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O estatuto simbólico dos gestos no contexto da surdez

Gestures' symbolic statute in deafness

El estatuto simbólico de los gestos en el contexto de la sordez

Resumos

A discussão sobre a relação entre gesto e língua, embora não seja recente, ainda pode ser considerada insuficiente. Os gestos, de forma geral, têm sido discutidos de forma separada da língua. Neste trabalho discutirei a relação entre gesto e língua a partir do estudo da surdez e de uma perspectiva discursiva da linguagem. Os estudos evidenciam uma interdependência de gesto e língua em termos simbólicos, interativos e cognitivos.

gesto; linguagem; surdez


Although not a recently born discussion, the relation between gesture and language is still highly insufficient. Gestures and language have been usually discussed from a dissociated approach. Current essay analyzes the gesture-language relationship from the point of view of studies on deafness and from a socio-cognitive perspective. Research evidences interdependence between language and gesture in symbolic, interactive and cognitive terms.

Gesture; language; deaf


Este artículo tiene por meta deliberar sobre la importancia de entender y acompañar el proceso de duelo en la vejez, sobretodo por la muerte de la pareja e hijo que pude provocar un gran impacto en el anciano con manifestaciones físicas y emocionales que se juntan a variados otros sufrimientos en esta fase rechazada por la sociedad atual.

Gesto; lenguaje; sordez


ARTIGOS

O estatuto simbólico dos gestos no contexto da surdez

Gestures' symbolic statute in deafness

El estatuto simbólico de los gestos en el contexto de la sordez

Ana Paula SantanaI; Ana Cristina GuarinelloII; Ana Paula BerberianIII; Giselle MassiII

IFonoaudióloga. Doutora em Lingüística. Docente do curso de graduação em Fonoaudiologia e do Programa de Pós-graduação em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná

IIFonoaudióloga. Doutora em Letras. Docente do curso de graduação em Fonoaudiologia e do Programa de Pós-graduação em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná

IIIFonoaudióloga. Doutora em História. Docente do curso de graduação em Fonoaudiologia e do Programa de Pós-graduação em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ana Paula Santana Rua: Mal. Lott, 291, Casa 02, Santa Felicidade CEP 82410-090, Curitiba-PR E-mail: anaposantana@hotmail.com

RESUMO

A discussão sobre a relação entre gesto e língua, embora não seja recente, ainda pode ser considerada insuficiente. Os gestos, de forma geral, têm sido discutidos de forma separada da língua. Neste trabalho discutirei a relação entre gesto e língua a partir do estudo da surdez e de uma perspectiva discursiva da linguagem. Os estudos evidenciam uma interdependência de gesto e língua em termos simbólicos, interativos e cognitivos.

Palavras-chave: gesto, linguagem, surdez.

ABSTRACT

Although not a recently born discussion, the relation between gesture and language is still highly insufficient. Gestures and language have been usually discussed from a dissociated approach. Current essay analyzes the gesture-language relationship from the point of view of studies on deafness and from a socio-cognitive perspective. Research evidences interdependence between language and gesture in symbolic, interactive and cognitive terms.

Key words: Gesture, language, deaf.

RESUMEN

Este artículo tiene por meta deliberar sobre la importancia de entender y acompañar el proceso de duelo en la vejez, sobretodo por la muerte de la pareja e hijo que pude provocar un gran impacto en el anciano con manifestaciones físicas y emocionales que se juntan a variados otros sufrimientos en esta fase rechazada por la sociedad atual.

Palabras-clave: Gesto, lenguaje, sordez.

A língua na modalidade oral, assim como a língua de sinais, tem sua característica gestual. A gestualidade na linguagem oral inicia-se desde as vocalizações. A linguagem é, assim, prenhe de gestos, que variam desde uma especificação mínima da ordem do simbólico (vocalizações, balbucios manuais e vocais) ao uso efetivo dessa ordem (usos de uma língua minimamente referenciada). Desde criança somos sujeitos do gesto (fônico ou manual), e é através de nossas interações que vamos adquirindo um saber sobre a construção do léxico, da gramática e dos usos de uma língua (Albano, 2001).

