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O Imensurável da Experiência do Luto Materno

The Immeasurable Experience of Maternal Grief

Lo inconmensurable del Luto Materno

Resumo

Neste trabalho, investigamos a experiência de seis mães enlutadas pela morte de seus filhos. As experiências concretas, tal como descritas pelas mães, nos permitem acompanhar o fenômeno do luto materno. Ao analisar fenomenologicamente o sentido encontrado no âmbito da experiência do luto, precisamos, em um primeiro momento, recuar frente às interpretações correntes sobre o luto, subtraindo a conotação patologizante que muitas vezes é atribuída a essa experiência. Após essa postura metodológica, acompanhamos os vetores internos mobilizadores da experiência do luto e, por fim, alcançamos a dinâmica e a estrutura do próprio fenômeno. Com a análise fenomenológica, constatamos doze unidades de significado presentes no relato das mães enlutadas: a imortalidade por meio de homenagens e comemorações; a eternidade do luto; a saudade e a lembrança; a luta contra o esquecimento; o pedido de ajuda; o ver para além do corpo; o vazio que não se preenche; a vida continua, mesmo que a do filho não; a crença em Deus e no reencontro; o afeto do amor; o inexplicável e imensurável do luto.

Palavras-chave:
Morte; Luto Materno; Fenomenologia; Hermenêutica

Abstract

In this paper we investigate the experience of six mother grieving the death of their children. Concrete experiences, as described by the mothers, allow us to follow up the maternal grief phenomenon. Analyzing phenomenologically the meaning we find in the sphere of the grief experience, it is necessary, at first, to recede in the face of the current interpretations over grief, subtracting a pathologizing connotation that is often attributed to the experience. After this methodological approach, we follow the internal mobilizing vectors from the grief experience and finally, we reach the dynamic and the structure of the phenomenon itself. With a phenomenological analysis, we found twelve units of meanings found in the grieving mothers’ report: the immortality by using tributes and celebrations; the eternity of mourning; the longing and remembrance; the fight against forgetfulness; the aid request; the vision beyond the body; the emptiness that is not filled; life goes on, even though the child’s does not; belief in God and in reunion; the affection of love; the inexplicable and immeasurable mourning.

Keywords:
Death; Mother Grief; Phenomenologically; Hermeneutic

Resumen

En este trabajo investigamos la experiencia de seis madres afligidas por la muerte de sus hijos. Las experiencias concretas, tal como las describen las madres, nos permiten seguir el fenómeno del luto materno. Al analizar fenomenológicamente el significado que está en el contexto de la experiencia del luto, necesitamos, al principio, retirarnos de las interpretaciones actuales del luto, sacando la connotación patológica que a menudo se atribuye a esta experiencia. Después de esta postura metodológica, seguimos los vectores internos movilizando la experiencia del luto y, finalmente, alcanzamos la dinámica y estructura del fenómeno mismo. Con el análisis fenomenológico, llegamos a doce unidades de significado presentes en el informe de madres afligidas: la inmortalidad a través de homenajes y celebraciones; la eternidad del luto; el anhelo y recuerdo; la lucha contra el olvido; la solicitud de ayuda; el verlo más allá del cuerpo; el vacío que no se llena; la vida sigue incluso si la del hijo no; el creer en Dios y en el reencuentro; el afecto del amor; lo inexplicable e inconmensurable del luto.

Palabras clave:
Muerte; Luto materno; Fenomenología; Hermenéutica

Introdução

Antes da investigação propriamente dita sobre o luto materno, vamos pontuar o pensamento sobre o ser do homem, pois isto norteará a nossa visão fenomenológica do luto na contemporaneidade. Heidegger (1998)Heidegger. M. (1998). Ser e tempo. Vozes., em Ser e tempo, referência fundamental para as ciências humanas e para a psicologia clínica em particular, aborda a questão do ser de forma diferente daquela percorrida até então pela tradição metafísica. Heidegger (1998)Heidegger. M. (1998). Ser e tempo. Vozes., em sua ontologia fundamental, não interroga o que é o ser, mas qual seu sentido. No âmbito do ôntico, afirmamos - com base na nossa aproximação de mães enlutadas - que muitas mães, quando perdem seus filhos, também se interrogam. As mães enlutadas que participaram desta pesquisa relataram que, após a perda de seus filhos, passam a pensar mais assiduamente sobre o porquê de suas existências e para que elas existiam, ou seja, questionavam o sentido de suas vidas. A pergunta heideggeriana é filosófica e diz respeito à ontologia do ser. Partimos, então, do princípio de que a Filosofia e sua obstinação pela busca de pensamentos centrais podem nos servir como ponto de partida para que possamos compreender alguns dramas ônticos da existência humana.

Método

Para proceder aos nossos estudos, submetemos esta pesquisa ao Comitê de Ética, que a aprovou pelo CAAE nº 02867218.9.0000.5282. Além disso, todos os participantes que aceitaram participar assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa, por meio de entrevistas abertas, investigou os sentidos - unidades de significado - que estão em jogo nas mães que experienciam o luto pela morte de seus filhos. Realizamos a nossa investigação por meio de uma análise fenomenológica do relato das experiências de seis mães.

