Acessibilidade / Reportar erro

Relatos de uma Pesquisa Teórico-Bibliográfica: Reconstrução enquanto Operador Crítico

Reports of a Theoretical-Bibliographic Research: Reconstruction as a Critical Operator

Informes de una investigación Teórico-Bibliográfica: Reconstrucción como Operador Crítico

Resumo

Este artigo discute as condições de construção de uma pesquisa teórico-bibliográfica pela perspectiva que vê a reconstrução enquanto operadora crítica indicada na Teoria Crítica da Sociedade de Jürgen Habermas. Tratamos de questões teórico-metodológicas de uma dissertação de mestrado que problematizou epistemologicamente as interseções da teoria de identidade humana enquanto uma metamorfose, na perspectiva da Psicologia Social Crítica e suas intersecções com a teoria social do mundo da vida de Habermas por suas vertentes histórico-sociais da Fenomenologia. Na presente produção, após introduzirmos o leitor a nossa proposta de estudo, apresentamos as questões teóricas que constituíram a pesquisa do mestrado enquanto problema epistemológico. Após, situamos nossas acepções e suas relativas insuficiências acerca da pesquisa teórico-bibliográfica e apresentamos a perspectiva de reconstrução enquanto operador crítico. Por fim, articulamos nossa proposta e a execução da pesquisa teórico-bibliográfica reconstrutiva, por textos, contextos e discussões, descrevendo e analisando suas condições de crítica articuladas na pesquisa da dissertação de mestrado.

Palavras-chave:
Reconstrução; Relato de Pesquisa; Teoria Crítica; Psicologia Social; Identidade

Abstract

This article discusses the conditions for the construction of a theoretical-bibliographical research from the perspective of Reconstruction as a critical operator, as postulated in Jürgen Habermas’ Critical Theory of Society. It deals with the theoretical-methodological issues of a Master’s research that epistemologically problematized human identity theory while a metamorphosis, in the light of Critical Social Psychology and its intersections with Habermas’ social theory of Life-World and its historical-social aspects of Phenomenology. After introducing the reader to the study proposal, the text presents the theoretical questions that constituted the Master’s research as an epistemological issue. Then, it situates our meanings and the relative insufficiencies of the theoretical-bibliographical research, presenting Reconstruction as a critical operator. Finally, it articulates our proposal of a reconstructive theoretical-bibliographical research through texts, contexts, and discussions, describing and analyzing its conditions for critics articulated in the dissertation research.

Keywords:
Reconstruction; Research Report; Critical Theory; Social Psychology; Identity

Resumen

Este artículo discute las condiciones de construcción de una investigación teórico-bibliográfica desde la perspectiva de la reconstrucción como operador crítico indicada en la teoría crítica de la sociedad, de Jürgen Habermas. Se trata de cuestiones teórico-metodológicas de una investigación de maestría que había problematizado epistemológicamente las intersecciones de la teoría de la identidad humana como metamorfosis desde la perspectiva da Psicología Social Crítica con la teoría social del mundo de la vida de Habermas y sus aspectos histórico-sociales de la Fenomenología. En esta producción, se presenta la propuesta del estudio y después las cuestiones teóricas que constituyeron la investigación del máster como un problema epistemológico. Enseguida, se muestran los significados y sus deficiencias en la investigación teórico-bibliográfica, además de la perspectiva de la reconstrucción mientras operador crítico. Por último, se articula una propuesta y la ejecución de la investigación teórico-bibliográfica reconstructiva mediante textos, contextos y debates, describiendo y analizando sus condiciones de crítica articuladas en la investigación de tesis.

Palabras clave:
Reconstrucción; Informe de Investigación; Teoría crítica; Psicología Social; Identidad

Introdução

Dentro dos quesitos exigidos para a construção de uma investigação, a pesquisa teórico-bibliográfica tende a aparecer como uma revisão da literatura pertinente aos interesses do projeto na qual está inserida. A eleição de um referencial teórico e de uma determinada bibliografia já sinaliza os alcances e as dimensões da construção de um discurso científico. De maneira particular, durante o curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia em uma universidade federal, questionamo-nos sobre a possibilidade de construção de uma abordagem crítica numa pesquisa teórica que tem uma bibliografia psicossociológica como sua fonte de trabalho. Pretendemos aqui discutir as condições teórico-metodológicas da referida dissertação de mestrado sobre a perspectiva de identidade em Psicologia Social e na Psicologia Social Crítica (Souza Filho, 2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].), na qual elegemos a reconstrução como o operador crítico para a criação de uma perspectiva de pesquisa teórico-bibliográfica.

Por meio de uma abordagem crítico-descritiva, trabalharemos nosso percurso de construção teórico-metodológico. Especificamente, aqui trataremos das próprias condições da pesquisa, sinalizando suas vicissitudes, limitações e possibilidades. Conjuntamente, diferentes referências subsidiarão nossas discussões nas sessões subsequentes: apresentação do problema de pesquisa a partir no sintagma identidade-metamorfose-emancipação (Almeida, 2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: Identidade e emancipação na velhice [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].; Ciampa, 2009Ciampa, A. C. (2009). A estória do Severino e a história da Severina: Um ensaio de Psicologia Social. Brasiliense.; Lima, 2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: A identidade na perspectiva da psicologia social crítica. FAPESP, EDUC.); algumas (in)suficiências da pesquisa teórico-bibliográfica (Boccato, 2006Boccato, V. R. C. (2006). Metodologia da pesquisa bibliográfica na área odontológica e o artigo científico como forma de comunicação. Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo, 18(3), 265-274.; Faria, Cunha, & Felipe, 2010Faria, A. C., Cunha, I., & Felipe, Y. X. (2010). Manual prático para elaboração de monografias: Trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses. Vozes.; Lima & Mioto, 2007Lima, T. C. S., & Mioto, R. C. T. (2007). Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: A pesquisa bibliográfica. Revista Katálysis, 10(esp.), 37-45. https://doi.org/10.1590/S1414-49802007000300004
https://doi.org/10.1590/S1414-4980200700...
; Pizzani, Silva, Bello, & Hayashi, 2012Pizzani, L., Silva, R., Bello, S., & Hayashi, M. (2012). A arte da pesquisa bibliográfica na busca do conhecimento. RDBCI: Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, 10(2), 53-66. https://doi.org/10.20396/rdbci.v10i1.1896
https://doi.org/10.20396/rdbci.v10i1.189...
); a perspectiva teórico-conceitual de reconstrução de Habermas (2016Habermas, J. (2016). Para a reconstrução do materialismo histórico. Editora Unesp.) e viabilidades de sua efetuação enquanto modo de discussão de teorias (Boccato, 2006Boccato, V. R. C. (2006). Metodologia da pesquisa bibliográfica na área odontológica e o artigo científico como forma de comunicação. Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo, 18(3), 265-274.; Dutra, 2015Dutra, J. V. (2015). Apresentação da edição brasileira. In J. Habermas, Textos e contextos. Editora Unesp.; Souza Filho, 2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].).

Justificamos a pertinência do presente trabalho por dois argumentos. Primeiro, a importância de analisar as inquietações na formulação de um problema de pesquisa e, por consequência, as (in)satisfações com as perspectivas metodológicas de caráter instrumental. Segundo, propor como seria a construção de uma abordagem metodológica crítica que viabilize discutir diferentes teorias de interesse da pesquisa. Ambos os argumentos nos mobilizaram a produzir este estudo. Acreditamos no propósito de inquietar outros tantos que passaram ou passam pelas mesmas inquietações em suas construções científicas.