Para fugir do isolamento social resultante da ausência de uma língua, a criança surda usa gestos (icônicos e indicativos) para comunicar-se com os ouvintes. O uso de gestos não é exclusivo dos surdos, pois crianças ouvintes também produzem e interpretam gestos durante seu desenvolvimento. Embora uma seqüência de gestos não constitua uma língua, até certo ponto os gestos fazem parte da língua; mas até que ponto? Como poderíamos discutir a relação entre gesto e língua tomando como posto de observação o contexto da surdez? O que a literatura tem apresentado sobre essa questão?

Na área da Lingüística essa não é uma questão recente, visto que, a partir de Saussure (1916), já havia a preocupação de separar linguagem de língua, dada como objeto de estudo da Lingüística. Benveniste (1966/1988), em seu texto Semiologia da Língua, ao discutir o papel da língua em relação a outros sistemas semióticos - gestos, música, pintura, sinais militares, alfabeto dos surdos-mudos etc. -, afirma que deles podem se deduzir os seguintes princípios: a) a não-redundância (não há sinonímia entre os sistemas); b) dois sistemas podem ter um mesmo signo sem que resulte em sinonímia, pois o valor de um signo se define apenas no sistema que o integra; c) a relação entre os sistemas é, portanto, entre sistema interpretante e sistema interpretado. A língua ocupa um lugar particular no interior desses sistemas: " os signos da sociedade podem ser integralmente interpretados pelos signos da língua, jamais o inverso. A língua será, então, o interpretante da sociedade" (Benveniste, 1966/1988, p. 53).

Segundo o autor, as possibilidades de relação entre os sistemas semióticos podem ser assim descritas:

1) um sistema pode engendrar outro sistema quando os sistemas são distintos, mas da mesma natureza, sendo que o segundo é construído a partir do primeiro e preenche uma função específica - por exemplo, a linguagem visual engendra a formalização lógico-matemática;

2) homologia: a correlação entre as partes de dois sistemas semióticos pode ser parcial ou extensa e pode variar (ser intuitiva, racional, substancial, estrutural, conceptual, poética) – o que acontece, por exemplo, entre a escrita e o gesto ritual da China;

3) quanto à interpretância: um sistema é interpretante e o outro é interpretado.

A linguagem combina, assim, dois modos distintos de significação: o semiótico, que considera que o signo existe quando reconhecido como significante pelo conjunto dos membros da comunidade lingüística; e o semântico, engendrado pelo discurso, porque a linguagem, como produtora de mensagem, toma a seu encargo um conjunto de referentes. A linguagem é, então, o único sistema que articula as duas dimensões - a semiótica e a semântica. Todos os demais sistemas têm significância unidimensional: semiótica (gestos de cortesias) ou semântica (expressões artísticas), sem semiótica. Vê-se, assim, que há uma relação entre os sistemas semióticos, dado seu caráter de interpretabilidade. Contudo, o papel da língua aparece como preponderante nesse conjunto de sistemas.

Se a relação entre gesto e língua não é recente na Lingüística, também não o é na Neuropsicologia. Liepman, em 1900, quando estudou as perturbações dos gestos (apraxias) em sujeitos com perturbações de linguagem (afasias), já relacionou essas duas alterações cognitivas. Os estudos nessa área têm apontado similaridadades na forma como o cérebro processa a linguagem e os gestos. Há modelos na neuropsicologia cognitiva que chegam mesmo a trabalhar com conceitos lexicais e semânticos para a análise dos gestos, conceitos esses originalmente utilizados em estudos de linguagem (Carrilho, 1996).

Fedosse (2000a), em seu estudo a partir de uma neurolingüística enunciativo-discursiva, afirma, a respeito da relação entre gestos e praxia, que a gestualidade tem seu caráter de significação, tem natureza simbólica e cognitiva. O sentido do gesto, que qualifica a apraxia da mesma forma que a linguagem verbal, não é determinado de antemão, e sim construído nas interações sociais e passível, assim, de diferentes interpretações. Para a autora, a linguagem participa da organização da atividade gestual. E as afasias, tanto as relacionadas com alterações de produção quanto aquelas relacionadas à interpretação, têm impacto na atividade gestual. Por exemplo, as dificuldades de linguagem relacionadas à dimensão sintática podem repercutir na ordem da realização dos gestos, de forma que o sujeito apresenta dificuldade para encadear o conjunto de ações requeridas para realizá-los, assim como as dificuldades pragmáticas de linguagem podem repercutir na realização gestual, culminando em sua não-realização. Fedosse (2000a) também faz uma crítica aos estudos tradicionais de apraxias, que descrevem e analisam as alterações de acordo com o sistema motor afetado: apraxia de membros, motoras, de fala, verbal, etc.

