forma presente de artigo científico, mas não guiou a investigação propriamente dita. Sobre esse último aspecto, é preciso dizer outros detalhes importantes.

(3) O terceiro problema diz respeito precisamente a esses detalhes aludidos. A investigação se deu basicamente pela leitura de variados autores alinhados ao pensamento administrativo, sobretudo do final do século XIX e do transcorrer do século seguinte. A atenção recaiu centralmente sobre aqueles autores que gozam de reputação histórica e ocupam lugar de destaque naquele pensamento. Tentamos cobrir uma lista considerável de autores, mas terminamos, por uma questão de conveniência, concentrando-nos naqueles que mais frequentemente aparecem citados nos livros didáticos daquilo que se convencionou chamar de Teoria geral da administração. Buscamos identificar os traços das recepções, considerando, ainda que brevemente, os momentos históricos nos quais tais autores chegaram aos seus achados. A leitura dos textos promoveu constatações acerca daqueles escritos mais emblemáticos e consistentes para a problemática em pauta. Terminamos por deixar para outra oportunidade autores como Barnard, Follett, Sheldon, Katz e Kahn etc. Isso nos permitiu maior atenção aos textos de Taylor (Princípios de administração científica, 1911); Fayol (Administração industrial e geral, 1916); Mayo (Problemas humanos de uma civilização industrial, 1933); Drucker (The concept of corporation, 1946, o Prefácio, de 1969, e a nova edição de The end of economic man, originalmente publicado em 1939); e Etzioni (Organizações modernas, 1964), cobrindo um período entre 1911 e 1969, embora nossa investigação tenha começado por textos do início do século XX (Shop management, 1903, de Taylor, e Primer of scientific management, 1912, de Gilbreth) e alcançado publicações dos anos de 1970 e 1980 (In search of excellence, de Peter e Waterman, e The M-Form Society, de Ouchi). Optamos, no entanto, por restringir a exposição ao primeiro período indicado (1911-1969), por conter o espectro da recepção ao ideário marxista que varia da recusa indireta à recepção direta de assimilação, não sem modificações, como veremos.

As formas de recepção

Antes de apresentarmos os elementos que explicitam as formas de recepção nos tópicos subsequentes, cada tópico contém alguns poucos, sumários e aproximados apontamentos sobre os possíveis pontos de contato entre os autores ora investigados e o ideário marxista. Nosso tom especulativo nesses apontamentos se deve ao fato de que cada autor exigiria uma análise mais profunda e uma investigação histórica impossíveis de serem realizadas no atual estágio da pesquisa e expostas nos marcos de um único artigo. As dificuldades seriam muitas, uma vez que seriam exigidos estudos biográficos extensos. No entanto, não podem deixar de figurar alguns enlaces que ajudariam a explicar, sem reduzir a isso, a qualidade da recepção de cada autor com relação ao ideário marxista, embora nosso alvo central sejam os textos elaborados por esses autores do pensamento administrativo.

Nesse último sentido, no e antes do período 1911-69, o ideário marxista circulou de formas muito distintas. Chegou em solo estadunidense por diferentes vias, principalmente pelos artigos de Marx publicados no New York Tribune (1852-61), jornais comunistas existentes no final do século XIX, viajantes americanos que traziam informações do velho continente e também por imigrantes que cruzaram o Atlântico em busca da “terra da oportunidade e liberdade”, nos diferentes fluxos migratórios do século XIX e XX. Como dito antes, esse ideário é forjado por inúmeras influências e correntes, cuja identificação oscila da mera terminologia à indicação direta das ideias de Marx ou dos marxismos.

Recepção indireta de recusa (Taylor)

O norte-americano Taylor2 2 Frederick W. Taylor. Disponível em: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/584820/Frederick-W-Taylor>. Acesso em: 19 ago. 2014. teve longa experiência com o chão de fábrica e contato direto com operários. A partir daquilo que seu texto (Princípios de administração científica) revela indiretamente, parece ter tido contato por ecos muito distantes das ideias de Marx e do marxismo já diluídas no movimento dos trabalhadores americanos (principalmente sindicalistas e filantropos) e por notícias da situação industrial inglesa, do agravo da luta de classes naquele território, à qual se atribuía a perda de produtividade daquele país.

Como aludido na introdução, Taylor constitui um dos momentos intermediários na divisão do trabalho na classe dominante. Atuou, por um lado, na prática gerencial, coordenando a força de trabalho, e, por outro, divulgando essas experiências na forma escrita e em pronunciamentos, o que constitui seu momento como representante teórico. É verdade que sua obra aqui examinada, Princípios de administração científica, é muito mais um manual técnico do que um tratado sobre a sociedade, mas existem nele importantes delineamentos das relações sociais em determinado estágio de desenvolvimento do capitalismo, que permitem a apreensão da forma pela qual a recepção do ideário marxista aparece em seus escritos.

A elaboração do autor pressupõe inteiramente a relação conflitiva entre capital e trabalho. O autor evidencia a sua preocupação com as animosidades entre “empregadores e empregados” – para usar sua terminologia –, destacando que os sindicatos ocupam uma posição de vilania, como podemos acompanhar nas seguintes passagens:

E não há dúvida de que, em todo o mundo industrial, grande parte das organizações de empregadores, bem como de empregados, procura a guerra, antes que a paz, e talvez a maioria, de ambas as partes, não acredite que seja possível manter relações mútuas, de modo que seus interesses se tornem idênticos. [...] a administração científica tem, por seus fundamentos, a certeza de que os verdadeiros interesses de ambos são um único e mesmo (TAYLOR, 1995TAYLOR, F. W. Princípios de administração científica. São Paulo: Atlas, 1995., p. 24-25).

Em consequência dessa ideia errônea [de que é contra os interesses dos trabalhadores “produzir diariamente tanto quanto possível”], grande proporção de operários de ambos os países [EUA e Inglaterra] trabalha propositadamente devagar, a fim de reduzir a produção. Quase todos os sindicatos organizam ou estão organizando normas, destinadas a diminuir a produção dos operários; os homens que têm grande influência nas classes obreiras, os líderes trabalhistas, bem como pessoas com sentimentos filantrópicos que os ajudam, propagam diariamente este erro, afirmando que os operários trabalham demais (TAYLOR, 1995TAYLOR, F. W. Princípios de administração científica. São Paulo: Atlas, 1995., p. 29).

Nessas curtas passagens vemos muitas questões. Taylor atribui o existente conflito entre “empregadores e empregados” a uma má compreensão, a uma crença equivocada, a uma “ideia errônea”. Não hesita em reprimir a sistemática resistência dos trabalhadores aos imperativos da produção, isto é, a diminuição deliberada da produtividade como expressão da luta intestina entre capital e trabalho.

Na mesma direção, recusa o argumento de que os trabalhadores trabalhavam demasiadamente, argumento que expressa de modo desajeitado o problema da exploração do trabalho, da produção do mais-valor absoluto e relativo (MARX, 2013MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1., p. 255ss; 387ss; 577ss). A exploração do trabalho marxianamente compreendida, em síntese, pelo fato da necessidade prática do capitalismo em que o trabalho cria mais riqueza do que o valor da força de trabalho, assumiu formas bastante diversas nas lutas encaminhadas pelos “líderes trabalhistas” a quem Taylor se refere. O que o movimento trabalhista parece ter compreendido muito bem, no entanto, vai na direção oposta a Taylor. A realidade mesma confirma o nexo existente entre o aumento da produtividade do trabalho e a diminuição do valor da força de trabalho, porque o “aumento na produtividade do trabalho faz cair o valor da força de trabalho e, com isso, aumenta o mais-valor, assim como, em sentido inverso, a diminuição da produtividade eleva o valor da força de trabalho e reduz o mais-valor” (MARX, 2013MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1., p. 588).

É interessante destacar uma vez mais que a força das coisas reais se impõe contra os argumentos de Taylor. Os próprios resultados alcançados pelo autor estadunidense com a aplicação técnica de seus princípios contradizem seu argumento de que os trabalhadores são portadores da “ideia errônea”, segundo a qual o aumento da produtividade é contrário aos seus interesses nessa relação com o capital; frise-se: nessa relação com o capital. Ele mostra que com seu “novo sistema” o número de trabalhadores, em um caso específico, caiu de algo entre 400 e 600 para 140, mas a produtividade mais que triplicou e os custos totais com salários caíram em média de $ 575 (considerando 500 trabalhadores como média) para $ 263,2 (cf. TAYLOR, 1995TAYLOR, F. W. Princípios de administração científica. São Paulo: Atlas, 1995., p. 59).

Taylor ainda identifica, como vemos na passagem destacada anteriormente, que a efervescência dos conflitos se apresentava extremamente hostil aos interesses dominantes. Reagindo a esse efeito, apregoa que sua eliminação reside na tomada de consciência de que o conflito não tem razão de ser, dado que “empregadores e empregados” têm interesses confluentes. Como se vê, Taylor faz avaliações problemáticas da realidade e suas soluções práticas refletem isso, de modo que os resultados das medidas inclusive contrariam seus argumentos centrais.

É de se dizer que o ideário marxista volta-se para a organização dos trabalhadores, objetivando a superação do modo de produção capitalista, mas não é possível provar a partir dos materiais a nós disponíveis que os movimentos operários aos quais Taylor se refere são de orientação marxista. Contudo, a preocupação evidente com essas próprias organizações e com as relações entre classes mostra que o autor estadunidense enfrenta indiretamente problemáticas que assumem importância ao marxismo em suas diferentes versões. Isso se faz presente pela posição contrária de Taylor frente às duas questões aludidas: a exploração do trabalho e o antagonismo de classes manifesto na divergência de interesses. Tendo em mente que discutimos o problema da exploração, faz-se necessário salientar que a tese da identidade de interesses (entre capital e trabalho) não é exclusividade da elaboração teórica de tipo tayloriana, pois tem ressonâncias durante o século XIX e é constituinte, em geral, do ideário dominante. Conforme esclarece Engels, em um texto original de 1880:

A luta de classes entre o proletariado e a burguesia passou a ocupar o primeiro plano da história dos países europeus mais avançados, ao mesmo ritmo em que se desenvolvia neles, por um lado, a grande indústria, e por outro lado, a dominação política recém-conquistada da burguesia. Os fatos refutavam cada vez mais rotundamente as doutrinas burguesas da identidade de interesses entre o capital e o trabalho e da harmonia universal e do bem-estar geral das nações, como fruto da livre concorrência (ENGELS, 1980ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Global, 1980., p. 52).

