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Fronteiras Trabalho e Pena: das Casas de Correção às PPPs Prisionais

Boundaries, Labor and Punishment: from Reformatory Institutions to PPP Prisons

Fronteras, Trabajo y Pena: de las Correccionales a las Cárceles con Modalidad APP

Resumo

As práticas punitivas historicamente têm se apresentando ora como meio de garantir a existência de mão de obra, ora como meio de alocar aqueles que não se adéquam ao “correto” funcionamento social. Loucos, mendigos, pobres, dentre outros, formam um grupo de “ociosos” que, estando à margem da sociedade são apontados como possíveis alvos do confinamento nos muros das instituições totais, com a participação de profissionais do campo psi. Enclausurados, é possível transformá-los em corpos disciplinados e habilitados para o trabalho. Propõe-se neste artigo impulsionar a discussão acerca da relação trabalho e marginalidade interrogando o tipo de trabalho destinado aos fora da ordem e seu uso em contextos de encarceramento e assim criar condições e oferecer elementos para questionar as práticas psi no sistema prisional. Nessa linha enseja-se problematizar o projeto de Parcerias Público-Privadas no complexo penal. Ver-se-á que muito mais do que a improvável combinação de qualidade e eficiência apresentada pelos ideólogos da privatização, o que se observa é a conversão da prisão em um meio de controle lucrativo daqueles que não participam do mercado de consumo e de produção capitalista. Se fora das grades estes estão excluídos do modo de produção ou, ainda, sua produção não é capturável ou interessante ao capital, intramuros, são transformados em matéria-prima para alcançar o objetivo desse projeto de privatização: o lucro.

Trabalho; Marginalidade; Encarceramento; Prisões; Parcerias Público-Privadas

Resumen

Historicamente, las prácticas punitivas se han presentado ora como medio de garantizar la existencia de la mano de obra, ora como medio de alojar aquellos que no se ajustan al “correcto” funcionamiento social. Locos, mendigos, pobres y otros hacen parte de un grupo de “ociosos” que, por estar al margen de la sociedad, son vistos como posibles blancos del confinamiento en los muros de las instituciones totales, com la participación de profesionales de campo psi. Enclaustrados, es posible tornar los cuerpos disciplinados y habilitados para el trabajo. En este artículo se propone impulsar el debate acerca de la relación trabajo y marginalidad, buscando crear condiciones y ofrecer elementos que permitan cuestionar las prácticas psi en el sistema penitenciario. Siguiendo esta reflexión, se busca problematizar el proyecto de Asociaciones Público-Privadas en el sistema penal. Además de la improbable combinación entre calidad y eficiencia presentada por los ideólogos de la privatización, lo que se observa es la conversión de la cárcele nun medio de control lucrativo por medio de aquellos que no participan del mercado de consumo e de la producción capitalista. Si fuera de las rejas estes están excluídos del modo de producción - o, todavia, suproducción no es interesante al capital -, intramuros, son transformados en materia prima para alcanzar el objetivo de este proyecto de privatización: el lucro.

Marginalidad; Trabajo; Encarcelamiento; Prisiones; Asociaciones Público-Privadas

Abstract

Punitive practices had been historically presented either as a way to guarantee the labor availability, or as a way of allocating those who do not fit into to the “correct” social functioning. Crazy, beggars, poor people, among others, form a group of “idle” people who are on the margins of society and are cited as possible targets for total institutions containment walls, with the participation of psychology professionals. Cloistered, it is easier to produce disciplined bodies and, therefore, able to work. This paper aims to promote the discussion about the relationship between work and marginality, seeking to create condition and offer tools in order to question the psi practices in the prison system. This text also intends to discuss he public-private-partnership model on the penitentiary complex. More than the unforeseen combination of quality and efficiency stated by the privatization of prison’s ideologues, what it seems to occur is the conversion of the prison into a lucrative way to control those that do not participate in the mode of capitalist production. If outside bars they are deleted from the mode of production, within them, the same system that excludes them, transforms them into raw material in order to achieve the goal of this privatization project: profit.

Marginalization; Work; Incarceration; Prisons; Public-Private-Partnership

Considere-se! – Quem é castigado já não é aquele que realizou o ato. Ele é sempre o bode expiatório.

(Nietzsche, 1881/2004Nietzsche, F. W. (2004). Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais (P. C. Souza, trad.). SãoPaulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1881), p. 172)

Paris, 1656, Decreto de fundação do Hospital Geral. Nesse acontecimento, Michel Foucault (1972/2007) demarca a gênese simbólica da experiência clássica, o período da Grande Internação. O estopim que deu origem a esse projeto foi a crise econômica que assolava o país, tendo como consequência o confinamento de 1% da população parisiense.

O que se extrai desse marco e que permite a Foucault formular uma estrutura comum intrínseca à sua primeira arqueologia está na separação vertical entre a razão e a desrazão. Ponto fundamental para a compreensão da história da loucura, mas que permite também navegar por outra rota: a da massa populacional marcada pela ausência de recursos econômicos e sociais. Loucos, mendigos, pobres, idiotas, promíscuos, blasfemadores, prostitutas, crianças rebeldes, dentre outros, formam o grupo de ociosos confinados pelos muros do Hospital Geral de Paris, instituição que não se estruturou como um estabelecimento médico, mas como instância da ordem, da manutenção do poder. O imperativo que rege a funcionalidade dessa instituição é atribuído à proibição da mendicância, da ociosidade e da desordem, instituída pelo édito real de 27 de abril de 1656.

A partir de tal norma, a massa de pessoas considerada à margem da sociedade é transformada em marginais stricto sensu, incluídos na categoria de transgressores/delinquentes e, portanto, colocados sob a égide da jurisdição penal.

Se no período renascentista são as medidas de exclusão que imperam nos mandamentos reais – conforme as figuras da Nau dos loucos (Foucault, 1972/2007Foucault, M. (2007). A grande internação. In História da loucura na Idade Clássica (8a ed., J. T. Coelho Neto, trad.). São Paulo, SP: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1972)) e das Companhias de Arqueiros (Foucault, 1972/2007Foucault, M. (2007). A grande internação. In História da loucura na Idade Clássica (8a ed., J. T. Coelho Neto, trad.). São Paulo, SP: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1972)) que, situados nas muralhas das cidades impediam que os excluídos retornassem – na era clássica, tais medidas são substituídas pela detenção.

O trabalho aparece aqui como o grande propulsor desta mudança. Para Foucault (1972/2007Foucault, M. (2007). A grande internação. In História da loucura na Idade Clássica (8a ed., J. T. Coelho Neto, trad.). São Paulo, SP: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1972), p. 63) “o internamento foi exigido por razões bem diversas da preocupação com a cura. O que o tornou necessário foi um imperativo do trabalho”. Durante os períodos de crise o confinamento prevenia a revolta dos desempregados e nos períodos plenos possibilitava a obtenção de mão de obra barata.

