Resumo
O presente estudo objetivou conhecer a percepção de profissionais da saúde sobre o abandono e a entrega de crianças, assim como os motivos que levam uma mãe abandonar ou entregar o filho para adoção. Participaram desse estudo sete profissionais da saúde, com formação em técnico de enfermagem, enfermagem e medicina. O tempo de experiência das profissionais variou de cinco meses a 23 anos. Os dados foram obtidos através de uma entrevista semiestruturada, que abordou a opinião das participantes sobre o abandono e a entrega de bebês, bem como possíveis motivações para essa ação. As respostas foram analisadas qualitativamente, sendo obtidas três categorias: 1) Diferentes rumos: a entrega como abandono ou como cuidado; 2) Possíveis explicações para a decisão de entregar um filho para adoção e 3) Antes do abandono: fatores que permearam esse ato. Discute-se a influência de concepções sociais e de crenças pessoais sobre maternidade, a entrega e o abandono de crianças.
Criança Abandonada; Pessoal de Saúde; Saúde da Mulher
Abstract
This study aimed to determine the perception of health care professionals in regards to the abandonment of children and giving up of children for adoption, as well as the reasons that lead a mother to take these actions. Seven health care professionals participated in the study, including nursing technicians, nurses, and physicians. The working experience of these professionals ranged from 5 to 23 years. Data were collected using a semi-structured interview, approaching the opinion of the participants about abandonment and giving up infants, as well as motivations regarding taking these actions. The responses were qualitatively analyzed, enabling the emergence of three categories: 1) Different pathways: understanding the giving up of children as abandonment of care; 2) Possible explanations concerning the decision to give a child up for adoption; and 3) Before abandonment: factors involved in the act. The influence of social conceptions and personal beliefs about motherhood and the giving up or abandonment of children is discussed.
Child, Abandoned; Giving up Children; Health Personnel; Women’s Health
Resume
El presente estudio tuvo como objetivo conocer la percepción de los profesionales de la salud sobre el abandono y la entrega de niños, así como los motivos que llevan a una madre a abandonar o entregar el hijo para la adopción. Participaron de este estudio siete profesionales de la salud, con formación en técnico de enfermería, enfermería y medicina. El tiempo de experiencia de las profesionales estuvo entre cinco meses a 23 años de trabajo. Los datos fueron obtenidos a través de una entrevista semi estructurada, que abordó la opinión de las participantes sobre el abandono y la entrega de bebés, así como posibles motivaciones para esta acción. Las respuestas fueron analizadas cualitativamente y separadas en tres categorías: 1) Distintos rumbos: la entrega como abandono o como cuidado; 2) Posibles explicaciones para la decisión de entregar un hijo para la adopción y 3) Antes del abandono: factores que permearon este acto. Se discute la influencia de las concepciones sociales y de las creencias personales sobre la maternidad, la entrega y el abandono de niños.
Niño Abandonado; Personal de Salud; Salud de la Mujer
Introdução
A entrega de um filho para a adoção após o seu nascimento é uma decisão de difícil compreensão na sociedade, sobretudo devido à ideia compartilhada socialmente de que as mulheres possuem uma tendência inata para a maternidade (Badinter, 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.; Bonnet, 1993Bonnet, C. (1993). Adoption at birth: prevention against abandonment or neonaticide. Child Abuse & Neglect, 17(4), 501-513.). A mãe que renuncia seu filho precisa ponderar sobre o impacto que essa decisão pode acarretar na sua vida e enfrentar sua posição frente à sociedade, a começar pela família e equipe de saúde que a atende, seja no período pré-natal, seja no momento do parto.
Algumas expressões são encontradas para nomear essa ação, como doar um filho, entregá-lo, abandoná-lo, deixá-lo, entre outras, cada uma com sua carga de significado associado. Mau entendidos sobre o significado de entregar e abandonar um filho podem comprometer o atendimento oferecido às mulheres nas instituições de saúde, nem violar os seus direitos. Dessa forma, com o referencial teórico da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH), de Urie Bronfenbrenner (1996)Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., este estudo visou compreender quais são as concepções de profissionais da saúde, que trabalham em maternidades de hospitais públicos, sobre o abandono e a entrega de crianças para adoção, buscando conhecer de que forma caracterizam tais situações, bem como o que pensam sobre os motivos que influenciam as mulheres a tomarem essa decisão.
O imperativo da maternidade
A concepção de que a maternidade advém de um instinto materno, presente em todas as mulheres e compreendido como inato, ainda atrela fortemente o ser mulher ao ser mãe. A partir desse entendimento, exige-se das mulheres o amor materno como algo intrínseco ao seu ser, como parte de sua natureza, o que pode estar relacionado ao “mito do amor materno”, estudado por Badinter (1985)Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.. Em seu trabalho, a autora francesa refletiu sobre a construção social a cerca da maternidade, a qual é permeada de amor incondicional para com os filhos, oriundo dos instintos maternos e do imperativo biológico. Esta pesquisadora francesa debruçou-se sobre estas questões, e lançou algumas reflexões sobre o que pode estar em jogo nesse fenômeno. Segundo Badinter (1985)Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., esse instinto materno atribuído às mulheres pressupõe o amor incondicional aos seus filhos, advindo de sua natureza “boa”. Coube à mulher assumir este papel porque cabe a ela a função mais importante na procriação, nutrir e dar a luz ao descendente, tendo recebido apoio das organizações religiosas cristãs que santificavam a mulher à imagem e semelhança da mãe de Jesus. Badinter (1985)Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. ainda complementou que esta função também tinha motivações econômicas, à medida que conservou as mulheres no ambiente familiar, fazendo-as não entrarem em disputa com os homens em outros ambientes sociais. Segundo a autora, o amor materno foi por tanto tempo concebido em termos de instinto que acreditamos facilmente que tal comportamento seja parte da natureza da mulher, seja qual for o tempo e o meu que a cercam.
Aos nossos olhos, toda mulher, ao se tornar mãe, encontra em si mesmas todas as respostas à sua nova condição. Como se uma atividade pré-formada, automática e necessária esperasse apenas a ocasião de se exercer. Sendo a procriação natural, imaginamos que o fenômeno biológico e fisiológico da gravidez deve corresponder determinada atitude maternal (Badinter, 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 20).
Desse modo, é como se houvesse uma inscrição do amor e do ser mãe à natureza feminina e as mulheres que rompem com esse modelo pré-estabelecido e desejam entregar seu filho para adoção transgridem a regra biológica e tendem a ser excluídas pela sociedade (Motta, 2008Motta, M. A. P. (2008). Mães abandonadas: A entrega de um filho em adoção. São Paulo, SP: Cortez.) e percebidas como exceções patológicas (Badinter, 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.). Com base nessa concepção, a mulher que renuncia a maternidade, entregando o filho para adoção, é vista como desviante e passa a sofrer um julgamento negativo pelo seu ato.Barbosa (2011)Barbosa, A. P. S. (2011). Mulher-monstro: violência contra a mulher que entrega o filho em adoção e a Lei 12.010/09. In Anais do 2o Simpósio Gênero e Políticas Públicas, Londrina. Londrina: Universidade Estadual de Londrina. cunhou o termo “mulheres-monstros”, referindo-se à forma como as mulheres que entregam seus filhos são vistas socialmente. A recusa em ser mãe, segundo a autora, não pode acontecer, independente da situação em que a mulher se encontre. Assim, ao não corresponderem às expectativas sociais ligadas ao papel da mulher como mãe, essas mulheres acabam violentadas e silenciadas pelo ato da entrega (Barbosa, 2011Barbosa, A. P. S. (2011). Mulher-monstro: violência contra a mulher que entrega o filho em adoção e a Lei 12.010/09. In Anais do 2o Simpósio Gênero e Políticas Públicas, Londrina. Londrina: Universidade Estadual de Londrina.).