Portanto, como afirma Engels, o desenvolvimento das forças produtivas propiciou, ao mesmo tempo, a deflagração do conflito de classes e o desenvolvimento de uma doutrina teórica da burguesia que, ainda embrionária, afirmava a harmonia e o bem-estar como decorrências lógicas da livre concorrência, afirmação essa sem compromisso algum com o movimento histórico real. Mais importante: essa mesma doutrina sustentava uma identidade de interesses que a própria realidade fornece provas do contrário. Nesse sentido, o pensamento administrativo, representado em um Taylor, tem pés firmes nesse tipo de ideário e o reproduz acriticamente, como pode ser constatado pela leitura dos Princípios de administração científica.

Tanto a constatação de Taylor quanto sua solução prática explicitam sua posição em meio à luta de classes: trata-se de uma expressão teórico-prática dos interesses materiais das classes dominantes. Isso se revela cabalmente quando reconhece que os bons encaminhamentos por ele conseguidos na aplicação de suas técnicas devem-se “em virtude de não ser filho de operário” e que, por esse motivo, “os donos da fábrica acreditavam que eu tomaria o interesse da empresa em maior conta que os outros trabalhadores e depositaram em mim mais confiança que nos mecânicos, seus subordinados” (TAYLOR, 1995TAYLOR, F. W. Princípios de administração científica. São Paulo: Atlas, 1995., p. 48). Ademais, explica que o fato de não “ter sido” nem “vivido com os trabalhadores” evitou que recebesse “pressão social” (TAYLOR, 1995TAYLOR, F. W. Princípios de administração científica. São Paulo: Atlas, 1995., p. 49), na direção oposta ao melhor interesse da empresa.

Constata-se, por fim, que não há no material de Taylor uma referência direta ao marxismo, a não ser indiretamente, por mediação dos movimentos trabalhistas e da luta sindical, que poderiam ter recebido influências do ideário marxista; isso, porém, é incerto. Além do mais, tudo indica que a existência do conflito entre “empregadores e empregados” é, para nosso autor, um erro de entendimento. Essa relação conflitiva deveria ser sujeita a uma colaboração para que os problemas observados fossem resolvidos.

Recepção direta de recusa (Mayo, Drucker)

Mayo

Mayo3 3 George Elton Mayo. Disponível em: <http://adb.anu.edu.au/biography/mayo-george-elton-7541>. Acesso em: 19 ago. 2014. , por seu lado, teve uma formação universitária em filosofia e psicologia na Austrália em 1907, mas estabeleceu moradia antes em Londres. Fixou cátedra nos Estados Unidos em 1922, onde, pouco tempo depois, tornara-se professor na Harvard School of Business Administration. Possivelmente, teve algum contato com o ideário marxista no período de formação universitária. Porém, ao se julgar a partir do material aqui analisado (Problemas humanos de uma civilização industrial), grande parte da sua leitura acerca do ideário marxista parece ser proveniente da intensificada luta ideopolítica já estabelecida nos anos de 1930, período que em publica seu famoso livro (1933), sob influência de Pareto e Durkheim, apenas quatro anos depois da crise de 1929; época de alguma contestação, no próprio território estadunidense, acerca do funcionamento do capitalismo.

Na obra supracitada, Mayo faz constatações de inspiração em Durkheim (anomia) acerca da “desintegração social” na sociedade industrial (“socialista ou capitalista”), responsável por um alto grau de perda de sentido na vida social, por um aumento na violência, por um aumento dos sentimentos mórbidos etc. Sua constatação exige, também do seu ponto de vista, medidas que possam fazer frente a essa perda dos laços comunitários, fazendo-os germinar novamente no interior da indústria. A medida mais cabal é melhorar as condições sociais (e não técnicas) do trabalho (supervisão não coercitiva, mais autonomia, liberdade de conversa etc.), mostrando inclusive como tais alterações implicam em vigorosos aumentos da produtividade e diminuição dos custos com rotatividade. Isso o coloca em condições de exercer uma atividade manipulativa das relações sociais, em que o fortalecimento dos laços afetivos entre os trabalhadores na indústria (ainda que isso revele de fato traços de uma humanização) é o meio para a realização dos fins do capital. Chega mesmo a sugerir positivamente fazer a empresa aparecer como uma “entidade mítica” (MAYO, 2003MAYO, E. The human problems of an industrial civilization. New York: Routledge, 2003., p. 96) aos trabalhadores. Logo de partida, é possível ver que as constatações e medidas sustentadas por Mayo não contradizem os interesses das classes dominantes. Ao contrário, no transcorrer do livro fica evidenciado seu clamor, a partir da inspiração em Pareto, pela renovação da “elite administrativa”, tanto na esfera econômica quanto na política (cf. MAYO, 2003MAYO, E. The human problems of an industrial civilization. New York: Routledge, 2003., p. 176ss).

Disso resulta que Mayo não avança na discussão da relação entre empregadores e empregados, mas traz à tona elementos intimamente ligados ao marxismo. Esse último traço, que o distingue de Taylor, caracteriza-o também como expressão de uma recepção mais direta ao ideário marxista. Com efeito, no tocante ao conflito que corta a indústria, Mayo salienta que, a despeito de todo o desenvolvimento econômico e social durante o século XIX, um problema persistia no que diz respeito à questão das diferentes classes. Podemos ler que:

Há um importante aspecto do problema entre empregador e empregado que persistiu através de um século de mudança na organização industrial, nos salários e nas condições de trabalho. [...] Isso pode ser sumariamente expresso no argumento de que em nenhum outro momento desde a Revolução Industrial houve, exceto esporadicamente aqui e ali, algo próximo da natureza de uma colaboração efetiva e sincera entre os grupos administrativos e dos trabalhadores na indústria (MAYO, 2003MAYO, E. The human problems of an industrial civilization. New York: Routledge, 2003., p. 171).

A maneira como o autor avalia a questão é esclarecedora de sua posição na relação de classes. O grande problema da relação entre “empregador e empregado” para Mayo é, portanto, a ausência de uma profunda e calorosa colaboração entre ambos. Ele preconiza que a colaboração entre o “grupo administrativo” e o “grupo dos trabalhadores” seria a medida resolutiva efetiva dos problemas que persistiam, a despeito dos avanços nos “salários e nas condições de trabalho”. Embora tenha mais erudição que Taylor, construindo sólida carreira como professor universitário e ocupando uma posição relativamente distinta na divisão do trabalho no interior da classe dominante, Mayo não progride na questão do conflito de classes, conservando os mesmos resultados alcançados por Taylor, ou seja, trata-se de um problema que pode ser resolvido com a integração colaborativa entre os lados opostos. Para Mayo, basta que colaborem efetiva e incondicionalmente, deixando intactos os condicionantes sociais que cindem a “administração”, de um lado – como representantes práticos dos interesses do capital –, e o trabalho, de outro. Tenhamos em mente que “grupo administrativo” é, em larga medida, também trabalho assalariado. Para nosso autor australiano, no entanto, mostra-se à percepção tão somente as formas de expressão da relação antagônica entre capital e trabalho ao fundo. Estacionar nesse momento fenomênico não é exclusividade de Mayo, como veremos mais adiante com Etzioni.

Se essa forma de constatação do problema por parte de Mayo já denuncia sua posição no interior da relação de classes, outras passagens são ricas para indicar a qualidade de sua recepção frente ao ideário marxista. Depois de apresentar considerações de que as trade unions (os sindicatos), ao defenderem os interesses dos trabalhadores, não são mais do que “organizações de baixo nível” que empreendem uma “reação conservadora” (MAYO, 2003MAYO, E. The human problems of an industrial civilization. New York: Routledge, 2003., p. 174) frente às inovações técnicas do capitalismo, escreveu que:

Socialismo, comunismo, marxismo parece ser irrelevante aos eventos industriais do século XX. Essas doutrinas provavelmente expressam o desejo dos trabalhadores em recapturar algo da perdida solidariedade humana. O comunismo russo, porém, embora reivindique essa finalidade, parece ser expressivo dos métodos do século XX mais do que um ideal de solidariedade humana. [...]. Mas as concepções do trabalho e da organização industrial as quais tais métodos expressam estão mais proximamente relacionados à lógica da engenharia do século XX do que com a ditadura do proletariado de Marx (MAYO, 2003MAYO, E. The human problems of an industrial civilization. New York: Routledge, 2003., p. 174-175).

Uma análise unilateral dos sindicatos como reação conservadora desemboca em uma avaliação igualmente unilateral do ideário marxista como sendo expressão de uma “perdida solidariedade humana”, uma espécie de romantismo. Para Mayo, tudo se passa como se tal ideário fosse o clamor para um retorno a uma idílica era passada. Como não parece conhecer efetivamente as inclinações mais autênticas do marxismo, as quais não obstruem de modo algum o avanço das forças produtivas para a criação de “uma forma superior de sociedade” (cf. MARX, 2013MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1., p. 667), termina também por considerar de modo preconceituoso e sem maiores cuidados a “ditadura do proletário” como um movimento essencialmente conservador. Mas basta lembrar que o material mais famoso sobre isso, o Manifesto do partido comunista, liga diretamente tal movimento com a “conquista da democracia” (cf. MARX; ENGELS, 1998MARX, K.; ENGELS, F. O manifesto do partido comunista. São Paulo: Boitempo, 1998., p. 58). Isso leva à constatação de que os conhecimentos sobre o ideário marxista de Mayo, ainda que tenha tido formação universitária, não ultrapassam o senso comum amplamente formado no transcorrer dos acontecimentos históricos. Isso ainda fica patente quando escreve que:

Se as previsões dos engenheiros possuem algum valor, nós estamos próximos de entrar numa era na qual nossa produção material será realizada por máquinas dirigidas por engenheiros, e o trabalhador, como nós os concebemos no presente momento, não mais serão requeridos pela indústria. Se isso está para ser, então a história irá registrar não o triunfo, mas a extinção do proletariado. E as teorias comunistas da revolução serão superadas (MAYO, 2003MAYO, E. The human problems of an industrial civilization. New York: Routledge, 2003., p. 175).