Ressaltamos que o método fenomenológico que utilizamos nesta pesquisa foi sistematizado por Feijoo e Mattar (2014Feijoo, A. M. L. C; Mattar, C. M. (2014). A fenomenologia como método de investigação nas filosofias da existência e na psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 30(4), 441-447. ), sob inspiração da Fenomenologia de Husserl e como foi apropriado pelos filósofos da existência: Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty. As autoras embasadas no método de Husserl apontaram para um modo de investigação em três momentos: redução e suspensão; acompanhamento dos vetores internos ao fenômeno em sua mobilidade no espaço e no tempo; descrição na qual a experiência do fenômeno investigado é explicitada (Feijoo & Mattar, 2014Feijoo, A. M. L. C; Mattar, C. M. (2014). A fenomenologia como método de investigação nas filosofias da existência e na psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 30(4), 441-447. ). Vale acrescentar que o método fenomenológico não exige que façamos uma amostra de forma aleatória, porque não importa a quantidade de participantes da pesquisa para confirmamos a sua validade. Por se tratar da qualidade da experiência, basta que um indivíduo nos fale dela para que possamos compreender a dinâmica existencial daquela experiência em um determinado horizonte histórico.

Investigação e análise fenomenológica do relato das experiências de luto materno

Para procedermos à investigação fenomenológica do fenômeno do luto materno, consideramos os três elementos imprescindíveis para realizar a pesquisa. São eles: a) a redução fenomenológica, em que assumimos uma atitude antinatural na visada do fenômeno; b) a descrição dos vetores internos ao fenômeno em sua mobilidade estrutural, em que as unidades de significado são explicitadas de acordo com o sentido da experiência, que é atribuído pelo participante da pesquisa e interpretado pelo pesquisador; c) por fim, a conclusão com a explicitação das experiências, acompanhando e descrevendo o fenômeno em seu campo de mostração (Feijoo & Mattar, 2014Feijoo, A. M. L. C; Mattar, C. M. (2014). A fenomenologia como método de investigação nas filosofias da existência e na psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 30(4), 441-447. ), ou seja, no lugar e no tempo em que o fenômeno se mostra à consciência. Passemos ao primeiro momento da investigação, em que assumimos uma atitude antinatural ao sairmos da perspectiva empírica para apreender a experiência do luto fenomenologicamente, como veremos a seguir.

Redução fenomenológica

Operando com a redução fenomenológica, pudemos nos aproximar do relato das experiências de seis mães enlutadas pela morte de seus filhos e ver essas experiências para além dos manuais e teorias que posicionam o luto como uma experiência determinada pelo tempo e pelas expressões ditas normais. Tal deslocamento consiste em romper com uma abordagem que se estabelece pelas normas, - uma etapa que compreendemos como redução fenomenológica. Essa postura ante o fenômeno consiste em recuar um passo e questionar o que mundo articula como verdades inquestionáveis acerca do luto.

No mundo moderno, o luto ganha novos contornos, segundo as considerações do DSM-5 (American Psychiatric Association [APA], 2014American Psychiatric Association. (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM5. Artmed.). No manual, as respostas esperadas para um diagnóstico de exclusão de transtornos relacionados ao luto são: “Anseio intenso ou saudades da pessoa falecida, tristeza intensa e dor emocional e preocupação com a pessoa falecida ou com as circunstâncias da morte” (APA, 2014American Psychiatric Association. (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM5. Artmed., p. 194). Essa experiência passa a ser vista como normal ou patológica e ganha várias categorizações: o “luto com comprometimento”, por exemplo, foi cunhado pelo DSM-5 como “luto complexo persistente” (APA, 2014American Psychiatric Association. (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM5. Artmed., p. 290), havendo, ainda a possibilidade da nomenclatura “luto traumático”, em caso de mortes por homicídio e suicídio (APA, 2014American Psychiatric Association. (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM5. Artmed., p. 790). Atualmente, o DSM-5 considera o tempo normal de permanência em estado de luto nos seguintes termos: “desde a morte, ao menos um dos sintomas é experimentado em um grau clinicamente significativo na maioria dos dias”, podendo persistir “por pelo menos 12 meses após a morte no caso de adultos enlutados e seis meses no caso de crianças enlutadas” (APA, 2014American Psychiatric Association. (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM5. Artmed., p. 789).

A partir desse período estipulado, o luto passa a ser interpretado como patológico. Freitas (2013Freitas, J. L. (2013). Luto, pathos e clínica: Uma leitura fenomenológica. Psicologia USP, 29(1), 50-57. https://doi.org/10.1590/0103-656420160151
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
) tece consideráveis críticas ao posicionamento do manual e defende que não há, a priori, como compreender a experiência como fora da normalidade. Ainda, esclarece que a literatura psicológica apresenta essa experiência “como uma reação frente a perdas significativas” (Freitas, 2013, p. 97). A autora, imbuída da perspectiva fenomenológica, encaminha uma proposta compreensiva da vivência do luto e se refere à experiência como a de um eu sem um tu.

A ideia de luto e perda também pode ser encontrada em outra estudiosa do tema. Esslinger (2008Esslinger, I. (2008). O impacto do suicídio na família. In M. J. Kovács & I. Esslinger (Orgs.), Dilemas Éticos (pp. 23-30). Loyola.) refere-se ao vínculo que se rompe de forma irreversível e defende que o luto é algo da ordem da existência e, por isso, não deve ser tratado como uma doença para a qual há medicamentos que retiram o enlutado desse estado.