Nesse contexto, o Hospital Geral, em Paris, foi a grande resposta aos problemas decorrentes da crise econômica no ocidente nos séculos XVI e XVII; na Inglaterra e Holanda, outra instituição emerge nos mesmos moldes funcionais que o Hospital Geral, as chamadas Casas de Correção Manufatureira1 1 . Sobre as casas de correção ver Rusche e Kirchheimer (1999/1939). . O principal objetivo dessas instituições era igualmente tornar útil a força de trabalho daquelas pessoas indesejáveis ao convívio social. Nas palavras de Rusche e Kirchheimer (1939/1999Rusche, G., & Kirchheimer, O. (1999). Punição e estrutura social. Rio de Janeiro, RJ: Freitas Bastos. (Trabalho original publicado em 1939).):

A primeira forma de prisão estava, então, estreitamente ligada às casas de correção manufatureiras. Uma vez que o objetivo principal não era a recuperação dos reclusos mas a exploração racional da força de trabalho, a maneira de recrutar os internos não era o problema central para a administração (p. 92).

De forma progressiva, tais instituições nortearam-se tendo como bula o mercado de trabalho. Rusche e Kirchheimer (1939/1999)Rusche, G., & Kirchheimer, O. (1999). Punição e estrutura social. Rio de Janeiro, RJ: Freitas Bastos. (Trabalho original publicado em 1939)., em sua obra sobre a relação entre as penas e a cultura que as produzem, apontam as inúmeras mudanças nos métodos punitivos que se iniciaram no século XVI, na medida em que paulatinamente se verificava a importância da preservação da força de trabalho, culminando com a grande demanda de mão de obra durante a revolução industrial.

Como observa Mattos (2006Mattos, V. (2006). Crime e psiquiatria; uma saída: preliminares para a desconstrução das medidas de segurança. Rio de Janeiro, RJ: Revan., p. 56), a revolução industrial “precisava regular a loucura, segregar e utilizar a mão de obra barata resultante da precariedade das relações de trabalho, barrar, conter a mendicância e a vagabundagem, canalizar os pobres de todo gênero para as fábricas, para a produção”, o que implicou mudanças significativas na concepção de trabalho em vigor, na busca por indivíduos produtivos e dóceis.

Já no capitalismo contemporâneo neoliberal essa mão de obra não mais é necessária; sem qualificação para atender as novas exigências do mundo do trabalho, sem valor, sem lugar, estes sujeitos flutuam entre pequenas ocupações, “bicos” e atividades marginais o que os constitui em clientela preferencial do sistema prisional. São inúteis para o mundo (Castel, 2009Castel, R. (2009). La montée des incertitudes : travail, protections, statut de l’individu. Paris: Seuil.) vivendo, como bem aponta Giorgio Agamben (2002Agamben, G. (2002). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG., p. 143), “vidas indignas de serem vividas” e, inseridos em uma espiral sem fim de marginalização e encarceramento.

A expansão do Estado penal, traduzida pela hipercriminalização das condutas, aumento ostensivo do encarceramento e do aparato de vigilância e controle encontra nos profissionais psi – psicólogos, psicanalistas e psiquiatras – um forte aliado. Notadamente alguns discursos e práticas advindos deste campo profissional, pautados em análises patologizantes dos comportamentos sociais, acabam por desconsiderar o contexto histórico, político e social da criminalidade e, por consequência, potencializar o que Rauter (2010)Rauter, C. (2010). Discurso e práticas psi no contexto do grande encarceramento. In P. V. Abramovay, & V. M. Batista (orgs.), Depois do grande encarceramento (pp. 195-205). Rio de Janeiro, RJ: Revan. irá denominar como dispositivos de criminalização. Para esta autora compreende-se por dispositivos de criminalização instituições e discursos que operando no campo penal incidem sob a produção subjetiva. Nesse sentido, os discursos psi se inserem nesse conjunto de dispositivos que, por vezes, se alinham e contribuem significativamente com os discursos punitivos. Para Rauter (2010Rauter, C. (2010). Discurso e práticas psi no contexto do grande encarceramento. In P. V. Abramovay, & V. M. Batista (orgs.), Depois do grande encarceramento (pp. 195-205). Rio de Janeiro, RJ: Revan., p.201), “os discursos psi têm reservado para si um lugar no capitalismo globalitário: o da produção de estigmas que permitam encarcerar o maior número de pessoas, se não, autorizar o extermínio (oficial ou não) desses que vivem vidas consideradas inúteis”.

Por sua vez, no interior das unidades prisionais, as práticas psi buscam legitimar os discursos à re: recuperação, reintegração, reeducação, sobretudo por meio do chamado PIR (Programa Individual de Ressocialização), disposto na Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984Brasil. (1984). Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm
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), que tem por finalidade a construção de um plano individual de ressocialização do condenado cujo pilar está posto na “oferta” de atividades de trabalho e de educação, o que se constituiria como a grande fórmula para a reinserção social. De maneira semelhante, encontramos tal ratificação de um ideal ressocializador das prisões nas Comissões Técnicas de Classificação – CTCs, cuja participação de psicólogos contribui para triar e classificar pessoas entre os aptos ao trabalho/escola e os não aptos (Barros, David, Silva, Tavares, Araújo, & Amaral, 2014) e, por vezes, como bem notara Rauter (2010)Rauter, C. (2010). Discurso e práticas psi no contexto do grande encarceramento. In P. V. Abramovay, & V. M. Batista (orgs.), Depois do grande encarceramento (pp. 195-205). Rio de Janeiro, RJ: Revan., corroborar com aplicações punitivas.

Entendemos que, do ponto de vista da Psicologia social latino-americana (Álvaro, & Garrido, 2003Álvaro, J. L., & Garrido, A. (2003). Psicología social perspectivas psicológicas y sociológicas. Madrid: McGraw-Hill/Interamericana.; Lane, & Bock, 2002Lane, S. T. M., Bock, A. M. B. (2002). ABRAPSO: uma história da psicologia social enquanto práxis. In A. M. Jacó-Vilela e t al. (Orgs), Psicologia social: relatos na América Latina (pp. 145-155). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.), a compreensão mais ampliada e crítica do processo sócio-histórico que insere o trabalho nas prisões poderá fornecer elementos para o entendimento das consequências psicossociais de tal arranjo socioespacial e para introduzir descontinuidades nos discursos e práticas psicológicas hegemônicas no sistema prisional. Assim, em seu compromisso político, faz-se necessário indicar a necessidade de questionamentos mais agudos sobre determinados modelos tomados de forma acrítica, como as parcerias público-privadas prisionais. Nesse sentido, a perspectiva foucaultiana e da criminologia crítica nos serve como recurso analítico.

Fronteiras trabalho e pena

Etimologicamente, o termo trabalho tem sua origem na variação do termo latim tripalium. Tri = três, Palus = pau. Tripalium representa assim um instrumento de tortura composto por três paus aguçados. Observa-se o mesmo sentido para a expressão francesa travail ou mesmo para a palavra espanhola trabajo: a representação de uma atividade penosa, de sofrimento.