A compreensão de Mayo é bastante redutora, pois o proletariado, da forma como já dissemos, não compreende apenas trabalhadores fabris ou manuais, mesmo que à época constituíssem maior parte da classe trabalhadora. Administradores e engenheiros (ainda que subjetivamente não tenham isso muito em conta) também estão incluídos consideravelmente e de modo contraditório nessa classe (cf. PAÇO CUNHA, 2014PAÇO CUNHA, E. Braverman, subjetividade e função de direção na produção do valor. Cadernos EBAPE.BR, Apresentação, Rio de Janeiro, v. 12, n. 4, out./dez. 2014.), assim como todos aqueles que não possuem meios de produção caem também na classe dos proletariados que precisam vender suas forças de trabalho nos diferentes setores econômicos e além dessa esfera diretamente. Portanto, a solução puramente técnica insinuada pelo autor na passagem não extinguiria o proletariado. Além do mais, como já indicado, a missão histórica da classe trabalhadora não é fazer triunfar uma nova sociedade de classe, mas precisamente extinguir a classe proletária, o que só é possível pela superação de todas as classes. Dito de outra forma, não se trata de uma “nova dominação de classe”, de um “novo poder político”, pois “a condição da libertação da classe laboriosa é a abolição de toda classe” (MARX, 1985MARX, K. A miséria da filosofia. São Paulo: Global, 1985., p. 160). Mayo desconhece em absoluto essas questões fundamentais.

Por esses motivos, é possível constatar que em Problemas humanos de uma civilização industrial encontramos uma recepção de profunda recusa e de forma direta do ideário marxista, mas também de qualidade questionável. Mayo, na qualidade de um representante teórico da classe dominante, rejeita, por via da redução e distorção, o ideário que representa os interesses da classe trabalhadora.

Drucker

Drucker4 4 Peter F. Drucker. Disponível em: <http://www.druckerinstitute.com/peter-druckers-life-and-legacy/druckers-career-timeline-and-bibliography/>; <http://druckersociety.at/index.php/peterdruckerhome/biography>. Acesso em: 19 ago. 2014. , ao seu turno, vinha de família judia convertida ao cristianismo. Provavelmente teve contato primeiro com o ideário marxista ainda na Alemanha, durante sua formação em direito e economia. Depois de curta temporada em Londres, instala-se como estadunidense naturalizado a partir de 1947 e trabalha como professor e consultor de empresas. Possivelmente foi testemunha, no período em que viveu na Alemanha, do revisionismo do marxismo promovido pela social-democracia alemã (Bernstein) e das influências do positivismo sobre o marxismo (particularmente Kautsky). Não por menos, já na década de 1940 identifica marxismo e totalitarismo, como veremos a seguir.

Apresentando uma posição mais incisiva do que Mayo, Drucker lança mão de postulados e comparações para destilar sua crítica, faz abertamente a referência tanto a Marx quanto ao marxismo, dedicando inúmeras páginas para tratar de seu adversário ideológico. De tal maneira, não é possível aqui esgotar a real compreensão do marxismo dada por Drucker.

No tocante às relações conflituosas, esta é uma questão que sequer aparece para Drucker, pois, para ele, cada vez mais tanto a burguesia quanto o proletariado estavam se esvaziando enquanto classes, face ao aparecimento de uma posição intermediária privilegiada: “quanto maior fica a unidade, maior é o número de posições intermediárias privilegiadas, das quais os titulares não são nem empresários independentes tampouco membros desiguais do proletariado” (DRUCKER, 2003DRUCKER, P. F. A functioning society. London: Transaction Publishers, 2003., p. 37-38). Essa tese, segundo o autor, já podia ser constatada como plenamente realizada nos Estados Unidos da década de 1940: “A sociedade de ‘classe média’ do sonho americano é assim realmente uma sociedade sem classes, mas uma sociedade baseada não na igualdade de recompensas como na utopia dos marxistas senão na igualdade de justiça” (DRUCKER, 1983DRUCKER, P. F. The concept of the corporation. New York: John Day, 1983., p. 138-139). Essa “classe média” é a materialização do “sonho americano de uma sociedade sem classes”, porém, não é baseada em uma “igualdade de recompensas” utópica do marxismo. Drucker dá mostras de que não compreende o fim das classes como condição para uma sociedade sem elas. Para ele, pode haver uma sociedade sem classes, mas com classes! Em uma sociedade sem classes não segue existindo uma classe média, uma vez que esta pressupõe a existência de outras classes nos polos extremos. Ora, as classes não desaparecem por decreto verbal e por deficiência de lógica formal. Além do mais, não compreende que a superação das classes está diretamente ligada à superação do modo de produção capitalista e não a uma “igualdade de recompensas”. Aliás, Marx (1985)MARX, K. A miséria da filosofia. São Paulo: Global, 1985. criticou essa tendência romântica em Proudhon.

Disso se segue que a superação do conflito de classes se dá, portanto, não por ascensão social ou por intermédio da classe dominante, assegurando à classe trabalhadora condições mais favoráveis, como utópicos “salários iguais” no próprio capitalismo, mas sim por intermédio da própria classe trabalhadora, rompendo com a propriedade privada, dos meios de produção da riqueza, em direção a um novo modo de produção. Na verdade, essa formulação da “classe média” que Drucker sustenta carece de rigor científico e abunda em superficialidade, visto que o próprio autor admite se basear em uma pesquisa de opinião: “uma pesquisa de opinião conduzida pela revista Fortune há alguns anos atrás, os definiu, em esmagadora maioria de mais de noventa por cento como, pertencentes à ‘classe média’” (DRUCKER, 1983DRUCKER, P. F. The concept of the corporation. New York: John Day, 1983., p. 137). Mas nada disse sobre outra pesquisa realizada pouco depois dessa primeira, em que foi inserida a opção “classe trabalhadora”. Na edição, a maioria esmagadora incluiu-se voluntariamente nessa categoria (cf. BRAVERMAN, 1998BRAVERMAN, H. Labor and monopoly capital. New York: Monthly Review Press, 1998., p. 19).

A recepção de Drucker com relação ao ideário marxista se expressa também pela identificação forçada que produz entre o nazismo e o marxismo. À guisa de explicação, muitos teóricos de origem judaica (como Drucker, antes da conversão ao cristianismo), como aqueles ligados à chamada Escola de Frankfurt, também foram testemunhas do mesmo período histórico da ascensão do nazismo e não produziram esse tipo de identificação construída por Drucker. A despeito disso, nosso autor argumenta que o marxismo fracassou ao colocar em prática seu projeto revolucionário e que, ao mesmo tempo, forneceu ao nazismo aparato teórico e prático:

Na medida em que o marxismo falhou como um credo revolucionário em países industrializados, causou impacto duradouro nas crenças políticas do continente europeu. Preparou as massas para o totalitarismo. As tornou propensas à lógica de visões artificiais, absolutistas e apocalípticas. Por estas razões, o marxismo merece ser chamado de pai do hitlerismo. O marxismo também legou ao totalitarismo de nosso tempo o molde e estrutura de ideias e pensamento político. E a causa definitiva da ascensão do totalitarismo foi o fracasso total do marxismo em fazer sentido na realidade política e na experiência social (DRUCKER, 2003DRUCKER, P. F. A functioning society. London: Transaction Publishers, 2003., p. 13).

Drucker faz afirmações categóricas, as quais, no entanto, necessitam de sustentação ao atribuir ao marxismo características que moldaram o nazismo na Alemanha. Em suma, em sua opinião, o marxismo falhou como teoria revolucionária e alienou as massas, as tornou propensas aos ideais absolutistas. Ele não apresenta provas de que o marxismo realmente armou teoricamente Hitler. Ele culpa o ideário marxista pelos movimentos da social-democracia alemã, ao invés de considerar as condições econômicas, sociais e políticas da época. Isso prova que a recepção de Drucker é direta e profundamente negativa, mas prova também que sua leitura possui deficiências colossais ou teve influências dadas pelo senso comum, porque não se trata de um ideário apocalíptico, do homem determinado ou absolutista. Acerca da dimensão política, Marx explicou que “a classe laboriosa substituirá, no curso do seu desenvolvimento, a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo, e não haverá mais poder político propriamente dito, já que o poder político é o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil” (MARX, 1985MARX, K. A miséria da filosofia. São Paulo: Global, 1985., p. 160).

Que ideário absolutista afirmaria a necessária superação do poder político?

Adicionalmente, não se pode ligar Marx ao totalitarismo porque, sob esse aspecto, argumentava justamente a respeito da preponderância da organização social sobre a política. Ele colocava em primeiro plano a revolução social que findaria o antagonismo de classes, antagonismo que viabiliza qualquer movimento totalitário, seja ele capitalista ou “socialista”. Não se trata, pois, de uma centralização de poder autocrática, uma organização política que acima de tudo se põe para reafirmar a ordem capitalista. Reconhecidamente, por outro lado, o movimento operário do partido social-democrata alemão, que tinha determinadas aspirações marxistas, moveu-se para o lado do capital, inclusive a favor do partido nazista. Mas, como salienta Netto, essa fração do marxismo logo se afastou dos ideais revolucionários de Marx:

Do colapso da Segunda Internacional restou, pois, no plano político, uma profunda divisão que até hoje separa as correntes do movimento operário originalmente inspiradas em Marx: de um lado, os social-democratas (frequentemente aglutinados em partidos socialistas de corte reformista), no mais das vezes integrados no jogo político burguês; de outro, os revolucionários que, a partir daí, passaram a denominar-se comunistas (NETTO, 2006NETTO, J. P. O que é marxismo. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção primeiros passos.), p. 46).

A debandada da social democracia representou apenas uma parte dos grupos originalmente marxistas e os ideais revolucionários foram conservados em outras frentes. O fato de a internacional socialista não obter êxito em promover uma revolução nos países europeus não foi suficiente para resultar no fim do marxismo. Ainda hoje, existem organizações de trabalhadores e partidos políticos que retêm influências do ideário marxista com finalidade revolucionária, nomeadamente comunistas, contrariando a assertiva de Drucker de que após o fim da Primeira Guerra Mundial o “marxismo rapidamente perdeu seu vigor e tornou-se um cântico ritualizado, mas sem sentido” (DRUCKER, 2003DRUCKER, P. F. A functioning society. London: Transaction Publishers, 2003., p. 34). Há quem sustente (no final da década de 1950) o contrário, de que o marxismo é “a filosofia de nosso tempo da qual não podemos ir para além” (SARTRE, 1963SARTRE, J. P. Search for a method. New York: Alfred A. Knopf, 1963.. p. xxxiv), que, “longe de estar exaurido, o marxismo é ainda muito jovem, quase em sua infância ele apenas começou a se desenvolver. Ele permanece sendo, portanto, a filosofia de nosso tempo. Não podemos ir além dela pois não fomos além das circunstâncias que a engendraram” (SARTRE, 1963SARTRE, J. P. Search for a method. New York: Alfred A. Knopf, 1963., p. 30).