Brice (1991Brice, C. W. (1991). What forever means: An empirical existential-phenomenological investigation of maternal mourning. Journal of Phenomenological Psychology, 22(1), 16-38. https://doi.org/10.1163/156916291X00028
https://doi.org/https://doi.org/10.1163/...
), fenomenólogo estadunidense e estudioso do luto, investigou a especificidade do luto materno. Brice segue à risca o método fenomenológico, suspendendo todas as teorias prévias acerca do fenômeno, sejam elas oriundas das ciências naturais ou das teorias psicodinâmicas. Ele acaba discordando que o fenômeno seja colocado na categoria de uma patologia em que o critério de corte entre o normal e o patológico é o tempo de duração do luto. Em 1991, segundo esse estudioso, o luto normal era aquele que perdurava durante seis meses. Atualmente, o critério do tempo normal atribuído ao luto pelo DSM-5 (APA, 2014American Psychiatric Association. (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM5. Artmed.) foi modificado e ampliado para um ano em adultos e seis meses em crianças, como já dito anteriormente.

Ao realizar sua investigação com três mães enlutadas, Brice (1991Brice, C. W. (1991). What forever means: An empirical existential-phenomenological investigation of maternal mourning. Journal of Phenomenological Psychology, 22(1), 16-38. https://doi.org/10.1163/156916291X00028
https://doi.org/https://doi.org/10.1163/...
) conclui que o luto materno é algo que não pode ser determinado pelo tempo, algo que não é uma doença e, por isso, não tem cura. Dessa forma, posiciona as unidades de significado -,ou seja, os sentidos apreendidos pelo investigador no relato de experiência das mães enlutadas - nos três relatos. São elas: o coercitivo poder da morte, a morte de um mundo, a morte da relação com o filho, a incorporação da morte, o luto como fenômeno paradoxal, a diferenciação entre a imagem e a presença, a temporalidade do luto, a busca pela finalidade da morte do filho, a experiência de um projeto interrompido, a impressão de que o filho pode chegar a qualquer momento e a sensação de amputação.

Descrição dos vetores internos ao fenômeno

Para alcançar a descrição dos vetores internos à experiência do luto materno, precisamos acompanhar a experiência de cada uma das mães enlutadas e deixar aparecer o que cada uma tinha a nos dizer. Para tanto, pedimos às seis mães que descrevessem a sua experiência singular: “Conte-me sobre a sua experiência de luto pela morte de teu filho”. Os relatos se deram via WhatsApp. As mensagens foram gravadas, posteriormente transcritas e, por fim, analisadas.

A nossa investigação - aquisição de dados e posterior análise - ocorreu com seis mães enlutadas que aceitaram participar livremente desta pesquisa. Todas elas, bem como seus filhos, receberam nomes fictícios para garantir o anonimato. O restante das informações se manteve fiel aos relatos das mães. São elas: Glória, 58 anos, que perdeu seu filho Fernando, 22 anos, por assassinato há nove anos; Sônia, 64 anos, que perdeu sua filha Ananda, 12 anos, por atropelamento há oito anos; Mônica, 40 anos, perdeu seu filho Daniel no sexto mês de gravidez, em decorrência de uma má-formação chamada Pentalogia de Cantrell, há quatro meses; Kátia, 44 anos, perdeu sua filha Carla para uma por doença não identificável há dois anos e três meses; Marina, 70 anos, perdeu seu filho Anselmo, 37 anos, por ataque cardíaco, após vários anos em que este foi usuário de drogas, há três anos; Vânia, 51 anos, perdeu seu filho Lucas, 32 anos, que foi acometido por uma crise de asma há um ano.

Glória

Glória nos relata que há nove anos procura uma forma de lidar com a dor. Afirma já ter buscado uma religião para encontrar respostas sobre o porquê de isso ter acontecido com ela. Depois, durante sete anos, prestou homenagens a seu filho e, por fim, procurou por mães que compartilhassem do mesmo tipo de experiência e confessou que foi nesse grupo que encontrou amparo. A seguir, mostraremos os diferentes relatos de Glória com as denominações que lhe foram atribuídas.

Modos com que procurou lidar com a dor

O modo religioso, pelo qual durante três anos buscou respostas para entender o que acontecera e homenageando o filho, por meio da organização de um álbum com as diferentes etapas da vida de Fernando; depois, fez um vídeo e visitou por vários anos um local onde Fernando tinha visitado e mandado uma fotografia. Ela relata: “Isso levantou meu ânimo e voltava para casa e continuava a fazer o que achava importante; foram sete anos”. Por fim, Glória passou a participar do grupo Mães Semnome, em que encontrou amparo, sonhos e conquistas. Ademais, ao se aproximar de outras mães, viu que não estava sozinha.

Comparação com outras mães

Glória nos confessa que muitas mães não conseguem evoluir, “mas eu consigo”. Em outro momento, ela diz: “Semeei o que aprendi; muitas não conseguiram evoluir no passar dos anos”.

O luto interminável

Glória diz: “Sei que o luto vai perdurar, não lastimo mais, mas hoje vivo para os meus projetos. A cada dia viro uma página. Às vezes volto para a fase anterior e depois sigo em frente”.

Saudades

Para Glória,são nove anos de saudades. No início, ela conta que ficou inerte e que não conseguia lidar com o fato, mas que, agora: “Não lastimo mais, vivo em função dos meus projetos”.

Manutenção do vínculo com o filho falecido

Glória conta que mantém o filho próximo organizando álbuns e vídeos em que o filho está presente. Conta também que voltou a sorrir por intermédio de Fernando, que dizia: “‘Quando eu tiver dinheiro, a primeira coisa que eu vou fazer é um implante em você’. Ele me deixou um seguro de vida e com esse dinheiro, eu pude fazer o implante e voltei a sorrir”.

Grupo de ajuda mútua

Glória conta que encontrou na TV um grupo chamado Mães Semnome e que esse encontro foi um divisor de águas em sua vida.