Encontramos nas galés o exemplo claro dessa concepção de trabalho, infringindo dor e sofrimento. Tratam-se de embarcações de guerra europeias, movidas a remo, nas quais os condenados cumpriam pena de trabalhos forçados remando dia e noite. Geralmente eram 250 homens em cada embarcação, inicialmente recrutados junto a escravos condenados pela Justiça ou voluntários em busca de salário. Posteriormente passou-se a utilizar mão de obra dos cativos e daqueles que cumpriam pena, já que não era necessário pagar pelos seus serviços, como em Portugal, por exemplo, onde eram os prisioneiros que alimentavam o funcionamento das galés (Silva, 2011Silva, E. L. S. (2011). Condenados às galés. Revista de História da Biblioteca Nacional (65). Recuperado de http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/condenados-as-gales
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).

Durante o século XVI, a inquisição também se valeu desse tipo de pena – considerada vil e infamante – para castigar aqueles que perturbavam a ordem, como explica Siqueira (1973)Siqueira, S. A. (1973). Trabalho compulsório: a pena inquisitorial das galés. In Anais do 6o Simpósio Nacional de Professores Universitários de História (p. xx). São Paulo, SP.:

A perturbação das atividades espirituais, a heresia, comprometia a segurança de todos neste e no outro mundo. Para a proteção dessa segurança os tribunais impunham uma ordem e para acomodar e punir os recalcitrantes prescreviam a privação da liberdade mal usada e o trabalho como pena (p. 353).

Dessa forma, conseguiam com a mesma pena impingir sofrimento físico e afastar os hereges, e os perturbadores da ordem, do meio social.

Em meados do século XVII, o desenvolvimento tecnológico permitiu grande avanço nas técnicas de navegação e o surgimento dos navios a vapor, o que provocou o desaparecimento gradual das galés. Em Portugal, os condenados passaram a ser utilizados nas obras públicas, desempenhando tarefas ligadas à construção naval, à manutenção de barcos e na confecção de telhas, pois, como afirma Silva (2011)Silva, E. L. S. (2011). Condenados às galés. Revista de História da Biblioteca Nacional (65). Recuperado de http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/condenados-as-gales
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, recrutar condenados para esse trabalho representava um gasto a menos para a Coroa.

A concepção Aristotélica, por sua vez, postula que o trabalho está contra todas as formas de vida livre. O tempo não deve ser ocupado com a produção, mas sim dedicado ao ócio e ao prazer. O trabalho é realizado por aqueles que precisam se sujeitar a ele, os não livres, os escravos e, em alguma medida, por aquela população que mais tarde seria confinada no Hospital Geral ou nas casas de correção.

Essa concepção perdura na sociedade pré-capitalista e só irá sofrer abalos no processo de construção dos estados modernos, no decorrer dos séculos XVI e XVII. A ascensão burguesa impõe paulatinamente a transformação na organização econômica e social, deslocando o foco, então na terra, para abrir espaço às mercadorias. O nascimento do capitalismo impõe assim uma interseção histórica, uma ruptura determinante para a emergência de nova concepção de trabalho. Tudo isso ganha tempero especial com a ética protestante que condena os impulsos prazerosos da vida e exalta o valor do trabalho e da religião.

Com Adam Smith, a invenção política da economia pressupõe que a única fonte de riqueza é o trabalho humano. Como lembra Wolff (2011), “para fazer do trabalho um valor e da preguiça um vício é preciso aceitar a divisão social do trabalho e a condição infeliz do homem. A terceira condição é afirmar a existência do conceito de trabalho”2 2 . Conferência “A apologia grega da preguiça” proferida em 16/08/2011 na Casa Fiat de Cultura – Belo Horizonte/MG, como parte do Ciclo de Conferências sobre o “Elogio à Preguiça”. .

Nesse novo paradigma, o trabalho generaliza-se a todos os membros da sociedade. O tempo dedicado ao ócio é invertido e passa a ser ocupado pelos negócios (expressão que tem origem no termo em latim nec otius, “sem ócio, sem descanso”).

Se em período precedente, o estilo penal vigente estava marcado pela prática dos chamados suplícios – espetáculo das decapitações, esquartejamentos, fogueiras, desmembramentos dentre outras formas de infringir a dor e o castigo e destruir o corpo – em meados do século XVII, as contradições desse teatro punitivo serão utilizadas como tônica para a transformação da justiça criminal. O suplício torna-se, pouco a pouco, odioso, intolerável, “revoltante, visto da perspectiva do povo, onde ele revela a tirania, o excesso, a sede de vingança e o ‘cruel prazer de punir’” (Foucault, 1975/2013Foucault, M. (2007). A grande internação. In História da loucura na Idade Clássica (8a ed., J. T. Coelho Neto, trad.). São Paulo, SP: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1972), p. 71). Assim, as arbitrariedades contidas nas práticas violentas da execução dos martírios inseriam o monarca, o carrasco, em um ato criminal, evidenciando a necessidade de novo aparato jurídico.

Na prática, observa-se a mudança significativa na tipificação dos atos tidos como infracionais, consequência do enriquecimento e desenvolvimento das cidades e da elevação geral do nível de vida. Não se privilegia mais os crimes contra a vida, contra os corpos, mas os crimes contra os bens. De acordo com Foucault (1975/2013)Foucault, (2013). Vigiar e punir: nascimento da prisão (41a ed., R. Ramalhete, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1975) essa transformação ocorre concatenada a diversos fatores, intrínsecos ao aprimoramento da justiça criminal e que fariam parte de um mecanismo complexo,

onde figuram o desenvolvimento da produção, o aumento das riquezas, uma valorização jurídica e moral maior das relações de propriedade, métodos de vigilância mais rigorosos, um policiamento mais estreito da população, técnicas mais bem ajustadas de descoberta, de captura, de informação: o deslocamento das práticas ilegais é correlato de uma extensão e de um afinamento das práticas punitivas (p. 75).

Os grandes reformadores (Beccaria, 1764/2001Beccaria, C. (2001). Dos delitos e das penas. Recuperado de http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf (Trabalho original publicado em 1764)
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; Bentham, 1789/1984Bentham, J. (1984). Uma introdução aos princípios da moral e da legislação (3a ed., L. J. Baraúna, trad.). São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1789); dentre outros) têm papel fundamental nesse debate, que propunha a confecção de códigos jurídicos mais humanos. Em sua forma latente, a proposta de um novo paradigma recaiu no estabelecimento de princípios que assegurassem melhor economia do poder. “O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos” (Foucault, 1975/2013Foucault, (2013). Vigiar e punir: nascimento da prisão (41a ed., R. Ramalhete, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1975), p. 16).

Na nova concepção penal, o condenado precisaria ver no castigo a ele destinado uma desvantagem que se sobrepunha às atrações e benefícios de seu crime. Deveria ser um exemplo que serviria de prevenção para crimes futuros. A ação penal deveria agir sobre as ideias, as representações. Os crimes precisariam estar conectados a castigos claros.

