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A consciência como "ponto de partida"

Consciousness as starting point

Resumos

O desenvolvimento da psicologia científica, a partir de W. James, passou a implicar uma questão da mente e da consciência. Esta foi negada como objeto de conhecimento científico pelo behaviorismo, tem sido estudada nos seus aspectos funcionais pela ciência cognitiva e neurociências e enfrenta o desafio hoje de dar conta da relação entre a experiência subjetiva e os processos físicos do cérebro. Arno Engelmann vem examinando a consciência como ponto de partida da questão, com uma contribuição especial ao seu desenvolvimento no Brasil.

consciência; experiência subjetiva; cérebro


The development of the scientific psychology, starting with W. James, evolves the issue of the mind and the consciousness. Behaviorism refused the consciousness as scientific subject; the recent advances of Cognitive Science and Neuroscience develop its functional aspects. The present challenge is to consider the relationship between subjective experience and the physical processes of the brain. Arno Engelmann is examining the Consciousness as the starting point of the issue, offering a special contribution to its development in Brazil.

consciousness; subjective experience; brain


SEÇÃO ESPECIAL - ARNO ENGELMANN

A consciência como "ponto de partida"

Consciousness as starting point

José Lino Oliveira Bueno

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: José Lino de Oliveira Bueno Departamento de Psicologia e Educação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto Av. Bandeirantes; 3900, Monte Alegre CEP.14040-901. E-mail: jldobuen@ffclrp.usp.br

RESUMO

O desenvolvimento da psicologia científica, a partir de W. James, passou a implicar uma questão da mente e da consciência. Esta foi negada como objeto de conhecimento científico pelo behaviorismo, tem sido estudada nos seus aspectos funcionais pela ciência cognitiva e neurociências e enfrenta o desafio hoje de dar conta da relação entre a experiência subjetiva e os processos físicos do cérebro. Arno Engelmann vem examinando a consciência como ponto de partida da questão, com uma contribuição especial ao seu desenvolvimento no Brasil.

Palavras-chave: consciência, experiência subjetiva, cérebro

ABSTRACT

The development of the scientific psychology, starting with W. James, evolves the issue of the mind and the consciousness. Behaviorism refused the consciousness as scientific subject; the recent advances of Cognitive Science and Neuroscience develop its functional aspects. The present challenge is to consider the relationship between subjective experience and the physical processes of the brain. Arno Engelmann is examining the Consciousness as the starting point of the issue, offering a special contribution to its development in Brazil.

Key-words: consciousness, subjective experience, brain.

Na Introdução dos "Princípios de Psicologia", W. James (1890) identifica a Psicologia como a "ciência da vida mental". Para ele, a essência da vida mental e a da vida corporal são "o ajustamento das relações internas às externas'' e este deve se dar através de uma mente ativa e seletiva, que habita ambientes. Segundo W. James (1890), a consciência é um dos fenômenos psicológicos de nível superior que influencia e é influenciado por processos fisiológicos de nível inferior. Entretanto, se existe um mecanismo biológico subjacente a propriedades psicológicas, a sua identificação não leva a uma abordagem reducionista. Este mecanismo biológico será melhor compreendido a partir de uma análise integrada com múltiplos níveis de organização do contexto ambiental e social: os fenômenos sociais e psicológicos modelam os eventos fisiológicos, de maneiras não evidentes a partir de estudos da fisiologia isolados do contexto social e ambiental no qual estes se manifestam.

Com esta concepção - que nega o reducionismo fisiológico e valoriza os processos mentais ativos na relação com o ambiente - W. James coloca a questão que vai estar presente em toda a Psicologia científica subseqüente, a de preencher "o abismo explicativo que se coloca entre os mundos interno e externo", ou, mais modernamente, entre uma experiência subjetiva e um cérebro físico. Quando se pensa que a mente é algo diferente da matéria, fica o problema cartesiano de explicar a interação entre estes dois mundos. Se se nega a existência de uma mente separada e se reconhece apenas um cérebro físico com seus neurônios, está-se negando a experiência subjetiva que se tem. Mas, quando se aceita, como W. James, a experiência subjetiva e ao mesmo tempo o cérebro físico, tem-se que superar o "abismo entre os mundos interno e externo".

