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Luto e identificação: a propósito de a casa de boneca, de Henrik Ibsen

Mourning and identification: in a doll's house of Henrik Ibsen

Resumos

Nosso estudo tomará como ponto de partida as passagens de "O ego e o id", nas quais Freud põe em relação a perda de objeto, de um lado, e a identificação, de outro. Ele tentará esclarecer certos aspectos dos processos psíquicos que são conducentes à "edificação do objeto no ego", assim como suas conseqüências : como e sob qual forma o objeto perdido sobreviverá no ego? De qual modo ele entra em jogo, daí emdiante, na economia psíquica? Este estudo tem por objeto o drama de Ibsen, "A casa de bonecas". A análise desse drama nos conduz a articular e a questionar a identificação consecutiva a uma perda em relação com as noções de narrativa, de temporalização, de idealização e de dívida.

psicanálise; identificação; Ibsen


The starting point of our investigation are the passages in H. Ibsen "The I and the Id" in which Freud relates mourning to identification. It aims to discover some aspects of the psychological processes which lead to "the edification of the object in the I" and their consequences such as: how, in which form will the lost object survive in the I? In which way will it participate in the psychological economy? Our study takes the H. Ibsen drama, A Doll's House, as an object. The analyses lead us to articulate and question the identification following a loss regarding notions of narration, temporalness, idealization and debt.

Psychoanalysis; identification; Ibsen


ARTIGOS

Luto e identificação: a propósito de a casa de boneca, de Henrik Ibsen

Mourning and identification in a doll's house of Henrik Ibsen

Anne HageI; Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto (Tradutor)II

IDoutora em Psicanálise pela Universidade de Paris 7. Association de Santé du XIII Arrondissement de Paris

IIDoutor, docente do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Anne Hage, Av. d'Italie, Tour Beryl 75013 Paris, França

RESUMO

Nosso estudo tomará como ponto de partida as passagens de "O ego e o id", nas quais Freud põe em relação a perda de objeto, de um lado, e a identificação, de outro. Ele tentará esclarecer certos aspectos dos processos psíquicos que são conducentes à "edificação do objeto no ego", assim como suas conseqüências : como e sob qual forma o objeto perdido sobreviverá no ego? De qual modo ele entra em jogo, daí emdiante, na economia psíquica? Este estudo tem por objeto o drama de Ibsen, "A casa de bonecas". A análise desse drama nos conduz a articular e a questionar a identificação consecutiva a uma perda em relação com as noções de narrativa, de temporalização, de idealização e de dívida.

Palavras-chave: psicanálise, identificação, Ibsen.

ABSTRACT

The starting point of our investigation are the passages in H. Ibsen "The I and the Id" in which Freud relates mourning to identification. It aims to discover some aspects of the psychological processes which lead to "the edification of the object in the I" and their consequences such as: how, in which form will the lost object survive in the I? In which way will it participate in the psychological economy? Our study takes the H. Ibsen drama, A Doll's House, as an object. The analyses lead us to articulate and question the identification following a loss regarding notions of narration, temporalness, idealization and debt.

Key words: Psychoanalysis, identification, Ibsen

Em "O ego e o id", Freud descreve a relação entre a perda de objeto e a identificarão nestes termos:

Que tal objeto seja abandonado, por obrigação ou por necessidade não é raro. Que então sobrevenha em seu lugar a modificação do eu que é preciso descrever, do mesmo modo que na melancolia, como uma edificação do objeto no eu. As circunstâncias mais precisas dessa substituição não nos são ainda conhecidas. Talvez o eu, por essa introjeção, que é uma espécie de regressão ao mecanismo da fase oral, facilite ou torne possível o abandono do objeto. Talvez essa identificação seja, de um modo geral, a condição para que o isso abandone seus objetos. Em todo o caso, o processo, sobretudo nas primeiras fases do desenvolvimento, é muito freqüente e pode tornar possível a concepção segundo a qual o caráter do eu é um precipitado de objetos abandonados, contendo a história dessas escolhas de objeto (Freud, 1923/1991, p. 273.)