Diniz (1994)Diniz, J. S. (1994). A adoção. In F. Freire (Ed.), Abandono e adoção: contribuições para uma cultura da adoção (v. 2, pp. 13-30). Curitiba: Terre des Hommes. refere-se à “voz do sangue” que, segundo o autor, é uma ideia presente na concepção da maternidade, que prima pela filiação biológica, acreditando que os laços sanguíneos e o amor de mãe natural são, antes e acima de tudo, primordiais. No entanto, o laço biológico não pressupõe o laço afetivo e, nessa direção, no momento em que a mãe decide realizar ou tem a intenção de entregar seu filho para adoção, uma ruptura ou um distanciamento já começa a existir entre os dois (Diniz, 1994Diniz, J. S. (1994). A adoção. In F. Freire (Ed.), Abandono e adoção: contribuições para uma cultura da adoção (v. 2, pp. 13-30). Curitiba: Terre des Hommes.). O amor materno, na proposta de Badinter (1985)Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., é mais um sentimento humano, frágil e falho, que não é intrínseco à essência feminina, nem está presente em todas as relações entre mãe e filho. O ser boa mãe é uma das faces da maternidade, no entanto, é preciso olhar para as demais faces (Badinter, 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.), a exemplo daquelas em que o amor materno não é manifestado, como as mães que decidem entregar seus filhos para adoção.
Nessa perspectiva, a sociedade pode perceber a entrega do filho para adoção como uma ação voluntária da mulher, através de um consentimento informado, em que a mãe consente pela entrega, tendo recebido todas as informações e esclarecimentos. No entanto, as mães podem compreender que a entrega é sua única possibilidade, em função do contexto em que estão inseridas, da falta de apoio familiar e das questões econômicas (Motta, 2008Motta, M. A. P. (2008). Mães abandonadas: A entrega de um filho em adoção. São Paulo, SP: Cortez.). Pode-se questionar, assim, se realmente trata-se de uma ação voluntária (Hollingsworth, 2005Hollingsworth, L. D. (2005). Birth mothersn whose parental rights are terminated. In G. P. Mallon, & P. M. Hess (Eds.), Child welfare for the twenty-first century: a handbook of pratices, policies, and programs (pp. 469-481). New York: Columbia University Press.), na medida em que ainda não estão claras na literatura as razões que motivam as mulheres a entregar um filho para adoção e em que contexto ocorre essa entrega. Outros fatores, ainda pouco estudados, como as razões para o abandono em locais inóspitos, com riscos de sobrevivência, também merecem atenção, haja vista que casos de bebês abandonados em sacolas plásticas e latas de lixo vêm sendo cada vez mais divulgados pela mídia brasileira. Além disso, a escassez de estudos científicos no Brasil sobre as mães que entregam seu filho para adoção gera falta de conhecimento sobre essas mulheres (Fonseca, 2012Fonseca, C. (2012). Mães “abandonantes”: fragmentos de uma história silenciada. Revista Estudos Feministas, 20(1), 13-32.), sobre os motivos que as levaram a realizar a entrega e sobre os sentimentos que permearam tal ato.
Alguns estudos apontam fatores como condições socioeconômicas desfavorecidas, gravidez não planejada e indesejada, ser muito jovem, falta de apoio familiar e do parceiro (Freston & Freston, 1994Freston, Y. M. B., & Freston, P. (1994). A mãe biológica em casos de adoção: um perfil da pobreza e do abandono. In F. Freire (Ed.),Abandono e adoção: contribuições para uma cultura da adoção(v. 2, pp. 81-90). Curitiba: Terre des Hommes.; Hollingsworth, 2005Hollingsworth, L. D. (2005). Birth mothersn whose parental rights are terminated. In G. P. Mallon, & P. M. Hess (Eds.), Child welfare for the twenty-first century: a handbook of pratices, policies, and programs (pp. 469-481). New York: Columbia University Press.; Najman, Morrison, Keeping, Andersen & Williams, 1990Najman, J. M., Morrison, J., Keeping, D., Andersen, M, & Williams, G. (1990). Social factors associated with the decision to relinquish a baby for adoption. Community Health Studies, 14(2), 180-189.), histórico de abandono familiar (Fernandes, Lamy, Morsch, Lamy Filho & Coelho, 2011Fernandes, R. T., Lamy, Z. C., Morsch, D., Lamy Filho, F., & Coelho, L. F. (2011). Tecendo as teias do abandono: além das percepções das mães de bebês prematuros. Ciência e Saúde Coletiva,16(10), 4033-4042.; Soejima & Weber, 2008)Soejima, C. S., & Weber, L. N. D. (2008). O que leva uma mãe a abandonar um filho? Aletheia, (28), 174-187., privação de afeto e de apoio familiar e social antes e durante a gravidez (Menezes, 2007)Menezes, K. F. F. L. (2007). Discurso de mães doadoras: motivos e sentimentos subjacentes à doação. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, PE., como motivos significativos e influentes na decisão da mãe em entregar seu filho para adoção.
Freston e Freston (1994)Freston, Y. M. B., & Freston, P. (1994). A mãe biológica em casos de adoção: um perfil da pobreza e do abandono. In F. Freire (Ed.),Abandono e adoção: contribuições para uma cultura da adoção(v. 2, pp. 81-90). Curitiba: Terre des Hommes. ressaltam que as dificuldades econômicas representavam não apenas a situação econômica desfavorável das mulheres que entregaram os filhos para adoção, mas também um contexto familiar instável, seja pelo abandono do pai da criança, seja pela falta de apoio da família. Assim, apontam que a decisão da mulher pela entrega é resultado da combinação e intersecção de diversos fatores. Menezes (2007)Menezes, K. F. F. L. (2007). Discurso de mães doadoras: motivos e sentimentos subjacentes à doação. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, PE. e Fernandes et al. (2011)Fernandes, R. T., Lamy, Z. C., Morsch, D., Lamy Filho, F., & Coelho, L. F. (2011). Tecendo as teias do abandono: além das percepções das mães de bebês prematuros. Ciência e Saúde Coletiva,16(10), 4033-4042.concluem que não há apenas um fator desencadeante para a entrega, mas sim uma série de eventos familiares, questões sociais, fatores intrapsíquicos e vivências pessoais que influenciam a decisão da mulher de entregar o filho. Quando a entrega da criança para adoção não é uma forma aceitável e acessível à mulher, muitas vezes, o abandono acaba sendo a última alternativa, mesmo representando riscos à vida da criança e possíveis penalizações judiciais à mãe.