Não vejo o corpo, mas enxergo a alma do meu filho

Na voz de Glória: “Hoje me sinto bem evoluída. Eu não consigo ver meu filho, corpo e alma, mas enxergo a alma dele”.

O vazio

Glória afirma: “Hoje não tem mais vazio, hoje dou continuidade a minha vida”.

Lembrança que não se apaga

Estou caminhando para o décimo ano sem Fernando, dez anos muito pesados, e espero que os próximos dez anos sejam mais leves. Como dar continuidade a essa falta? A única certeza é que o dia 15/01/2011 não vai se repetir; ele foi aquele dia, ele foi objetivo, ele ficou gravado e nada vai mudar.

Sônia

Sônia conta que sua filha foi vítima de atropelamento. Isso ocorreu na sua presença e na do filho mais novo. Ela relata que a filha nunca saía sozinha e que, nesse dia, por solicitação da menina, a mãe permitiu que ela fosse sozinha para a escola no seu último dia de aula. Como ficou muito preocupada, resolveu ir esperar a filha no ponto de ônibus. Amanda saiu do ônibus e atravessou a rua; do outro lado, a mãe a aguardava e foi então que tudo aconteceu. Seguem as experiências descritas por Sônia.

Vida que segue

Sônia insiste em dizer que precisa continuar e faz o seguinte relato:

Tive que ser forte pelo meu filho, pelo meu bebê e pelo meu marido. Saudade a gente vai ter a vida inteira, lembranças eternas, mas tenho que levar a vida para frente. Eu tinha que dar continuidade à minha vida e à vida deles.

A eternidade da dor

No que toca à duração da dor, Sônia afirma: “Tinha dias que eu tinha vontade de sair na rua gritando o nome dela”.

Força como doação e Deus

Sônia relatou: “Peço a Deus que me dê forças”.

Luto e luta

Eu fiz do luto a minha luta. Jamais esquecemos os que foram”.

Eu consegui

Sônia conclui dizendo: “Temos que dar apoio aos que ficaram, nossos filhos que ficaram sofrem com o nosso sofrimento. Nós, mulheres, somos e esteio da família.

Mônica

Mônica descreve que, na sua gravidez, os médicos descobriram uma malformação do feto. Os médicos a aconselharam a abortar, mas ela e o marido decidiram que não o fariam por questões religiosas. Os dois acompanharam a evolução do bebê que esperavam: o crescimento e os movimentos. No entanto, a gravidez não foi a termo e ela teve, ainda, que se submeter a uma histerectomia. Sobre isso, expomos o que Mônica tem a dizer.

Outra perda

Ao dizer ter sofrido outra perda, Mônica se refere à histerectomia.

Lembrança que não se apaga

Ela diz: “Hoje tenho a lembrança do bebê que nunca vi, mas cada dia que ele passou com a gente, ele fez muito sentido, foi muito amado”.

Kátia

Kátia conta que há dois anos e três meses sua filha faleceu. A jovem apareceu com uma infecção urinária e foi vítima de sífilis, o que a levou à morte em um espaço de cinco dias.

O luto, o pior que pode acontecer

Nas palavras de Kátia: “Vou carregar esse luto pelo resto de minha vida, penso que é o pior que alguém pode ter”.

Dor eterna e imensurável

Kátia expressa a dor da seguinte forma: “É uma dor devastadora, dor que não se consegue mensurar, às vezes volta a mesma dor que senti lá atrás. Eu nunca mais vou ser 100%. Vou ser 60%, 70%”.

Saudade e fé no reencontro

Não vou dizer que a saudade não vai acabar nunca mais. Eu acredito em Deus que um dia vou encontrá-la”. Sônia também se refere ao encontro com a filha por meio dos sonhos.

Sem espaço para o esquecimento

A esse respeito, diz Sônia: “Difícil esquecer, mas eu sei que vou esquecer. Quando estou mal, eu me lembro do sorriso dela”.

Ausência presente

Kátia relata não sentir que a filha se foi: “Para mim, ela está viva, sinto a presença dela perto de mim”.

Expressão de amor

Kátia expressa o amor da seguinte forma: “É um amor incondicional, amor maravilhoso. Esse é o maior amor na face da Terra: mãe e filho.

Marina

Marina relata o forte vínculo que ela mantinha com seu filho e que estavam sempre juntos, em momentos de alegria e de tristeza. Ela nos diz que, na época em que ele foi fazer uma especialização em outra cidade, ela se mudou, a pedido do rapaz, para a cidade onde se daria o curso.

Parto às avessas

Marina se expressa da seguinte forma: “Já ouvi dizer também que perder um filho é um parto às avessas: a mãe engole seu filho e o recolhe de volta no ventre para sobreviver a tamanha violência”.

Negação da morte

Sobre isso, diz Marina: “Neguei com todas as minhas forças a morte de meu filho”.

Para os outros passa, para a mãe, não

Para expressar a solidão da dor, Marina diz: “Passam horas, dias, e a vida volta ao normal para os outros; para a mãe, não”.

Conselhos alheios

Muitas pessoas me aconselharam a não mexer nas coisas, não ver as fotos. Mas eu queria mantê-lo, sentir seu cheiro. A gente quer ficas sofrendo, um jeito de não esquecer, de manter junto à gente. Parece loucura!”.

Presença ausente

Quando deito à noite, sinto vontade de cobri-lo, como se ele estivesse próximo”.

Busca de ajuda profissional

Marina se refere à importância da ajuda profissional e que está sendo muito significativo para ela contar com essa ajuda. Ela continua: “Eu só aceitei fazer um tratamento com uma pessoa que já passou pela mesma dor. Porque as pessoas que não passaram não entendem, é muito louco entender”.