E hoje testemunhamos sempre um retorno às ideias de Marx quando alguma crise se avizinha. De toda forma, Drucker guardava certa proximidade com o juízo de Mayo com relação a um suposto romantismo do ideário marxista, uma bucólica volta a eras idílicas do passado remoto. Para Drucker, Marx ou o marxismo sempre são colocados à parte do avanço das forças produtivas, inclusive ele imputa o fracasso do marxismo à sua visão turva quanto à revolução produtiva5 5 Em outro momento, Drucker faz a seguinte pergunta e responde imediatamente: “O que, então, supera as inevitáveis contradições do capitalismo, a ‘alienação’ e a ‘pauperização’ da classe trabalhadora, e com isso toda a noção de proletariado? […] dois anos antes da morte de Marx, a Revolução da Produtividade já havia começado. Em 1881, um Americano, Frederick Winslow Taylor (1856-1915), primeiro a aplicar o conhecimento para o estudo do trabalho, à análise do trabalho, e à engenharia do trabalho […]. Taylor, em outras palavras, viu o que Marx viu – o mesmo que Disraeli, Bismarck e Henry James. Mas ele viu o que eles falharam em ver: que o conflito era desnecessário. Ele tornou os trabalhadores produtivos de modo que pudessem ganhar dinheiro decente” (DRUCKER, 2003, p. 163). , como se o marxismo preconizasse o oposto do avanço daquelas forças. O autor compreende que, para Marx, uma revolução social desencadearia o retrocesso total da humanidade, como ele afirmou ao comparar Marx e Rousseau: “Se eu novamente puder apontar para os achados da antropologia moderna: o conceito sentimental de ‘igualdade primitiva’ popularizado por Rousseau e Marx se esgotou completamente” (DRUCKER, 1983DRUCKER, P. F. The concept of the corporation. New York: John Day, 1983., p. 242). Drucker sugere, assim, que há no ideário marxista uma posição reacionária, de recusa do capitalismo para um retorno a uma sociabilidade primitiva. Acerca do movimento histórico e do desenrolar das relações de produção, no entanto, não restam dúvidas de que Marx compreendia um movimento completamente diferente. Disse ele, por exemplo, em referência aos movimentos revolucionários dos trabalhadores do século XIX: “não é do passado, mas unicamente do futuro, que a revolução social [...] pode colher a sua poesia” (MARX, 2011bMARX, K. O 18 Brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011b., p. 28). Sem mencionar que “as forças produtivas, porém, que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a solução desse antagonismo” entre as relações de produção e as forças produtivas. E completou: “com esta formação social [capitalista] se encerra, portanto, a pré-história da sociedade humana” (MARX, 1974MARX, K. Prefácio. Para a crítica da economia política. In: MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos e outros escritos. São Paulo: Abril, 1974., p. 136). Trata-se, portanto, não de um retrocesso, de um alegado romantismo sentimental, mas do aproveitamento dos avanços do capitalismo para a construção de uma sociedade superior, mais desenvolvida e sem classes, sem dominação do homem sobre o homem.

Também como Mayo, nutria profunda desconfiança em relação aos sindicatos. Considerava, inclusive, que “[...] os sindicatos estão no início e numa natureza básica negativa; eles são anticorpos. Foram construídos para proteger os trabalhadores contra a administração, contra a sociedade” (DRUCKER, 1983DRUCKER, P. F. The concept of the corporation. New York: John Day, 1983., p. 161). Drucker não poupa adjetivações: “antissocial”, “clara chantagem contra a sociedade” (DRUCKER, 1983DRUCKER, P. F. The concept of the corporation. New York: John Day, 1983., p. 161). A despeito dos reais problemas dos sindicatos, eles foram e ainda são em certa medida instrumentos de luta dos interesses dos trabalhadores. O que Drucker, na verdade, tem em mente, é promover “uma integração dos trabalhadores como parceiros no sistema industrial e como cidadãos na sociedade” (DRUCKER, 1983DRUCKER, P. F. The concept of the corporation. New York: John Day, 1983., p. 161, grifo do autor). Daí o papel a ser desempenhado, do ponto de vista do autor, pelos sindicatos: “É de se esperar que os sindicatos possam eventualmente tornarem-se instituições da sociedade mais do que instituições contra a sociedade, e possam participar na grande e árdua tarefa de integrar os trabalhadores como cidadãos na sociedade industrial. Até agora, porém, eles sequer abordaram essa tarefa” (DRUCKER, 1983DRUCKER, P. F. The concept of the corporation. New York: John Day, 1983., p. 162).

As medidas para solucionar as tensões são, por um lado, o desenvolvimento da produtividade (ver nota de rodapé 5) e, por outro, integrar os trabalhadores como “parceiros” da indústria. Em outras palavras, busca-se manter as coisas como estão, tornando os trabalhadores – por meio dos sindicatos alinhados aos interesses das empresas – participantes integrados no desenvolvimento das estruturas de sua própria dominação. Eis a sociedade “sem classes”, mas com classes, de Drucker.

Por um lado, a argumentação de Marx sobre a superação do capitalismo e das classes para uma formação social superior mostra o mal-entendido disseminado por Drucker. Ajuda a revelar não apenas que a recepção é direta e negativa, de recusa, mas também que contém problemas fundamentais de leitura porque prova lidar com um ideário marxista que não existe ou existe apenas para seus adversários, apenas para os representantes teóricos dos interesses das classes dominantes. Por outro, a posição de Drucker sobre os sindicatos, e particularmente no que tange à integração dos trabalhadores como parceiros na indústria, na sociedade capitalista, ajuda a revelar a quais interesses sociais nosso autor mais se alinha. No conjunto se apresenta uma recepção direta de recusa, mas também de qualidade questionável.

Não devemos criticar Drucker por recusar os traços do ideário marxista e por estar imbuído de uma missão infatigável de derrotar o marxismo, mas por tomar traços falsos como verdadeiros de maneira completamente negligente e sem dar as provas para seus argumentos. Como não fornece tais provas, termina por não enfrentar de fato seu adversário intelectual (o ideário marxista), mas vive da formulação de absurdos, o que indubitavelmente desqualifica sua análise, embora revele com força maior uma forma de recepção direta de recusa.

Recepção indireta de aceite não pleno (Fayol)

Fayol6 6 Jules Henri Fayol. Disponível em: <http://www.annales.org/archives/x/fayol.html>. Acesso em: 19 ago. 2014. teve a maior parte de sua criação na França. As marcas do marxismo e das bandeiras trabalhistas são profundas nesse país, em função das lutas econômico-políticas durante todo o século XIX, sobretudo as revoluções dos trabalhadores de 1848 e 1871. O ideário marxista esteve de maneiras adversas ligado, sobretudo, a essa segunda data (ROSENBERG, 1986ROSENBERG, A. Democracia e socialismo. São Paulo: Global, 1986.), no que ficou conhecido por Comuna de Paris – algo de que provavelmente Fayol fora testemunha ocular. Não seria surpresa que essas circunstâncias deixassem algumas marcas na sociedade francesa, assim como na formação ideal do executivo em tela.

Com efeito, das formas de recepção que até agora temos indicado, Fayol (1964FAYOL, H. Administração industrial e geral. São Paulo: Atlas, 1964.; 1931)FAYOL, H. Administration industrielle et générale. Paris: Dunod, 1931. apresenta alguma ambiguidade porque, simultaneamente, compreende haver uma relação conflituosa entre capital e trabalho e sugere a existência de meios apenas paliativos para promover uma relativa “paz industrial”, seguindo sua dicção. Em meio às muitas analogias com o mundo biológico que encontramos no transcorrer de Administração industrial e geral, surgem duas questões difíceis de serem reduzidas à esfera puramente orgânica: a divergência de interesses sociais e a remuneração da força de trabalho. Dada a dificuldade, nosso autor se vê obrigado a lidar com os problemas tais como são: sociais. Sua análise, porém, não trata diretamente do ideário marxista em geral ou de Marx em particular, mas com as suas ressonâncias.

Por um lado, Fayol expressa a atividade do administrador como aquela que se realiza no interior de uma relação de forças. Da forma como escreveu, “dois interesses de ordem diferentes, mas igualmente respeitáveis se apresentam; é preciso encontrar uma conciliação. É uma das grandes dificuldades do governo” (FAYOL, 1964FAYOL, H. Administração industrial e geral. São Paulo: Atlas, 1964., p. 38; 1931FAYOL, H. Administration industrielle et générale. Paris: Dunod, 1931., p. 36). Trata-se de um reflexo não plenamente autêntico de uma contradição real. A função de governar (para a qual a tradução brasileira preferiu direção, cf. FAYOL, 1964FAYOL, H. Administração industrial e geral. São Paulo: Atlas, 1964., p. 13; 1931FAYOL, H. Administration industrielle et générale. Paris: Dunod, 1931., p. 13-14) aqui termina por expressar, em oposição a Taylor e a Drucker ao menos, a possibilidade da existência de interesses divergentes entre capital e trabalho, o que coloca nosso autor em uma melhor posição de avaliação da realidade do que seus amigos no outro lado do Atlântico, embora caia na conciliação como medida prática imediata. Mas o ponto alto da análise de Fayol, e que revela de modo mais completo sua recepção com relação ao marxismo ou ao encaminhamento das reivindicações das classes trabalhadoras, aparece na discussão sobre a remuneração.