Da história à legislação: abandono e entrega de crianças no Brasil
Alguns estudos vêm refletindo sobre as diferenças entre a entrega de crianças para a adoção e o abandono (Barbosa, 2011Barbosa, A. P. S. (2011). Mulher-monstro: violência contra a mulher que entrega o filho em adoção e a Lei 12.010/09. In Anais do 2o Simpósio Gênero e Políticas Públicas, Londrina. Londrina: Universidade Estadual de Londrina.; Menezes, 2007Menezes, K. F. F. L. (2007). Discurso de mães doadoras: motivos e sentimentos subjacentes à doação. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, PE.; Motta, 2008Motta, M. A. P. (2008). Mães abandonadas: A entrega de um filho em adoção. São Paulo, SP: Cortez.). A sociedade tende a considerar a entrega de um filho para adoção como abandono, não fazendo distinção entre essas ações, nem diferenciação quanto ao uso dos termos, em função de valores socialmente estabelecidos. Entre esses valores, pode-se pensar na forte influência dos preceitos e crenças da Igreja Católica no Brasil, das diferenças significativas que existem entre as realidades sociais, como por exemplo, a condição de vulnerabilidade emocional e social, e das concepções atreladas ao mito do amor materno (Badinter, 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.).
O abandono do filho pela mãe é retratado na história do Brasil. A exposição de crianças recém-nascidas em ruas, igrejas ou casas foi uma prática recorrente desde o Brasil Colonial, ocorrendo e variando conforme a cultura e os costumes da época (Nascimento, 2007Nascimento, A. C. (2007). Frutos da castidade e da lascívia: as crianças abandonadas no Recife (1789-1832). Revista Estudos Feministas, 15(1), 67-83.). No século XVIII, apesar de mudanças significativas em relação à compreensão da infância, há um aumento expressivo do número de crianças abandonadas (Badinter, 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.).
Nascimento (2007)Nascimento, A. C. (2007). Frutos da castidade e da lascívia: as crianças abandonadas no Recife (1789-1832). Revista Estudos Feministas, 15(1), 67-83. fez uma retrospectiva do abandono de crianças na cidade de Recife, durante o período colonial brasileiro. Crianças “ilegítimas”, “bastardas”, frutos de relações extraconjugais, ou não sacramentadas pela Igreja – os considerados “filhos do pecado”, eram rejeitadas pela sociedade da época e abandonadas. De acordo com a autora, era uma época em que as mulheres não tinham direitos e nem eram dignas de respeito, devendo apenas obedecer às ordens de seu esposo e cuidar da casa e dos filhos. Assim, em detrimento aos valores sociais vigentes, o destino para essa criança era o abandono, fosse para não manchar a honra da mulher que se envolvia nas relações proibidas, fosse por ausência de condições materiais, fosse pela esperança de proporcionar melhores condições de vida ao filho. As crianças abandonadas, com o tempo, tornaram-se um problema social, visto que expostas, pequenas e em tenra idade ficavam jogadas aos animais carnívoros e acabavam sendo incorporadas à paisagem da cidade (Nascimento, 2007Nascimento, A. C. (2007). Frutos da castidade e da lascívia: as crianças abandonadas no Recife (1789-1832). Revista Estudos Feministas, 15(1), 67-83.).
Como tentativa de proteção à vida das crianças abandonadas nas ruas e igrejas, foi criada a Casa ou Roda dos Expostos, considerada a primeira instituição oficial destinada às crianças abandonadas. Essas instituições de acolhimento às crianças expostas foram estabelecidas no Brasil ao longo do século XVIII em Salvador (1726), no Rio de Janeiro (1738) e no Recife (1789). As rodas, mantidas pelas Santas Casas de Misericórdia, tentavam dar conta da problemática social do abandono, tornando-se locais de referência à entrega das crianças que antes eram abandonadas nas ruas (Trindade, 1999Trindade, J. M. B. (1999). O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira de História, 19(37), 35-58.).
Para Nascimento (2007)Nascimento, A. C. (2007). Frutos da castidade e da lascívia: as crianças abandonadas no Recife (1789-1832). Revista Estudos Feministas, 15(1), 67-83., a criação da Casa ou Roda dos Expostos foi um dispositivo social-assistencial na tentativa de tornar a prática de abandono geradora de culpa em quem a realizava. Ainda, surgiu como uma tentativa de desestimular as práticas infanticidas, desnaturalizando e tornando-as bárbaras. Também acabaram contribuindo para a estigmatização das mães que abandonavam os filhos, taxando-as de cruel. Percebe-se na análise do percurso histórico as raízes das fortes concepções negativas atribuídas às mães que entregam seus filhos, formando os aspectos macrossistêmicos encontrados ainda hoje na sociedade.
Ao acompanhar a história, pode-se destacar que durante muitos séculos a prática do abandono de crianças era comum. Essa prática muitas vezes ficava no anonimato, e a mãe que abandonava o filho não era responsabilizada. Além disso, não havia diferença entre abandono e entrega da criança até o século XIX. No ano de 1927, com promulgação do Código de Menores (Decreto no 17.943 A, 1927), o pátrio poder passou a ser suspenso ou perdido por faltas dos pais como uma tentativa de proteger as crianças do abandono físico e moral (Rizzini & Pilotti, 2011Rizzini, I., Pilotti, F. (Orgs.). (2011). A arte de governar crianças: a história das políticas públicas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil (3a ed.). São Paulo, SP: Cortez.).
A partir do Código Penal Brasileiro (Brasil, 1940Brasil (1940). Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Dispõe sobre o Código Penal. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm
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), o abandono passou a ser considerado crime. Como tal, estabeleceu-se uma pena a quem o cometer, que varia conforme as diferentes formas de abandono, dentre eles, abandono de incapaz, abandono de recém-nascido, abandono material e abandono intelectual. O abandono de incapaz se refere a abandonar uma pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono (Art. 133). O abandono, neste caso, significa largar, deixar sem assistência, afastar-se fisicamente do incapaz. A exposição ou abandono de recém-nascido estão relacionados ao abandono para ocultar desonra própria (Art. 134). O abandono material significa deixar, sem justa causa, de prover à subsistência do cônjuge, ou de filho menor de dezoito anos (Art. 244). Abandono intelectual refere-se a deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária do filho em idade escolar (Art. 246). Outras legislações brasileiras, como o Código Civil de 2002 (Brasil, 2002Brasil (2002). Lei no10.406, de 10 de janeiro de 2002. Dispõe sobre o Código Civil. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm
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) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990 (Brasil, 1990Brasil (1990). Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União. 16 de julho de 1990. Seção 1: 13563.), consideram o abandono como motivo para a destituição do poder familiar.