Luto, sobrevivência e o inexplicável da dor

Sobre viver enlutada, Marina relata: “Hoje eu digo que sobrevivo, estou aqui, não é? Luto de filho não tem explicação, não tem nada”.

O reencontro

Marina acredita que irá encontrar seu filho em breve: “Foi um até logo, último abraço, tchau mãe, eu volto logo, eu estou esperando. É isso!”.

Vânia

Vânia relata que ela e o filho mais velho sempre foram muito amigos e ele era seu grande companheiro. Essa relação se aprofundou pelo fato de que ambos tinham a mesma profissão e, por isso, compartilhavam muito mais de suas experiências.

Experiência de dor profunda

Vânia se refere ao dia da morte do filho como fatídico e diz que, ao receber a notícia, ela desabou e um enorme buraco se abriu no seu coração. “Dor imensa como se eu tivesse levado uma facada no meu coração”. Refere-se à perda do filho como sendo a maior dor do mundo.

A revolta com Deus e a crença na reencarnação

Vânia se refere ao dia em que o filho desencarnou, ficando logo clara a sua religiosidade. Ela diz também que sentiu muita raiva de Deus.

Tempo que não cura

A revolta de Vânia também aparece diante do ditado popular sobre o tempo curar tudo. Ela afirma veemente: “Não é assim”, a dor não passa. Em outro momento, Vânia diz:

As leituras me ajudaram a guardar a minha dor em um cantinho que só eu tenho acesso. Essa dor não vai passar, mesmo as pessoas dizendo que só tem um ano. Ainda sou metade dor, metade flor. Acho que vai passar cem anos e vou sentir dor.

A ambiguidade da saudade

Vânia diz que, às vezes, é bom sentir saudades, mas outras vezes dói demais; “Dói não poder sentir mais a pessoa, o perfume, não poder mais ouvir o bom dia, não poder mais conversar. Você não pode mais rir das piadas - piadas bobas -, mas a gente ria, trocávamos informações profissionais”.

Sofrimento

Por que comigo?”. Vânia insiste em afirmar que ela não é mais a mesma. Faz tratamento psiquiátrico, psicoterapêutico e religioso porque quer entender o porquê de isso ter acontecido com ela.

Adentrando o mundo da morte na voz do impessoal

Pela leitura, Vânia diz ter adentrado no mundo da morte. Ela conclui: “Nós somos seres esquisitos mesmo. Mesmo sabendo que a única certeza é a morte, a gente não gosta de falar, questionar, pensar sobre ela”.

A tentativa de minimizar a dor

Por meio da leitura e da religião, Vânia encontrou um caminho para ficar mais forte frente a essa dor que é indefinível, porque precisava continuar a viver pelos seus outros filhos e pelos netos.

Esboço de um projeto de vida

Não posso obter paz no mundo exterior enquanto eu não tiver paz no mundo interior. Eu busco essa paz e é isso que me faz acordar todos os dias e recomeçar”, Vânia diz, terminando seu relato.

Explicitação das experiências de luto

Os sentidos da experiência de luto se desvelam acompanhando o fenômeno tal como ele acontece no seu campo de mostração por meio das expressões singulares das experiências de luto das mães pela perda de seus filhos. Apresentaremos os resultados integrativos das seis entrevistas em unidades de significado tais como explicitados nos relatos das experiências dessas seis mulheres.

Unidades de significado

As explicitações das experiências do luto materno, em suas diferentes formas de expressão, serão organizadas e descritas de acordo com aquilo que se convenciona denominar unidades de significado (Brice,1991Brice, C. W. (1991). What forever means: An empirical existential-phenomenological investigation of maternal mourning. Journal of Phenomenological Psychology, 22(1), 16-38. https://doi.org/10.1163/156916291X00028
https://doi.org/https://doi.org/10.1163/...
). Nesta etapa, as expressões marcantes, bem como as mais frequentes dos sentidos atribuídos pelas mães nas suas experiências de luto, foram organizadas em unidades em que o sentido do luto materno foi explicitado.

A imortalidade por meio de homenagens e comemorações

A necessidade de homenagear os filhos apareceu no relato de duas mães. Glória nos contou que a ideia de homenagear seu filho apareceu quando ela encontrou uma foto do filho em Florianópolis. A partir de então, passou a visitar tal lugar todos os anos no dia 17 de janeiro. Ela relatou que essa comemoração a deixou mais animada e, quando voltava para casa, continuava a fazer as coisas que julgava serem importantes. Marina também mantém uma homenagem ao filho e contou que ela cria um roteiro de uma história: “Só assim a gente dá conta. A gente tem que acreditar nessa força maior.

A experiência de homenagear os filhos que se foram parece trazer à tona a ideia de manter os filhos vivos, próximos e inesquecíveis para, assim, lidarem com a dor e ganharem força para dar continuidade à vida. Decidimos destacar esta unidade de sentido, visto que o aspecto de dar permanência à vida aparece em outras unidades de forma mais específica, como veremos adiante.

A eternidade do luto

Glória, Sônia, Kátia, Vânia e Marina fazem referência ao luto que não passa e que precisa ser vivido a cada dia, ou seja, todo dia elas viram uma página. Diz Glória: “Amanda vai deixar lembranças eternas”. Kátia afirma que vai carregar esse luto pelo resto de sua vida e Marina que horas e dias se vão, mas a vida não volta ao normal. Vânia também se refere à eternidade do luto e da dor.