Examinando o desenrolar histórico da questão, verifica-se que, a princípio, o behaviorismo desenvolveu uma psicologia científica que ignora o fenômeno mental, incluído o da consciência, como objeto de estudo científico. Entretanto, diante dos avanços da ciência cognitiva e das neurociências, desenvolveu-se, nas últimas décadas, uma compreensão dos correlatos neurais da consciência. Terão estes desenvolvimentos do behaviorismo, da ciência cognitiva ou das neurociências dado conta da questão da superação do "abismo entre os mundos interno e externo"?

A consciência ignorada

Embora recolhendo a herança pragmatista de W. James, o behaviorismo aparece com uma proposta de reduzir o estudo do comportamento à compreensão das relações do organismo com o contexto. A mente, e por extensão a consciência, são ignoradas dentro de um projeto de ciência psicológica.

Watson (1913) considera que a definição da psicologia como ciência da consciência estava na base das dificuldades encontradas pelos psicólogos da época, com o emprego de métodos de introspecção em humanos e de comparações por analogia entre animais e seres humanos. Para se tornar uma verdadeira ciência, a psicologia deveria estar centrada no estudo do comportamento objetivamente observável, recusando qualquer "tratamento convencional" da consciência: "nunca usar os termos consciência, estados mentais, mente, conteúdo, verificável introspectivamente, imagens e coisas parecidas" (Watson, 1913, p. 166). A proposta de Watson visava proporcionar confiabilidade e generalidade suficientes para a psicologia se tornar uma ciência natural.

O behaviorismo vai alcançar um impacto maior, mais tarde, com Skinner. Menos preocupado com os métodos naturais, ele centra sua proposta na explicação científica (Skinner,1990) e denomina de behaviorismo radical a ciência do comportamento baseada no desenvolvimento de termos e conceitos que permitissem explicações válidas, ou seja, compreensíveis. O mentalismo é um termo que, segundo ele, refere-se a um tipo de explicação que, de fato, não esclarece nada e uma ciência do comportamento não pode se apoiar em colocações mentalistas que aparecem na linguagem cotidiana como causas do comportamento, mas são fictícias, assemelham-se a explicações, contudo impedem a busca das origens reais do comportamento, que se encontram no ambiente. Termos coloquiais mentalistas devem ser substituídos por outros novos, descritivos, mais apropriados para permitir a análise do comportamento.

Para Skinner, a distinção entre eventos públicos e privados não é tão importante. Ela pode corresponder grosseiramente à que existe entre mundo subjetivo e objetivo e não tem para o autor um significado especial.

Para os behavioristas radicais, a única diferença entre eventos privados e públicos está no número de pessoas que podem relatá-los, sendo que o privado nunca pode ser reportado por mais de uma pessoa, mesmo que outras estejam presentes. Entretanto, eventos privados têm a mesma propriedade dos públicos, ou seja, são naturais e suas origens encontram-se no ambiente. O comportamento, por sua vez, nunca se origina de eventos privados.

Baum (1999), mais recentemente, comenta que para o behaviorista a noção de consciência não tem nenhuma utilidade para a compreensão científica do comportamento. Se a distinção mundo interno - externo é recusada - como o faz o behaviorista - a noção de consciência perde sentido, uma vez que está associada a um "eu autônomo interno que olha para o mundo externo através dos sentidos ou olha para o mundo interno da mente", tornando-se consciente dos dois. Assim, resta ao cientista tentar entender em que ocasiões as pessoas tendem a usar a palavra "consciente", podendo-se analisar como elas aprendem a falar utilizando expressões como "estar consciente", ou que eventos ocasionam esse tipo de discurso.

Machado (1997) argumenta que o uso do termo "consciência", para o behaviorista, pode estar relacionado com a capacidade de descrever o que se está fazendo, de forma verbal, manifesta ou encoberta, e tem a ver com o controle de comportamento por regras.

A consciência descrita

Embora o behaviorismo, por cerca de meio século, tenha procurado abolir da psicologia toda referência à consciência, esta noção está de volta sob impacto dos desenvolvimentos da ciência cognitiva e das neurociências. A partir da década de 80, a consciência passa a ser examinada intensivamente através de teorias computacionais ou do estudo de mecanismos neurais, visando a descrição dos aspectos funcionais da experiência consciente. Recursos da Inteligência Artificial e de modelagem neural aumentam a compreensão do cérebro e seu escaneamento através de novas técnicas oferecem correlatos detalhados de funções da consciência.