O Código Penal de 1940 ainda está em vigor, e, dessa forma, o abandono continua sendo considerado crime e, portanto, uma violação dos direitos. No entanto, com a promulgação do ECA (1990) e a Nova Lei Nacional de Adoção (Brasil, 2009Brasil (2009). Lei nº 12.010, de 29 de julho de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nºs 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; e dá outras providências. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12010.htm
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), cujas determinações foram incorporadas ao ECA (Brasil, 1990Brasil (1990). Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União. 16 de julho de 1990. Seção 1: 13563.), a entrega de um filho para adoção passou a ser um direito da mulher e da criança. A legislação preconiza o acompanhamento psicológico e o acolhimento judicial às gestantes ou mães que decidirem entregar o filho para adoção. Ainda, prevê multa aos profissionais da saúde que não encaminharem de imediato aos órgãos judiciários os casos de mães que queiram entregar os filhos (Brasil, 2009Brasil (2009). Lei nº 12.010, de 29 de julho de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nºs 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; e dá outras providências. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12010.htm
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). A legislação apesar de dispor sobre direitos das crianças e adolescentes e garantia dos mesmos, não dispensa o “olhar” à gestante, à mãe que toma a decisão de entregar o filho. Assim, parece que existe uma compreensão legal a respeito da complexidade desta decisão e das consequências que esta pode gerar no desenvolvimento da criança e na vida pessoal desta mulher.
Neste contexto, algumas autoras apontam diferenças significativas entre o abandono e a entrega para adoção. Barbosa (2011)Barbosa, A. P. S. (2011). Mulher-monstro: violência contra a mulher que entrega o filho em adoção e a Lei 12.010/09. In Anais do 2o Simpósio Gênero e Políticas Públicas, Londrina. Londrina: Universidade Estadual de Londrina. situou, remetendo-se ao Código Penal Brasileiro de 1940, que o abandono se caracteriza por deixar pessoa incapaz de defender-se sozinha das condições do abandono. Menezes (2007)Menezes, K. F. F. L. (2007). Discurso de mães doadoras: motivos e sentimentos subjacentes à doação. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, PE. afirma que o abandono pressupõe uma separação definitiva entre a mãe e o bebê, havendo pouca preocupação com a vida da criança, na medida em que ela fica desamparada. Já na entrega para adoção, a mãe e/ou a família confia à criança aos cuidados de outras pessoas em consentimento (Barbosa, 2011Barbosa, A. P. S. (2011). Mulher-monstro: violência contra a mulher que entrega o filho em adoção e a Lei 12.010/09. In Anais do 2o Simpósio Gênero e Políticas Públicas, Londrina. Londrina: Universidade Estadual de Londrina.). Na adoção, a mãe, mesmo com as impossibilidades psíquicas, econômicas e/ou sociais de estar com seu filho, ainda deseja preservar sua vida, e, para tal, o entrega à adoção (Menezes, 2007Menezes, K. F. F. L. (2007). Discurso de mães doadoras: motivos e sentimentos subjacentes à doação. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, PE.). Motta (2008)Motta, M. A. P. (2008). Mães abandonadas: A entrega de um filho em adoção. São Paulo, SP: Cortez. propõe que a distinção entre esses dois termos faz-se necessária, pois há uma tendência em se compreender toda a entrega em adoção como abandono. A autora propõe que o termo abandono seja substituído por entrega, visto que o primeiro é carregado de preconceitos e de julgamentos. Assim, se poderá pensar a entrega do filho a partir de diferentes perspectivas, considerando as motivações e os significados que a mãe atribui a essa situação, e não apenas julgando-a moralmente.
Método
Delineamento e participantes
Trata-se de uma pesquisa descritiva e exploratória, com abordagem qualitativa. Participaram desse estudo sete profissionais da saúde (três técnicas de enfermagem, três enfermeiras e uma médica ginecologista e obstetra), funcionárias de dois hospitais públicos que atendem pacientes pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em uma cidade do Rio Grande do Sul. Um dos hospitais foi fundado em 1970 e atua como hospital-escola, desenvolvendo pesquisas, ensino e assistência em saúde. Atende a população nos 291 leitos da Unidade de Internação e nos 37 leitos da Unidade de Tratamento Intensivo. O outro hospital foi constituído pela Viação Férrea do RS no ano de 1932 e mantém vínculo com instituições de ensino superior, contanto com graduandos da área de Psicologia, enfermagem, entre outros. Na atualidade, conta com 121 leitos.
O critério adotado para a inclusão dos participantes foi: ser técnico de enfermagem, enfermeiro ou médico de uma maternidade pública. Os critérios de exclusão foram: ter vivenciado situações de aborto espontâneo, dificuldade de engravidar e/ou ter adotado uma criança entregue na maternidade em que trabalha.
Instrumentos
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com as participantes do estudo. O roteiro de entrevista coletou informações sobre os dados biossociodemográficos das entrevistadas, como tempo de trabalho, idade, sexo, escolaridade, estado civil, número de filhos. Foram investigados os aspectos macrossistêmicos presentes na fala das profissionais e buscou-se compreender quais suas concepções sobre o abandono e a entrega de crianças para adoção, entendendo de que forma caracterizam tais situações e como compreendem os motivos que levam às mulheres a realizar o abandono e a entrega de crianças para adoção.
Procedimentos e considerações éticas
Inicialmente, o estudo foi apresentado aos hospitais públicos do município. Com a autorização prévia destes, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade da qual as pesquisadoras fazem parte, e após a sua aprovação (protocolo CAAE no 04350412.0.0000.5346), os profissionais de saúde que preencheram os critérios de inclusão foram contatados e convidados a participar da pesquisa mediante todos os esclarecimentos relacionados a esta.
As entrevistas foram realizadas de maneira individual em uma sala do hospital e tiveram duração de aproximadamente uma hora e 30 minutos. No momento da entrevista, foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido das participantes. Com relação aos aspectos éticos, a pesquisa seguiu todos os procedimentos de acordo com a Resolução no 466 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012Brasil (2012), Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº466, de 12 de dezembro de 2012. [Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos]. Diário Oficial da União. 13 de junho de 2013. Seção 1: 59-61.) que regulamenta a pesquisa com seres humanos, contemplando todos os preceitos que regem a ética, como o sigilo das identidades dos participantes, a garantia de confidencialidade das informações, o caráter voluntário da pesquisa e a garantia de que a profissional poderia desistir de sua participação na pesquisa em qualquer momento, sem que houvesse prejuízo para si. A aplicação do instrumento foi realizada por uma equipe de pesquisadores, que incluiu a coordenadora desse estudo e alunos da pós-graduação e graduação em Psicologia.
Análise dos dados
Os dados obtidos foram analisados conforme o método de análise de conteúdo deBardin (1979)Bardin, L. (1979). Análise de conteúdo (L. A. Reto & A. Pinheiro, Trans.). Lisboa: Edições 70.. As entrevistas foram transcritas e analisadas individualmente, e posteriormente foram construídas as categorias em conjunto, a partir de elementos que se repetiam pela força discursiva, pelos silêncios, pelas contradições e pelo que estava oculto nos sentimentos e falas. Assim, foram sistematizadas três categorias: 1) Diferentes rumos: a entrega como abandono ou como cuidado; 2) Possíveis explicações para a decisão de entregar um filho e 3) Antes do abandono: fatores que permearam esse ato. Os nomes e as respectivas profissões das entrevistadas foram codificados conforme o modelo: (A, enfermeira). Todas as participantes eram mulheres. O tempo de profissão das entrevistadas variou de dois a 23 anos e o período de trabalho em maternidades variou de cinco meses a 23 anos. Três profissionais eram casadas, uma encontrava-se em união estável, duas eram solteiras e uma era separada. Apenas uma das profissionais não tinha filhos.