Para Frize (2004)Frize, N. (2004). Le sens de La peine état de l’idéologie carcérale. Clamecy: Éditions Léo Scheer., esse pensamento repressivo do século XVIII possui duas ideias que preservam sua atualidade: a que se refere à reeducação pelo constrangimento e pela submissão e a de anulação. A primeira é assumida pelos defensores de uma reeducação moral dos sujeitos. Estes sustentam que é pela submissão que se aprende o bom comportamento, que o constrangimento do corpo faz obedecer a lei, que o esforço imposto faz amar o trabalho e que um bom cidadão é um ser obediente. Segundo essa representação, obedecemos a uma lei e não aderíamos a ela, cujo objetivo é constranger e não servir. A ideia de anulação é mais sutil e insidiosa. Busca eliminar a agitação no delinquente, afastar seus maus pensamentos, conter sua imaginação. O delito seria a marca de um espírito perturbado, rebelde ou mal intencionado, de falta de noção de justiça e isso se remediaria anulando o pensamento. Para conseguir corroer e calar sua sensibilidade, coloca-se o detento na repetição e funcionalidade mecânica a fim de que toda reflexão se anule. Segundo Ducpétiaux (1857Ducpétiaux (1857). Des conditions d’application du système de l’emprisonnement separe ou cellulaire. Bruxelles: Les éditeurs., p. 86), “tudo o que pode cansar contribui a afastar os maus pensamentos”.

Trata-se de reprimir o que ocupa a imaginação e de anulá-la, de levar o condenado a se tornar um modelo de submissão pela atividade automática, de ocupá-lo para transformá-lo em um ser instintivamente aplicado e acéfalo. Para Frize (2004)Frize, N. (2004). Le sens de La peine état de l’idéologie carcérale. Clamecy: Éditions Léo Scheer., esses valores são ainda atuais, podendo ser identificados nos procedimentos jurídicos e nas práticas penitenciárias. Da vingança ao ideal corretivo, os reformadores se dão por função o ajustamento de práticas coercitivas que permitiriam a efetivação de melhores instrumentos de vigilância condizentes ao sistema de interesses vigente. Nesse modelo, o trabalho torna-se instrumento privilegiado na medida em que possibilita a garantia de disciplina dos corpos ao mesmo tempo em que possui caráter de utilidade, veiculado às formas de um poder rigoroso: dobrar os corpos a movimentos regulares, excluir agitação e distração, impor hierarquia e vigilância.

Essa pedagogia tão útil reconstituirá no indivíduo preguiçoso o gosto pelo trabalho, recolocá-lo-á por força num sistema de interesses em que o trabalho será mais vantajoso que a preguiça, formará em torno dele uma pequena sociedade reduzida, simplificada e coercitiva onde aparecerá claramente a máxima: quem quer viver tem que trabalhar. Obrigação do trabalho, mas também retribuição que permite ao detento melhorar seu destino durante de depois da detenção (Foucault, 1975/2013Foucault, (2013). Vigiar e punir: nascimento da prisão (41a ed., R. Ramalhete, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1975), pp. 117-118).

O desenvolvimento do capitalismo, portanto, culmina na criação progressiva de instituições como aparelhos disciplinadores por excelência, buscando impor vigilância constante sobre os indivíduos ali inseridos e os conectar aos mecanismos de produção, formação e correção. Foucault (1975/2013)Foucault, (2013). Vigiar e punir: nascimento da prisão (41a ed., R. Ramalhete, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1975) aponta para um poder que se apresenta ao mesmo tempo individualizante e totalizante na produção de corpos dóceis e produtivos para o capital. No campo da jurisdição, estas instituições se concretizam na forma das casas de correção e do Hospital Geral – receptáculo indiferenciado de todos os desvios – que posteriormente – a partir do século XIX – tomam a forma das prisões. O confinamento e os muros passam a ocupar outro lugar simbólico na produção social contribuindo, como bem notara Karam (2010)Karam, M. L. (2010). A violenta, danosa e dolorosa realização do poder punitivo: considerações sobre a pena. In V. Mattos (Org.), Desconstrução das praticas punitivas (pp.11-26). Belo Horizonte, MG: O Lutador., para o disciplinamento, aos moldes da fábrica moderna, dos outrora camponeses indisciplinados e expulsos do campo.

A lição propagada pelos grandes reformadores na ideia da pena-efeito e formuladas na Constituinte francesa com relações proporcionais entre o delito e a punição é traduzida para os códigos normativos e, rapidamente, aplicada na realidade sob a forma prioritária do encarceramento, modulando o tempo de permanência dos presos à gravidade dos atos cometidos e à necessidade de correção; “o princípio tão claramente formulado na Constituinte, de penas específicas, ajustadas, eficazes, que formassem, em cada caso, lição para todos, tornou-se a lei de detenção para qualquer infração pouco importante, se ela ao menos não merecer a morte” (Foucault, 1975/2013Foucault, (2013). Vigiar e punir: nascimento da prisão (41a ed., R. Ramalhete, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1975), p.112).

Alinhou-se à detenção uma função educativa, cujo objetivo seria a ressocialização do preso, que se daria por meio da educação formal e do trabalho. Como apregoava Beccaria, em 1764 e citado por Venturi (2003Venturi, F. (2003). Utopia e reforma no iluminismo. Florianópolis, SC: EDUSC., p. 202): “forçai os homens ao trabalho, torná-los-eis pessoas honestas”. No decorrer dos anos a instituição prisional toma a forma presenciada na atualidade, sustentada pela necessidade de uma suposta reabilitação do sentenciado, concepção oficial que prevalece nos dias atuais. Todavia, como afirma Karam (2010)Karam, M. L. (2010). A violenta, danosa e dolorosa realização do poder punitivo: considerações sobre a pena. In V. Mattos (Org.), Desconstrução das praticas punitivas (pp.11-26). Belo Horizonte, MG: O Lutador., a ideia de pretender concretizar o objetivo de evitar que o autor da conduta criminalizada volte a delinquir através de suas reeducação e reintegração à sociedade, é absolutamente incompatível com o fato da segregação. Resta a função de segregação, de afirmação do poder punitivo, cujo alvo preferencial, como nota Wacquant (2001)Wacquant, L. (2001). As prisões da miséria (2a ed., A.Telles, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. são os precários, estrangeiros e drogados.

Nessa mesma linha de argumentação Faugeron e Le Boulaire (1992)Faugeron, C., & Le Boulaire, J. M. (1992). Prisons, peines de prison et ordre public. Revue Française de Sociologie, 33(1), 3-32. Doi : 10.2307/3322332 mostram que o tema recorrente da prisão ressocializante é o mito fundador da instituição, tendo por função principal torná-la aceitável dissimulando eficazmente sua função oficiosa de segurança pública. A esse respeito Batista (2002Batista, N. (2002). Os sistemas penais brasileiros. In V. R. P. Andrade (Org.), Verso e reverso do controle penal: (des)aprisionando a sociedade da cultura punitiva (pp.148-158). Florianópolis, SC: Boiteux., p. 155) observa muito oportunamente que “no sistema penal do capitalismo tardio a prisão se despoja dos mitos ressocializadores para se transformar, como Zygmunt Bauman percebeu numa penitenciária da Califórnia, numa pena de neutralização do condenado”. Percebe-se, no entanto, que o trabalho continua prescrito como possuindo o sentido pedagógico da pena (Mirabete, 2007Mirabete, J. F. (2007). Execução penal. São Paulo: Atlas.) e não deve visar apenas à produção, mas ser entendido sob o aspecto existencial e de aprimoramento da formação humana, necessário à realização pessoal do indivíduo e ao seu senso de realidade social (Nogueira, 1996Nogueira, P. L. (1996). Comentários à Lei de Execução Penal. São Paulo, SP: Saraiva.).