Esses relatos de experiência do tempo no luto mostram como a pessoa enlutada é afetada pelo instante que se eterniza. Trata-se de uma dor que sobrevive ao desgaste, um tipo a erosão devido à passagem e ação do tempo.

A saudade e a lembrança

Todas as mães falam em saudade e lembrança. Glória relata que são nove anos de saudade e completa: “Eu era feliz e não sabia”. Ela também se refere à lembrança que não se apaga: o dia 15 de janeiro vai ficar gravado e nada vai mudar. Mônica refere-se à lembrança de seu bebê, o que lhe dá alegria, pois, embora nunca o tenha visto, cada dia que passou com ele fez muito sentido em sua vida. Sônia também se refere à saudade, relatando que esta a acompanhará a vida inteira e que as lembranças serão eternas. Kátia também falou da saudade que não irá acabar nunca mais e que sabe que um dia irá encontrar a sua filha. Quanto a Marina, podemos notar a saudade de maneira implícita em toda a sua fala, e seu relato é acompanhado, ao mesmo tempo, pela satisfação de poder falar do filho e da dor de não o ter mais com ela. Vânia fala da saudade, que traz, ao mesmo tempo, alegria e dor.

É interessante observar que todas essas mães não querem esquecer, elas se referem à dor de lembrar e à alegria de não esquecer seus filhos. Aparece, nesses relatos, a saudade que traz dor ao mesmo tempo em que traz alegria.

A luta contra o esquecimento

Encontramos nesses relatos não só experiências de saudade e lembrança, como também a luta contra o esquecimento. Sônia ressalta que jamais se esquecerá dos que se foram. Marina deixa muito claro que não quer se esquecer, afirmando: “A gente quer ficar sofrendo, um jeito de não esquecer, de mantê-lo junto à gente. Vânia deixa claro que não quer esquecer e que a dor ajuda muito nesse sentido: “As leituras me ajudam a guardar a minha dor em um cantinho que só eu tenho acesso”.

Não esquecer o filho que se foi é, ainda, uma forma de mantê-lo vivo, de não deixar de pronunciar seu nome e contar aos outros que ele existiu. Enquanto esse filho for guardado na memória de algum modo, ele ainda se encontrará no mundo dos vivos, o que parece se tornar na luta das mães para que seus filhos não se apaguem definitivamente do mundo dos que ainda vivem.

O pedido de ajuda: grupos de apoio e psicoterapia

Glória diz que encontrou no grupo Mães Semnome amparo, sonhos e conquistas e, ainda, que o encontro com esse grupo foi um divisor de águas. Completa: “Aproximei-me de mães que também perderam seus filhos e vi que não estava sozinha”. Já Marina diz que a ajuda de um profissional foi muito importante para ela, mas que para a escolha de um profissional ela tinha um critério: o(a) profissional teria que já ter passado pela experiência da perda de um filho. Ela assevera que alguém que não tenha passado pela experiência de luto por um filho não pode jamais compreender a totalidade dessa experiência. Vânia segue em acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico.

Essa afinidade pelo compartilhamento de uma mesma experiência parece ser a máxima dos grupos de ajuda em geral e assim se constitui um critério para grupos de dependentes químicos e de álcool, dos compulsivos por amor, entre outros.

O ver para além do corpo

Muitas mães relatam uma proximidade do filho morto. “Hoje eu me sinto bem evoluída. Eu não consigo ver meu filho corpo e alma, mas eu enxergo a alma dele”, diz Glória. Kátia relata : “Para mim ele está vivo, sinto a presença dela perto de mim”. Marina, à noite, tem o ímpeto de ir cobrir seu filho.

Muitas mães relataram sentir a presença de seu filho. Parece que, enquanto essas mães existirem, guardarão a ausência presente de seus filhos, uma vez que essa é uma forma que elas encontram de mantê-los vivos; não pelo corpo, mas pela alma.

O vazio que não se preenche

Glória diz que, atualmente, não experimenta mais o vazio. Ela completa: “hoje dou continuidade a minha vida” e se pergunta “como dar continuidade a essa falta?”. Kátia afirma veemente que vai carregar essa dor por toda a sua vida. Marina se refere ao parto às avessas e completa: “a mãe engole seu filho e recolhe no ventre para sobreviver a tamanha violência, cruel e desumana”. Embora essas mães queiram manter essa ausência presente por diversos modos, a ausência traz o vazio, algo que falta e, portanto, não preenche totalmente como a mãe que tem seus filhos vivos.

A vida continua mesmo que a do meu filho não

Algumas mães se referem ao modo como deram continuidade a suas vidas. Glória menciona seus projetos de vida e as tarefas que continua realizando. Mônica fala das lembranças que gosta de ter. Sônia afirma que precisou levar a vida adiante pelos seus outros filhos e pelo seu marido. Ademais, Kátia alega se sentir em paz, já que tudo que poderia ser feito ela fez. Eis a força da vida: mesmo com dor, com vazio e sem corpo, a vida tem que continuar. Essa é a força da vida que se impõe em detrimento de qualquer sofrimento humano.

A crença em Deus e no reencontro

Sônia pede a Deus que lhe dê forças. Kátia diz que sente a presença da filha e Marina aguarda pelo reencontro. Trata-se de crença mantida pela religião, de que há vida após a morte. Essa crença sustenta a esperança e a alegria do reencontro. Já Vânia acredita em reencarnação.