Nessa direção, de outro lado, o tópico a respeito da participação nos lucros é elucidativo. Nele Fayol escreveu que “a ideia de fazer os operários participarem dos lucros é muito sedutora. Parece que é daí que surgirá o acordo entre o capital e o trabalho. Mas a fórmula prática desse acordo não foi ainda encontrada” (FAYOL, 1964FAYOL, H. Administração industrial e geral. São Paulo: Atlas, 1964., p. 43; 1931, p. 41). É interessante notar o tom cético do autor em relação à possibilidade de que alguma medida dessa natureza e nessa ordem de coisas possa estabelecer um acordo entre capital e trabalho. A partir dessa afirmação inicial, Fayol analisa as dificuldades de variadas formas de empresas privadas e públicas em levarem adiante alguma política satisfatória de participação nos lucros. Essa análise culmina na constatação de que tal política seria mais viável em “empresas econômicas prósperas”. Seu ceticismo novamente se apresenta ao afirmar que “o desejo de conciliar e harmonizar os interesses dos operários e do patrão não é em parte alguma tão grande como nas indústrias mineiras e metalúrgicas francesas”. Em seguida interdita: “Ora, não conheço nessas indústrias a aplicação precisa da participação dos operários nos lucros”. Mesmo nas empresas em que tal política seria mais viável, no caso concreto das metalúrgicas e indústrias mineiras da França, não se encontra a realização efetiva da participação nos lucros. O ponto alto, no entanto, vem em seguida: “pode-se concluir, destarte, imediatamente, que o problema é difícil, se não impossível” (FAYOL, 1964FAYOL, H. Administração industrial e geral. São Paulo: Atlas, 1964., p. 43; 1931FAYOL, H. Administration industrielle et générale. Paris: Dunod, 1931., p. 41).

O senso de realidade de Fayol é algo importante de se destacar porque parece contrariar, ainda que relativamente, os interesses da classe a que pertence. Mesmo que seja um executivo de alto escalão, comprometido com os interesses econômicos e políticos de sua própria classe, tal não o impediu de avaliar o complexo de problemas com o qual se deparava – ainda que dentro dos limites postos por sua posição social, isto é, ao clamar, como dito antes, por alguma forma de conciliação dos interesses. A ambiguidade volta ao primeiro plano em uma passagem de desfecho da discussão e de relevância única para a problemática que enfrentamos:

Não me parece que se possa contar, ao menos no momento, com este modo de retribuição para apaziguar os conflitos entre o capital e o trabalho. Felizmente tem havido até o presente outros meios suficientes para assegurar à sociedade uma paz relativa; esses meios não perderam sua eficácia. Cabe aos chefes estudá-los, aplicá-los e fazê-los triunfar (FAYOL, 1964FAYOL, H. Administração industrial e geral. São Paulo: Atlas, 1964., p. 45-46; 1931FAYOL, H. Administration industrielle et générale. Paris: Dunod, 1931., p. 44).

Fayol apresenta um ponto de vista muito mais desenvolvido do que Taylor, Mayo ou Drucker, ainda que nos marcos dos interesses da classe social à qual se vincula. A participação nos lucros, segundo o autor, não apazigua os conflitos entre capital e trabalho, mas existem outros meios disponíveis para assegurar alguma “paz relativa” e, por isso, temporária; como entender a “paz relativa” senão por sua latência? Na luta entre capital e trabalho, cabe aos administradores encontrar meios de acomodar os contrários, conciliá-los, mas não parece haver meios administrativos, por assim dizer, que possam resolver o conflito; “problema é difícil, se não impossível”, como escreveu antes. Pela própria natureza de tais medidas, os efeitos são sempre temporários e estão submetidos às variações mais amplas. Disso Fayol parece ter plena apreensão. Se a constatação for levada à sua expressão real mais autêntica, teria reconhecido que a administração não pode resolver as contradições que são sua condição de existência sem abolir a si mesma. A constatação de Fayol, porém, é dada nos limites de possibilidade de sua posição social.

É também interessante constatar que o fato de Fayol empregar uma terminologia (capital, trabalho, interesse, conflito) mais próxima daquela encaminhada pelo marxismo e pelos movimentos dos trabalhadores revela alguma forma de recepção dessas ideias, as quais, inclusive, deixaram marcas muito mais profundas na França do que nos Estados Unidos da América. As revoluções trabalhistas de 1848 e 1871, principalmente, estavam – como indicado antes – muito mais fortemente marcadas no ambiente francês do que no norte-americano. Desse ponto de vista, seria mais difícil a Fayol evitar as contradições reais e também alguma linguagem que as expressasse, sobretudo ao tematizar assunto que não poderia refugiar na esfera da biologia. Isso não torna nosso autor um intelectual marxista ou coisa que o valha, obviamente. A posição de Fayol é a dos “chefes” encarregados de encaminhar medidas administrativas, com a finalidade de garantir algum triunfo temporário em relação ao conflito entre capital e trabalho. Meios administrativos são sua mediação; a conciliação temporária, seu lema.

Não obstante, sua recepção é muito mais aberta (não sem limites) ao ideário marxista e à linguagem que marcou as bandeiras dos movimentos trabalhistas do que os autores anteriores aqui apresentados. O reconhecimento de que o conflito entre capital e trabalho não apenas é existente como também é imune a medidas administrativas, isto é, que tais medidas são sempre paliativas, de efeito temporário e nunca resolutivas, torna de algum modo Fayol portador de um sentido de realidade mais apurado e também um autor e homem prático mais receptivo à identificação de contradições, embora esta se revele apenas nos pontos aqui indicados7 7 Sem mencionar o fato de que é um autor muito mais complexo do que frequentemente se supõe. Dada a evidente porosidade de Fayol às influências da filosofia, da política, do direito, mas também da ciência positiva e outras mais, destaca-se como um autor muito mais abrangente do que os livros didáticos têm conseguido expressar. . Dizemos isso porque há um movimento distinto e muito mais forte no transcorrer de sua principal obra no sentido de naturalizar as relações sociais existentes, dadas as constantes analogias com o mundo biológico. Mas isso não deve eliminar suas constatações nascidas da análise do conflito de interesses e da remuneração da força de trabalho, precisamente esses elementos, em virtude dos quais uma redução ao mundo orgânico é impedida pela ausência de qualquer analogia aceitável ao intelecto, à análise de rigor.

Recepção direta de aceite não autêntico (Etzioni)

Etzioni8 8 Amitai Etzioni. Disponível em: <http://www.asanet.org/about/presidents/Amitai_Etzioni.cfm>. Acesso em: 19 ago. 2014. teve formação universitária em Israel, onde estudou os clássicos da sociologia nos anos de 1950. Torna-se pesquisador assistente em Berkeley (Califórnia) a partir de 1957, sob a tutela de Lipset – conhecido sociólogo americano. Doutora-se em 1958 e consegue vaga de professor na Columbia University, onde trabalha no período em que escreveu o material aqui consultado (Organizações modernas). Possivelmente, o maior contato de Etzioni com o ideário marxista se deu por meio da formação e do ambiente universitários, sobretudo pelas leituras sociológicas dominantes nas décadas de 1950 e 1960, período de pujante elaboração de inclinação weberiana por parte dos chamados sociólogos funcionalistas. Organizações modernas é testemunha e expressão do desenvolvimento, não sem ressalvas, da sociologia de Max Weber nos Estados Unidos.

Comparativamente aos autores até agora tratados, outro é o caso de Etzioni (1964ETZIONI, A. Modern organizations. New Jersey: Prentice-Hall, 1964.; 1972)ETZIONI, A. Organizações modernas. São Paulo: Pioneira, 1972.. Aliás, de todos os autores aqui considerados, ele é o que apresenta uma recepção direta muito mais positiva, embora o faça não autenticamente, ao combinar Marx com Weber de modo problemático – como toda combinação desse tipo precisa ser. A despeito disso, podemos encontrar em Organizações modernas a recepção mais positivamente desenvolvida de traços do ideário marxista.

Ao discorrer sobre a abordagem estruturalista que pretende justificar como sendo a mais desenvolvida para lidar com as “organizações” dos mais variados tipos, Etzioni escreveu que “tendo muitas fontes, mas apenas um adversário, a abordagem estruturalista é uma síntese da escola Clássica (formal) e da escola das Relações Humanas (ou informal), partindo também do trabalho de Max Weber e, em certo grau, do de Karl Marx” (ETZIONI, 1964ETZIONI, A. Modern organizations. New Jersey: Prentice-Hall, 1964., p. 41; 1972ETZIONI, A. Organizações modernas. São Paulo: Pioneira, 1972., p. 67-68). Aqui se demarca claramente a recepção “em certo grau” menor do que a influência recebida de Weber, porém, suficientemente maior do que aquelas que pudemos rastrear nos autores anteriores. No entanto, as marcas da posição social do sociólogo logo se revelam e, contrariamente a Fayol, adota uma terminologia mais branda. Reconhece a existência de relações conflituosas, mas ao invés de situá-las centralmente em relação ao conflito entre capital e trabalho, considera:

As inevitáveis tensões – as quais podem ser reduzidas mas não eliminadas – entre as necessidades organizacionais e as necessidades pessoais; entre racionalidade e não racionalidade; entre disciplina e autonomia; entre relações formais e informais; entre administração e trabalhadores, ou, mais genericamente, entre posições e divisões (ETZIONI, 1964ETZIONI, A. Modern organizations. New Jersey: Prentice-Hall, 1964., p. 41; 1972ETZIONI, A. Organizações modernas. São Paulo: Pioneira, 1972., p. 67-68).

Por esse motivo parece, entretanto, que as influências de Marx são “em certo grau” questionáveis, ou muito menores do que pensa Etzioni, pois o núcleo fundamental do projeto marxiano (MARX; ENGELS, 1998MARX, K.; ENGELS, F. O manifesto do partido comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.; MARX, 2011aMARX, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011a.; 2013MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1., p. ex.) é o reconhecimento e a superação da relação contraditória fundamental (entre capital e trabalho, além das tensas relações entre as principais formas do capital – produtivo, comercial, financeiro – e entre os capitalistas individuais no interior dessas formas, assim como a concorrência no interior da própria classe do trabalho), e não sua obliteração sob a marca genérica da tensão entre “administração e trabalhadores” ou sob a marca ainda mais abstrata do ajuste entre as “necessidades organizacionais e as necessidades pessoais”9 9 Uma crítica do caráter abstrato desse operatório, que também aparece em Etzioni, pode ser vista em Paço Cunha (2012). .