Andrieu (1998) mostra como, com este desenvolvimento, estados conscientes tendem a ser reduzidos as suas bases neurofisiológicas ou físicas. O materialismo eliminativista de F. Crick, P. e Patricia Churchland, T. Sejnowski, C. Koch, sustenta que os estados mentais não existem, mas que há apenas estados neurobiológicos. Para os psicólogos funcionalistas J. Fodor e P. Johnson-Laird, é suficiente descrever os processos de pensamento sob suas formas algorítimicas, sustentando assim uma homologia matemática entre cérebro e inteligência. D. Dennett propõe que o cérebro é apenas uma máquina semântica: somos máquinas com cérebros processadores de informação que produzem representações de ordem superior de nossos processos de ordem inferior. O modelo de homem neuronal passa a se confundir com o do homem "machinal", segundo a expressão de A. Green (Andrieu, 1998).

A consciência explicada ou "o problema difícil"

Blackmore (2001) descreve diversos dados experimentais controvertidos que estão implicados na discussão dos avanços destas concepções reducionistas e conclui que se está em um "tolo atoleiro". Ao mesmo tempo, outros filósofos e pesquisadores contestam esta abordagem centrada nos aspectos funcionais da experiência consciente. O neurofisiólogo Changeux (Connes, 1990) emprega a noção de máquina apenas como uma metáfora ou analogia, uma vez que recusa a redução do mental ao neural. Searle (1994) - talvez um dos críticos mais severos dos teóricos da ciência cognitiva - aponta que a dificuldade maior destas teorias - inclusive a de Changeux - é que pressupõem uma concepção de realidade de terceira pessoa, que "não tem lugar para a consciência, porque não tem lugar para a subjetividade ontológica" (pág. 101).

Embora quase todo mundo concorde que quando se fala em consciência, está-se falando de subjetividade, as divergências começam quando se tem que abordar a experiência subjetiva. A questão proposta por W. James do "abismo entre os mundos interno e externo" tem sua versão atual naquilo que David Chalmers chamou de "problema difícil da consciência" (Chalmers, 1996).

Por outro lado, Teixeira (1997) mostra como as explicações dos aspectos funcionais da experiência consciente, desenvolvidos pelas abordagens reducionistas neurobiológicas e cognitivas, são considerados "problemas fáceis" por Chalmers e não caracterizam os verdadeiros problemas colocados pela consciência. Mesmo quando se tem explicações para o desempenho das funções relevantes conscientes, permanece a questão de explicar por que o seu desempenho é acompanhado por experiências conscientes. O "problema difícil" da consciência é o de como caracterizar o aspecto subjetivo da experiência consciente. E, por extensão, como processos físicos no cérebro podem ocasionar experiência subjetivas, internas?

Chalmers (1996) coloca, desta forma, o problema filosófico da consciência. O importante é que, nesta perspectiva, a consciência deixa de ser o ponto de chegada de teorias da mente, elaboradas no contexto da neurobiologia ou da ciência cognitiva, freqüentemente por pesquisadores notáveis, mas que desconhecem a especificidade da questão posta pela Filosofia e Psicologia. A consciência passa a ser o ponto de partida para qualquer teoria da mente. A busca da superação do "abismo entre os mundos interno e externo", da compreensão da experiência subjetiva na sua relação com o mundo, torna-se um ponto irrecusável para o entendimento do fenômeno da consciência. E é neste contexto teórico que a investigação de Engelmann, desenvolvida há 30 anos no Brasil, adquire uma importância especial.

O estudo da consciência, segundo Engelmann

Engelmann (1997a, 1997b, 2001, 2002) se propõe a examinar as condições de possibilidade do conhecimento empírico acerca da consciência. Para tanto, parte do reconhecimento da experiência consciente, una e momentânea. Contudo, admite-se que o conhecimento científico dá-se pela passagem de uma observação individual para um universo coletivo e temporal das ciências naturais, e portanto é necessário discutir as características da consciência que tornarão este conhecimento possível. Para Engelmann, ela é o ponto de partida para uma teoria da mente, uma filosofia que é intrínseca ao esforço de se buscar a compreensão do desempenho de suas funções. Uma subjetividade ontologicamente entendida seria a condição para a compreensão das atividades conscientes e de suas possibilidades de alcançar o plural do mundo exterior.