O afeto do amor

Mônica fala do bebê que ela nunca viu e completa: “mas cada dia que ele passou com a gente, ele foi muito sentido, foi muito amado”. Kátia refere-se ao amor pela filha como algo incondicional: “um amor maravilhoso. Esse é o grande amor verdadeiro na face da Terra”. Embora a vida não exista mais, o amor resiste; o afeto viverá enquanto essa mãe existir.

O inexplicável e o imensurável do luto

Marina repete que o luto por um filho não tem explicação, não tem nada que o justifique. Enquanto isso, Kátia refere-se à dor como algo eterno e imensurável: “É uma dor devastadora, dor que não se consegue mensurar, às vezes é a mesma dor que eu senti lá”. Por fim, Vânia relata que a dor do luto é algo indefinível.

Considerações finais

Nas doze unidades de significado encontradas nesta pesquisa, podemos apreender a estrutura de sentido que subjaz a todas elas: o imensurável da experiência do luto materno. Para compreender o sentido que se encontra nessa sentença, vamos recorrer a Heidegger (2001Heidegger, M. (2001). Seminários de Zollikon. Vozes.) quando ele apresenta uma perspectiva crítica à conferência do médico Hegglin, proferida no Primeiro Congresso da Sociedade Psicossomática da Suíça. O filósofo esclarece que sua crítica objetiva marcar uma diferenciação entre o modo de pensar dele próprio do modo de pensar de Hegglin acerca da divisão corpo e psique. Hegglin (citado por Heidegger, 2001Heidegger, M. (2001). Seminários de Zollikon. Vozes.) afirma que, medindo-se a quantidade de lágrimas, poderemos quantificar o sofrimento de uma pessoa. Mas Heidegger afirma veemente que as lágrimas não podem ser medidas:

Quando se mede, medem-se na melhor das hipóteses um líquido e suas gotas, mas não lágrimas. As lágrimas só podem ser vistas diretamente. Qual é o lugar das lágrimas? São elas algo somático ou algo psíquico? Nem uma coisa nem outra (Heidegger, 2001Heidegger, M. (2001). Seminários de Zollikon. Vozes., p. 108).

Do mesmo modo que Heidegger (2001Heidegger, M. (2001). Seminários de Zollikon. Vozes.) defende que as lágrimas são muito mais do que um líquido que brota dos olhos, defendemos que o luto materno é dessa mesma ordem, ou seja, trata-se de uma experiência que não pode ser reduzida ao somático ou ao psíquico. E, por ser afeto, trata-se de uma experiência que não se pode medir.

O projeto da analítica da existência ou analítica do Dasein é fecundo e faz todo sentido para uma apreensão do sentido da experiência de mães enlutadas, pois a pergunta ontológica pelo sentido do ser pode ser a pergunta que emerge, de forma existencialista, quando nos defrontamos com a finitude, ainda mais quando a morte chega a um de nossos filhos. Essa situação pode nos confrontar de modo imediato com a finitude da existência, como vimos acontecer com as mães enlutadas.

Segundo Heidegger (1998)Heidegger. M. (1998). Ser e tempo. Vozes., a grande questão dos filósofos modernos é a luta contra a finitude. Falar de luto é entrar em contato direto com a finitude, principalmente quando nos referimos à morte de alguém jovem. Essa morte derruba o grande projeto da modernidade que é a vitória do homem sobre as suas limitações.

Alexandre Cabral (2019Cabral, A. M. (2019). Teologia da malandragem: A arte de viver segundo Mestre Malandrinho da Umbanda. Via Verita. , p. 15), estudioso da fenomenologia, em Teologia da malandragem, parece compartilhar da ideia de que o luto materno carrega especificidades, pois defende que:

quando uma mãe experimenta a dor pela perda do filho, nenhuma teoria científica consegue suturar o buraco aberto em seu peito e sanar a dor dilacerante que atravessa sua alma. Seu luto é acompanhado muitas vezes pela pergunta, como viver, agora, após a perda daquele/a que tanto nutria minha vida de sentido? A vida inteira parece ter perdido sabor; a vida inteira perdeu sentido. Nesse instante, algo de decisivo se revela: a vida não se esgota em suas regiões; por isso ela precisa de um sentido que articule a diversidade de suas experiências.

O ser do ente do homem irrompe, ou seja, ele sempre se encontra lançado na inter-relação homem-mundo e em uma tessitura de articulação de sentido. O ser do ente que nós todos somos articula o sentido em consonância com as determinações do mundo em que ele se encontra. Assim, na modernidade, a perda de um filho é tomada como algo que não deveria acontecer. Porém, uma vez que acontece, o fato é apropriado pelas mães como algo insuportável. Não só a morte de um filho, como também a finitude da vida são fatos que o homem moderno quer abolir com todas as suas forças. Morte e finitude trazem a possibilidade de uma rearticulação daquilo que, distante, é concebido como simplesmente dado. A morte produz, no homem moderno, a sensação de ruptura na linha da vida; de um dia para o outro o presente fica oco, perde o sentido, se perde da tradição. Desconstruir o nexo por meio de tonalidades fundamentais que afloram passa a ser uma exigência pessoal e uma chance para experimentarmos ser nós mesmos. Quando o indivíduo sofre perda significante, muitas vezes há uma súbita desconstrução de crenças, hábitos e valores. O mundo, que era presumível, fica absolutamente ameaçador. Angústia e loucura podem invadir o espaço ôntico. Há no sofrimento um abandono da lógica e um encurtamento de mundo. Se já há uma tendência do Dasein a se alienar e fugir de si mesmo nas grandes dores, esquecendo-se do seu ser - mais-próprio - e relacionando-se com o mundo como se este tivesse uma configuração já de antemão preestabelecida -, essa inclinação insuperável se acentua no luto. Ressaltamos que não compreendemos, neste estudo, a existência com suas diferentes expressões e como algo de uma ordem mensurável, nem mesmo pensamos em termos da dicotomia corpo e psique.