Em trabalhos posteriores, Fedosse e Santana (2002) ressaltam a relação entre gesto e fala. Para as autoras, a relação entre gesto e fala é de interdependência, pelas características simbólicas, cognitivas e interativas que ambos apresentam. Pode-se dizer que os gestos deixam de ter um caráter de " acompanhante" da fala. Eles, assim como os aspectos prosódicos, fazem parte dos enunciados. Como a afasia afeta as modalidades da linguagem de forma diferente e seletiva (mais a fala que a escrita, mais a audição que a fala, mais a leitura que a fala, etc.), as dificuldades práxicas também não estão diretamente relacionadas às dificuldades fásicas. Se o gesto está mais estruturado, é dele que os sujeitos vão se servir quando têm dificuldades em uma das modalidades de linguagem; ou seja, diante de dificuldades com a linguagem oral o sujeito pode utilizar gestos fonéticos, ou mesmo de escrita, para " alcançar" a oralidade, como é o caso do prompting fonético e do prompting escrito. O gesto aparece aqui como mecanismo " alternativo" , como mediação para a fala, mostrando a sua inter-relação com a linguagem e seu estatuto simbólico. É por essa interdependência das funções simbólicas que o gesto parece servir como intermediário para a aquisição tanto da linguagem oral quanto da língua de sinais.

Entender essas considerações na área de neuropsicologia torna-se importante para a nossa discussão, visto que revela o caráter cognitivo e simbólico, construído socialmente, da relação entre gesto e língua. Na área de aquisição de linguagem, os estudos evidenciam essa relação em termos interativos e interpretativos.

Mori (1994), no seu trabalho sobre o desenvolvimento gestual em crianças ouvintes, afirma que, a partir do momento em que o interlocutor reconhece seus movimentos como gestos culturalmente determinados, estes são interpretados pelo outro e ganham significado e reconhecimento social. Do ponto de vista da autora, o gesto passa a ser mais um elemento do enunciado à medida que esclarece, para o adulto, o significado que será atribuído à vocalização. Assim, no início da aquisição da linguagem, no período de aproximadamente dez meses, o gesto acaba por compor o enunciado, esclarecendo seu significado. Isso se dá quando a criança ainda não demonstra ter escolhido a oralidade como sua modalidade comunicativa privilegiada. Os gestos constituem-se como um dos primeiros processos simbólicos da criança. Para a autora, " parece então que é lícito afirmar que um caminho eficaz e interessante para a constituição da linguagem por uma criança é, de fato, revelar-lhe todas as facetas desta linguagem e de considerarmos que a gestual é uma delas, a relação de interdeterminação que tentamos apontar torna-se mais evidente e - por que não - mais atraente" (Mori, 1994, p. 68).

A linguagem oral, nos termos de Fedosse (2000b), é prenhe de gestos, por isso não é de admirar que durante sua aquisição o gesto tenha um papel importante. Assim, durante a aquisição da linguagem oral ou de sinais, a relação entre língua e gesto é de interdeterminação, um continuum simbólico, poderíamos assim dizer, entre gesto e língua. Nesse sentido é que podemos entender a noção de continuidade sensório-motora da linguagem (Albano, 1990): como um continuum que se inicia do visuomanual para o audioverbal, no caso da fala, ou permanece no visuomanual, mudando seu estatuto para língua. A realização do gesto permeia o aspecto simbólico e é por ele permeada, não se tratando, simplesmente, da realização de um ato motor. O gesto serve como mediador entre outras funções simbólicas, o que sugere que não há processos simbólicos dicotômicos ou independentes entre si.