Resultados e discussão
Os achados desse estudo forneceram informações sobre o tema da entrega de filhos para adoção e percepção dos profissionais da saúde, contribuindo para o melhor entendimento do fenômeno. Foram encontradas três categorias:
1) Diferentes rumos: a entrega como abandono ou como cuidado
Esta categoria englobou as concepções das profissionais da saúde quanto ao significado do abandono e da entrega, bem como as diferenças e similaridades entre essas duas ações. Considerando que, de acordo com o que se apresentou teoricamente, as profissionais vivenciaram casos de entrega, tendo em vista que as mulheres o fizeram no ambiente hospitalar e com segurança para o filho, buscou-se compreender como as profissionais configuravam tais ações e a partir de qual perspectiva tenderam a avaliar esse ato na sua prática, como entrega ou como abandono.
A caracterização do que se configura como ação de entrega ou abandono de crianças não foi a mesma entre as profissionais da saúde. Das sete entrevistadas, três consideraram que as duas ações da mulher são iguais e quatro pontuaram diferenças significativas entre a mãe que entrega o filho para adoção e a mãe que abandona o filho.
As participantes que conceberam o ato da mulher de entregar o filho como abandono, partiram do pressuposto que essa ação demonstra ausência de envolvimento emocional, afetivo e de cuidado da mãe para com seu filho. Nesse sentido, a mãe, ao entregar o filho, na visão destas profissionais, não possuía comprometimento com a criança, rejeitando-a desde o momento da entrega. Isto pode ser observado nas falas: “Ela abandonou, ela deixou aquele filho lá.” (A, técnica de enfermagem); “Porque eu acho que desde a hora que tu já rejeita já tá abandonando, né, não tem mais aquele amor, não tem afeto por aquela criança.” (B, técnica de enfermagem). Quando a entrega era mencionada como abandono, as entrevistadas perceberam uma falta de cuidado com a criança, na medida em que não se oportunizava condições de sobrevivência a ela. As concepções que associam a feminilidade à maternidade são muito arraigadas nos valores e normas sociais (Badinter, 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.), que predeterminam e estipulam como deve ser a relação entre as mães e seus filhos, entre as mulheres e o desejo de ser mãe. Neste contexto, pode-se identificar a forte tendência em se compreender toda a entrega em adoção como abandono (Motta, 2008Motta, M. A. P. (2008). Mães abandonadas: A entrega de um filho em adoção. São Paulo, SP: Cortez.). No entanto, quatro entrevistadas apontaram que a entrega e o abandono de crianças são atos diferentes.
As profissionais que denotaram a entrega como um ato de cuidado ou de preocupação com a sobrevivência e bem-estar da criança, verbalizaram que nesse momento, a mãe estaria preocupada com a criança, mesmo impossibilitada de cuidá-la. Em função disso, entregá-la-ia aos cuidados de outras pessoas, para que tivesse a oportunidade de ter um futuro melhor. A fala da participante C exemplifica essa perspectiva, sinalizando tratar-se de um ato consciente da mãe: “E se você tá dando pra adoção, num ato consciente, por não ter condições financeiras de assumir a criança, por não ter um pai, você tá pensando no bem da criança. São coisas bem diferentes...” (C, médica). A participante relatou que a entrega seria reflexo de uma decisão consciente da mãe. Será que também seria reflexo de uma decisão voluntária? Há quem argumenta que não, pois tais ações podem ser resultado de um contexto histórico, político e social, que não garante à mãe a perspectiva de poder cuidar e educar sua criança (Hollingsworth, 2005Hollingsworth, L. D. (2005). Birth mothersn whose parental rights are terminated. In G. P. Mallon, & P. M. Hess (Eds.), Child welfare for the twenty-first century: a handbook of pratices, policies, and programs (pp. 469-481). New York: Columbia University Press.). Ou seja, parece que para algumas mulheres o exercício da maternidade está associado às condições socioeconômicas ou que este aspecto prepondera aos demais nessa tomada de decisão.
A entrega, na perspectiva das quatro profissionais, seria realizada pela mãe pensando no bem da criança, enquanto que o abandono seria algo danoso, pois a criança fica exposta às ruas, ao risco de vida e sem os cuidados adequados para seu desenvolvimento. Essa percepção das entrevistadas vai ao encontro do queMenezes (2007)Menezes, K. F. F. L. (2007). Discurso de mães doadoras: motivos e sentimentos subjacentes à doação. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, PE. concebe como entrega e abandono. A entrega pode indicar um desejo em preservar a vida da criança, ou ainda protegê-la do desamparo que por ventura a própria mãe tenha vivenciado na infância (Bonnet, 1993Bonnet, C. (1993). Adoption at birth: prevention against abandonment or neonaticide. Child Abuse & Neglect, 17(4), 501-513.; Menezes, 2007Menezes, K. F. F. L. (2007). Discurso de mães doadoras: motivos e sentimentos subjacentes à doação. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, PE.; Weber, 2009Weber, M. L. (2009). Bendita sois vós entre as mulheres: representações da mãe biológica acerca da entrega do filho em adoção. Monografia de trabalho de conclusão de curso. Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR.). O abandono, por sua vez, pode marcar uma separação mais definitiva entre mãe e criança. As respostas das participantes indicaram que mesmo entre profissionais da saúde não há um consenso em relação à compreensão do que significa entregar uma criança para adoção ou abandoná-la. Três participantes atribuíram os mesmos significados para essas duas ações, e quatro entrevistadas identificaram diferenças, revelando a necessidade de ampliar as discussões sobre as diferentes e possíveis vivências da maternidade na contemporaneidade. Um aspecto que está associado à compreensão desses atos diz respeito às razões que motivam uma mãe a tomar essa decisão.
2) Possíveis explicações para a decisão de entregar um filho
Esta categoria abordou a percepção das profissionais da saúde sobre os motivos que podem levar mulheres a tomar a decisão de entregar seu filho para adoção. Englobou também as condições psicológicas e de saúde que as profissionais acreditavam estar presentes nas mulheres que realizavam a entrega.
Pode-se perceber que na visão das profissionais entrevistadas alguns fatores se fazem presentes na decisão de uma mãe entregar o filho para adoção. Dentre esses fatores, pode-se destacar a carência de recursos financeiros, a falta de apoio familiar e do parceiro e o sentimento de impossibilidade de assumir a criança. Os relatos das participantes expressaram essas ideias: “É econômica, sim. Sem sombra de dúvidas é econômica.” (D, enfermeira);“Eu acho que essa impotência de ‘não vou conseguir criar ou vou ter muita dificuldade’. E essa, não tenho coragem mais.” (E, enfermeira); “Eu acho que é a impossibilidade de assumir a criança. Ou financeira, ou psiquiátrica, psicossocial...” (C, médica). esses dados corroboram com outras pesquisas que retratam sobre o perfil das mulheres que entregam os filhos, bem como possíveis motivações à entrega (Menezes, 2007Menezes, K. F. F. L. (2007). Discurso de mães doadoras: motivos e sentimentos subjacentes à doação. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, PE.; Najman et al., 1990Najman, J. M., Morrison, J., Keeping, D., Andersen, M, & Williams, G. (1990). Social factors associated with the decision to relinquish a baby for adoption. Community Health Studies, 14(2), 180-189.).