A história da pesquisa psicológica no Brasil foi marcada pelo impacto, na década de 60, da introdução do behaviorismo radical de B.F.Skinner. 1 1 Com o regime novo de pós-graduação do país, veio a formação de núcleos de pesquisa, com sistema conceitual e bem definidos, sendo característica forte dos programas de pós-graduação em psicologia, a sua capacidade de interagir com outras áreas de conhecimento, das ciências físicas, biológicas e humanas. O Departamento de Psicologia Experimental do IPUSP, onde Engelmann vem trabalhando há mais de 30 anos, foi um dos polos importantes de concentração deste esforço de formação de núcleos de pesquisa, com enfoque interdisciplinar.

É nesse contexto que Engelmann se propunha, já há 30 anos atrás, a dar conta de uma questão epistemológica, a da consciência. De um lado, beneficiava-se da sua formação filosófica, com uma ênfase mais ensaísta, que restrita ao rigor na leitura dos clássicos. Por outro lado, era leitor e estudioso dedicado de autores como Kohler, Tolman, cujas abordagens não podiam estar contidas nos limites do behaviorismo radical. Com esta bagagem, Engelmann (1978) passa a investigar o uso de relatos verbais como formas de acesso aos estados de ânimo presentes. Este enorme trabalho empírico - sua Tese de Doutorado, publicada pela Editora Ática - foi sendo acompanhado de investigações teóricas que se desdobravam em aulas, conferências e publicações sobre a questão da consciência (Engelmann, 1997a, 1997b, 2001, 2002). Engelmann foi, desta maneira, oferecendo subsídios para um diálogo permanente com os avanços, seja do behaviorismo, seja da ciência cognitiva e das neurociências, no âmbito da psicologia brasileira, trazendo ao debate sobre os fundamentos e avanços da psicologia, durante décadas, tanto colegas, estudantes, como a comunidade científica em geral.

Este artigo é dedicado à memória de José Augusto Silveira.

  • Andrieu, B. (1998). La Neurophilosophie Paris: PUF.
  • Baum, W. (1999). Compreender o Behaviorismo. Ciência, Comportamento e Cultura ( M.T.A. Silva, M.A Matos, G. Tomanari, & Z. Tourinho, Trads.). Porto Alegre: Artmed.
  • Blackmore, S. (2001). State of the art: Consciousness. The Psychologist, 14(10), 522-525.
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  • Engelmann, A. (1978). Os estados subjetivos: uma tentativa de classificação de seus relatos verbais São Paulo: Ática.
  • Engelmann, A. (1997a). Dois tipos de consciência: a busca da autenticidade. Psicologia USP, 8(2), 25-67.
  • Engelmann, A. (1997b). Principais modos de pesquisar a consciência-mediata-de-outros. Psicologia USP, 8(2), 251-274.
  • Engelmann, A. (2001). O meu-mundo e o resto-d-mundo. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14 (1), 211-223.
  • Engelmann, A. (2002). Da conceituação de estado subjetivo até a proposição dos escalões de percepto. Psicologia: Reflexão e Crítica, (prelo).
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  • Machado, L. M. C. M. (1997). Consciência e Comportamento Verbal. Psicologia USP, 8(2), 1001-1007.
  • Searle, J. R. (1994). The Rediscovery of the Mind Cambridge, MIT Press.
  • Skinner, B.F. (1990). Can psychology be a science of mind? American Psychologist, 45 (11), 1206-1210.
  • Teixeira, J.F. (1997). A teoria da Consciência de David Chalmers. Psicologia USP, 8(2), 109-128.
  • Watson, J.P. (1913). Psychology as the behaviorist views it. Psychological Review, 20, 158-177.
  • Endereço para correspondência:

    José Lino de Oliveira Bueno
    Departamento de Psicologia e Educação
    Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
    Av. Bandeirantes; 3900, Monte Alegre
    CEP.14040-901.
    E-mail:
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    Com o regime novo de pós-graduação do país, veio a formação de núcleos de pesquisa, com sistema conceitual e bem definidos, sendo característica forte dos programas de pós-graduação em psicologia, a sua capacidade de interagir com outras áreas de conhecimento, das ciências físicas, biológicas e humanas. O Departamento de Psicologia Experimental do IPUSP, onde Engelmann vem trabalhando há mais de 30 anos, foi um dos polos importantes de concentração deste esforço de formação de núcleos de pesquisa, com enfoque interdisciplinar.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      2002
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