Essa passagem suscita um questionamento: quais são precisamente os processos psíquicos implicados nas identificações constitutivas do caráter do eu? Freud fala em termos de introjeção; mas é o único mecanismo ativado? Se num primeiro processo há "edificação do objeto no eu", não é por uma elaboração complexa, que implica em remanejamentos de representações constitutivas do objeto interno, que esse último encontra um lugar no eu? Como, pois, o objeto vai encontrar um lugar nessa história de escolhas de objeto que estão no "caráter do eu"?

Vamos nos debruçar sobre essas questões a partir do drama de Henrik Ibsen intitulado "A casa de bonecas".

A intriga do drama tem sua raiz numa situação de perda que se deu oito anos antes e que se constitui, de algum modo, em sua pré-história. A heroína, Nora Helmer, era então casada havia pouco com Thorvald Helmer. Seu pai estava moribundo e seu marido doente. A vida deste último dependia de uma viagem para um país mediterrâneo e, como o jovem casal não dispunha da soma necessária para empreendê-la, Nora tomou um empréstimo com um usurário, às escondidas do marido. E, para fazê-lo, ela assinou a dívida em nome de seu pai. Graças a isso, ela pôde partir. A saúde de Thorvald Helmer (o marido) então se restabeleceu e ele não teve mais o que temer em relação à sua vida.

A intriga conduz, pois, à revelação do segredo de Nora. Seu marido, ao saber disso, revela-se outro, bem diferente do que ela pensava. Sob o efeito da desilusão, ela se vê assim forçada a voltar-se sobre a história de suas escolhas de objeto e de questioná-la. É com esse questionamento em movimento que ela abandona, no fim do drama, seu marido e seus filhos.

Quando Nora assina os papéis da dívida em nome de seu pai, ela se coloca em seu lugar e age em seu nome. Esse gesto pode ser concebido em termos de identificação sob vários pontos de vista.

Pela sua falsa assinatura, Nora comete um ato ilícito, o qual seu pai também teria podido cometer. Ficamos sabendo que o pai, "no exercício de suas funções não era um homem irrepreensível" (Ibsen, 1879/1990, Acte II p. 217) e que ele teve que passar por uma investigação jurídica, a qual havia sido conduzida por Thorvald Helmer. Mesmo que ele, o pai, tenha escapado da prisão –graças à intervenção de Helmer, na época jovem advogado desejoso de casar-se com Nora– o estado de seus negócios dera lugar a um escândalo revelado pela imprensa. Em nome do pai, Nora perpetua então, em certo sentido, os gestos do pai, uma prática a que o pai estava acostumado. Dito isso, ela ignora o alcance de seu ato e sua gravidade de um ponto de vista jurídico: fazendo como seu pai. Ela corre, sem o saber, o risco de sofrer a pena de prisão da qual o pai havia escapado.

Dívida e castigo, aí estão as realidades com as quais Nora entra em contato quando arca com a responsabilidade de salvar a vida de seu marido. Esse ato de salvação, se podemos assim dizer, condensa vários significações, significações que variam à medida do desenrolar da intriga.

Para Nora, trata-se de um ato do qual ela se orgulha e de que espera um "milagre". Orgulho de ter podido conseguir uma grande soma de dinheiro, necessária para a viagem empreendida para salvar Helmer; orgulho de ter podido assumir, pelo seu próprio trabalho, o pagamento da dívida. Ela está orgulhosa de ter estado à altura do que considera um dever, um dever muito difícil, o que para ela tem um valor ideal. É justamente porque concebe seu ato como emanando de um ideal que ela espera um milagre, milagre que se produziria se Helmer tomasse conhecimento dele: ela assumiria a falta, de forma a salvar sua mulher. O desvelamento de seu ato conduziria o marido a se mostrar devotado, corajoso, pronto para o sacrifício. O marido, por seu lado, mostrar-se-ia então à altura de um ideal, ele brilharia como sua encarnação.

De fato, a espera de Nora parece repousar numa ilusão. À revelação de seu segredo, seu marido revela ser um homem de espírito estreito, medroso, egoísta e duro. A falsa assinatura remete à ilusão, à visão mentirosa, idealizada, do marido e do casamento que Nora construiu para si mesma, pela qual ela assinou a dívida.