Menezes (2007)Menezes, K. F. F. L. (2007). Discurso de mães doadoras: motivos e sentimentos subjacentes à doação. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, PE., em um estudo realizado com seis mulheres que entregaram um ou mais filhos para adoção, apontou que sentimentos de incapacidade de não poder nutrir e cuidar de seus filhos, ausência de apoio familiar e do genitor da criança, e, ainda, sentimentos de desamparo e medo influenciaram na decisão de entregar os filhos. Outro dado do estudo foi a compreensão de que, na história das mulheres, na medida em que o vínculo com o parceiro se rompia, o vínculo com o filho parecia fragilizar-se também, ocasionando sua entrega e gerando a impossibilidade da mulher de assumir essa criança na ausência do pai. Em contrapartida, na medida em que os parceiros apoiavam as mulheres, elas se sentiam mais capazes de assumir os cuidados, estabelecendo assim vínculos e conseguindo exercer a maternagem com os outros filhos (Menezes, 2007Menezes, K. F. F. L. (2007). Discurso de mães doadoras: motivos e sentimentos subjacentes à doação. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, PE.). A ausência paterna, o abandono sentido pelas mães e a vulnerabilidade que se encontrava sem o apoio do parceiro, também foram percebidos como fatores decisivos na entrega do filho em adoção no estudo de Weber (2009)Weber, M. L. (2009). Bendita sois vós entre as mulheres: representações da mãe biológica acerca da entrega do filho em adoção. Monografia de trabalho de conclusão de curso. Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR..
No presente estudo, as profissionais entrevistadas atribuíram ainda questões ao estado psicológico das mães no momento da entrega como justificativa para essa decisão. As participantes acreditavam que a mulher não estaria num estado “normal”, entendendo assim que não é natural uma mãe não querer ficar com seu filho, como pode ser observado nas falas:
Na minha opinião, eu acho que psicológico deve ter algum problema, assim, né, uma conduta de comportamento ou de personalidade mesmo, porque não é uma ação normal do ser humano, né, querer dar seu próprio filho. Mas acho que de saúde, talvez não esteja tão prejudicada, mais emocional mesmo. (B, técnica de enfermagem).
Nessa perspectiva, a mãe que entrega o filho é percebida como alguém que contraria a regra do amor inato e biologicamente programado, como percebido na fala:
Uma alteração psicológica, uma alteração psíquica dessa mãe, que tá fazendo com que ela esteja fazendo aquilo ali. Essa mãe não está bem, com certeza não tá bem. Ela se faz que tá bem, mas não tá bem...(A, técnica de enfermagem).
A ideia de um problema emocional ou de conduta denota a forte concepção de um amor materno oriundo do ser feminino, ainda muito presente nos valores sociais (Badinter, 1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.).
Alguns estudos apontam uma associação entre a saúde mental das mães e a entrega de filhos para adoção (Hollingsworth, 2005Hollingsworth, L. D. (2005). Birth mothersn whose parental rights are terminated. In G. P. Mallon, & P. M. Hess (Eds.), Child welfare for the twenty-first century: a handbook of pratices, policies, and programs (pp. 469-481). New York: Columbia University Press.). Condon (1986)Condon, J. (1986). Psychological disability in women who relinquish a baby for adoption. The Medical Journal of Australia, 144(3), 117-119. encontrou doença mental nas mulheres que entregaram seus filhos, principalmente sintomas de depressão e psicossomáticos. A hipótese de que a decisão sobre a escolha de entregar um filho para adoção é motivada por aspectos psicológicos tem sido sustentada por estudos internacionais (Bonnet, 1993Bonnet, C. (1993). Adoption at birth: prevention against abandonment or neonaticide. Child Abuse & Neglect, 17(4), 501-513.). A cartilha da Associação dos Magistrados Brasileiros (2008)Associação dos Magistrados Brasileiros (2008). Cartilha para profissionais de saúde. Recuperado de: http://www.amb.com.br/mudeumdestino/docs/Cartilha_Profissionais_de_saude.pdf
http://www.amb.com.br/mudeumdestino/docs...
aborda o cuidado e a escuta necessários às mães que decidem entregar o filho, em vista do desconhecimento sobre a temática e dos inúmeros tabus e preconceitos ligados a esse ato.
Outro aspecto que as participantes mencionaram, e que pode contribuir para que uma mãe decida entregar o filho para adoção, é a história materna de maus-tratos na infância. As profissionais da saúde supuseram que a mulher que entrega o filho para adoção possa ter vivenciado situações de rejeição, violência e abandono em sua própria infância, o que contribuiria para sua decisão. Essa concepção é demonstrada nas falas:
Olha, às vezes, o abandono da própria mãe, às vezes, a pessoa se sente sozinha no mundo, sem ter ninguém, aí não se acha capaz de ter mais um ser sob a guarda dela. Às vezes, o medo da responsabilidade.(A, técnica de enfermagem).
Que deve ter um motivo por trás... trauma de infância também alguma coisa, foi rejeitado, sofreu algum espancamento ou sofreu e não quer que o filho sofra. Mais emocional do que de saúde. (B, técnica de enfermagem).
O estudo realizado por Soejima e Weber (2008)Soejima, C. S., & Weber, L. N. D. (2008). O que leva uma mãe a abandonar um filho? Aletheia, (28), 174-187. demonstrou que as mulheres que entregaram seus filhos provinham de um contexto de baixa qualidade na interação familiar. As autoras ressaltaram que o abandono gera abandono, na medida em que as mães que abandonaram seus filhos foram filhas abandonadas, marcadas por uma infância com negligência e ausência de uma relação emocional e afetiva com seus pais.
O contexto afetivo, social e comunitário em que as mães vivem parece ser outro fator que permeia esse processo de decisão, segundo as entrevistadas. Nesse sentido, a mulher parece estar sozinha e desamparada muito antes de sua gestação, o que pode estar relacionado com a decisão de entrega. Não se sentindo apoiadas no exercício da maternidade, algumas mães podem avaliar a entrega do filho para adoção como única alternativa, pois sustentar sozinha a maternidade em meio a situações econômicas e emocionais desfavoráveis parece ser uma situação difícil de ser vivenciada. As profissionais sinalizaram, dessa forma, o sofrimento observado nas mães que entregaram o filho, traduzindo que essa não é uma decisão fácil.
Não sei se arrependimento, mas existe um sofrimento, existe. Existe um sofrimento, existe uma dor, uma dor tem que ter... uma dor de alma... alguma coisa tem que ter. Não acho que seja um ato simples. Eu não acredito nisso, que seja um ato simples... (silêncio) (D, enfermeira)
E, mesmo assim, eu acho que todas elas sofrem, né... eu acho que é uma decisão muito difícil. E ah... muito corajosa. (F, enfermeira).