A metamorfose humana no mundo da vida

A dissertação de mestrado de Souza Filho (2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].) teve como objetivo discutir perspectiva de identidade humana, postulada como uma metamorfose na Psicologia Social Crítica e suas intersecções com a Teoria Crítica da Sociedade de Habermas (2012Habermas, J. (2012). Teoria do agir comunicativo. Editora WMF Martins Fontes.) com as vertentes histórico-sociais da Fenomenologia (Berger & Luckmann, 2009Berger, P. L., & Luckmann, T. (2009). A construção social da realidade: Tratado de sociologia do conhecimento. Vozes.; Husserl, 2012Husserl, E. (2012). A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: Uma introdução à filosofia fenomenológica de acordo com o texto de Husserliana VI. Forense Universitária.; Schutz, 2012Schutz, A. (2012). Fenomenologia e relações sociais: Textos Escolhidos. Vozes.). Enquanto teoria de identidade, estamos falando dos trabalhos de Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: Identidade e emancipação na velhice [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].), Ciampa (2009Ciampa, A. C. (2009). A estória do Severino e a história da Severina: Um ensaio de Psicologia Social. Brasiliense.) e Lima (2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: A identidade na perspectiva da psicologia social crítica. FAPESP, EDUC.), que figuram o sintagma identidade-metamorfose-emancipação. Segundo Souza Filho (2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].), trata-se de um projeto teórico-metodológico que congrega categorias (metamorfose, anamorfose, reconhecimento perverso, identidade política e políticas de identidades) e diferentes conceitos (mesmice/mesmidade, identidade-fetiche, anamorfose, identidade alternativa, cinismo consensual, modulação, multiplicidade, luta por (r)existência e tantos outros) que subsidiam metodologicamente, dentro e fora da Psicologia, pesquisas que problematizam as condições de existência e os modos de regulação social da vida da humanidade na sociedade contemporânea.

Mobilizados pela máxima da “metamorfose em busca de emancipação”, os trabalhos de Ciampa, Almeida e Lima postulam que a viabilidade de discutir o processo de constituição das identidades, tanto de um indivíduo quanto de um coletivo, seria pelas metamorfoses sofridas ao longo de suas histórias de vidas. Inspirados na obra de Ciampa, A estória de Severino e a história de Severina, de 1989, com a tese de que “identidade é metamorfose. E metamorfose é vida” (Ciampa, 2009Ciampa, A. C. (2009). A estória do Severino e a história da Severina: Um ensaio de Psicologia Social. Brasiliense., p. 133), as discussões denunciam as capturas que os indivíduos estão sujeitos a diversas estratégias de dominação da vida do capitalismo tardio. Assim, fortalecem seu compromisso ético de denunciar as violências particulares que refletem as usurpações persistentes na cultura (Lima, 2014Lima, A. F. (2014). História oral e narrativas de história de vida: A vida dos outros como material de pesquisa. In A. F. Lima & N. Lara Junior (Orgs.), Metodologias de Pesquisa em Psicologia Social Crítica (pp. 13-34). Sulina.). Para tanto, o sintagma identidade-metamorfose-emancipação encontra na Teoria Crítica de Habermas a perspectiva crítica e o compromisso político de transmissão de discursos desnaturalizadores das imposições do capitalismo contemporâneo.

No pensamento habermasiano, Ciampa (2007Ciampa, A. C. (2007). As metamorfoses da “metamorfose humana”: Uma utopia emancipatória ainda é possível hoje? Congresso Interamericano da SIP: Simpósio “Metamorfoses da Identidade no mundo contemporâneo”, São Paulo, 26.) encontrou os subsídios que permitiram conjecturar suas críticas sobre as formas sutis de controle da vida humana. Para garantir a administração da cultura, a dominação capitalista opera por formas técnico-funcionalistas, interessadas nos fins e seus resultados, que atravessam nossas vidas, segundo interesses e objetivos particulares. Ela opera de forma estratégica, através dos discursos das instituições, como o mercado e o trabalho, que instrumentaliza as interações humanas com a prescrição normativa de determinadas relações interpessoais. Essa situação é fruto do que Ciampa (2009Ciampa, A. C. (2009). A estória do Severino e a história da Severina: Um ensaio de Psicologia Social. Brasiliense.) vê no pensamento de Habermas (2014Habermas, J. (2014). Técnica e ciência como “ideologia”. Editora Unesp.), analisado como racionalidade instrumental: o poder da razão instrumental em operar nas relações sociais se efetiva pela capilarização do controle de instituições, pela propagação de discursos que objetificam as relações da vida, por modelos prescritos, além por de fórmulas operacionalizáveis e resultados a serem alcançados, de forma parasitária no mundo.

A partir de Habermas, Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: Identidade e emancipação na velhice [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].) discute as estratégias de colonização do mundo da vida (Habermas, 2012Habermas, J. (2012). Teoria do agir comunicativo. Editora WMF Martins Fontes.) para compreender a formação de determinadas políticas que normatizam e preconizam formas de viver e estar no mundo. Especificamente, o autor discute a formação dos distúrbios nas esferas da reprodução cultural (contradições simbólicas e enfraquecimento democrático), da integração societária (perturbações na ordem social, como anomia e alienação) e da socialização (rupturas biográficas, psicopatologias).

Temos, então, as crises ou perdas de sentido nas formas de entendimento e na solidariedade interpessoais. Logo, as identidades deformam seus projetos de vida com propósito de adequar suas histórias de vida aos modelos e imagens sociais, que funcionam como padrões prescritivos de beleza, eficiência e bem-estar da cultura contemporânea (Habermas, 2012Habermas, J. (2012). Teoria do agir comunicativo. Editora WMF Martins Fontes.). A ideia acerca da anamorfose, proposta por Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: Identidade e emancipação na velhice [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].), ilustra como a lógica social, pautada no adaptacionismo, se torna uma ditadura de usurpações das metamorfoses humanas que dificultam seus processos socializatórios: por um lado, fica difícil os indivíduos se realizarem plenamente com esses modelos prescritos, devido à enorme discrepância existente entre eles e as condições de vida dos outros indivíduos; por outro, dificuldade deles se verem destituídos de realizar ou alcançar esses padrões que funcionam como reguladores morais na geração dos sentidos da vida, pela identificação forjada pelo sistema.

Assim como Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: Identidade e emancipação na velhice [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].), Lima (2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: A identidade na perspectiva da psicologia social crítica. FAPESP, EDUC.) vincula o pensamento ciampiano ao de Habermas como seu eixo epistemológico, mas inova ao trazer para as questões do reconhecimento dos trabalhos de Honneth (2009Honneth, A. (2009). Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. Editora 34.), que foi orientando do próprio Habermas e é o atual diretor da Escola de Frankfurt. Lima (2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: A identidade na perspectiva da psicologia social crítica. FAPESP, EDUC.) colabora com a proposta da identidade como metamorfose ao estipular que, pelas condições e as formas de reconhecimento possíveis na cultura e na sociedade contemporânea, temos tanto as estratégias de dominação e adoecimentos da vida humana como potências políticas para a luta de construção de novas formas de vidas emancipadas e humanamente solidárias. Mesmo ciente da crítica de Honneth ao pensamento habermasiano, quando o primeiro propõe que “a análise da colonização do mundo da vida pela lógica sistêmica deve ser direcionada para a explicitação das condições de reconhecimento na sociedade capitalista” (Lima, 2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: A identidade na perspectiva da psicologia social crítica. FAPESP, EDUC., p. 218), Lima não desmerece o poder das estratégias sistêmicas de intervenção sobre as relações humanas pelos meios de colonização do mundo da vida:

. . . a perspectiva habermasiana de colonização do mundo da vida pela lógica sistêmica não pode ser empregada de forma dualista ou de forma binária, como escreve Prado (2005, p. 89), uma vez que nas narrativas poderemos observar que essa colonização instrumental se dará durante o processo de socialização e individualização das identidades e, como o próprio Habermas reconhece, depende de condições de reconhecimento (perverso) recíproco (Lima, 2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: A identidade na perspectiva da psicologia social crítica. FAPESP, EDUC., p. 238).

As críticas que estruturam e fortalecem os trabalhos de Ciampa, Almeida e Lima procuram não exclusivamente denunciar as formas de captura da vida humana ou acentuar a condição trágica e pessimista da vida em meio a uma cultura hedonista. Em trabalhos anteriores (Souza Filho & Santos, 2017Souza Filho, J. A., & Santos, B. O. (2017). O sintagma identidade-metamorfose-emancipação e sua relação com o construto mundo da vida. Psicologia & Sociedade, 29, 170491. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29170491
https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v2...
), indicamos brevemente a proximidade que o sintagma identidade-metamorfose-emancipação estabelece com o mundo da vida, discutido pela teoria habermasiana da sociedade. Resgatamos as principais fontes que Habermas (2012Habermas, J. (2012). Teoria do agir comunicativo. Editora WMF Martins Fontes.), para a construção de uma teoria social que veio complementar os trabalhos sobre linguagem na Teoria da Ação Comunicativa acerca do mundo da vida. A tradição sociofenomenológica de Husserl, Schutz, Luckmann e Berger se faz presente na aposta de Habermas em retornar ao mundo da vida como esfera social de construção de interações linguísticas pautadas pelos entendimentos mútuos com fins de fortalecimento das relações solidárias inter-humanas.