Ora, isso ocorreu no momento preciso em que o pai de Nora estava à morte, em que a perda do pai amado e admirado tornava-se inelutável. Por essa razão, propomos considerar num primeiro tempo a falsa assinatura como um gesto pelo qual se produziu uma "edificação do objeto no eu". Quando assina em nome de seu pai, Nora faz como ele mesmo, o pai, teria feito. E fazendo-o, ela inscreve também o nome do pai em seu ego, de maneira que é, desde então, em seu nome que ela vai gerir a dívida. Como objeto no eu, objeto portador de um nome próprio (nome que não aparece no drama) e também de uma história, o pai está inseparavelmente ligado à dívida. É essa dívida que anima a economia e a dinâmica psíquica de Nora, do mesmo modo que ela anima o desenrolar da intriga dramática.

É com a divida, a partir da dívida, que Nora constrói o que podemos nomear o romance idealizante de seu casamento. Esse romance é, numa larga medida, dependente da idealização do pai: são as representações idealizadas do pai que Nora atribui a seu marido. Como ela mesma diz: "Com Thorvald, é como com papai" (Ato II, p. 207). Nesse sentido, pode-se dizer que é também em nome do pai que ela põe em cena a narrativa de seu casamento, é em seu nome que ela assina essa narrativa romanesca.

Posto isso, se a dívida permitiu a construção dessa narrativa, se ela mantém e alimenta a ilusão idealizante, ela também tem lembranças angustiantes das faltas cometidas pelo pai. A dívida é habitada por suas recordações e constrange Nora a manter certo contato com elas. Nesse sentido, a dívida implica uma gestação em termos de economia psíquica do bom e do mau, dos aspectos opostos do pai enquanto objeto do eu. A economia inerente à dívida conduz Nora, ao mesmo tempo, a novos investimentos psíquicos, em primeiro lugar, a um exercício de trabalhos remunerados. Como ela diz a sua amiga Senhora Linde: "Oh, eu estava tão fatigada, tão fatigada. Mas era muito divertido: trabalhar, ganhar dinheiro, quase como se eu fosse um homem" (Ato I, p. 183). A necessidade premente implicada na dívida compromete Nora em atividades contrárias às ideologias reinantes -eis aí a lei- nessa casa de bonecas que é seu lar. Também a dívida constitui-se, ao mesmo tempo, como fundamento econômico da construção e do desmoronamento.

Essa ambigüidade inerente à dívida convida-nos a perguntar mais sobre sua natureza e sua significação. Isso notadamente em relação à perda do pai, de um lado, e em relação à identificação, de outro.

Consideremos, primeiro, a personagem do credor. Quem é ele? Chama-se Niels Krogstad e é jurista como o marido de Nora; e foi amigo de juventude deste último. Ora, Krogstad perdeu seu emprego e sua posição social devido a uma falta profissional. É assim que ele adotara a profissão de usurário e é assim que Nora fora conduzida a reencontrá-lo e a contrair sua dívida com ele. Krogstad teria falsificado documentos, falta passível da pena de prisão, da qual, contudo, ele escapou.

Assim como o pai de Nora, Krogstad tornou-se então culpado de um ato ilícito e, também como o pai, ele pôde evitar a prisão. Nora, por seu lado, pela sua falsa assinatura, se inscreve na linha desses dois homens. Como lhe disse Krogstad: "Senhora Helmer, a senhora aparentemente não tem uma noção muito precisa daquilo de que se tornou culpada. Posso lhe dizer que o que fiz, e que me custou a posição social, não era menos grave" (Ato I, p. 201).

Nora, seu pai e Krogstad têm em comum uma falta, é um traço que os une. A existência desse laço identificatório entre os três leva-nos a pensar que a personagem de Krogstad representa no drama o papel de pai de Nora. Digamos que ele representa tudo ao encarnar certos aspectos do pai enquanto objeto interno. De fato, Krogstad ocupa um lugar particular no drama: ele não conta entre os íntimos da casa de bonecas (como é o caso de Rank e da Senhora Linde) e não faz mais que aparições breves em cena; mas é ele que, por suas idas e vindas, determina o desenrolar e o desenlace da intriga. Em certo sentido, o papel da personagem de Krogstad é o de uma aparição (revenant). Ele aparece (revient) para reclamar o que lhe é devido, mas aparece também e sobretudo com uma demanda que não se pode reduzir ao simples aspecto material do pagamento do empréstimo. Citemos a seguinte troca de palavras entre Nora e Krogstad:

Krogstad: Não é dinheiro que eu exijo de seu marido.

