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A loucura no leito de procusto

RESENHAS

A loucura no leito de procusto1 1 Boarini, M. L. (2006). A loucura no leito de Procusto. Maringá: Dental Press.

Paulo José da Costa

Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Campinas. Doutorando em Psicologia Clínica. Professor Assistente do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Paulo José da Costa. Av. Colombo, 5790, bloco 118, DPI/UEM, CEP 87.020-900, Maringá-PR. E-mail: pjcosta@uem.br

A Profª. Dra. Maria Lucia Boarini é professora associada do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, onde atua também nos Programas de Pós-Graduação em História da Educação e da Psicologia, desenvolvendo trabalhos que contemplam principalmente a interface entre os campos da Educação e da Saúde. Além de inúmeros artigos publicados em periódicos científicos, também é autora e organizadora de duas obras, intituladas "Desafios na atenção à saúde mental" e "Higiene e raça como projetos: higienismo e eugenismo no Brasil".

Seu novo livro, intitulado "A loucura no leito de Procusto", resultou de uma pesquisa de campo que teve como principal objetivo fazer uma investigação acerca de como os familiares de pacientes egressos de um hospital psiquiátrico explicam o transtorno mental e de que modo conduzem as dificuldades que inevitavelmente surgem, como resultado da convivência. Além disso, procurou conhecer: quais os recursos terapêuticos que buscam diante das situações emergenciais existentes em relação ao familiar portador de transtorno mental; como profissionais de saúde mental (particularmente médicos, psicólogos, e acadêmicos de Medicina e Psicologia) explicam o transtorno mental, como avaliam a reforma psiquiátrica e quais os encaminhamentos por eles sugeridos como proposta de cuidado à pessoa com transtorno mental.

O livro se constitui de três capítulos e as considerações finais, além do prefácio (escrito por Joelson Tavares Rodrigues), introdução, referências e anexos.

No Capítulo I, intitulado "A loucura através dos tempos", a autora faz um resgate histórico de como a loucura foi compreendida e dos atendimentos dispensados aos loucos nas sociedades nos diferentes períodos, culminando com a história dessa assistência no Brasil. Embora o assunto seja abordado através de uma visão panorâmica, são resgatados elementos cruciais para a compreensão dessa questão, bem como se assinala vivamente quanto o transtorno mental, de diferentes modos, sempre se constituiu em um desafio ao qual o homem tentou atender, buscando respostas às suas preocupações e seus modos de enfrentamento, de acordo com cada época e suas respectivas sociedades.

Nesse resgate, tal como apresentado pela autora, não apenas vão se delineando o desenrolar histórico dos fatos e as concepções acerca da loucura e seus respectivos modos de enfrentamento, mas torna-se também possível compreender como foi sendo construída a idéia de recolhimento, que culminou com o isolamento do indivíduo considerado louco em instituições, passando a reclusão a ser uma das principais terapêuticas adotadas, em consonância com múltiplas estratégias de tratamento, aos nossos olhos, desumanas. Nele também se ressalta a construção dos sucessivos questionamentos quanto à ineficiência da estratégia asilar, a partir dos quais, de forma progressiva, vão se construindo, favorecidas pelo contexto, reformas na assistência às pessoas com transtorno mental, produzindo avanços na legislação e nas políticas públicas, o que, por outro lado, não quer dizer que as contradições não persistam.

O processo de reforma psiquiátrica em nosso país é um desses avanços. Tal processo, embora não isento de grandes resistências à mudança e de contradições, começa, ainda que de forma pulverizada, a substituir progressivamente o modelo centrado no caráter asilar por ações de saúde mental em outros âmbitos que favoreçam a inserção social. Contudo, como diz a autora, não basta fechar os hospitais psiquiátricos ou humanizar as estruturas existentes para que a reforma psiquiátrica seja garantida em seus princípios fundamentais. Mais que isso, é necessário "(...) não apenas a transformação na forma de atender, mas antes a transformação na forma de pensar a loucura" (p. 45). Dentro dessa perspectiva, tanto a família quanto o profissional da saúde ocupam lugares estratégicos nesse processo de mudança, no sentido de que os avanços possíveis não fiquem restritos ao campo da técnica, mas transcendam ao campo das relações humanas, na intersecção de diferentes áreas sociais e pessoais.

O percurso metodológico, apresentado no segundo capítulo, indica que os familiares, os profissionais da saúde e estudantes entrevistados são residentes e vinculados aos serviços de saúde, tanto públicos quanto particulares, de dois municípios paranaenses. Descreve as características censitárias de ambos os municípios, bem como dos seus serviços de saúde mental, das redes pública e conveniada. Também caracteriza os entrevistados e os recortes adotados com suas respectivas justificativas, os temas que orientaram as entrevistas e o processo de análise.