Embora mais abstrata do que o conflito entre capital e trabalho, a tensão “administração e trabalhadores” não deixa de revelar parcialmente o problema real e o ponto em que Marx é diretamente evocado para dar conta das consequências identificadas por Etzioni do desenvolvimento do capitalismo. Escreveu ele que “dois grupos na organização cujos interesses frequentemente tornam-se conflito são a administração e os trabalhadores. Isso ocorre largamente porque o esforço da administração em fazê-los trabalhar é basicamente alienante para o trabalhador”. Desconsiderando que os administradores são, em sua maioria, também trabalhadores assalariados a serviço do capital, nosso autor indica que a atuação da “administração” está em apreender que “existem muitos meios de fazer o trabalho mais prazeroso, mas nenhum para torná-lo satisfatório num sentido absoluto”. Disso resulta que “os estruturalistas”, assim como Etzioni, “aceitaram esse ponto de vista e, de acordo com as análises de Marx e Weber, procuraram, no contraste entre o artesão medieval ou agricultor e o operário moderno, alguns indícios da origem da insatisfação deste último” (ETZIONI, 1964ETZIONI, A. Modern organizations. New Jersey: Prentice-Hall, 1964., p. 41-42; 1972ETZIONI, A. Organizações modernas. São Paulo: Pioneira, 1972., p. 69). Em uma longa e reveladora passagem, em seguida a essa argumentação problemática em si mesma por ajuizar unilateralmente o moderno pelo prisma do passado, Etzioni desenvolve uma conexão entre Marx e Weber em torno do problema da alienação, posta pelos esforços comumente empregados pela “administração” para fazer o trabalho se realizar produtivamente. É possível avaliar que Etzioni considera alienação como frustração e desconhecimento de todo o processo de trabalho:

Segundo Marx, a mão de obra da fábrica moderna está alienada de seu trabalho, pois não possui os meios de produção e nem o produto de seu trabalho. A especialização fragmentou a produção de tal maneira, que o trabalho de cada operário tornou-se cheio de repetições, monótono e sem oportunidade para criação e autoexpressão. O operário tem pouca ideia do processo total de trabalho ou de sua contribuição para ele; seu trabalho não tem sentido. Tem pouco controle sobre a hora de início e do fim do trabalho, ou sobre o ritmo em que deve ser feito. A esta análise de Marx, Weber acrescentou que esse alheamento básico não existe apenas entre o operário e os meios de produção, mas também entre o soldado e os meios de guerra, o cientista e os meios de pesquisa etc. Isso não é apenas uma questão legal de propriedade (por exemplo, que a arma pertença ao exército e não ao soldado) mas, ao contrário, a propriedade implica no direito de controlar e que aqueles que fornecem os meios definem também sua utilização; o operário, o soldado e o pesquisador – e por inferência todos os empregados de todas as organizações – são frustrados e infelizes, pois não podem controlar a utilização de seus esforços, não possuem o instrumento necessário para executar independentemente o trabalho que precisa ser feito. Diante da pergunta “bem feitas as contas, até que ponto você gosta de seu trabalho?” cerca de 80 por cento dos operários americanos responderam “não gosto”. A alienação é um conceito que exprime esse sentimento e a análise de sua origem nos termos de Marx e Weber (ETZIONI, 1964ETZIONI, A. Modern organizations. New Jersey: Prentice-Hall, 1964., p. 41-42; 1972ETZIONI, A. Organizações modernas. São Paulo: Pioneira, 1972., p. 69-70).

Nosso objetivo não é discutir inteiramente e em profundidade a qualidade da recepção de Marx por Etzioni, uma vez que isso demandaria um espaço muito maior. Entretanto, é preciso remeter o leitor para as reduções acerca do problema da alienação que permitem a Etzioni determiná-la como, do ponto de vista do trabalhador, ter “pouca ideia do processo total de trabalho ou de sua contribuição para ele”, ou, ainda, como sentimento de infelicidade e frustração10 10 Essa é uma das discussões mais ricas e ao mesmo tempo mais nebulosas na história do marxismo. Além das polêmicas acerca da diferença da terminologia entre entfremdung (para estranhamento) e entäußerung (para alienação) (cf. COSTA, 2005), a discussão marxiana contida nos próprios Manuscritos (2004) e nos materiais subsequentes (como a crítica de Marx a Proudhon, de que não se supera a contradição da produção capitalista pela elevação da consciência do trabalhador acerca de todo o processo de produção do alfinete, alcançando uma “consciência de alfinete”, cf. MARX, 1985, p. 132-135), muitos outros trabalhos indicam, por comparação, a existência de uma redução de Etzioni ao identificar alienação com desconhecimento e frustração. Remetemos o leitor ao conhecido texto de Mészáros (2006) e ao último capítulo de Para uma ontologia do ser social, de Lukács (2013). Desse ângulo, Etzioni se aproxima muito mais da acepção apenas vernacular quando abandona a cisão entre propriedade e trabalho e assume apenas as consequências de superfície da produção capitalista. O contrário teria forçado nosso autor em direção a conclusões que destoariam de suas posições. Esse limite é posto pelas ambições, como veremos, de neutralidade que nosso autor sustenta. . É certo que a cisão entre trabalho e propriedade desempenha um papel central nos problemas sociais, e a análise de Etzioni não deixa de apreender isso. A indicação do domínio da propriedade sobre o trabalho, inclusive, é uma das pedras-de-toque da análise marxista em termos gerais. Mas a redução promovida por nosso autor termina por colocar como solução prática a reversão do sentimento de frustração e a ampliação do conhecimento sobre o processo de trabalho, deixando intacta a cisão entre trabalho e propriedade. Para aquele ideário marxista, tratar-se-ia da superação do domínio da propriedade privada sobre o trabalho em sentidos muito especiais (cf. MARX; ENGELS, 1998MARX, K.; ENGELS, F. O manifesto do partido comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.). Em outras palavras, é possível – embora nosso autor não nos informe isso abertamente na passagem – suprimir parcialmente o sentimento de frustração e o desconhecimento global do processo de trabalho sem tocar na relação de dominação que se estabelece a partir da separação entre trabalho e propriedade privada na produção capitalista. Esse problema ao fundo é algo que Etzioni parece considerar como necessário e, como tal, algo a ser mantido. Essa posição termina por revelar os autênticos vínculos que esse intelectual mantém com as classes dominantes porque apenas às classes dominadas interessa romper os grilhões de sua própria dominação.

Assim como Fayol, o senso de realidade de Etzioni é mais apurado do que o de Taylor, Mayo e Drucker. Em comum com os demais está o horizonte prático, isto é, aquilo que deve ser feito frente aos problemas diagnosticados. Desde o início de Organizações modernas, de Etzioni, já havia ficado claro que “sem organizações bem administradas nosso padrão de vida, nosso nível de cultura e nossa vida democrática poderiam não ser mantidas”. E, adiante, estabeleceu que “o problema das modernas organizações é assim como construir agrupamentos humanos que sejam tão racionais quanto o possível e, ao mesmo tempo, produzam um mínimo de efeitos laterais indesejáveis e o máximo de satisfação” (ETZIONI, 1964ETZIONI, A. Modern organizations. New Jersey: Prentice-Hall, 1964., p. 2; 1972ETZIONI, A. Organizações modernas. São Paulo: Pioneira, 1972., p. 8). Não é outra coisa senão aquela “paz relativa” de Fayol, aquela cooperação profunda e sincera de Mayo, ou a identidade de interesses de Taylor e a integração do trabalhador na indústria como queria Drucker, porém, repostas sob outras vestes porque se trata de manter as coisas como são por meio de formas de conciliação que minorem determinados efeitos, mas sem alterar as relações de dominação ao fundo. A posição da abordagem com a qual Etzioni se identifica é apreender “alguns conflitos e tensões entre o homem e a organização como inevitáveis e de nenhuma forma indesejáveis” (ETZIONI, 1964ETZIONI, A. Modern organizations. New Jersey: Prentice-Hall, 1964., p. 21; 1972ETZIONI, A. Organizações modernas. São Paulo: Pioneira, 1972., p. 37). O que dizer dessa afirmação se a despirmos de sua abstratividade e revelarmos a “organização” como capital e o “homem” como aquele que trabalha, que vende sua força de trabalho ao capital? Para Etzioni, em outros termos mais decisivos: “coube, pois, aos estruturalistas apontar que a alienação e o conflito são inevitáveis e ocasionalmente desejáveis, e enfatizar que a ciência social não é um veículo para servir às necessidades dos trabalhadores ou da organização”. E lemos o arremate: “não está mais preocupada em incrementar a organização da administração do que incrementar a organização dos empregados” (ETZIONI, 1964ETZIONI, A. Modern organizations. New Jersey: Prentice-Hall, 1964., p. 40; 1972ETZIONI, A. Organizações modernas. São Paulo: Pioneira, 1972., p. 66-67).

Além de muitos pontos importantes, dois se destacam nesse desfecho de Etzioni. Primeiro, sua posição alegadamente neutra, nem a favor da “administração” (capital?) nem a favor dos trabalhadores. Segundo, que o fator de causação primária dos problemas identificados, a alienação proveniente da cisão entre trabalho e propriedade, é aqui posta como inevitável e desejável (ainda que ocasionalmente). No que se sustenta sua neutralidade ao oferecer aos dominados a preservação de sua dominação? Como manter-se em uma posição neutra e ao mesmo tempo preservar a causação primária do problema a ser combatido é um mistério que só se resolve por aquele “certo grau” com que Etzioni e sua abordagem foram influenciados por Marx. Grau diminuto, é certo, e em aglutinação com Weber, porém, muito mais desenvolvido do que as recepções que pudemos encontrar nos autores anteriores. É possível mesmo dizer que suas constatações (não plenamente desenvolvidas) contrastam relativamente com os interesses das classes dominantes, mas sua proposição, mais desenvolvida do que a de Fayol, é a autêntica realização dos interesses da classe proprietária da qual é representante intelectual. A recepção do marxismo em Etzioni não é plenamente autêntica, mas claramente mais direta do que em Fayol e muito mais positiva e aberta do que aquela que pudemos identificar em Taylor, Mayo e Drucker, principalmente.

Considerações finais

O presente trabalho objetivou apresentar as diferentes formas de recepção do ideário marxista no chamado pensamento administrativo. A primeira questão mais diretamente visível é a existência de formas relativas de recepção, isto é, não se tratam apenas de recusa e oposição, embora essas também sejam marcas presentes.

Essa é uma contribuição importante porque informa a uma perspectiva crítica o grau mais elevado de complexidade contido no chamado pensamento administrativo para além da falsa consciência. Como o pensamento administrativo é mais expressão teórica dos interesses práticos do capital e instrumento de formação de força de trabalho nas escolas de negócio do que representante dos interesses históricos de superação do capitalismo e das classes sociais, seria quase evidente que se poderia afirmar, logo de partida, que tal formação ideal não é mais do que deformação do real. Construir-se-ia, igualmente, o pressuposto unilateralmente posto de que não haveria ali espaço para incorporações, ainda que parciais, do ideário marxista, muitas vezes por força das próprias coisas reais ou influências teóricas na formação intelectual dos diferentes autores.