Nora: O que quer o senhor então?

Krogstad: Eu lhe digo: quero me pôr a seus pés, senhora; eu quero me elevar; seu marido deve me ajudar" (Ato II, p. 231-32)

Krogstad pede para ser reabilitado, para encontrar um lugar respeitável, e é nisso que seu pedido no presente do drama difere daquele que ele fez nos anos precedentes, na pré-história do drama, tal como é apresentado pelo desenvolvimento da peça.

Seria, então, junto ao morto que Nora se endividou e, se essa dívida constitui uma obrigação econômica, ela é uma coisa tão ou mais constrangente: o morto -o pai interno- exige ser posto de pé (elevado), exige um outro lugar.

Num trabalho anterior, dedicado a Stendhal (Hage, 2001), no qual estudei a relação entre luto e simbolização, fui levada a situar a mensagem enigmática, tal como ela foi conceptualizada por Jean Laplanche (1987; 1992), bem no centro do luto: a mensagem deixada de herança pelo morto, presença viva do morto no psiquismo do sobrevivente, gera a dor própria do luto; e o trabalho de luto, por seu lado, realiza-se à medida que o sobrevivente chega a traduzir a mensagem. Trata-se de um processo em que tradução e temporalização são contemporâneos, de tal forma que o trabalho de luto conduz à produção de uma narrativa: através dele, a história vivida com o objeto perdido acha-se reescrita.

Parece-nos, portanto, que a noção de mensagem enigmática permite melhor discernir o estatuto e a função da dívida em "A casa de bonecas". A demanda de Krogstad suscita em Nora uma questão: "que quer?" É que essa demanda reenvia a um enigma: que queria meu pai de mim, sua filha? A necessidade inerente à dívida seria uma necessidade de tradução, um processo que demanda muito trabalho e gasto em termos de economia psíquica. Vemos, então, na personagem de Krogstad, o representante dos aspectos enigmáticos do pai. Dito de outro modo, do que no pai não pôde encontrar: uma resposta através da idealização, também contemporânea do trabalho de luto. É só no final do drama, quando a idealização desaba, que Nora começa a responder à questão relativa à demanda do pai: "Ele dizia que eu era sua boneca, e brincava comigo como eu brincava com minhas bonecas" (Ato III, p. 264).

O que é, pois, da identificação com o objeto perdido? Como a edificação, no eu, do objeto perdido participou na formação do seu caráter? No drama de Ibsen, a intriga se tece em relação a uma perda sofrida quando a heroína era ainda uma jovem mulher. Mas essa perda articula-se a sua primeira infância, como acabamos de ver. O que é descrito pelas palavras de Nora é o pai tratando sua filha como um brinquedo erótico, é o pai sedutor transmitindo à sua filha sua própria sexualidade inconsciente. É esse mesmo pai quem anunciara os enunciados identificatórios à criança, designando-a em termos de boneca, que ela era a boneca de seu pai. Aqui, a identificação é, então, articulada –teorizada– de um lado pelas relações com o inconsciente e, de outro, pelas relações com seus enunciados identificatórios. A criança é ao mesmo tempo sexualizada e idealizada pelo adulto. Uma identidade e um lugar lhe são designados por este último, e nesta designação estão os interditos. É assim que Nora o exprime: "Quando estava na casa de papai, ele me dizia o que pensava e eu pensava como ele; se pensasse em outra coisa, eu me escondia dele; senão ele não ficaria contente" (Ato III, p. 264). Trata-se, aqui, de um interdito de pensar, interdito em larga medida aceito e respeitado: por amor ao pai e pelo prazer de ser sua boneca, sua filha, então, a jovem mulher sacrifica seu próprio pensamento. É assim que Nora se dirige a seu marido: "Quando penso nisso, tenho a impressão de ter vivido como os pobres – sem olhar o futuro. Ganhei minha vida fazendo piruetas para ti, Thorvald. Mas, era isso que tu desejavas. Tu e papai me causastes um grande prejuízo. É sua culpa se eu não sirvo para nada". E "mas nosso lar, não é mais do que uma caixa de brinquedo. Eu era tua boneca, como era a boneca de papai e as crianças eram minhas bonecas. Ficava contente quanto tu brincavas comigo, como elas ficavam contentes quando eu brincava com elas. Isso é o nosso casamento, Thorvald" (Ato III p. 264-265).