É por essa razão que alguns autores creditam ao gesto a mesma unidade cognitiva que à linguagem (oral e/ou de sinais) ou, melhor dizendo, uma mesma " origem" psicogenética. McNeill (1992) afirma que os gestos e a fala são sistemas unitários, produzidos no interior de uma mesma matriz de significação. Os gestos e a fala desenvolvem-se conjuntamente nas crianças. No início eles são concretos, depois icônicos, e só depois se tornam metafóricos e abstratos. Em geral, seguem o mesmo progresso do desenvolvimento da fala. Não obstante, existem diferenças. Para o autor, a fala é linear e segmentada. As partes, que são as palavras, são combinadas e criam um todo, a sentença. A direção é das partes para o todo. Já o gesto é global e sintético. O gesto é um símbolo, mas um símbolo diferente da fala, vai do todo para as partes. Os gestos não precisam se combinar. Dois gestos juntos não se combinam para formar um maior, mas um gesto complexo. Não existe nenhuma estrutura hierárquica de gestos feitos de outros gestos. Essa " não-combinação" contrastaria com a estrutura da língua. Nos gestos, cada símbolo é, por si só, uma expressão completa de significados.

Na área da surdez essa discussão sobre gestos é mais complexa devido ao fato de que, para participar, interagir, comunicar, as crianças surdas filhas de pais ouvintes acabam por criar um sistema de comunicação particular, denominado por alguns autores de simbolismo esotérico, e por outros, de sinais domésticos (home signs).

O simbolismo esotérico é o nome dado por Tervoort (1981) ao modo de comunicação gestual particular entre o filho surdo e os pais ouvintes. A formalização dessa significação particular é chamada pelo autor de linguagem esotérica (esoteric language), devido ao modo como é construída: através da produção de gestos e mímicas que nada mais são do que representações subjetivas de objetos e situações. Entretanto, essa representação não é totalmente desvinculada do objeto. Para que o outro reconheça o sentido pretendido é preciso que, pelo menos parcialmente, seja uma descrição da situação ou do objeto.

Quando uma criança imita, ela escolhe a parte do corpo, os movimentos, os ritmos que fará. Ela põe sua personalidade na imitação. Se tiver visto uma cobra rastejando rapidamente, fará gestos mais rápidos. Um gesto natural é sempre afetado pela personalidade de um indivíduo ou de um grupo. Dessa forma, não existe uma relação unívoca entre o objeto e o sinal, porque as escolhas são subjetivas. Há vários predicados no objeto, mas a escolha é livre. Escolhe-se aquilo que chama mais a atenção, e o que chama mais a atenção para uns pode ser menos signicativo para outros.

O gesto manual, na interação de uma criança sem língua, tende a ser preferencialmente icônico. No entanto, mesmo essa iconicidade não corresponde diretamente à realidade, e sim, a uma representação particular desta. Eco (1976) ressalta que o signo icônico é semelhante à coisa denotada apenas em alguns aspectos. Assim, " o signo icônico constrói um modelo de relações homólogo aos modelos de relações perceptivas que construímos ao conhecer e recordar o objeto. Se com alguma coisa tem o signo icônico propriedades em comum, não será com o objeto, mas com o modelo perceptivo do objeto" (Eco, 1976, p. 111-112).

Poderíamos dizer que os gestos e as mímicas são apenas parcialmente icônicos, já que se trata de uma representação da realidade. Essa representação acaba tornando-se convenção dentro de um grupo familiar. Daí a possibilidade de que o sentido vá sendo construído e convencionalizado nas interações entre os interlocutores, sejam eles surdos ou ouvintes. Tal fato ocorre durante a aquisição da linguagem, nos atrasos de linguagem, nas afasias e mesmo entre interlocutores que se conhecem há muito tempo. Há certas convenções que vão sendo criadas para que a significação possa ocorrer.

O simbolismo esotérico consiste, assim, de recursos simbólicos convencionais compartilhados entre pais ouvintes e criança surda, não compreensíveis para nenhum outro interlocutor, nem da comunidade surda, nem da comunidade ouvinte, porque é próprio de determinadas interações.