Nossa exposição mostrou, ao contrário, que o pensamento administrativo não é monolítico internamente. Há nele formas de recepção outras, potencialmente capazes de avaliar elementos de realidade, mas que não são suficientemente profundas (as formas de recepção) a ponto de alterar as constatações gerais e as formas práticas para enfrentar os problemas identificados. Embora algumas constatações possam apenas parcialmente contrariar os interesses das classes dominantes, as soluções propostas apenas confirmam tais interesses. Fayol e Etzioni são autores que expressam muito bem essa posição. Diferentemente é o caso de Taylor, Mayo e Drucker, que manifestam não apenas uma clara oposição ao ideário marxista, como também promovem leituras da realidade profundamente deficientes. Seus diagnósticos e soluções práticas não vão além daquela “paz industrial” que Fayol projetou como resultado sempre temporário de uma conciliação improvável, impossível, e que assume na tríade desses autores outras expressões, como prosperidade para empregadores e empregados (Taylor), colaboração de todo coração (Mayo) e integração dos trabalhadores como parceiros da indústria (Drucker). Esse foi, porém, o limite de Fayol ao discutir o problema da remuneração da força de trabalho.

Fayol bem que poderia ir adiante e constatar que a administração vive da contradição entre capital e trabalho e, por isso, é impotente na superação dessa relação. Poderia avaliar a necessidade de essa relação de dominação, que se expressa como conflito entre capital e trabalho, ser superada. Superação que se apresenta como condição para a construção de outra formação social, para além da divisão em classes. O mesmo poderia ser dito em relação a Etzioni, cuja constatação da cisão real e efetivamente posta entre propriedade e trabalho não foi suficiente para intervir na solução prática que apresenta, pois, construir “organizações” (“tão racionais quanto o possível e, ao mesmo tempo, produzam um mínimo de efeitos laterais indesejáveis e o máximo de satisfação”, ETZIONI, 1964ETZIONI, A. Modern organizations. New Jersey: Prentice-Hall, 1964., p. 2; 1972, p. 8) que não superam essa cisão, é o mesmo que naturalizar a forma social existente como se esta fosse necessariamente a última forma que a humanidade pôde encontrar, é propor aos dominados mais de sua dominação. Esse movimento leva os dois autores às soluções também postas, cada um à sua forma, por Taylor, Mayo e Drucker. Mas esse ir adiante para ambos (Fayol e Etzioni) significaria ter de enfrentar suas próprias posições sociais ligadas imediata ou mediatamente com determinados interesses. Particularmente Etzioni teria dificuldades em lidar com a posição alegadamente neutra que buscou sustentar, posição muito cara aos representantes das classes dominantes. Ainda assim, puderam constatar, no conjunto e desconsiderando as viscerais distinções entre os dois autores aludidos por último, a existência do conflito entre capital e trabalho, os limites das medidas administrativas, mesmo a problemática cisão entre propriedade e trabalho e a alienação que aí se arma. Desse ângulo, Fayol e Etzioni (especialmente este último) possuem um ponto de vista mais desenvolvido do que seus colegas, ainda que seja um ponto de vista limitado, dados os condicionamentos dos interesses de classe que inevitavelmente implicam suas análises e soluções práticas.

Ainda assim, mesmo contendo uma complexidade maior do que frequentemente se supõe, no geral, a recusa e a absorção relativa ajudam a revelar a divergência entre a expressão teórica segundo o interesse do capital e a crítica como expressão de “uma classe específica”, nos termos marxianos indicados antes, cuja “missão histórica é o revolucionamento do modo de produção capitalista e a abolição final das classes” (MARX, 2013MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1., p. 87). O esboço de certa preocupação tanto com os interesses do capital (aumento da produtividade, maior valorização possível do capital) quanto com as necessidades sociais do trabalho (melhores condições de trabalho, menor frustração, melhores salários etc.) apareceu nas considerações dos autores aqui indicados – ainda que tal preocupação seja dada nos limites possíveis da preservação da própria relação entre capital e trabalho e largamente por efeito das próprias reivindicações dos movimentos trabalhistas, e não de sua superação (como pretendia Marx e o movimento comunista). Mas nenhum deles, com exceção de Etzioni, defendeu abertamente uma posição de neutralidade. Possivelmente por influência da sociologia weberiana e sua conhecida neutralidade axiológica ou “liberdade de valores” (cf. WEBER, 2001WEBER, M. A ‘objetividade’ do conhecimento na ciência social e na ciência política. In: WEBER, M. Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2001. v. I.), buscou colocar-se como teorização supraclasse. A análise dessa própria elaboração de Etzioni, no entanto, mostra a fragilidade dessa posição, uma vez que termina por se revelar, não nos marcos da transformação social, mas no de sua preservação, ainda que alcance o problema fundamental do capitalismo: uma dada forma da cisão entre trabalho e propriedade privada em que esta se torna capital e exerce seu domínio sobre aquele. Interessantemente, o ponto de vista mais desenvolvimento no interior do pensamento administrativo capturou a existência do conflito como atributo da realidade mesma, capturou a cisão entre trabalho e propriedade e a dominação desta sobre aquele, expressou relativamente o problema da alienação e, ao mesmo tempo, manteve-se segundo os interesses das classes predominantes, sob as vestes de uma alegada neutralidade supraclasses. Por que esse resultado? Porque parte do princípio, adequado às classes dominantes, de que a dominação da propriedade sobre o trabalho é algo insuperável, ao passo que precisa reconhecer como legítimas algumas reivindicações, particularmente as inspiradas pelos movimentos trabalhistas. É nesses termos que podemos constatar algum sincretismo na elaboração desses autores do pensamento administrativo, porque reflete os diferentes estágios de desenvolvimento do capitalismo e da luta de classes.

E nossa investigação também ajuda a revelar que há uma clara má leitura feita por alguns autores do pensamento administrativo acerca do pensamento marxiano. Mayo, Drucker e Etzioni mostram que não se conhece o adversário teórico direto nem aquilo que se pretende absorver como influência, ainda que “em menor grau”. As considerações de Drucker sobre uma alegada identidade entre o marxismo e o totalitarismo, a consideração de Mayo acerca de uma suposta irrelevância do marxismo para a sociedade industrial, a redução de Etzioni da alienação à frustração e ao desconhecimento do processo de trabalho e, por fim, a minoração da alienação assim entendida, por parte também deste autor, ao passo que se preserva as suas causas fundantes (cisão da propriedade e do trabalho), dão as provas dessa má leitura. Por vezes, a impressão com a leitura dos textos dos autores mencionados é a de que nenhum deles pôde empreender estudo dedicado dos problemas apresentados pelos materiais de Marx ou mesmo de marxistas. Essa impressão se forma principalmente porque as críticas apresentadas, no caso de Mayo e Drucker, parecem ser muito mais direcionadas a uma caricatura do autêntico ideário marxista, ao senso comum que se formou na transição entre os séculos XIX e XX – sobretudo pelo embate ideopolítico iniciado principalmente com a revolução russa de 1917. No caso de Etzioni, ficou a impressão de uma leitura sociológica produzida e disseminada no meio universitário ao longo dos anos da década de 1950. Nenhum dos autores mencionados trata diretamente de Marx; lutam, pois, somente contra (ou, no caso de Etzioni, assimilam “em certo grau”) sua sombra. Esse privilégio, no entanto, não pertence somente a Mayo e Drucker, mais diretamente. O século XXI testemunha aberrações da pior estirpe11 11 “Marx, como todos sabem, queria que administradores e capitalistas fossem enforcados”, disse Stephen Kanitz no seu mais recente livro, A missão do administrador, apresentado provisoriamente em: <http://administrador.pressbooks.com/chapter/200/>. Acesso em: 21 ago. 2014. Como é óbvio, o autor não consegue dar provas de um descalabro como esse. .

Por fim, nossa pesquisa também é um estímulo aos estudantes na retomada da leitura dos clássicos por eles mesmos. Referimo-nos não apenas a Marx, Weber e outros, mas também aos autores do pensamento administrativo propriamente, uma vez que o acesso a eles tem sido dado por mediação de livros didáticos, que não são necessariamente interessados em uma perspectivação crítica da elaboração teórica, do alcance e dos limites do pensamento administrativo quando prismado a partir dos problemas sociais reais, e não restritos aos interesses econômicos dominantes. Se o presente estudo servir de estímulo à leitura de rigor, já terá alcançado algum objetivo relevante.