Ser a boneca do pai, depois a do marido; brincar de ser sua boneca, fazendois do que piruetas para ti Thorvald. ser sua boneca, sua filha, pois a jovem mulherisa, elem piruetas, brincar com as crianças como se fossem bonecas: eis como Nora chega a fazer o histórico dos seus investimentos afetivos e eróticos. De fato, esse jogo permite gerir e jogar os desejos inconscientes, dá, assim, prazer. Segundo Nora, ele a deixava alegre, mas não feliz (Ato III, p. 265).

O enunciado identificatório do pai: "tu és minha boneca", ou mesmo, "minha boneca" ou "boneca", teria destinado sua filha a representar o papel da mulher-criança-boneca, numa casa de bonecas. Parece-nos que a eficácia desse enunciado deve ser concebida em relação a sua junção com a mensagem enigmática. É com isso que ele teve um papel principal na formação do caráter de sua filha, Nora, para quem a capacidade de brincar e de fazer de conta parece ter sido desenvolvida, ou mesmo cultivada, como fazera de bonecas. o o hist um talento especifico ou um dom específico.

O enunciado de partida sofreu recomposições sucessivas através das quais "o ser boneca" que, no começo, era inteiramente passivo e sem resposta, pôde pôr-se em jogo por si mesmo. A perda deve ser considerada como um momento crucial para tais remanejamentos, e isso porque a mensagem enigmática se impõe ao eu novamente com força. A perda, diríamos, reinstala uma relação com a mensagem do outro, análoga àquela da sedução originária.

Como compreendemos, então, a relação entre o enunciado identificatório e a identificação ao pai, em jogo na e através da falsa escritura? Este gesto teria sido contemporâneo à edificação do objeto perdido no eu e também da apropriação pelo eu do sobrevivente de uma certa prática do objeto perdido, e mesmo de um ou de alguns dos seus traços de caráter.

Como o enunciado identificatório faz parte do pai interno, parece que a perda tenha conduzido, num primeiro tempo, a reforçar sua dominância na economia psíquica de Nora. É precisamente sob o efeito de um diktat (ditado) do pai que Nora produziu a narrativa idealizadora do seu casamento, e é em nome dele que ela a assinou. No entanto, a identificação com o pai introduz um novo modo de funcionamento psíquico, modifica o caráter e cria, aí, então, um conflito potencial entre os diferentes aspectos identificatórios do eu.

É com o pai culpado que Nora se identifica, e podemos compreender tal processo identificatório em relação com a culpabilidade produzida pela perda. O luto –o conflito psíquico que lhe é inerente– faz sempre entrar em jogo o sentimento de culpa. Nora, evocando o fato de que ela não pôde ir cuidar de seu pai quando ele estava moribundo, fala nestes termos: "Essa é a minha maior tristeza depois de que me casei" (p. 176, Ato I). Trata-se de uma tristeza sempre viva, de uma recriminação que ela se dirige, recriminação que implica a idéia de não ter amado suficientemente, de não ter amado como deveria.

A identificação com o pai culpado permitiria dar sentido, ligar e, assim, apaziguar uma culpa angustiante e geradora de tormentos. Isso através do deslocamento da falta (erro): essa concerniria menos ao pai do que às leis da sociedade; a falta de não se situaria mais no domínio do amor filial, porque ela foi cometida com vista a poupar o pai moribundo e salvar a vida do marido doente. Esta identificação permite, ao mesmo tempo, manter intacta e engrandecer a imagem idealizada do morto: este está, de algum modo, quite em relação à sua falta, o culpado seria doravante o sobrevivente.

Através deste processo, o sobrevivente se endivida com o morto: sua mensagem continua a se impor ao eu do sobrevivente como exigência econômica, e só a tradução poderá colocar um fim a esta exigência. A identificação não permite em si traduzir a mensagem.

Não obstante, quando Nora contrai a dívida, e isso graças à falsa assinatura, ela é, na seqüência, levada a trabalhar como "um homem". Como seu pai, como Krogstad, como esses homens, culpados e capazes ao mesmo tempo. Assim, ela adquire conhecimentos e novas capacidades, e começa a pensar por si própria. Ela é, então, conduzida a transgredir o interdito do pai, que recaía particularmente sobre os pensamentos. É esse o processo que conduz Nora a se representar neste interdito, o que lhe permite pensar o interdito de pensar.