Observa-se ainda a atribuição de coragem à mulher que toma essa decisão, em meio a tantas impossibilidades e carências, pois estaria preocupada com o futuro e bem-estar da criança. Essa percepção de que as mães expressam sofrimento na tomada de decisão vai de encontro à concepção social de que as mulheres que entregam os filhos não sentem nada pelas crianças e são cruéis. Nesse sentido, é como se essa perda ou dor não fosse autorizada (Weber, 2009Weber, M. L. (2009). Bendita sois vós entre as mulheres: representações da mãe biológica acerca da entrega do filho em adoção. Monografia de trabalho de conclusão de curso. Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR.), como se a mãe que decidisse entregar seu filho para adoção não pudesse sofrer, ou enlutar-se diante da entrega, pois foi ela quem abdicou de uma relação com seu filho (Motta, 2008Motta, M. A. P. (2008). Mães abandonadas: A entrega de um filho em adoção. São Paulo, SP: Cortez.).
Quando a relação socialmente tão esperada e valorizada entre mãe e filho não acontece, e o sofrimento da mãe diante da perda não é permitido, essas mulheres acabam à margem das expectativas sociais, pois não correspondem aos valores atribuídos ao ser boa mãe (March & Miall, 2006March, K., & Miall, C. E. (2006). Reinforcing the motherhood ideal: public perceptions of biological mothers who make a adoption plan.Canadian Review of Sociology, 43(4), 367-385.; Motta, 2008)Motta, M. A. P. (2008). Mães abandonadas: A entrega de um filho em adoção. São Paulo, SP: Cortez.. Para algumas profissionais, a mãe parece vivenciar um luto, na medida em que a decisão que tomaram impacta em suas vidas, pois “o momento que tu entrega também vai ficar marcado pro resto da tua vida.” (D, enfermeira). Estudos internacionais apresentam o sofrimento vivenciado pelas mães diante da entrega de um filho para adoção, bem como a percepção das mães sobre o sistema de assistência social. O sofrimento muitas vezes é vivido em silêncio, pois sentimentos de luto e de perda não são acolhidos socialmente, tendo em vista que elas entregaram espontaneamente suas crianças (Aloi, 2009Aloi, J. A. (2009). Nursing the disenfranchised: women who have relinquished an infant for adoption. Journal of Psychiatric and Mental Health Nursing, 16(1), 27-31.; Condon, 1986Condon, J. (1986). Psychological disability in women who relinquish a baby for adoption. The Medical Journal of Australia, 144(3), 117-119.; Hollingsworth, 2005Hollingsworth, L. D. (2005). Birth mothersn whose parental rights are terminated. In G. P. Mallon, & P. M. Hess (Eds.), Child welfare for the twenty-first century: a handbook of pratices, policies, and programs (pp. 469-481). New York: Columbia University Press.; Najman et al., 1990)Najman, J. M., Morrison, J., Keeping, D., Andersen, M, & Williams, G. (1990). Social factors associated with the decision to relinquish a baby for adoption. Community Health Studies, 14(2), 180-189..
3) Antes do abandono: fatores que permearam esse ato
Esta categoria englobou a percepção das profissionais da saúde acerca dos motivos que podem levar uma mãe a abandonar o filho, violando os seus direitos. Ainda, abordou a dificuldade da mãe em verbalizar a decisão de entregar o filho para adoção.
No caso de mães que abandonaram seus filhos, as profissionais da saúde entrevistadas perceberam motivos similares às mães que decidem entregá-lo, como a falta de apoio financeiro, social e emocional. As participantes também associaram o abandono de recém-nascidos a estados ou alterações psicológicas das mães, assim como fizeram essa relação com o ato da entrega. A dependência química e os problemas psíquicos e psiquiátricos também foram percebidos pelas profissionais como fatores que influenciam o abandono de crianças, como pode ser observado no relato:
Eu acho que é por causa das drogas. Eu acho. Olha o que a gente tem visto de mães que se drogam, de mães que se prostituem por causa da droga e acabam vindo aquela criança no meio dessa história. Elas fazem de tudo pra abortar e elas não conseguem abortar. Daí elas pegam e se desfazem assim. Eu posso ter certeza que no meio disso tudo tem droga.(A, técnica de enfermagem)
Ah... daí a gente tem que vê se não tem um pouquinho de depressão pós-parto junto, né. Porque, depois que nasce a criança, a mãe fica com uma sensação muito grande de impotência, de será que eu vou dar conta? Será que eu vou conseguir? Até de psicose puerperal. Porque uma mãe em sã consciência não vai coloca seu filho num saco de lixo num lixão, né? Então de repente pode até por na porta da casa de alguém, pra alguém perceber e cuidar da criança.. Mas isso aí é o infanticídio, né. Por num saco plástico é com o objetivo de matar a criança, né... tem que ver se já não tem um distúrbio psiquiátrico junto. (C, médica)
No entanto, as participantes relataram que o abandono seria uma atitude da mãe, gerada pelo impacto da gravidez e pela sensação de “não saber o que fazer”, como pode ser averiguado:
Eu acredito que não, que não tá em condições boas, que tá com sérios problemas, com... tá desesperada, né. Acho que é um desespero... uma situação de desespero... (F, enfermeira)
Olha... eu acho que é o desespero, é um não pensar. É uma atitude de total desespero... É o medo de contar pros pais, de não saber o que fazer com aquela criança, que nasceu e aí tu olha e se assusta e não sabe o que fazer... aí não pensa, não consegue fazer outra coisa e acha que essa é a solução, acha que é uma possibilidade, e aí acaba deixando... (G, técnica de enfermagem)
“O desespero eu acho, né, de não saber o que fazer.” (B, técnica de enfermagem)
As profissionais sinalizaram que, na atuação em hospitais públicos, percebiam a dificuldade da mãe em conseguir verbalizar a decisão de entregar o filho, como pode ser visto na fala:
Sabe que eu acho que isso acontece, também por um desespero, né, e por essa mulher, ela não ter para onde correr, por que assim, oh, eu quero entregar um filho meu, eu não quero ele, vão me julgar, vão dizer que eu só isso, então é, mas fácil deixar em qualquer canto, sem muitas vezes ter a noção que esse deixar em qualquer lugar, canto pode trazer muitas desvantagens, muitas coisas ruins para o nenê... Eu acho que ela pensa que não vai ter o acolhimento ou que ela não vai ter uma pessoa que diga, então tu quer dar, então a gente vai fazer que tu faça isso da melhor forma possível. (E, enfermeira)
Dessa forma, pode-se identificar que, no ato de abandonar uma criança, a mãe está sinalizando a dificuldade em verbalizar a entrega, o receio do julgamento pela decisão e, principalmente, a falta de apoio no momento do nascimento do filho, em especial nas instituições de saúde.