Brice (1991Brice, C. W. (1991). What forever means: An empirical existential-phenomenological investigation of maternal mourning. Journal of Phenomenological Psychology, 22(1), 16-38. https://doi.org/10.1163/156916291X00028
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) ressalta a ideia de que o luto traz dor, mas que no luto materno essa dor ganha uma potência incalculável. Trata-se do imensurável da experiência do luto materno. A ideia do incalculável pode ser esclarecida por meio do acompanhamento das considerações de Heidegger de que as lágrimas não podem ser medidas. E, ainda, os estudiosos do tema vinculados à fenomenologia ou à literatura esclarecem que é preciso descrever a experiência para além de definições ou medições, sejam elas numéricas ou categorizações, para que possamos apreender seu sentido.

O que dizer, então, da relação luto, lágrimas e sofrimento? Nessa cadeia de pensamentos, concordamos com Heidegger sobre as lágrimas não serem mensuráveis. Logo, poderíamos perguntar se, afinal, é possível medir sofrimentos. Por diferentes motivos, defendemos uma resposta negativa para esta questão. O primeiro motivo diz respeito ao fato de que sentimentos são amorfos, incalculáveis e variam em diferentes configurações conforme aquele que os sente. E como defender que há o luto normal e o patológico? Como podemos constatar nos relatos das seis mães enlutadas, mesmo os que vivem lutos similares não vivem experiências idênticas. Isso faz emergir a seguinte questão: como estabelecer o critério quando se trata de uma experiência singular?

Há uma máxima popular que afirma que a dor da perda de um filho está entre as mais intensas dores da alma humana. Pensando nisso, propomo-nos a olhar para o tema colocando-o em uma categoria diferenciada, mas que só pode ser alcançada no âmbito do singular. Isso diz respeito ao modo de conceber o luto por um filho como algo de ordem universal, impede-nos de compreender como o luto ganha um contorno específico no mundo moderno. Nossos argumentos se direcionam no sentido de mostrar como as determinações da modernidade moldam nosso comportamento diante da experiência de perda: a luta pela infinitude, a redução das experiências ao somático e a extrema valorização do indivíduo. Por outro lado, esse é o mundo em que nos encontramos e, nele, a experiência de luto aparece tal como afirmado por Brice (1991Brice, C. W. (1991). What forever means: An empirical existential-phenomenological investigation of maternal mourning. Journal of Phenomenological Psychology, 22(1), 16-38. https://doi.org/10.1163/156916291X00028
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): como um para sempre. O autor pergunta o que significa para sempre e ele mesmo responde que perdura para sempre uma lamentação e que a mãe enlutada precisa de alguém com quem possa lamentar. E nós, pesquisadoras, neste estudo sobre o luto materno, chegamos à conclusão de que as mães entrevistadas experimentam a perda de seus filhos como algo da ordem do imensurável.

Nossas conclusões ao término da investigação acerca do luto materno se aproximam daquelas descritas por Brice (1991Brice, C. W. (1991). What forever means: An empirical existential-phenomenological investigation of maternal mourning. Journal of Phenomenological Psychology, 22(1), 16-38. https://doi.org/10.1163/156916291X00028
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). Nas pesquisas de matrizes fenomenológicas sobre o luto materno persiste no relato das mães a ideia de que se trata de uma dor que ficará para sempre. Com isso, questionamos a ideia de que o tempo em que a dor permanece seja utilizado como critério para estabelecer se há ou não um sofrimento patológico. Inclusive as mães deste estudo relataram não querer deixar de sentir dor pelo medo de esquecer daquilo - do alguém - que elas querem lembrar para sempre.

Em todas as unidades de significado explicitadas nesta pesquisa, o sentido da morte de um filho aparece como algo que não tem motivo ou finalidade. O luto pelo filho é experienciado como algo da ordem do insuperável e imensurável. Insuperável porque a existência daquele que as mães tanto amaram e continuam amando jamais vai desaparecer de sua lembrança o filho que a vida levou continua a existir em recordação. Do mesmo modo, o luto é imensurável porque constatamos não haver nada que possa medir a dor do luto. A dor não se deixa padronizar, portanto. Não há manual ou catalogação que possa permitir estabelecer o que é normal ou patológico nessa dor que, no final das contas, também se mostra indefinível e inexplicável.

Referências

  • American Psychiatric Association. (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM5. Artmed.
  • Brice, C. W. (1991). What forever means: An empirical existential-phenomenological investigation of maternal mourning. Journal of Phenomenological Psychology, 22(1), 16-38. https://doi.org/10.1163/156916291X00028
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1163/156916291X00028
  • Cabral, A. M. (2019). Teologia da malandragem: A arte de viver segundo Mestre Malandrinho da Umbanda. Via Verita.
  • Esslinger, I. (2008). O impacto do suicídio na família. In M. J. Kovács & I. Esslinger (Orgs.), Dilemas Éticos (pp. 23-30). Loyola.
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  • Freitas, J. L. (2013). Luto, pathos e clínica: Uma leitura fenomenológica. Psicologia USP, 29(1), 50-57. https://doi.org/10.1590/0103-656420160151
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/0103-656420160151
  • Heidegger. M. (1998). Ser e tempo. Vozes.
  • Heidegger, M. (2001). Seminários de Zollikon. Vozes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2020
  • Aceito
    17 Maio 2021
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