  • 1
    Tragtenberg (1974, grifo do autor)TRAGTENBERG, M. Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática, 1974. considera as “teorias da administração” “[...] ideológicas como falsa consciência da realidade” (p. 16). Explicou que “a teoria da administração é ideológica, na medida em que traz em si a ambiguidade básica do processo ideológico, que consiste no seguinte: vincula-se ela às determinações sociais reais, enquanto técnica (de trabalho industrial, administrativo, comercial) por mediação do trabalho; e afasta-se dessas determinações sociais reais, compondo-se num universo sistemático organizado, refletindo deformadamente o real, enquanto ideologia ” (p. 89). Realizamos nossa discussão tentando capturar o ponto máximo de desenvolvimento do pensamento administrativo na captura das contradições sociais e, por isso, não seria coerente ter como ponto de partida analítico a consideração desse pensamento como falsa consciência da realidade, como uma apreensão deformada da realidade. Ao contrário, nossa pesquisa mostra, assumindo que Tragtenberg está correto em destacar as “determinações sociais reais”, que essa “deformação do real” como produto de uma “falsa consciência” não resume bem o pensamento administrativo. Além do mais, é preciso destacar que o pensamento administrativo não é monolítico, um “universo sistemático organizado”. Trata-se do reflexo das determinações sociais, mas muito ligado aos interesses sociais. Nesse sentido, não abordamos o pensamento administrativo pelas trilhas das discussões sobre “ideologia”. As discussões são inúmeras e possuem muitas dificuldades (p. ex. KONDER, 2002KONDER, L. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.; MÉSZÁROS, 1993MÉSZÁROS, I. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Ensaio, 1993.; 2004MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.; VAISMAN, 1996VAISMAN, E. Determinação marxiana da ideologia. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.; 2010VAISMAN, E. A ideologia e sua determinação ontológica. Verinotio, v. 12, n. 6, p. 40-64, 2010. Disponível: <http://www.verinotio.org/conteudo/0.49365995032122.pdf>. Acesso em: 18 out. 2014.
    http://www.verinotio.org/conteudo/0.4936...
    ; ZIZEK, 1996ZIZEK, S. (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.). Então, deliberadamente optamos por desenvolver – como a introdução já revela ao seguirmos Marx de A ideologia alemã – a questão das ideias dominantes e as ideias adversárias ligadas às diferentes classes sociais sem prejuízo para a análise. Como mostramos na introdução, trata-se de uma apreensão, inclusive, da divisão do trabalho no interior das classes dominantes e as variações possíveis. Mas uma discussão inteiramente dedicada ao pensamento administrativo e aos problemas trazidos pelo debate sobre a ideologia requer um espaço exclusivo, o que inclui uma análise da compreensão que o próprio Tragtenberg faz sobre a ideologia. Trata-se de algo ainda em desenvolvimento, cujos traços iniciais já foram apontados por outros estudos (cf. PAÇO CUNHA; GUEDES, 2015PAÇO CUNHA, E.; GUEDES, L. T. A ideologia nos clássicos brasileiros da crítica marxista da administração. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS, 3., 2015, Vitória. Anais... Vitória, 2015.).
  • 2
    Frederick W. Taylor. Disponível em: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/584820/Frederick-W-Taylor>. Acesso em: 19 ago. 2014.
  • 3
    George Elton Mayo. Disponível em: <http://adb.anu.edu.au/biography/mayo-george-elton-7541>. Acesso em: 19 ago. 2014.
  • 4
  • 5
    Em outro momento, Drucker faz a seguinte pergunta e responde imediatamente: “O que, então, supera as inevitáveis contradições do capitalismo, a ‘alienação’ e a ‘pauperização’ da classe trabalhadora, e com isso toda a noção de proletariado? […] dois anos antes da morte de Marx, a Revolução da Produtividade já havia começado. Em 1881, um Americano, Frederick Winslow Taylor (1856-1915), primeiro a aplicar o conhecimento para o estudo do trabalho, à análise do trabalho, e à engenharia do trabalho […]. Taylor, em outras palavras, viu o que Marx viu – o mesmo que Disraeli, Bismarck e Henry James. Mas ele viu o que eles falharam em ver: que o conflito era desnecessário. Ele tornou os trabalhadores produtivos de modo que pudessem ganhar dinheiro decente” (DRUCKER, 2003DRUCKER, P. F. A functioning society. London: Transaction Publishers, 2003., p. 163).
  • 6
    Jules Henri Fayol. Disponível em: <http://www.annales.org/archives/x/fayol.html>. Acesso em: 19 ago. 2014.
  • 7
    Sem mencionar o fato de que é um autor muito mais complexo do que frequentemente se supõe. Dada a evidente porosidade de Fayol às influências da filosofia, da política, do direito, mas também da ciência positiva e outras mais, destaca-se como um autor muito mais abrangente do que os livros didáticos têm conseguido expressar.
  • 8
    Amitai Etzioni. Disponível em: <http://www.asanet.org/about/presidents/Amitai_Etzioni.cfm>. Acesso em: 19 ago. 2014.
  • 9
    Uma crítica do caráter abstrato desse operatório, que também aparece em Etzioni, pode ser vista em Paço Cunha (2012)PAÇO CUNHA, E. Critical notes on (weberian) marxist study of bureaucracy. In: ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS – ANPAD, 7., 2012, Curitiba. Anais... Curitiba, 2012..
  • 10
    Essa é uma das discussões mais ricas e ao mesmo tempo mais nebulosas na história do marxismo. Além das polêmicas acerca da diferença da terminologia entre entfremdung (para estranhamento) e entäußerung (para alienação) (cf. COSTA, 2005COSTA, M. H. M. da. A diferença entre as categorias alienação e estranhamento nos manuscritos econômico-filosóficos de Karl Marx de 1844. Verinotio, n. 3, ano 2, p. 1-7, 2005. Disponível em: <http://www.verinotio.org/conteudo/0.5432116534032.pdf>. Acesso em: 18 out. 2014.
    http://www.verinotio.org/conteudo/0.5432...
    ), a discussão marxiana contida nos próprios Manuscritos (2004) e nos materiais subsequentes (como a crítica de Marx a Proudhon, de que não se supera a contradição da produção capitalista pela elevação da consciência do trabalhador acerca de todo o processo de produção do alfinete, alcançando uma “consciência de alfinete”, cf. MARX, 1985MARX, K. A miséria da filosofia. São Paulo: Global, 1985., p. 132-135), muitos outros trabalhos indicam, por comparação, a existência de uma redução de Etzioni ao identificar alienação com desconhecimento e frustração. Remetemos o leitor ao conhecido texto de Mészáros (2006)MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006. e ao último capítulo de Para uma ontologia do ser social, de Lukács (2013)LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2013. v. II.. Desse ângulo, Etzioni se aproxima muito mais da acepção apenas vernacular quando abandona a cisão entre propriedade e trabalho e assume apenas as consequências de superfície da produção capitalista. O contrário teria forçado nosso autor em direção a conclusões que destoariam de suas posições. Esse limite é posto pelas ambições, como veremos, de neutralidade que nosso autor sustenta.
  • 11
    “Marx, como todos sabem, queria que administradores e capitalistas fossem enforcados”, disse Stephen Kanitz no seu mais recente livro, A missão do administrador, apresentado provisoriamente em: <http://administrador.pressbooks.com/chapter/200/>. Acesso em: 21 ago. 2014. Como é óbvio, o autor não consegue dar provas de um descalabro como esse.

Referências

  • BRAVERMAN, H. Labor and monopoly capital New York: Monthly Review Press, 1998.
  • COPLEY, F. B. Frederick W. Taylor: father of scientific management. [s.l.]: Harper and Brothers, 1923. v. 1.
  • COSTA, M. H. M. da. A diferença entre as categorias alienação e estranhamento nos manuscritos econômico-filosóficos de Karl Marx de 1844. Verinotio, n. 3, ano 2, p. 1-7, 2005. Disponível em: <http://www.verinotio.org/conteudo/0.5432116534032.pdf>. Acesso em: 18 out. 2014.
    » http://www.verinotio.org/conteudo/0.5432116534032.pdf
  • DRUCKER, P. F. A functioning society London: Transaction Publishers, 2003.
  • DRUCKER, P. F. The concept of the corporation New York: John Day, 1983.
  • ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico São Paulo: Global, 1980.
  • ETZIONI, A. Modern organizations New Jersey: Prentice-Hall, 1964.
  • ETZIONI, A. Organizações modernas São Paulo: Pioneira, 1972.
  • FARIA, J. H. Economia política do poder Curitiba: Juará, 2004.
  • FAYOL, H. Administração industrial e geral São Paulo: Atlas, 1964.
  • FAYOL, H. Administration industrielle et générale Paris: Dunod, 1931.
  • GURGEL, C.; JUSTEN, A. Teorias organizacionais e materialismo histórico. Organizações & Sociedade, Salvador, v. 22, n. 73, p. 199-221, abr./jun. 2015.
  • KONDER, L. A questão da ideologia São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
  • KONDER, L. O futuro da filosofia da práxis Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
  • LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social São Paulo: Boitempo, 2013. v. II.
  • MARX, K. A miséria da filosofia São Paulo: Global, 1985.
  • MARX, K. Grundrisse São Paulo: Boitempo, 2011a.
  • MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos São Paulo: Boitempo, 2004.
  • MARX, K. O capital São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1.
  • MARX, K. O 18 Brumário de Luiz Bonaparte São Paulo: Boitempo, 2011b.
  • MARX, K. Prefácio. Para a crítica da economia política. In: MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos e outros escritos São Paulo: Abril, 1974.
  • MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã São Paulo: Boitempo, 2007.
  • MARX, K.; ENGELS, F. O manifesto do partido comunista São Paulo: Boitempo, 1998.
  • MAYO, E. The human problems of an industrial civilization New York: Routledge, 2003.
  • MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx São Paulo: Boitempo, 2006.
  • MÉSZÁROS, I. Filosofia, ideologia e ciência social São Paulo: Ensaio, 1993.
  • MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia São Paulo: Boitempo, 2004.
  • MOTTA, F. C. P. Teoria das organizações: evolução e crítica. 2. ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001.
  • NETTO, J. P. O que é marxismo São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção primeiros passos.)
  • PAÇO CUNHA, E. Braverman, subjetividade e função de direção na produção do valor. Cadernos EBAPE.BR, Apresentação, Rio de Janeiro, v. 12, n. 4, out./dez. 2014.
  • PAÇO CUNHA, E. Critical notes on (weberian) marxist study of bureaucracy. In: ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS – ANPAD, 7., 2012, Curitiba. Anais.. Curitiba, 2012.
  • PAÇO CUNHA, E.; GUEDES, L. T. A ideologia nos clássicos brasileiros da crítica marxista da administração. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS, 3., 2015, Vitória. Anais.. Vitória, 2015.
  • ROSENBERG, A. Democracia e socialismo São Paulo: Global, 1986.
  • SARTRE, J. P. Search for a method New York: Alfred A. Knopf, 1963.
  • TAYLOR, F. W. Princípios de administração científica São Paulo: Atlas, 1995.
  • TRAGTENBERG, M. Burocracia e ideologia São Paulo: Ática, 1974.
  • VAISMAN, E. A ideologia e sua determinação ontológica. Verinotio, v. 12, n. 6, p. 40-64, 2010. Disponível: <http://www.verinotio.org/conteudo/0.49365995032122.pdf>. Acesso em: 18 out. 2014.
    » http://www.verinotio.org/conteudo/0.49365995032122.pdf
  • VAISMAN, E. Determinação marxiana da ideologia Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
  • WEBER, M. A ‘objetividade’ do conhecimento na ciência social e na ciência política. In: WEBER, M. Metodologia das ciências sociais São Paulo: Cortez, 2001. v. I.
  • WEBER, M. Economia e sociedade Brasília: UnB, 1999. v. 2.
  • WOOD, E. As origens do capitalismo Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
  • XENOFONTE. Econômico São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • ZIZEK, S. (Org.). Um mapa da ideologia Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2015
  • Aceito
    11 Abr 2016
Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia Av. Reitor Miguel Calmon, s/n 3o. sala 29, 41110-903 Salvador-BA Brasil, Tel.: (55 71) 3283-7344, Fax.:(55 71) 3283-7667 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: revistaoes@ufba.br