Tais argumentos tomam forma concreta na oferta de ocupação ao condenado – não a todos, mas aos que cumprem o protocolo do ‘bom comportamento’; não como um direito, mas como um favor, e enquanto tal, podendo ser retirado a qualquer momento (Barros, & Lhuilier, 2013Barros, V. A., & Lhuilier, D. (2013). Marginalidade e reintegração social: o trabalho nas prisões. In L. O. Borges &L. Mourão (orgs). O trabalho e as organizações atuações a partir da psicologia (pp.669-694). Porto Alegre, RS: Artmed.); não como formação profissional, mas como atividades que ocupam o sujeito sem construir competências para a vida em liberdade, para competir no mercado formal de trabalho. Tal situação encontra nas chamadas “modernas prisões”, como as que são geridas pelas parcerias público-privadas – as PPPs, o ponto alto da exploração capitalista, como veremos a seguir.

As unidades prisionais em parceria público-privada: casas de correção manufatureiras contemporâneas?

Brasília, 1992, apresentação ao Conselho Nacional de Política Criminal do Ministério da Justiça do primeiro projeto contendo as regras básicas para o programa de privatização do sistema penitenciário do Brasil – marco de amplo e polêmico debate acerca de um modelo que pode tornar-se base para a administração das prisões brasileiras.

Pautadas em princípios de gestão profissional, empregando conceitos de qualidade e eficiência quanto à custódia do condenado, as PPPs3 3 . Sobre a Parceria Público Privada no sistema penitenciário de Minas Gerais, ver http://www.ppp.mg.gov.br/projetos-ppp/projetos-celebrados/complexo%20penal/sistema-penitenciario são modeladas com a justificativa oficial de suprir a falta de recursos financeiros e de investimento no sistema prisional. O projeto, em sua regulamentação pela Lei no 11.079 de 30 de dezembro de 2004 (Brasil, 2004Brasil. (2004). Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l11079.htm
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), prevê a celebração de contratos entre o ente público e o privado, possibilitando ao último a atuação em âmbito prisional no que se refere à construção, manutenção, administração, gerenciamento, segurança e disciplina. Ao ente público cabe o transporte dos sentenciados, a segurança externa, a fiscalização e a remuneração das empresas que fazem parte do chamado “consórcio”.

A privatização das prisões tem sido tratada, atualmente, como a grande solução para a crise no sistema prisional brasileiro. Diversos autores, contudo, já denunciaram os interesses e o princípio que regem a emergência dessas PPPs, a saber: surgem amparadas por um discurso que afirma pretender zelar por alternativas úteis, mas caminha para perspectivas utilitaristas e que ferem a legislação vigente, deturpando os projetos de sociedade – e os sujeitos – que buscam “proteger”, “incluir” e “educar” (Minhoto, 2002Minhoto, L. D. (2002). As prisões do mercado. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, (55-56), 133-154. doi:10.1590/S0102-64452002000100006; Oliveira, 1999Oliveira, F. (1999). Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal. In F. Oliveira, & M. C. Paoli (Orgs.), Os sentidos da democracia: Políticas do dissenso e hegemonia global (pp. 55-81). Petrópolis, RJ: Vozes.; Portugal, 2010Portugal, D. (2010). As parcerias público-privadas no sistema prisional como um reflexo do processo de constitucionalização simbólica. Revista Brasileira de Segurança Pública, 4(7): 86-103.). Mesmo frente a tais denúncias, esse modelo tem ganhado força como profícuo para o gerenciamento prisional brasileiro.

Na verdade, a entrada de empresas privadas no âmbito prisional para usar a mão de obra encarcerada é fenômeno que ocorre já há alguns anos e está legalmente permitida na Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984Brasil. (1984). Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm
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), com direcionamentos específicos. Uma vez que o trabalho do condenado, desde a promulgação da LEP, é um dever que “tem finalidade educativa e produtiva” (BRASIL, 1984Brasil. (1984). Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, art. 28) com o objetivo “de formação profissional do condenado” (BRASIL, 1984Brasil. (1984). Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, art. 34), admite-se à iniciativa privada a implantação de oficinas de trabalho dentro das unidades e oferta de postos de trabalhos externos desde que tenha o consentimento do preso (BRASIL, 1984Brasil. (1984). Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm
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, art. 36 e §§) e seja realizado a partir da celebração de um convênio com o órgão público (BRASIL, 1984Brasil. (1984). Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm
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, art. 34 e §§). Constituem-se assim as chamadas parcerias de trabalho onde as empresas são chamadas de “parceiras”.

O que se nota, no entanto, é a constituição de um negócio extremamente lucrativo para essas empresas na medida em que pagam aos detentos um salário que não costuma passar dos obrigatórios ¾ do mínimo, estão livres de obrigações trabalhistas e previdenciárias e usufruem de vigilância constante da mão de obra. Para o Estado, por sua vez, tais parcerias funcionam como vitrines legitimadoras do discurso sobre a função ressocializadora da pena privativa de liberdade que se daria por meio do oferecimento de trabalho aos encarcerados.

Pesquisas recentes (Barros, & Lhuilier, 2013Barros, V. A., & Lhuilier, D. (2013). Marginalidade e reintegração social: o trabalho nas prisões. In L. O. Borges &L. Mourão (orgs). O trabalho e as organizações atuações a partir da psicologia (pp.669-694). Porto Alegre, RS: Artmed.; Barros et al., 2014)Barros, V. A., David, F. T., Silva, M. S., Tavares, P., Araújo, R. S., Amaral, T. V. F. (2014). Relatório final: GAMPSP Grupo de Apoio ao Ministério Público no Sistema Prisional: relatório de pesquisa Belo Horizonte, MG. Instituto DH: Promoção, Pesquisa e Intervenção em Direitos Humanos. demonstram, entretanto, que, para os presos, as atividades oferecidas não agregam competências que possibilitem inserção no mercado formal e que possam garantir a vida fora da marginalidade em que se encontravam antes do encarceramento. Embora o objetivo oficial dessas parcerias seja oferecer condições dignas de cumprimento de pena aos sentenciados, o que se nota de fato é a inserção mais efetiva do sistema prisional em uma clara lógica de adaptação à ordem econômica, conforme sinaliza Portugal (2010)Portugal, D. (2010). As parcerias público-privadas no sistema prisional como um reflexo do processo de constitucionalização simbólica. Revista Brasileira de Segurança Pública, 4(7): 86-103.:

O abandono dos sistemas públicos de gestão em prol da adoção de modelos carcerários público-privados é uma alternativa meramente simbólica no tocante à promessa de concretização de direitos fundamentais. Isto porque, a pretexto de assegurar ao apenado a sua dignidade humana, oculta a real intenção de utilização do preso como mão de obra barata (p. 98).