Estudos apontaram a importância e a falta de políticas públicas que propiciem um espaço de escuta e acolhida para as mães que decidem entregar o filho (Kunkel, 2007Kunkel, K. A. (2007). Safe-haven laws focus on abandoned newborns and their mothers. Journal of Pediatric Nursing, 22(5), 397-401.; Leão, Silva, & Serrano, 2012Leão, L. C., Silva, C. G. C., & Serrano, S. A. (2012). A entrega de um filho em adoção e as vicissitudes de ser mãe. Psicología para América Latina 23, 28-46.), bem como investigações sobre a história de vida dessas mulheres (Weber, 2009)Weber, M. L. (2009). Bendita sois vós entre as mulheres: representações da mãe biológica acerca da entrega do filho em adoção. Monografia de trabalho de conclusão de curso. Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR.. Há carência de estudos sobre a temática, gerando a falta de conhecimento sobre os procedimentos que devem ser tomados nesse caso, assim como sobre as legislações e sistemas de garantia vigentes (Brasil, 1990Brasil (1990). Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União. 16 de julho de 1990. Seção 1: 13563., 2009Brasil (2009). Lei nº 12.010, de 29 de julho de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nºs 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; e dá outras providências. Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12010.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
;Kunkel, 2007)Kunkel, K. A. (2007). Safe-haven laws focus on abandoned newborns and their mothers. Journal of Pediatric Nursing, 22(5), 397-401.. Esse cenário acarreta a falta de preparo dos profissionais da saúde diante dessas situações, com dificuldades de identificar os momentos em que a entrega da criança é uma possibilidade e acolhê-la livre de pré-julgamentos.
Fonseca (2012)Fonseca, C. (2012). Mães “abandonantes”: fragmentos de uma história silenciada. Revista Estudos Feministas, 20(1), 13-32. problematiza que as “mães abandonantes” são uma das categorias mais esquecidas da história. O anonimato a que essas mulheres estão sujeitas impossibilita conhecê-las e articular redes de atendimento que propiciem acolhimento. É preciso dar voz e resgatar essas mulheres da invisibilidade social, pensando políticas de assistência e de saúde que garantam seus direitos. Importante também é desnaturalizar concepções condenatórias direcionadas às mães que entregam os filhos, ampliando o olhar e o entendimento sobre os motivos implicados nesse ato.
Considerações finais
O tema da renúncia da maternidade é considerado delicado e ainda repleto de tabus e estigmas, sendo o seu estudo ainda incipiente na sociedade brasileira. Conhecer as concepções que norteiam a atuação das profissionais envolvidas no atendimento das mulheres que entregam o filho para adoção constituiu-se na questão disparadora para a realização desta pesquisa, analisando se estas concepções estavam alinhadas às ideias macrossistêmicas negativas e pejorativas associada a estas mulheres.
Por meio desse estudo, pode-se constatar que o termo entrega e abandono foram predominantemente considerados sinônimos por profissionais da saúde em suas falas, tal como foi encontrado na história e no macrossistema. Embora algumas participantes tenham apontado diferença entre o ato de uma mãe abandonar uma criança e entregá-la para adoção, outras não sinalizaram essa diferença ao longo da entrevista. A dificuldade das profissionais de identificar a diferença entre essas condutas pode prejudicar o atendimento oferecido às mães que decidem realizar a entrega nos hospitais de saúde. Neste sentido, destaca-se a importância da formação dos profissionais de saúde, pois se faz necessário preparo teórico e prático adequado para que se possa romper com as concepções errôneas a respeito do tema e, dessa forma, desenvolver uma prática não mais permeada pela crença da impossibilidade de negar a maternidade.
A entrega de um filho para a adoção é vista por algumas profissionais da saúde como um ato da mãe diante da impossibilidade de cuidar do filho. A entrega, dessa forma, representa um ato de amor e coragem que visa ao bem-estar da criança. Já o abandono, é percebido por algumas entrevistadas como um ato de desespero, em que a mulher não conta com nenhuma rede de apoio, vê-se sozinha e comete o ato. Talvez pelo fato das mães não se sentirem acolhidas no momento de manifestar sua decisão de entregar o filho, optem por abandoná-lo em situações de risco, com medo do julgamento moral e social. Sustentar sozinha a maternidade em meio a situações econômicas e emocionais não favoráveis ou entregar o filho para adoção e ser julgada socialmente por não desejá-lo e amá-lo incondicionalmente, segundo o mito do amor materno, são situações difíceis de serem vivenciadas.
As participantes relataram aspectos semelhantes ao refletirem sobre as motivações que conduzem as mães à decisão de entregar ou abandonar sua criança. Para as participantes, o que influencia uma mãe a tomar essa decisão pode ser o desamparo social, em decorrência das diferenças significativas que existem entre as realidades sociais, como por exemplo, a condição de vulnerabilidade emocional e social dessas mulheres e a força das concepções religiosas na sociedade brasileira. Além desses fatores macrossociais, também é possível identificar aspectos da dimensão pessoal, incluindo características de personalidade, das interações interpessoais e experiências de vida, como por exemplo, a falta de apoio da família ou do companheiro.
As justificativas relatadas por algumas participantes para a entrega ou abandono de crianças foram diversas. Algumas participantes associaram esses atos a estados emocionais das mães. É possível que em alguns casos isso tenha ocorrido, mas esses aspectos devem ser avaliados com cautela, pois essas situações requerem uma atenção maior por parte da equipe multiprofissional. Quaisquer indícios de que a mãe esteja com sua saúde mental comprometida devem ser avaliados. Essa é uma situação diferenciada, pois a ocorrência de uma depressão pós-parto, por exemplo, pode influenciar nessa tomada de decisão. É necessário, portanto, avaliar se mãe está em condições de saúde para refletir e expressar sua vontade, visto que dificilmente é uma decisão que possa ser revertida. Todos esses cuidados podem auxiliar para que essas situações ocorram da melhor forma possível, tanto para o bebê, quanto para a mãe e para os profissionais envolvidos.
Os significados atribuídos pelas participantes ao ato da entrega e do abandono de recém-nascidos podem representar uma relação com suas experiências profissionais, resultado de interações face a face com mulheres que realizaram tais ações. De forma isolada ou em conjunto podem também decorrer de concepções de valores e crenças, que moldam ideologias e expressam a forma como uma cultura caracteriza o fenômeno da maternidade, refletindo, portanto, aspectos macrossistêmicos.
Os resultados desse estudo revelaram que, apesar de existir uma concepção padronizada da maternidade, como algo natural e universal às mulheres, é possível visualizar pequenas mudanças advindas de transformações sociais. Nesse sentido, pode-se pensar a maternidade como construída histórica e socialmente. É tempo, portanto, de pensar o exercício da maternidade na contemporaneidade, com suas conquistas e desafios. As ideias discutidas representam as percepções apenas das profissionais entrevistadas, de modo que os resultados não podem ser generalizados. Futuras pesquisas poderiam explorar a opinião de profissionais da saúde e da assistência social, não apenas da rede pública, mas também da rede particular. Além disso, poderia ser interessante agregar profissionais de diferentes gerações para tentar avaliar melhor a influências de valores e crenças sobre a maternidade.
Referências
- Aloi, J. A. (2009). Nursing the disenfranchised: women who have relinquished an infant for adoption. Journal of Psychiatric and Mental Health Nursing, 16(1), 27-31.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Dez 2015
Histórico
-
Recebido
29 Out 2014 -
Aceito
14 Set 2015