Com a dissertação (Souza Filho, 2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].), problematizamos a metamorfose humana no mundo da vida, seja por sua aparência de não metamorfose ou cristalização, seja pelas vias emancipatórias de construção de formas de vida alternativas e contrárias às imposições culturais vigentes. Segundo Souza Filho (2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].), Ciampa, Almeida e Lima muito aprenderam com o pensamento crítico de Habermas, e esses aprendizados ficam evidentes na sugestiva intersecção entre dois projetos teóricos, um da Psicologia Social Crítica e outro da Teoria Crítica da Sociedade. Verificamos que as discussões realizadas pelos autores são correlacionadas a processos tanto de renovação e resgate cultural como de colonização do mundo da vida, ambos à luz das críticas habermasianas. Entretanto, a correlação teórico-conceitual entre essas duas perspectivas não dispõe de uma discussão que explicite os fundamentos que viabilizem condições para uma crítica da identidade, firmada pela intersecção entre metamorfose humana e mundo da vida. Na dissertação, problematizamos quais fundamentos epistemológicos, seja da Psicologia Social Crítica, seja da Teoria Crítica da Sociedade, asseguram acepções para a crítica de identidade enquanto metamorfose humana no mundo da vida.

As (in)suficiências da pesquisa teórico-bibliográfica

As discussões sobre o sintagma evidenciaram uma vinculação epistemológica da Teoria da Metamorfose Humana junto às críticas habermasianas sobre as estratégias de intervenção e renovação do mundo da vida pela racionalidade instrumental e racionalidade dialógica, respectivamente. O diálogo dessas duas teorias, com posturas claramente críticas, visa desnaturalizar os discursos positivos do mundo, não só naquilo que criam, mas, sobretudo, os que impedem a emergência de novas formas de vida no mundo.

Em torno desses questionamentos, nossa problemática sinalizou questões sobre as intersecções teóricas entre a Psicologia Social Crítica e as reflexões psicossociológicas da Teoria Crítica da Sociedade de Habermas, resgatando suas relações com as vertentes histórico-sociais da Fenomenologia. Para trabalhar as questões acima, levantamos a proposta da pesquisa bibliográfica, que “é o desenvolvimento de um trabalho cujo problema de pesquisa exija a pensar abordagem teórica [pois], . . . na pesquisa bibliográfica, o trabalho é desenvolvido, exclusivamente, a partir de fontes bibliográficas” (Faria et al., 2010Faria, A. C., Cunha, I., & Felipe, Y. X. (2010). Manual prático para elaboração de monografias: Trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses. Vozes., p. 32). Assim, questões e problematizações teóricas que necessitam retornar para a materialidade da bibliografia, para os trabalhos de leitura, compreensão e discussão no desenvolvimento da pesquisa.

Para além de uma revisão de literatura, uma pesquisa teórico-bibliográfica visa proporcionar novos aprendizados para a área de conhecimento de sua pesquisa. Ela deve, também, propiciar o reconhecimento de novas metodologias e técnicas para o pesquisador, no caso de pesquisas empíricas, ou mesmo novas reflexões e teorizações sobre determinado tema, o que compete à investigação aqui problematizada. Por fim, subsidia o autor na construção da redação de seu futuro texto, quando as fontes lidas o mobilizam a aproximar-se das discussões já existentes, tanto por apropriação conceitual como por uma produção textual de leitura compreensível (Pizzani et al., 2012Pizzani, L., Silva, R., Bello, S., & Hayashi, M. (2012). A arte da pesquisa bibliográfica na busca do conhecimento. RDBCI: Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, 10(2), 53-66. https://doi.org/10.20396/rdbci.v10i1.1896
https://doi.org/10.20396/rdbci.v10i1.189...
).

A pesquisa bibliográfica busca a resolução de um problema (hipótese) por meio de referenciais teóricos publicados, analisando e discutindo as várias contribuições científicas. Esse tipo de pesquisa trará subsídios para o conhecimento sobre o que foi pesquisado, como e sob que enfoque e/ou perspectivas foi tratado o assunto apresentado na literatura científica (Boccato, 2006Boccato, V. R. C. (2006). Metodologia da pesquisa bibliográfica na área odontológica e o artigo científico como forma de comunicação. Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo, 18(3), 265-274., p. 266).

Lima e Mioto (2007Lima, T. C. S., & Mioto, R. C. T. (2007). Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: A pesquisa bibliográfica. Revista Katálysis, 10(esp.), 37-45. https://doi.org/10.1590/S1414-49802007000300004
https://doi.org/10.1590/S1414-4980200700...
) advertem que os estudos metodológicos sobre pesquisa bibliográfica caem repetidamente no vício de tratá-la como uma simples revisão de literatura, estruturada por procedimentos de acumulação de fontes, delimitação conceitual, leituras e fichamentos. Segundo as autoras, a falta de compreensão da importância estratégica dessa pesquisa gera impasses metodológicos dentro da academia, que restringem o desenvolvimento de trabalhos teóricos exclusivamente a uma revisão de literatura. Entretanto, as autoras advertem que a revisão é um pré-requisito para o desenvolvimento de uma investigação teórica, especialmente sobre a importância crucial de ordenamentos e eleição de uma bibliografia que fomente as discussões necessárias de uma pesquisa teórica.

Endossando a percepção das autoras, os manejos adotados nas propostas de pesquisa teórico-bibliográfica se restringem a reflexões de procedimentos, levantamento e seleção da bibliografia, quando muito trabalhando a importância do ato da leitura a ser feita. Essas posturas descrevem o modo instrumental e funcional do modo de fazer ciência hoje. Mobilizado por atender fins, na medida em que é útil e eficiente, o conhecimento científico despotencializa seu olhar crítico para com a polissemia dos discursos quando se mobiliza atender prescrições e normas de métodos (Habermas, 2014Habermas, J. (2014). Técnica e ciência como “ideologia”. Editora Unesp.; Lima & Mioto, 2007Lima, T. C. S., & Mioto, R. C. T. (2007). Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: A pesquisa bibliográfica. Revista Katálysis, 10(esp.), 37-45. https://doi.org/10.1590/S1414-49802007000300004
https://doi.org/10.1590/S1414-4980200700...
).

Para Lima e Mioto (2007Lima, T. C. S., & Mioto, R. C. T. (2007). Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: A pesquisa bibliográfica. Revista Katálysis, 10(esp.), 37-45. https://doi.org/10.1590/S1414-49802007000300004
https://doi.org/10.1590/S1414-4980200700...
), há uma grande carência de discussões sobre as implicações do fazer científico desta perspectiva metodológica. Elas advertem que a produção de conhecimento é, acima de tudo, uma produção histórica, embriagada por interesses e ideologias. Logo, é crucial questionar as implicações de determinados procedimentos, como a escolha de determinada bibliografia e seus recortes, pois, nesse ponto, já sinalizam quais discursos participaram na produção de determinado conhecimento.

Reconhecemos a importância de métodos e técnicas de pesquisa, na estruturação logística e prática que exige um trabalho de investigação teórica sobre fontes bibliográficas para execução de sua proposta, entretanto, por termos ciência das proposições de instrumentalização, adotamos uma posição crítica na construção da pesquisa. Ou seja, adicionamos, junto a tais procedimentos, uma abordagem que vise ultrapassar a aplicação de técnicas para alcançar o exercício de um olhar questionador sobre os enunciados e posições epistemológicas dos discursos teóricos presentes na bibliografia. Reconhecemos, principalmente, que a produção de um conhecimento não deve se contentar com a aplicação de métodos sem problematizar os interesses que permeiam os conhecimentos da aplicação de um método ou técnica (Habermas, 2014Habermas, J. (2014). Técnica e ciência como “ideologia”. Editora Unesp.).