Assim, temos notadamente que, o que se propõe constituir como alternativa para a falência do sistema prisional brasileiro, ofertando àqueles que foram privados de liberdade condições para o cumprimento de sua pena de forma digna, as PPPs têm se mostrado como um poderoso mecanismo de ganhos financeiros. Senão vejamos: lucra-se com a possibilidade de usar e fiscalizar a mão de obra disponível; lucra-se com os corpos que, ocupando vagas deste sistema passam automaticamente a gerar um valor de diária a ser pago pelos cofres públicos durante todo o tempo de permanência no local e lucra-se com a garantia de um mercado cativo na medida em que o governo deve assegurar a demanda mínima de 90% da capacidade do complexo penal durante os 27 anos de vigência do contrato4 4 . Referimos aqui ao contrato de concessão administrativa para a construção e gestão do complexo prisional na região de Ribeirão das Neves em Minas Gerais celebrado entre o Estado de Minas Gerais e a empresa Gestores Prisionais Associados S/A – GPA. Recuperado de http://www.ppp.mg.gov.br/images/documentos/Projetos/concluidos/Complexo_Penal/contrato/Contrato%20PPP%20Complexo%20Penal%20330639.54.1338.09.pdf .

Enquanto atividade econômica, a prisão abrigará aquela mesma massa de pessoas que historicamente ocupa uma posição marginal na sociedade. Loucos, mendigos, pobres, imigrantes, negros, etc. São os chamados Severinos, conforme propõe Rocha e Torres (2011Rocha, E., & Torres, R. (2011). O crente e o delinquente. In J. Souza (Org.), A ralé brasileira: quem é e como vive (pp. 205-240). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG., p. 208) “Severinos são todos aqueles aos quais a cidade oferece sonhos, mas não oferece trabalho; aqueles nos quais a cidade mata o fio de esperança que ela própria criou”. Os Severinos encarcerados, os Severinos mercadorias.

É o que corrobora a fala de um empresário que, nos moldes das parcerias, “oferta” alguns postos de trabalho dentro de uma penitenciária de segurança máxima em Minas Gerais: “Se algum deles se destaca aqui eu até dou emprego pra ele lá fora, mas não admito egresso na minha empresa não. É vantajoso para mim empregar só enquanto estiver aqui dentro mesmo”.

Retomamos as palavras de Rusche e Kirchheimer (1939/1999)Rusche, G., & Kirchheimer, O. (1999). Punição e estrutura social. Rio de Janeiro, RJ: Freitas Bastos. (Trabalho original publicado em 1939). sobre as casas de correção manufatureiras: “Uma vez que o objetivo principal não era a recuperação dos reclusos, mas a exploração racional da força de trabalho, a maneira de recrutar os internos não era o problema central para a administração” (p. 92). Nenhuma novidade, pois.

As unidades prisionais em parceria público-privada: das gradações entre público e privado

O que é o privado? Individual, singular, próprio, interior, particular – termos que evocam modos de vida que não dizem respeito apenas a cercas, muros, grades, iluminação artificial ou câmeras. O processo de privatização é também claramente aquele relacionado aos interesses do capital (Vainer, 2002Vainer, C. B. (2002). Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano. In O. Arantes, C. B. Vainer, E. Maricato (Orgs.), A cidade do pensamentoúnico (paginação). Petrópolis: Vozes.) e que se apresenta, de maneira mais ou menos sofisticada, nas formas de gestão da cidade em termos de planejamento, regulação e até mesmo controle social de caráter ideológico. Duby (1990Duby, G. (1990). História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 22) sugere: “O conceito [privado], sustentado por uma estrutura muito firme da linguagem, afirma sua permanência através das eras”. A noção de privacy que nos parece tão contemporânea remonta a passados distantes, tendo a cerca como sinal mais marcante – e, sobretudo, em determinados momentos, como no feudalismo.

Enfrentar a tensão público/privado é esbarrar nos entraves das dicotomias gestadas no projeto da modernidade, especialmente em suas incoerências. Se público e privado são noções que parecem apenas existir no entrelaçamento simbólico de seus horizontes, é aceitável afirmar que elas são diferentes escalas do mundo sensível, sempre engendradas em relações de interdependência. Nesta medida, não se completam como totalidade. Ambas são partes do jogo da alteridade. Diferentes práticas e poderes que conformam tal jogo, às vezes por oposição, às vezes por interpenetração. Se estivermos, de fato, na esfera de uma relação, nenhuma delas obtém, ou deveria obter, primazia sobre a outra. No entanto, o que vemos na atualidade do contexto do sistema prisional, com a entrada das PPPs, é – de fato – a primazia do privado, uma vez que os princípios que passam a vigorar são os do universo do lucro e da mercadoria. O privado fica evidente nos enclaves fortificados que proliferam na cidade, como shoppings e condomínios fechados (Caldeira, 2011Caldeira, T. P. R. (2011). Muros e novas tecnologias do público. In J. Roca (curadoria). Muntadas: informação, espaço, controle. São Paulo, SP: Pinacoteca do Estado.), mas vêm ocupando, como discutimos no presente texto, também as instituições totais, solapando seu caráter e interesse públicos.

De acordo com Hertzberger (1999)Hertzberger, H. (1999). Lições de arquitetura. São Paulo, SP: Martins Fontes., a polarização entre a individualidade acentuada e a coletivização exagerada de nossa sociedade faz parecer a existência da oposição extrema entre público e privado, quando, na verdade, estão sempre uma face a outro, imersos em sutilezas. Para o arquiteto, o que enlaça as duas noções é uma espécie de gradação, de modo que as possíveis diferenciações são sempre graduais. A historiografia de Duby (1990Duby, G. (1990). História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 74) sustenta uma análise semelhante ao discorrer sobre a vida nas grandes casas leigas na França do século XI: “Assim, como no mosteiro, a transição era gradual, em direção ao mais privado, desde a porta até o local das orações”. Não se pode pensar no privado desconectado da dimensão pública.

Na história da vida social, o poder público e o poder privado ocuparam lugares diversos nos regimes de direito e de espacialização. Se no feudalismo viveu-se um esfacelamento do poder público, que foi diluído no privado, infiltrado nas casas e famílias, é possível cogitar que, com a efervescência das cidades, ele se recuperou. Contudo, ainda segundo o historiador, a pressão do privado não teve no feudalismo sua origem; ela já inscrevia anteriormente e, deste modo, não deixou de se fazer presente e forte nas cidades, na sociedade disciplinar, nas formas de controle que a própria instituição família já assegurava. Por isso, falar de poder e de direito privado é se remeter à noção de dominium, doméstico. Esta imagem parece ser potente. Entender o privado como aquilo ligado à possibilidade de domesticar. De acordo com Duby (1990)Duby, G. (1990). História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo, SP: Companhia das Letras., a noção está certamente ligada à família e à propriedade, à proteção e à exploração – danger, perigo, tem raiz em dominium, bem como donjon, torreão.