É desse modo que ela começa a questionar e a traduzir a mensagem do pai e, assim, a teorizar seu próprio papel enquanto mulher-criança-boneca.

Em O ego e o Id, Freud estabelece um laço entre a perda do objeto, identificação e sublimação: "(...) toda sublimação não se produz por intermédio do eu, que, primeiro, transforma a libido de objeto sexual em libido narcísica, para, então, lhe dar um novo objetivo?" (Freud, 1923/1991, p. 274). Quando Nora se põe a trabalhar e a pensar, trata-se de um processo de sublimação. Podemos compreendê-lo em relação ao retorno massivo do recalcado que provoca a perda, retorno que se encontra impulsionado pela mensagem do morto. Este processo começa com uma dupla transgressão: a do interdito jurídico e a do interdito paterno ao mesmo tempo. Isso toma corpo no novo relato, através do qual Nora conta seu passado. Esse relato produz, mais precisamente, uma nova representação dos laços existentes entre o presente e o passado e se abre para um novo futuro, muito diferente daquele que Nora vislumbrava no início do seu drama: quando, ao fim do drama, ela se prepara para deixar a casa da boneca, é para ir a trabalhar na sua cidade natal, e isto tem como objetivo perseguir o questionamento que a levou a deixar seu lar. Esta interrogação e a tradução a que dá lugar conduz a "dar... um novo objetivo" para a libido.

Depois da perda do pai, Nora vai elaborar duas narrativas, falando, cada uma, do laço com objeto perdido: a primeira, que é idealizante, reproduz uma ideologia e ideais transmitidos à filha pelo pai quando ela era criança. Aí é o morto que identifica o sobrevivente, seu enunciado identificatório determina a forma tomada pela narrativa. A segunda narrativa engloba aspectos enigmáticos do pai, sua criação implicou uma tradução da mensagem. Na elaboração dessa narrativa o ideal da ideologia foi substituído por um ideal de verdade.

Essas duas narrativas foram produzidas em conseqüência da introjeção do objeto perdido. Digamos que elas resultam de momentos diferentes do trabalho de luto, trabalho que implica um remanejamento complexo de objeto: aí estão em ação processos de tradução, de teorização e de temporalização. É através desse trabalho que o objeto perdido passa ao passado, é através dele que o objeto perdido inscreve-se na história das "escolhas de objeto". Esse trabalho põe em jogo, igualmente, identificações anteriores. Disso resulta que algumas dessas identificações são modificadas ou mesmo abandonadas. Essas modificações são ligadas à identificação com certos aspectos do objeto perdido. A identificação ao pai culpado arrasta consigo uma modificação a posteriori do caráter do eu. Ela se situa numa relação conflituosa com as identificações anteriores e obriga, assim, a um remanejamento. É por essa identificação que o enunciado identificatório do pai pode ser questionado, é por isso também que certos interditos, ligados a esse enunciado, podem ser suspensos.

Recebido em 10/06/2005

Aceito em 20/07/2005

  • Ibsen, H. (1990). Les douze dernières pièces / Henrik Ibsen. Paris : Imprimerie Nationale. (Trabalho original publicado em 1879).
  • Hage, A. (2001). Stendhal : deuil et symbolisation. Paris : PUF.
  • Freud, S. (1991). «Le Moi et le Ça» in Œuvres complètes-Psychanalyse. TVI, Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1923)
  • Freud (1940) Gesammelte Werke, t. XIII, p.237-289.
  • Laplanche J. (1987). Nouveaux fondements pour la psychanalyse. Paris: PUF.
  • Laplanche J. (1992). «Temporalité et traduction. Pour une remise au travail de la philosophie du temps» (317-358) in La révolution copernicienne inachevée. Paris: Aubier.
  • Laplanche J. (1992). «Le temps et l'autre.» (359-384) in La révolution copernicienne inachevée Paris: Aubier.
  • Endereço para correspondência

    Anne Hage,
    Av. d'Italie, Tour Beryl
    75013 Paris, França
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2005

    Histórico

    • Aceito
      20 Jul 2005
    • Recebido
      10 Jun 2005
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