Reconstrução enquanto operador crítico

Assim como a tríade do sintagma identidade-metamorfose-emancipação, também alinhamos, epistemologicamente, nossa pesquisa ao pensamento da Teoria Crítica de Habermas. Enquanto investigação dentro da Psicologia Social Crítica, assumimos o compromisso político de transmissão de discursos críticos acerca das naturalidades impostas na cultura contemporânea. Junto a ela, defendemos os princípios éticos de uma comunidade humana em que o diálogo, o entendimento e a solidariedade guiem a racionalidade das relações interpessoais. Dessa forma, assumimos que nossa posição crítica busca se aproximar de uma perspectiva implícita que atravessa os escritos habermasianos: “Reconstrução, em nosso contexto, significa que uma teoria é decomposta e recomposta em uma nova forma para que possa atingir o fim que ela mesma se pôs” (Habermas, 2016Habermas, J. (2016). Para a reconstrução do materialismo histórico. Editora Unesp., p. 25, grifo do autor).

Segundo Nobre e Repa (2012Nobre, M., & Repa, L. (2012). Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana. Papirus.), o projeto reconstrutivo de Habermas se estrutura como um trabalho investigativo de desvendar, no processo de produção da cultura e da sociedade, os potencias de seu próprio desenvolvimento, cuja riqueza dos referenciais simbólicos dão sentido e contornos aos processos sociais, na medida em que “reconstrução não significa reproduzir o que é factualmente, mas refletir sobre as regras que têm sido supostas para que seja possível construir a própria compreensão do sentido e mesmo do não sentido do que é construído social e simbolicamente” (Nobre & Repa, 2012Nobre, M., & Repa, L. (2012). Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana. Papirus., p. 8). Os autores exploram essa perspectiva da reconstrução, situando-a como via genética de explicitação das estruturas de socialização dos sujeitos, em especial de sua participação no jogo simbólico e de sentidos da cultura.

Como as estruturas geradoras são também de natureza simbólica, ou seja, elas também são apreendidas pelos atores no seu processo de socialização, a reconstrução genética deve poder explicar como se dá esse processo de aprendizagem. Isso significa que tal reconstrução deve poder explicar como sujeitos socializados podem aprender e criar novas estruturas com base nas anteriores até chegar ao nível das sociedades contemporâneas (Nobre & Repa, 2012Nobre, M., & Repa, L. (2012). Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana. Papirus., p. 21).

Para nosso empreendimento metodológico, reconhecemos que a ideia de reconstrução oferece subsídios para a construção de uma atitude crítica de pesquisa teórica. Como “operador teórico” (Nobre & Repa, 2012Nobre, M., & Repa, L. (2012). Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana. Papirus., p. 7), a reconstrução viabiliza duas atitudes críticas inteiramente imbricadas.Por um lado, “incorpora os resultados das teorias sociais não críticas, das teorias tradicionais” (Nobre & Repa, 2012Nobre, M., & Repa, L. (2012). Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana. Papirus., p. 7), na medida em que esses resultados também falam da estrutura normativa que atravessa as relações sociais e produções culturais. Por outro, pela reelaboração minuciosa desses conhecimentos, temos viabilidade de “identificar os potenciais de emancipação inscritos na realidade social presente” (Nobre & Repa, 2012Nobre, M., & Repa, L. (2012). Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana. Papirus., p. 7).

Segundo Siebeneichler (2012Siebeneichler, F. B. (2012). Apresentação da edição brasileira. In J. Habermas, Teoria do agir comunicativo (pp. VII-XXVI). Editora WMF Martins Fontes.), na Teoria da Ação Comunicativa, Habermas analisa e critica as construções filosóficas e sociológicas da Fenomenologia e de tantas outras teorias, visando compreender os alcances de seus projetos, especialmente os potenciais discursos para “a elaboração de uma nova teoria da ordem social que atribui primazia ao agir comunicativo” (p. XIII). De modo preciso, pelo conceito do mundo da vida, Habermas reconstrói uma teoria social que viabiliza um “diagnóstico das tendências, crises e patologias das atuais sociedades desenvolvidas” (p. XIII), ou seja, as estratégias de controle e administração instrumental e funcional do mundo da vida pelas ordens sistêmicas. Logo, quando opera de modo crítico sobre os atravessamentos históricos, a dinâmica social de construção e manutenção do mundo da vida e as estratégias de intervenção sistêmica, a reconstrução procura identificar estruturas fundamentais da vida social que não foram suficientemente exploradas na realidade das sociedades capitalistas avançadas, o que levaria a crises persistentes e ao mesmo tempo apontaria para possibilidades reais de formas de vida mais democráticas e emancipadas (Banneart Junior & Repa, 2016Banneart Júnior, C., & Repa, L. (2016). Apresentação à edição brasileira. In J. Habermas, Para a reconstrução do materialismo histórico (pp. 11-22). Editora Unesp.).

Para Oliveira (2015Oliveira, M. A. (2015). Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. Edições Loyola.), o mundo da vida no pensamento de Habermas tem como principal característica epistemológica ser a condição de possibilidade para as significações das interações linguísticas nos processos de comunicação humana, pois “ele é um reservatório de evidências e de convicções inabaladas, que constitui o sentido intersubjetivamente partilhado a partir do qual as pessoas podem constituir-se” (Oliveira, 2015Oliveira, M. A. (2015). Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. Edições Loyola., p. 334). Trata-se de “esquemas interpretativos” constituidores das práticas de linguagem e das produções culturais, pelas quais reconstruímos os espaços de comunicação propícios para o entendimento inter-humano. “O mundo vivido garante aos sujeitos de uma comunidade de comunicação convicções de fundo a partir das quais se forma o contexto dos processos de entendimento” (Oliveira, 2015Oliveira, M. A. (2015). Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. Edições Loyola., p. 335); como pano de fundo, ele é um grande depósito cultural das convicções da comunidade humana, materializados por suas dinâmicas, interesses e projetos, “portanto, as estruturas do mundo vivido estabelecem as formas de intersubjetividade: suas evidências básicas são evidências que geram relações intersubjetivas, já que os que agem comunicativamente nelas se apoiam e confiam” (Oliveira, 2015Oliveira, M. A. (2015). Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. Edições Loyola., p. 335).

Mobilizados pelas posições acima, reconstruímos a identidade, enquanto metamorfose, no mundo da vida. Tratamos dos processos de significação e de sua racionalização, a partir de sua construção no pensamento de Habermas enquanto uma teoria normativa da dinâmica social. As discussões de seus processos de significação permitiram situarmos a dinâmica que atravessa a própria estrutura do mundo da vida e as relações humanas, com algumas intervenções sistêmicas (Souza Filho, 2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].).

Entre textos, contextos e discussões

Com o panorama discutido, mobilizamo-nos por construir meios práticos de efetivar os princípios críticos do pensamento habermasiano em nossa investigação, após refletir sobre as (in)suficiências da pesquisa teórico-bibliográfica. Distante de uma conciliação entre o crítico e o instrumental, Antunes (2014Antunes, D. C. (2014). A conexão entre reflexão filosófica e pesquisa social empírica como práxis nas Teoria Crítica da Sociedade. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, (22), 22-42. https://doi.org/10.26512/resafe.v0i22.4650
https://doi.org/10.26512/resafe.v0i22.46...
) nos sinaliza, a partir da própria história da Teoria Crítica, a participação de diferentes métodos científicos nos trabalhos de pesquisa social da Escola de Frankfurt. A relação entre métodos científicos e teorias críticas busca “superar os limites das ciências especializadas e organizar seus resultados reconstruindo o objeto de pesquisa em seu próprio processo histórico concreto” (Antunes, 2014Antunes, D. C. (2014). A conexão entre reflexão filosófica e pesquisa social empírica como práxis nas Teoria Crítica da Sociedade. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, (22), 22-42. https://doi.org/10.26512/resafe.v0i22.4650
https://doi.org/10.26512/resafe.v0i22.46...
, p. 26). Por essa via epistemológica, norteamos e desenvolvemos nossa pesquisa teórico-bibliográfica em três momentos práticos sugeridos por Boccato (2006Boccato, V. R. C. (2006). Metodologia da pesquisa bibliográfica na área odontológica e o artigo científico como forma de comunicação. Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo, 18(3), 265-274.): preparação, realização e comunicação. Em cada etapa, trabalhamos a partir da perspectiva crítica da reconstrução, respectivamente, por três diferentes “abordagens” presentes nos livros de Habermas: textos, contextos e discussão (Dutra, 2015Dutra, J. V. (2015). Apresentação da edição brasileira. In J. Habermas, Textos e contextos. Editora Unesp.; Habermas, 1990Habermas, J. (1990). Pensamento pós-metafísico: Estudos filosóficos. Tempo Brasileiro., 2015Habermas, J. (2015). Texto e contextos. Editora Unesp.).