Pela via do privado estende-se um modo de controle mais estreito, caracterizado por práticas de fechamento e que, todavia, não rompe com a dimensão do público, da coisa pública, mas, antes, busca nela penetrar – o que mantém em constante relatividade as duas noções. Esse processo pode estar inscrito já na origem da noção: “Paradoxalmente, quando a sociedade se feudalizou, houve cada vez menos vida privada porque todo poder se tornara cada vez mais privado” (Duby, 1990Duby, G. (1990). História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 39). Parece contraditório, mas tal conceito de privado favorece a produção de uma imagem de maior homogeneização aos conjuntos de pessoas e suas práticas. O familiar – a domesticação – é aquilo que favorece o conhecido, doméstico, íntimo, conhecido e, nesta medida, o controlável.

A marginalidade do marginal

Em menos de 20 anos o Brasil praticamente quadruplicou sua população carcerária5 5 . Fonte: Departamento Penitenciário Nacional/MJ/BRASIL referente às estatísticas divulgadas entre os anos de 1995 e 2012. , sendo o quarto país que mais encarcera no mundo. Tem-se menos da metade do número de vagas necessárias para o cumprimento das penas por essa população. Em 2012, a população carcerária brasileira era de 549.577 presos e o déficit de vagas era de 250.504. Como aponta Mattos (2006)Mattos, V. (2006). Crime e psiquiatria; uma saída: preliminares para a desconstrução das medidas de segurança. Rio de Janeiro, RJ: Revan.:

A política deliberada de repressão passa ao largo da formação da cidadania e mesmo da resolução de qualquer tipo de problema causado pela prática de comportamentos “desviantes”. Nem se diga que é necessário criar novas vagas para o sistema prisional porque as vagas criadas já nascem insuficientes em um sistema que se auto-alimenta perversamente. Arremedo de solução impregnado já pela certeza de fracasso (p. 112).

No acirramento da questão promulgam-se incentivos a políticas criminais voltadas para penas alternativas, mas essas não diminuem o crescente número de detenções, pois destinam-se a outro público (Karam, 2010Karam, M. L. (2010). A violenta, danosa e dolorosa realização do poder punitivo: considerações sobre a pena. In V. Mattos (Org.), Desconstrução das praticas punitivas (pp.11-26). Belo Horizonte, MG: O Lutador.) e o que deveria ser alternativa ao encarceramento e à superlotação das prisões se transformou em outro sistema penitenciário.

Parece paradoxal que, se antes de um processo de encarceramento essa população, sem recursos econômicos e sociais não consegue entrar na acirrada competição por uma vaga no mercado de trabalho, é justamente no encarceramento que se torna “possível” – não pela necessidade de sobrevivência, mas pela imposição de uma pena – executar uma atividade de trabalho dentro dos limites legais. Mas que trabalho é esse? Que trabalho é destinado aos “fora-da-lei” quando ingressam, pela lei, no mercado de trabalho intramuros?

Necessariamente são ocupações precárias que se poderia denominar de “trabalhos desqualificados” usando uma terminologia proposta por Maciel e Grillo (2011)Maciel, F., & Grillo, A. (2011). O trabalho que (in)dignifica o homem. In J. Souza (Org.), A ralé brasileira: quem é e como vive (pp. 241-277). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.. São atividades restos que ocupam o nível mais baixo da hierarquia das profissões, o que nos aproxima também do conceito de dirty work, concebido por Hughes (1951/1971Hughes, E. C. (1971). Work and self. In J. M. Chapouilie, Le regard sociologique essais choisis (pp. 74-85). Paris: Editions de L’école des Hautes Etudes en Sciences Sociales. (Trabalho original publicado em 1951)), traduzida para o português como “trabalho sujo” e retomado nos textos de Lhuilier (2009)Lhuilier, D. (2009). Travail du négatif - travail sur le négatif. Education Permanente, 179, 39-57..

Basicamente são todas as atividades realizadas no interior das prisões, na medida em que são contaminadas pelos mesmos estigmas e preconceitos referentes ao espaço prisional e aos sujeitos que o habitam. São tarefas que exigem baixo nível de qualificação, são repetitivas e monótonas, não qualificando para atuar no mercado de trabalho extramuros (Barros, 2009Barros, V. A. (2009). Para que servem as prisões? In R. Torres, & V. Mattos (Orgs.), Estudos de execução criminal, direito e psicologia (pp. 95-105). Belo Horizonte, MG: TJ/CRP.). Cumprida a pena, esses sujeitos doravante na condição de egressos, retornam à liberdade, mas permanecem à margem das sociabilidades construídas pelo trabalho e com o agravante de agora portar oficialmente, junto ao seu Registro Geral, a marca de marginal – o atestado de bons antecedentes que não mais possuem depois de ter passado pelo cárcere.

Assim, fora da lógica produtivista e dentro do mercado informal, perante a presença de qualquer infração, serão estes sujeitos confinados novamente entre muros, aumentando – em uma intensidade alarmante – a população carcerária brasileira bem como o lucro das empresas que possuem contratos público-privados.

Considerações finais

Com Wacquant (2001)Wacquant, L. (2001). As prisões da miséria (2a ed., A.Telles, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. encontramos importante panorama sobre a construção de um estado penal pautado em um novo tratamento da marginalidade urbana e em um redesenho dos modelos de gestão da segurança pública, que vem garantindo lucros exorbitantes com o controle do crime. Em uma cultura punitivista, a simbiose entre o mercado da segurança e a segurança para o mercado (Lopes, 2009Lopes, E. (2009). Política e segurança pública: uma vontade de sujeição. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto.) desvela uma economia da pena mais perversa e coerente aos clamores por um endurecimento penal, como temos assistido na atualidade.

Nesses moldes, Batista (2012)Batista, V. M. (2012). Adesão subjetiva à barbárie. In V. M. Batista (Org.), LoïcWacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal (pp.1-12). Rio de Janeiro: Revan, 2012. nos conta sobre os prelúdios do que Karam (2010)Karam, M. L. (2010). A violenta, danosa e dolorosa realização do poder punitivo: considerações sobre a pena. In V. Mattos (Org.), Desconstrução das praticas punitivas (pp.11-26). Belo Horizonte, MG: O Lutador. denominou outrora de esquerda punitiva, que apostava veementemente na falência da finalidade das prisões findada sua utilização aos moldes fabris e que acabaram assim, por negligenciar a potência e eficácia do utilitarismo neoliberal econômico. Como foi visto não se lucra mais apenas com os produtos que são gerados pela tão barata mão de obra carcerária, mas também com a gestão – terceirizada e privatizada – da imensidão de corpos aprisionados.