No terceiro capítulo – "As idéias (des)encontradas" – inicialmente são apresentados dados estatísticos importantes para se conhecer melhor quem é o portador de transtorno mental do presente estudo. Esses dados compreendem: distribuição quanto ao gênero, idade do paciente, estado civil, nível de escolaridade, renda do paciente, idade de início do transtorno, freqüência de internação, constituição das famílias entrevistadas, religião declarada e recursos procurados. Na seqüência são expostos "os depoimentos que traduzem a representação da população pesquisada, bem como possíveis interpretações destes discursos" (p. 19). Tais depoimentos e respectivas análises contemplam o que há de comum e diferente nos discursos, o que há de geral e de particular, sendo esses dados agrupados em categorias que favorecem a análise e possibilitam interpretações. Assim os discursos - tanto os dos familiares quanto os dos profissionais e estudantes - têm lugar central, constituindo-se em testemunhos de grande intensidade.

A partir dos depoimentos dos familiares, a autora ressalta o desconhecido, a surpresa, o medo e a aflição diante do primeiro episódio de transtorno mental, sendo a polícia e o hospital psiquiátrico os recursos mais procurados, muitas vezes indicados inclusive pelos próprios profissionais da saúde. Além disso, chama a atenção para a sobrecarga da família onde na maioria dos casos, há a dependência de uma pessoa, geralmente a mulher. Quanto aos recursos terapêuticos adotados atualmente, sobressaem a dependência da saúde pública para a aquisição da medicação, a baixa adesão à medicação como um problema a mais, e a busca de recursos alternativos e alheios ao campo científico.

O transtorno mental também é interpretado pela família de múltiplas formas, carregadas de sentidos de causalidade para os danos sofridos no corpo, incluindo a perda de um ente querido, a transgressão dos costumes, alguma doença física, um segredo revelado, a transformação do corpo na adolescência, os conflitos conjugais, promessas não cumpridas, problemas genéticos, chegando a elementos místicos que servem de suporte às explicações e até encaminhamento. Sobre a assistência recebida nos serviços da rede pública de saúde, sobressai a predominância das consultas médicas e do recebimento da medicação, a que se somam outros aspectos - como a falta de compreensão por parte da família quanto ao que está acontecendo, seus parcos recursos, suas intensas apreensões na vivência da situação – diante dos quais a família, aconselhada muitas vezes pelos próprios profissionais da saúde, busca a internação em hospital psiquiátrico. Esse serviço, por sua vez, embora seja a saída mais freqüente, é visto com muitas reservas e críticas.

Quanto ao que dizem os profissionais e os acadêmicos entrevistados, suas explicações acerca do transtorno mental manifestam múltiplas concepções oriundas de diversos campos do conhecimento, desde as neurociências até a sociologia, expressando as controvérsias tão inerentes a esse assunto. E as controvérsias continuam quando se posicionam sobre os encaminhamentos necessários nos cuidados à pessoa com transtorno mental, pois, embora com algumas críticas e a indicação de necessidade de melhorias, a partir de diferentes perspectivas, a maioria ainda considera a instituição psiquiátrica como recurso necessário. Além disso, a reforma psiquiátrica mostrou-se desconhecida entre os profissionais da saúde. Tais posições, interligadas pelas diversas expressões argumentativas presentes nos discursos, parecem indicar a redução da pessoa à doença, como se os cuidados à pessoa com transtorno mental se limitassem a procedimentos técnicos.

Nas "Considerações Finais – Procusto no embate da reforma psiquiátrica", a autora apresenta uma profunda análise das questões que se delineiam ao longo dos capítulos do livro, a qual efetivamente pode ser transposta para um âmbito mais amplo do que o recorte estabelecido para sua pesquisa. Retoma a figura mitológica de Procusto, presente já no título do livro, como metáfora de como, ao longo dos séculos, inclusive na atualidade, as pessoas acometidas de transtorno mental foram e são tratadas, oferecendo-nos reflexões que permitem uma compreensão de por que, ainda na atualidade, com todos os avanços do conhecimento, é tão difícil pensar a "loucura" e desenvolver ações que se diferenciem do já estabelecido, padronizado, dificultando o processo de transformação das mentalidades.

Tendo em vista os aspectos destacados acima, é importante assinalar que a leitura da obra aqui resenhada proporciona ao leitor o contato com um material de grande riqueza, tanto pelo rigor metodológico quanto pela profundidade com que aborda o fenômeno da loucura e suas vicissitudes pelo vértice que privilegia. A coerência das argumentações e a propriedade com que as análises são elaboradas trazem contribuições significativas, de fundamental importância tanto para profissionais quanto para estudantes dos mais diversos campos do conhecimento que se interessem pelo tema, particularmente com relação à reforma psiquiátrica, à saúde pública, à saúde mental e, inclusive, à formação profissional.

Recebido em 08/08/2007

Aceito em 10/10/2007

  • Endereço para correspondência

    Paulo José da Costa.
    Av. Colombo, 5790, bloco 118,
    DPI/UEM, CEP 87.020-900, Maringá-PR.
    E-mail:
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    Boarini, M. L. (2006). A loucura no leito de Procusto. Maringá: Dental Press.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007
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