Preparação da pesquisa entre textos

Segundo Boccato (2006Boccato, V. R. C. (2006). Metodologia da pesquisa bibliográfica na área odontológica e o artigo científico como forma de comunicação. Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo, 18(3), 265-274.), a fase de preparação compreende a definição do tema e sua problemática para, assim, termos o levantamento da bibliografia correspondente, ou seja, “compreende a identificação, localização, fichamento e obtenção da informação” (Boccato, 2006Boccato, V. R. C. (2006). Metodologia da pesquisa bibliográfica na área odontológica e o artigo científico como forma de comunicação. Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo, 18(3), 265-274., p. 267)1 1 Nas pesquisas bibliográficas, especialmente pela perspectiva de revisão sistemática, autores (Boccato, 2006; Pizzani & et al., 2012) sugerem pesquisa em bancos de dados de teses, dissertações e artigos que contemplem as produções antecedentes o ano vigente delimitados com um corte. Essa decisão visa identificar as produções e ideias mais atuais sobre o respectivo tema da pesquisa. . Para nossa pesquisa, esse foi o momento no qual estabelecemos decisões peculiares sobre a própria problemática epistemológica de nossa investigação.

Como já apresentado anteriormente, desejamos problematizar as intersecções entre a perspectiva de identidade como metamorfose pelo sintagma identidade-metamorfose-emancipação da Psicologia Social Crítica, em diálogo com os trabalhos sobre o mundo da vida de Habermas e com suas leituras na Fenomenologia de Husserl, Schutz, Berger e Luckmann. Logo, nossa pesquisa já iniciou com a definição explícita dos autores e suas respectivas escolas, a partir das quais localizamos por quais projetos teóricos encontraríamos as bibliografias pertinentes para nossos estudos. Dessa forma, trabalhamos no levantamento das produções pertinentes.

Do sintagma identidade-metamorfose-emancipação, como um projeto-teórico recente e de próximo contato, tivemos oportunidade e facilidade2 2 Salientamos que por ocasião da interlocução do com os outros dois nomes que compõem o sintagma, tivemos grande facilidade em acessar uma enorme amplitude das produções de ambos, entre livros, artigos, teses, dissertações e outros manuscritos não publicados deles, ou mesmo sobre eles. de acessar uma vasta bibliografia, como comunicações, artigos, dissertações, teses, livros e outros manuscritos não publicados. Entre essa amplitude, fizemos a seleção de dois tipos de produções científicas de Ciampa, Almeida e Lima. Inicialmente, trabalhamos com suas respectivas teses de doutorado. O início da construção do sintagma se encontra na tese de Ciampa (2009Ciampa, A. C. (2009). A estória do Severino e a história da Severina: Um ensaio de Psicologia Social. Brasiliense.) que vê a identidade enquanto uma metamorfose, da qual as contribuições e críticas de Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: Identidade e emancipação na velhice [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].) e Lima (2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: A identidade na perspectiva da psicologia social crítica. FAPESP, EDUC.) partiram para a construção de suas teses, respectivamente, sobre as políticas de identidade dentro da produção dos processos das identidades-anamorfoses e dos jogos institucionais na produção das condições de reconhecimento perverso sobre a vida das metamorfoses. Logo em seguida, voltamo-nos para artigos, capítulos de livros e outros manuscritos que problematizassem sobre o projeto teórico-metodológico do sintagma3 3 Vale salientar que, dentro das produções dos autores, encontramos publicações sobre outras temáticas (Psicologia e Literatura, Política brasileira de Saúde Mental e Desinstitucionalização, Sociedade de Consumo) que não contemplavam os interesses da pesquisa. . Trata-se de produções que contribuem, por meio de discussões teóricas ou epistemológicas, para a ampliação da crítica das condições de (in)viabilidade dos processos de metamorfose das histórias de vida de indivíduos e coletivos. A saber, as produções referidas são: Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: Identidade e emancipação na velhice [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].), Ciampa (2009Ciampa, A. C. (2009). A estória do Severino e a história da Severina: Um ensaio de Psicologia Social. Brasiliense.) e Lima (2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: A identidade na perspectiva da psicologia social crítica. FAPESP, EDUC., 2014Lima, A. F. (2014). História oral e narrativas de história de vida: A vida dos outros como material de pesquisa. In A. F. Lima & N. Lara Junior (Orgs.), Metodologias de Pesquisa em Psicologia Social Crítica (pp. 13-34). Sulina., 2015Lima, A. F. (2015). A Teoria Crítica de Jürgen Habermas: Cinco ensaios sobre linguagem, identidade e Psicologia Social. Sulina., 2017Lima, A. F. (2017). Coisas frágeis: Narrativas sobre os efeitos do diagnóstico psiquiátrico para a identidade. In XXXVI Congreso Interamericano de Psicología. Mérida.).

Quanto ao pensamento de Habermas, sua grande bibliografia reflete uma diversidade de temas e problematizações construídos de maneira tão crítica. Para Lima (2015Lima, A. F. (2015). A Teoria Crítica de Jürgen Habermas: Cinco ensaios sobre linguagem, identidade e Psicologia Social. Sulina.), relativo à Psicologia Social, nos trabalhos habermasianos sobre linguagem e identidade, encontramos sua teoria social sobre o mundo da vida. Logo, partimos da própria bibliografia de Habermas sugerida nas discussões de Lima: Habermas (1990Habermas, J. (1990). Pensamento pós-metafísico: Estudos filosóficos. Tempo Brasileiro., 2012Habermas, J. (2012). Teoria do agir comunicativo. Editora WMF Martins Fontes., 2014Habermas, J. (2014). Técnica e ciência como “ideologia”. Editora Unesp., 2015Habermas, J. (2015). Texto e contextos. Editora Unesp., 2016Habermas, J. (2016). Para a reconstrução do materialismo histórico. Editora Unesp.). Nessa mesma ocasião, Lima (2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: A identidade na perspectiva da psicologia social crítica. FAPESP, EDUC.), mesmo de forma breve, também sinaliza as obras nas quais Habermas se apropriou das discussões histórico-sociais da Fenomenologia (Berger & Luckmann, 2009Berger, P. L., & Luckmann, T. (2009). A construção social da realidade: Tratado de sociologia do conhecimento. Vozes.; Husserl, 2012Husserl, E. (2012). A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: Uma introdução à filosofia fenomenológica de acordo com o texto de Husserliana VI. Forense Universitária.; Schutz, 2012Schutz, A. (2012). Fenomenologia e relações sociais: Textos Escolhidos. Vozes.). Tendo em vista a grande a importância que exerceram para a construção da teoria social do mundo da vida habermasiano, integramo-las em nossos estudos.

Importante salientar que cada bibliografia não se resume a uma fonte a ser estuda para fichamentos que, porventura, fortalecerá argumentos por citações diretas ou indiretas. Segundo Dutra (2015Dutra, J. V. (2015). Apresentação da edição brasileira. In J. Habermas, Textos e contextos. Editora Unesp.), sobre diferentes textos filosóficos e psicossociológicos, Habermas, a princípio, busca compreender os conteúdos normativos explícitos e implícitos em cada discurso, ou seja, trabalha cada argumento a partir da dinâmica de sentidos e significados que o texto pretende comunicar. Logo, tomamos os textos escolhidos como discursos passíveis de crítica, especialmente quando evidenciamos que seus enunciados conceituais precisam ser analisados nos contextos epistemológicos de seus programas teóricos.