A implicação orçamentária desse novo modelo de gestão da segurança pública traz alterações significativas em um balanço que, a princípio, pelo menos a curto prazo, encontra resultados favoráveis para uma minoria populacional. Parafraseando Wacquant (2008)Wacquant, L. (2008). As duas faces do gueto. (P. Cesar, trad.). São Paulo: Boitempo Editorial., é possível localizar essas alterações em um movimento que sai da “mão esquerda para a mão direita do Estado” (p. 116). A população marginalizada, agora ancorada no status de marginal, não mais acessa as políticas sociais, de educação e de saúde, deixando de ser um problema e um gasto e passa a gerar lucros no setor carcerário, cumprindo a “fantasia da classe dominante de fazer que os pobres paguem pela assistência (penal) aos seus semelhantes” (Wacquant, 2008Wacquant, L. (2008). As duas faces do gueto. (P. Cesar, trad.). São Paulo: Boitempo Editorial., p. 132).

Igualmente digno de nota é a estratégia incisiva de redução nos custos carcerários nas unidades penitenciárias que são geridas aos moldes das parcerias público-privadas. Como exemplo, temos o investimento em inovadores equipamentos tecnológicos que vão desde as muitas câmeras de segurança até aos equipamentos que mediam a relação com o mundo exterior – como as videoconferências utilizadas para evitar a ida dos detentos aos fóruns, passando pelo controle eletrônico da vida intramuros – o que, para além das justificativas de segurança significa um importante impacto na redução com os gastos em contratação e capacitação de recursos humanos.

Como bem observou Ferrajoli (2012)Ferrajoli, L. (2012). El populismo penal em lasociedaddelmiedo. In R. Zaffaroni, L. Ferrajoli, S. Torres, R. Basilico (Orgs.), La emergência delmiedo (pp. 57-76). Buenos Aires: Ediar., é expressiva desse estado penal a mudança do significado da palavra segurança que sai do campo da segurança social e, portanto, da garantia dos direitos sociais para encontrar referendo nos moldes da segurança pública cuja às formas de manifestação estão no ordenamento pela via policial e no endurecimento punitivo.

Batista (2012)Batista, V. M. (2012). Adesão subjetiva à barbárie. In V. M. Batista (Org.), LoïcWacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal (pp.1-12). Rio de Janeiro: Revan, 2012. nos chama a atenção para “a estratégia de articulação entre o workfare e o prisonfare” (p. 2) enquanto uma “tarefa conjunta de forçar as classes pobres para fora da assistência social e empurrá-la para o trabalho precário flexibilizado que passará por políticas de desqualificação e criminalização” e que reencontrará respaldos legais intramuros.

Nesse sentido, a proposta de reforma do código penal brasileiro em tramitação no Senado – Projeto de Lei do Senado nº 236 de 2012 (Sarney, 2012Sarney, J. (2012). Projeto de Lei do Senado nº 236 de 2012. Institui novo código penal. Recuperado de: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404
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) – tem sido amplamente criticada por diversos autores (Andrade, 2012Andrade, V. R. P. (2012). Análise criminológica da reforma penal. Palestra proferida no Seminário Crítico da Reforma Penal, Escola Superior da Magistratura do Rio de Janeiro – EMERJ, Rio de Janeiro, RJ. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=U63yBZ0wosM
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; Greco, 2012Greco, L. (2012). Princípios fundamentais e tipo no novo projeto de código penal (projeto de lei 236/2012 do Senado Federal). Revista Liberdades, (ed esp. Reforma do Código Penal), 35-38, Recuperado de http://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/133-ARTIGO#_ftn44
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; Karam, 2012Karam, M. L. (2012). A reforma das medidas de segurança. Revista da Emerj, 15(60), 108-114. Recuperado de: http://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/54387/reforma_medidas_seguranca_karam.pdf
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; Santos, 2012Santos, J. C. (2012, 15 de julho). ‘Somos o país que mais pune no mundo’:Entrevista concedida a Vitor Ogawa. Folha de Londrina, p. 3., 2013Santos, J. C. (2013). A reforma penal: crítica da disciplina legal do crime. Tribuna Virtual IBCCRIM, 1(1), 6-49.; Tavares, 2012Tavares, J. (2012). Projeto de Código Penal: a reforma da parte geral. Revista da EMERJ, 15(60), 161-189.) por suas inúmeras lesões aos princípios fundamentais do Direito Penal e por sua nuance na via de um endurecimento penal. Santos (2013Santos, J. C. (2013). A reforma penal: crítica da disciplina legal do crime. Tribuna Virtual IBCCRIM, 1(1), 6-49., p. 6) aponta que a proposta de reforma “mostra uma ideologia conservadora e repressiva: conservadora, porque assume os valores dominantes da formação social capitalista globalizada; repressiva, porque acredita na pena criminal como mecanismo de solução de conflitos em sociedades desiguais”. O caráter repressivo pode ser claramente visualizado, por exemplo, no número e na proporcionalidade de crimes qualificados como hediondos (homicídio qualificado; latrocínio; extorsão qualificada e extorsão mediante sequestro; estupro e estupro de vulnerável; epidemia com resultado morte; falsificação de medicamentos; redução à condição análoga à de escravo; tortura; terrorismo; tráfico de drogas; financiamento ao tráfico de drogas; racismo; tráfico de pessoas; crimes contra a humanidade). Como aponta Andrade (2012)Andrade, V. R. P. (2012). Análise criminológica da reforma penal. Palestra proferida no Seminário Crítico da Reforma Penal, Escola Superior da Magistratura do Rio de Janeiro – EMERJ, Rio de Janeiro, RJ. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=U63yBZ0wosM
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, essa reforma é uma tragédia, com potência genocida, que trata o ser humano como objeto de mercado.

Entendemos que a Psicologia em geral, bem como os demais profissionais do campo psi, não podem se furtar a participar desse debate, começando por fazer a autocrítica sobre suas práticas no sistema penal. Avaliá-las do ponto de vista político, de como contribuem para a criação de políticas penais cada vez mais duras e agressivas e de como compactuam com a manutenção da lógica empresarial de funcionamento do sistema prisional. Ao transformar o crime em doença, classificar os que podem ou não participar de programas de ressocialização, concordar com os apelos de endurecimento penal e que para alguns só resta mesmo a prisão, o campo psi só faz legitimar o poder penal punitivo repressivo hegemônico, agora sob o manto da chamada racionalidade penal moderna. Isso não significa um avanço nos modos de lidar com as questões da vida e da sociedade; só nos mostra que a história se repete, século a século.

O diagnóstico realizado por Friedrich Nietzsche no aforismo de Aurora, em 1881, permanece, ainda hoje, como uma excelente e contextualizada epígrafe.

Referências

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  • Andrade, V. R. P. (2012). Análise criminológica da reforma penal Palestra proferida no Seminário Crítico da Reforma Penal, Escola Superior da Magistratura do Rio de Janeiro – EMERJ, Rio de Janeiro, RJ. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=U63yBZ0wosM
    » https://www.youtube.com/watch?v=U63yBZ0wosM
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2014
  • Aceito
    25 Jan 2016
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