Realização da pesquisa pelos contextos

Boccato (2006Boccato, V. R. C. (2006). Metodologia da pesquisa bibliográfica na área odontológica e o artigo científico como forma de comunicação. Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo, 18(3), 265-274.) resume a realização da pesquisa pela elaboração dos fichamentos advindos das leituras feitas. A autora “compreende a realização do fichamento do documento localizado e obtido que, após o procedimento da leitura, será selecionado definitivamente para a elaboração da redação do trabalho científico” (Boccato, 2006Boccato, V. R. C. (2006). Metodologia da pesquisa bibliográfica na área odontológica e o artigo científico como forma de comunicação. Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo, 18(3), 265-274., p. 268). Os fichamentos não deixam de ter importância, entretanto, não podemos deixar de discutir o contexto de sua produção, desde as leituras feitas até a posição teórica na qual as seleções estão localizadas. Pela pesquisa, devemos situar com os discursos das “obras de filósofos e cientistas sociais que estão marcados de um modo particular por seus contextos históricos” (Habermas, 2015Habermas, J. (2015). Texto e contextos. Editora Unesp., p. 21).

De acordo com Dutra (2015Dutra, J. V. (2015). Apresentação da edição brasileira. In J. Habermas, Textos e contextos. Editora Unesp.), Habermas nos ensina que ao problematizar as linhas argumentativas de um texto, estamos questionando as condições históricas que demarcam a lógica produtiva de seu próprio contexto discursivo. Trata-se de evidenciar como um contexto confere uma “forma especial”, do autor, (Dutra, 2015Dutra, J. V. (2015). Apresentação da edição brasileira. In J. Habermas, Textos e contextos. Editora Unesp., p. 11) ao conteúdo argumentativo do texto em questão. Para Habermas,

e para a Teoria Crítica em geral, o contexto histórico marca, de alguma forma, o pensamento, o que seu próprio método reconstrutivo quer honrar de forma especial, não obstante ele parecer sugerir que determinações argumentativas e conceituais, como as normativas, poderiam exorbitar do contexto concreto (Dutra, 2015Dutra, J. V. (2015). Apresentação da edição brasileira. In J. Habermas, Textos e contextos. Editora Unesp., p. 12).

Problematizar o contexto, dentro de uma crítica reconstrutiva, significa situar a condição genética de produção textual-argumentativa. Para Nobre e Repa (2012Nobre, M., & Repa, L. (2012). Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana. Papirus., p. 25), a reconstrução, pela crítica dos contextos, “pretende transformar o saber implícito e intuitivo (saber pré-teórico) incorporado no uso daquelas regras em um saber explícito (saber teórico)”.Assim, ela, significa evidenciar a lógica operante na construção dos discursos, ou seja, evidenciar a dinâmica dos interesses e agenciamentos na produção de um conhecimento (Habermas, 2015Habermas, J. (2015). Texto e contextos. Editora Unesp.).

Em nossa dissertação (Souza Filho, 2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].), voltamos para as especificidades contextuais que movimentam tanto o sintagma identidade-metamorfose-emancipação na Psicologia Social Crítica quanto a teoria social do mundo da vida de Habermas pela crítica a Fenomenologia em sua Teoria Crítica. Para cada uma, mesmo que de maneira resumida, vale situar quais contextos teóricos fomentam o rigor de suas teorias.

Desde a publicação de A estória de Severino e a história de Severina até os dias atuais, o sintagma identidade-metamorfose-emancipação estrutura-se como um projeto-teórico metodológico sobre a perceptiva de identidade da Psicologia Social Crítica (Souza Filho, 2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].). Norteados pela máxima da “metamorfose em busca de emancipação”, as discussões sinalizam que as proposições conceituais, que subsidiam metodologicamente as pesquisas sobre história de vida, são historicamente situadas a partir das próprias condições do mundo vivido tanto do pesquisador e do colaborador da pesquisa. Destaca-se que, nas discussões recentes de Ciampa (2009Ciampa, A. C. (2009). A estória do Severino e a história da Severina: Um ensaio de Psicologia Social. Brasiliense.), a condição emancipatória das metamorfoses, ou seja, a qualidade de transformação por experiências de autonomia, libertação ou mesmo superação da condição de usurpação do capitalismo sempre configura uma estrutura intrínseca da historicidade dos seres humanos. Já Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: Identidade e emancipação na velhice [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].) adverte que essa mesma historicidade que contingencia experiências emancipatórias dos indivíduos pode também ser interceptada pelas políticas de identidade contemporâneas, que distorcem e deformam as condições de existência das identidades marginalizadas. Desse modo, com sua tese, Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: Identidade e emancipação na velhice [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].) amplia a perspectiva política de investigação das metamorfoses para além das narrativas de história de vida. Faz-se condição sine qua non problematizar a cultura e a sociedade contemporânea por meio das histórias de vida, tendo em vista que cada vida se encontra dentro de uma política que administra as condições de viver e de significar a própria história.

As discussões recentes de Lima (2017Lima, A. F. (2017). Coisas frágeis: Narrativas sobre os efeitos do diagnóstico psiquiátrico para a identidade. In XXXVI Congreso Interamericano de Psicología. Mérida.), frutos da pesquisa “Coisas Frágeis”, têm evidenciado ainda mais quanto os modos sutis e potentes de usurpação da vida humana pela racionalidade instrumental estão interrelacionados com as variações capitalistas e com os interesses mercadológicos. Enquanto coisas, as perspectivas de relações de solidariedade e dialógicas são reduzidas a maneiras de controle, influência e uso do indivíduo, como a presunção de que tivessem fins predeterminados. Essas situações desembocam na segunda condição: a fragilidade. Com a redução da vida dos indivíduos a objeto, as possibilidades de construção de novas histórias de vida encontram-se fragilizadas. Como coisas frágeis, a viabilidade das identidades que se valem dos referenciais simbólicos da cultura para a construção das transformações necessárias para suas metamorfoses, encontra-se minimizada, quando não usurpada.

Quanto à teoria social do mundo da vida, Habermas a qualifica como uma discussão complementar a sua Teoria da Ação Comunicativa. Trata-se de um conjunto de enunciados que fazem emergir os processos de produção e racionalização do mundo. Habermas (1990Habermas, J. (1990). Pensamento pós-metafísico: Estudos filosóficos. Tempo Brasileiro.), ao destranscendentalizar o mundo da vida explicita, junto com uma perspectiva pragmática, o conjunto de saberes e interesses que envolvem o processo de sua racionalização social, privilegia o processo de formação do sistema, que, a princípio, se origina do mundo da vida e vai progressivamente diferenciando-se ao ponto de colonizá-lo, dominá-lo e deturpar sua própria potência de significação da vida. Nesse processo, os indivíduos têm a árdua tarefa de construir suas histórias de vida, mediante um processo de apropriação das tradições disponíveis da cultura, de modo que possam ultrapassar as convenções culturais e normalizadoras da vida. Formam-se projetos de vida inquietos por uma vida boa, pós-convencionais, que partem das próprias condições da cultura e se sedimentam no mundo, por intermédio do protagonismo dos indivíduos, quando imprimem autoria em suas identidades, mesmo com as limitações que scripts sociais impõem (Habermas, 2012Habermas, J. (2012). Teoria do agir comunicativo. Editora WMF Martins Fontes.).

Julgamos ser crucial a importância das discussões de Habermas sobre o mundo da vida para uma efetiva compreensão e fortalecimento epistemológico da Teoria da Ação Comunicativa. Foi em leituras sobre a Fenomenologia que Habermas encontrou o mundo da vida, ou melhor, o Lebenswelt da tradição do pensamento fenomenológico. Habermas salienta que a Teoria da Ação Comunicativa “se apresenta como um mecanismo de interpretação pelo qual o saber cultural se reproduz” (Habermas, 2012Habermas, J. (2012). Teoria do agir comunicativo. Editora WMF Martins Fontes., p. 254). A reprodução, vista como a tradição da cultura, opera seus movimentos, ora pela continuidade literal das práticas humanas, ora pelas puras e simples rupturas no cotidiano das ações. Privilegiando a perspectiva cultural do mundo da vida, Habermas retorna à tradição fenomenológica e a suas variações enquanto teoria da sociedade, como a Sociologia Compreensiva.

Comunicação da pesquisa pela discussão

Com a preparação dos textos da pesquisa, após realizarmos nossa investigação pela problematização de seus contextos teóricos, chegamos ao momento de comunicar as discussões mais pertinentes. “Nessa etapa dar-se-á a redação do trabalho científico por meio do produto científico já determinado de acordo com os propósitos da pesquisa” (Boccato, 2006Boccato, V. R. C. (2006). Metodologia da pesquisa bibliográfica na área odontológica e o artigo científico como forma de comunicação. Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo, 18(3), 265-274., p. 269). Entretanto, a comunicação não deve ficar restrita a uma descrição que sintetize os discursos abordados. Pela crítica aos textos e aos contextos, devemos reconstruir a dinâmica dos interesses dos conhecimentos quando problematizamos os enunciados explícitos e implícitos, ou seja, propor a construção de discursos clarificadores que viabilizem possibilidades de entendimento esclarecedores das produções humanas, pois, nos discursos, nas narrativas e nas oralidades dos textos e contextos:

Esconde[m]-se realmente uma discussão sobre a consistência e a envergadura das velhas verdades que ainda podem ser assimiladas criticamente, mas também sobre o modo de transformação do sentido pelo qual devem passar as velhas verdades no caso de uma apropriação crítica (Habermas, 1990Habermas, J. (1990). Pensamento pós-metafísico: Estudos filosóficos. Tempo Brasileiro., p. 24).

Pelo empreendimento da discussão, a consciência de um saber passa a ser contextualizada a partir de uma história, atravessada pelas contingências do tempo. Aquilo que seria extraordinário passa a ser visto como algo normal, que é produzido por seu próprio mundo. A suposta necessidade de neutralidade para conhecer cede lugar à consciência, ciente da intervenção dos conhecimentos, situando o mundo segundo seus interesses particulares (Habermas, 1990Habermas, J. (1990). Pensamento pós-metafísico: Estudos filosóficos. Tempo Brasileiro.).

Nosso empreendimento da reconstrução ganhou forma na dissertação quando discutimos a construção do sintagma identidade-metamorfose-emancipação, a proposta de Habermas em sua teoria social do mundo da vida por suas leituras da Fenomenologia e, por fim, as acepções críticas que propomos para a reconstrução da metamorfose humana no mundo da vida. As discussões agora descritas foram trabalhadas adequadamente em capítulos específicos que compõem a dissertação.

No capítulo “O sintagma identidade-metamorfose-emancipação”, discutimos, por meio de uma análise epistemológica, a construção do projeto teórico-metodológico de Ciampa, Almeida e Lima enquanto teoria de identidade da Psicologia Social Crítica. Logo, reconstruímos os elementos aqui que permitem compreender a construção dessa teoria, na atual amplitude do arcabouço teórico-metodológico do sintagma. Explicitamos nossa reconstrução em três períodos históricos. O primeiro, Identidade: da crítica à Ideologia e proposição do Sintagma, trata dos anos de Ciampa como aluno do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Refere-se aos interesses seminais de Ciampa sobre identidade, sua participação no movimento crítico de Silvia Lane e proposições iniciais sobre a identidade humana enquanto metamorfose como um problema da Psicologia Social Crítica. O segundo período, Proposição do Sintagma, inicia com a publicação da tese de Ciampa concomitante ao início de suas orientações dentro do próprio Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP, acerca das pesquisas que orientou sobre a metamorfose humana como perspectiva teórica da Psicologia Social. Sua principal peculiaridade é o endossamento de sua vinculação com a Teoria Crítica habermasiana, conjugando a afirmação da existência de indícios emancipatórios vislumbrados na luta por vida das metamorfoses. Já no último período, Sintagma identidade-metamorfose-emancipação, discutimos o fortalecimento teórico pelo qual esse projeto passou nos últimos anos: a partir da adoção da perspectiva emancipatória, situando como o sintagma ampliou seus interesses para com o princípio da metamorfose, na ordem da subjetividade, para problematizar os desafios éticos e políticos das políticas de identidade contemporâneas, situadas na esfera da intersubjetividade, na produção de identidades políticas. Junto a Ciampa, os trabalhos de Almeida e de Lima passam a integrar o corpo teórico do Sintagma da metamorfose em busca de emancipação com outras interessantes categorias e conceitos (como exemplo, anamorfoses, identidades alternativas, cinismo consensual e reconhecimento perverso).

No capítulo “Acepções sobre o mundo da vida”, reconstruímos a teoria social do mundo da vida habermasiano e tratamos dos processos de significação e racionalização privilegiados por Habermas em sua Teoria Crítica, quando suas discussões situam a dinâmica entre cultura, sociedade e personalidade, enquanto estruturas do mundo da vida e suas interceptações pelas intervenções sistêmicas. Versamos sobre o processo de racionalização do mundo da vida pela racionalidade instrumental e, consequentemente, a forma de controle e administração da vida pelo sistema. Situamos também a proposta habermasiana de racionalidade comunicativa como um modo de intercambio racional inter-humano baseado no diálogo e na solidariedade. Sobre as leituras de Habermas sobre Husserl, Schutz, Berger e Luckmann, realizamos uma discussão sobre os alcances e limites da apropriação efetuada pelas respectivas leituras, ou seja, por um lado, trouxemos a crítica habermasiana ao pensamento semântico da Fenomenologia, ainda presas a uma reflexão apriorística, e, por outro lado, baseado em Oliveira (2015Oliveira, M. A. (2015). Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. Edições Loyola.), situamos o naturalismo na pragmática da linguagem de Habermas por sua desatenção sobre a condição da experiência originária no mundo, tão cara à Fenomenologia.

Por fim, no, epílogo, graças às discussões levantadas, indicamos acepções críticas sobre os processos de construção e sedimentação das significações da vida das metamorfoses, seja no que concerne aos significados atribuídos a cada personagem, na constituição dos sentidos dos momentos em que assumimos identidades, seja também nas significações que orientam as visões de mundo de regimentam as políticas de identidades que atravessam as relações indivíduo-cultura-sociedade. Enquanto acepções críticas para a reconstrução da identidade no mundo da vida, apresentamos uma proposta de concepção das metamorfoses enquanto (r)existência.

(R)existir implica lutar por políticas que firmam nossa posição no mundo. Por um lado, nega toda a positividade de persiste em naturalizar tantas estratégias de usurpação de outras possibilidades de viver e de construir tantas histórias para si e com os outros. Por outro lado, fortalece as empreitadas de tomarem seus desejos e inspirações de viver, como afirmação de alternativas que sinalizam tantas possibilidades de vida que são possíveis. Por entre os fragmentos de emancipação, as metamorfoses no mundo da vida lutam por (r)existência (Souza Filho, 2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]., p. 137).

Com a proposta conceitual da “metamorfose em luta por (r)existência”, encerramos as discussões de nossa dissertação (Souza Filho, 2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].). Conjuntamente, pela pesquisa do mestrado, também trabalhamos as condições pragmáticas dos sistemas teóricos enquanto discursões textualmente materializados, contextualmente historicizados e discursivamente exercidas pelos regimes internos de argumentação e externos de comunicação. Sobretudo, quando a teoria produz relações com mundo que enuncia, pelas práticas que os indivíduos constroem nas afirmações/negações que criam da própria realidade (Habermas, 2013Habermas, J. (2013). Teoria e práxis. Editora Unesp.).

Nessa esteira, a proposta de reconstrução de Habermas (1990Habermas, J. (1990). Pensamento pós-metafísico: Estudos filosóficos. Tempo Brasileiro.) destranscendentaliza o conhecimento das significações contemplativas de teorização (do grego theoreîn, que significa olhar através de, espectador) para reivindicar a construção pragmática do conhecimento pelas discussões dos homens, especialmente daqueles que produzem ciência enquanto crítica a partir do exercício argumentativo dos que exercem os discursos e as ações que demarcam o mundo por aquilo que enunciam do mesmo. Se a tradição das pesquisas teóricas bibliográficas naturaliza seus trabalhos pela conjectura reflexiva de uma coerência e coesão de textos e conceitos, uma abordagem crítica demanda tomar um conhecimento por suas condições de reconstrução, mobilizando a desconstrução de objetividade/naturalidade de uma realidade dada, para compreensão dos argumentos do discursos em seu fazer ciência, seja nos interesses e perspectivas privadas que o antecedem e movimentam quanto nas possibilidades de construção dos que se apropriam dos conhecimentos (Souza Filho, 2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].).

As operações reconstrutivas voltam-se para a própria política do discurso, tanto quando Habermas sinaliza que a crítica do conhecimento se volta para os interesses históricos das tradições que advêm e participam, quanto por ele identificar os potenciais emancipatórios de transformação da própria teoria, sobretudo pelos limites e pelas possibilidades das esferas de socialização dos homens no mundo (Habermas, 2013Habermas, J. (2013). Teoria e práxis. Editora Unesp.; 2014Habermas, J. (2014). Técnica e ciência como “ideologia”. Editora Unesp.). Isso implica reconhecer, nas discussões dos textos, os processos de significações existenciais, especialmente para que próprio fazer científico, dos comprometidos com a crítica histórico-social, como é o caso da Psicologia Social Crítica, reconstrua conhecimentos promotores de processos de socialização de identidades (r)existentes às estratégias de dominação capitalista, implicado empoderar os indivíduos de projetos e ações construtores de emancipação (Lima, 2012Lima, A. F. (2012). Acepções de identidade na obra de Jürgen Habermas: Subsídios para uma psicologia social criticamente orientada. Psicologia e Sociedade, 24(2), 253-262. https://doi.org/10.1590/S0102-71822012000200002
https://doi.org/10.1590/S0102-7182201200...
; Souza Filho, 2017Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].).

Com o debate aqui realizado, esperamos contribuir com a pesquisa de perspectiva teórico-bibliográfica quando sinalizamos, por um lado, a crucial importância de problematizar suas (in)suficiências práticas e, por outro lado, apresentarmos nossa proposta de trabalho com o operador crítico da reconstrução no desenvolvimento e execução da investigação.

Referências

  • Antunes, D. C. (2014). A conexão entre reflexão filosófica e pesquisa social empírica como práxis nas Teoria Crítica da Sociedade. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, (22), 22-42. https://doi.org/10.26512/resafe.v0i22.4650
    » https://doi.org/10.26512/resafe.v0i22.4650
  • Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a Anamorfose: Identidade e emancipação na velhice [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].
  • Banneart Júnior, C., & Repa, L. (2016). Apresentação à edição brasileira. In J. Habermas, Para a reconstrução do materialismo histórico (pp. 11-22). Editora Unesp.
  • Berger, P. L., & Luckmann, T. (2009). A construção social da realidade: Tratado de sociologia do conhecimento Vozes.
  • Boccato, V. R. C. (2006). Metodologia da pesquisa bibliográfica na área odontológica e o artigo científico como forma de comunicação. Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo, 18(3), 265-274.
  • Ciampa, A. C. (2007). As metamorfoses da “metamorfose humana”: Uma utopia emancipatória ainda é possível hoje? Congresso Interamericano da SIP: Simpósio “Metamorfoses da Identidade no mundo contemporâneo”, São Paulo, 26.
  • Ciampa, A. C. (2009). A estória do Severino e a história da Severina: Um ensaio de Psicologia Social Brasiliense.
  • Dutra, J. V. (2015). Apresentação da edição brasileira. In J. Habermas, Textos e contextos Editora Unesp.
  • Faria, A. C., Cunha, I., & Felipe, Y. X. (2010). Manual prático para elaboração de monografias: Trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses Vozes.
  • Habermas, J. (1990). Pensamento pós-metafísico: Estudos filosóficos Tempo Brasileiro.
  • Habermas, J. (2012). Teoria do agir comunicativo Editora WMF Martins Fontes.
  • Habermas, J. (2013). Teoria e práxis Editora Unesp.
  • Habermas, J. (2014). Técnica e ciência como “ideologia” Editora Unesp.
  • Habermas, J. (2015). Texto e contextos Editora Unesp.
  • Habermas, J. (2016). Para a reconstrução do materialismo histórico Editora Unesp.
  • Honneth, A. (2009). Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais Editora 34.
  • Husserl, E. (2012). A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: Uma introdução à filosofia fenomenológica de acordo com o texto de Husserliana VI Forense Universitária.
  • Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: A identidade na perspectiva da psicologia social crítica FAPESP, EDUC.
  • Lima, A. F. (2012). Acepções de identidade na obra de Jürgen Habermas: Subsídios para uma psicologia social criticamente orientada. Psicologia e Sociedade, 24(2), 253-262. https://doi.org/10.1590/S0102-71822012000200002
    » https://doi.org/10.1590/S0102-71822012000200002
  • Lima, A. F. (2014). História oral e narrativas de história de vida: A vida dos outros como material de pesquisa. In A. F. Lima & N. Lara Junior (Orgs.), Metodologias de Pesquisa em Psicologia Social Crítica (pp. 13-34). Sulina.
  • Lima, A. F. (2015). A Teoria Crítica de Jürgen Habermas: Cinco ensaios sobre linguagem, identidade e Psicologia Social Sulina.
  • Lima, A. F. (2017). Coisas frágeis: Narrativas sobre os efeitos do diagnóstico psiquiátrico para a identidade. In XXXVI Congreso Interamericano de Psicología Mérida.
  • Lima, T. C. S., & Mioto, R. C. T. (2007). Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: A pesquisa bibliográfica. Revista Katálysis, 10(esp.), 37-45. https://doi.org/10.1590/S1414-49802007000300004
    » https://doi.org/10.1590/S1414-49802007000300004
  • Nobre, M., & Repa, L. (2012). Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana Papirus.
  • Oliveira, M. A. (2015). Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea Edições Loyola.
  • Pizzani, L., Silva, R., Bello, S., & Hayashi, M. (2012). A arte da pesquisa bibliográfica na busca do conhecimento. RDBCI: Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, 10(2), 53-66. https://doi.org/10.20396/rdbci.v10i1.1896
    » https://doi.org/10.20396/rdbci.v10i1.1896
  • Siebeneichler, F. B. (2012). Apresentação da edição brasileira. In J. Habermas, Teoria do agir comunicativo (pp. VII-XXVI). Editora WMF Martins Fontes.
  • Souza Filho, J. A. (2017). A metamorfose humana no mundo da vida: Reconstruções epistemológicas da perspectiva de identidade da psicologia social crítica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará].
  • Souza Filho, J. A., & Santos, B. O. (2017). O sintagma identidade-metamorfose-emancipação e sua relação com o construto mundo da vida. Psicologia & Sociedade, 29, 170491. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29170491
    » https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29170491
  • Schutz, A. (2012). Fenomenologia e relações sociais: Textos Escolhidos Vozes.
  • 1
    Nas pesquisas bibliográficas, especialmente pela perspectiva de revisão sistemática, autores (Boccato, 2006Boccato, V. R. C. (2006). Metodologia da pesquisa bibliográfica na área odontológica e o artigo científico como forma de comunicação. Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo, 18(3), 265-274.; Pizzani & et al., 2012Pizzani, L., Silva, R., Bello, S., & Hayashi, M. (2012). A arte da pesquisa bibliográfica na busca do conhecimento. RDBCI: Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, 10(2), 53-66. https://doi.org/10.20396/rdbci.v10i1.1896
    https://doi.org/10.20396/rdbci.v10i1.189...
    ) sugerem pesquisa em bancos de dados de teses, dissertações e artigos que contemplem as produções antecedentes o ano vigente delimitados com um corte. Essa decisão visa identificar as produções e ideias mais atuais sobre o respectivo tema da pesquisa.
  • 2
    Salientamos que por ocasião da interlocução do com os outros dois nomes que compõem o sintagma, tivemos grande facilidade em acessar uma enorme amplitude das produções de ambos, entre livros, artigos, teses, dissertações e outros manuscritos não publicados deles, ou mesmo sobre eles.
  • 3
    Vale salientar que, dentro das produções dos autores, encontramos publicações sobre outras temáticas (Psicologia e Literatura, Política brasileira de Saúde Mental e Desinstitucionalização, Sociedade de Consumo) que não contemplavam os interesses da pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2019
  • Aceito
    05 Out 2020
Conselho Federal de Psicologia SAF/SUL, Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo sala 105, 70070-600 Brasília - DF - Brasil, Tel.: (55 61) 2109-0100 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revista@cfp.org.br