Outros autores têm chamado esse conjunto de gestos de sinais domésticos (Goldin-Meadow, 1979; Mayberry, 1992; Morford, 1996). Segundo Morford (1996), esses gestos são estruturados independentemente da fala e exibem muitas similaridades com a língua de sinais, porém sua estrutura envolve generalizações simples. Os gestos podem ser definidos como: dêiticos (marcam referência no ambiente) e icônicos ou descritivos (as pantomimas). O uso dos gestos não está diretamente relacionado à aquisição da língua de sinais, mas o grau do domínio da língua de sinais depende da estrutura desses gestos. Isso evidencia que o uso de gestos influencia a aquisição da linguagem: a representação icônica é importante para o processo lingüístico. Morford (1996) ainda defende que esses gestos refletem o desenvolvimento da capacidade lingüística inata da criança na ausência da linguagem; ou seja, as crianças criam seu próprio sistema comunicativo quando não recebem input lingüístico.

Morford (1996) afirma ainda que os sinais domésticos podem ser usados para a realização de pequenas narrativas sem sujeito as quais são constituídas por uma seqüência de ações que melhor descrevem o evento. Observa-se a ocorrência de uma atividade metalingüística através dos gestos decorrente do fato de que, ocasionalmente, o sujeito pode corrigir os gestos de outros, o que implica uma consciência do que não é aceito na comunicação através dos gestos.

Quando se afirma que os gestos manuais das crianças são mais complexos que os da mãe ouvinte, deve-se levar em conta que a mãe privilegia outra forma de significação. Para ela, a fala preencheria os vazios deixados pelo desconhecimento de um referente gestual para as palavras da linguagem oral. Por isso os gestos são inventados a partir da percepção de cada interlocutor.

Alguns sinais domésticos são altamente estruturados. Consistem de um léxico com morfologia organizada e algumas regras sintáticas. Mayberry e Eichen (1991) questionam se esses sinais podem funcionar como linguagem. Goldin-Meadow (1979) estudou com detalhes os gestos produzidos pelas crianças surdas a fim de defender a tese de que o ser humano é dotado de criatividade para a linguagem, mesmo sem ambiente lingüístico. Para a autora, o sinal doméstico é a prova disso. Seu sistema lingüístico é semelhante ao da linguagem oral (aspectos semânticos, sintáticos) e ele é produzido em contexto semelhante às primeiras palavras dos ouvintes; ou seja, as mesmas propriedades encontradas nas línguas naturais são encontradas nos sinais domésticos e são percebidas na ausência do input lingüístico convencional. Para Goldin-Meadow (1979), o interessante é que as mães ouvintes produzem apenas gestos simples, enquanto os filhos surdos produzem gestos bem mais complexos. Na surdez, a criança é " forçada" a criar símbolos.

Kegl, Senghas e Coppola (1999) apóiam essa tese baseando-se em outra evidência. Para os autores, os sinais domésticos podem ser considerados mímicas, mas não contêm nenhum sistema gramatical. Essas mímicas são realizadas com o corpo todo e a comunicação depende fortemente do contexto, sendo quase como sinais individuais. As expressões faciais evidenciam afeto, mas não correspondem a um sistema gramatical, diferente da língua de sinais; contudo, se uma criança que produz esses sinais domésticos entrar em contato com outra criança que também produza sinais domésticos, estes podem vir a tornar-se mais estruturados, mas somente entre aquelas crianças que possuem idade inferior a sete anos. Os autores acrescentam que esses sinais domésticos não podem ser considerados como um pidgin para a origem da criolização.

Os autores acima correlacionam o uso dos gestos com a ausência do input lingüístico e tomam estes gestos como evidência da capacidade humana para a linguagem; mas essa capacidade para a simbolização só pode ser efetivada nas interações sociais, na relação com o outro (De Lemos, 1982). São as interações que propiciam a emergência dos gestos, e não apenas uma capacidade biológica dada, a maturação de um órgão da linguagem. A partir do momento em que a mãe atribui sentido e significado ao gesto do filho, vocal e manual, este ganha um estatuto diferenciado: ele significa não só para a criança que o faz, mas também para o interlocutor, que o interpreta. Isso ocorre tanto nos gestos da mãe quanto nos da criança. São os interlocutores, nas interações dialógicas, que chegam a um " acordo" quanto ao sentido do gesto e, a partir daí essa significação é " convencionalizada" . É porque os gestos são interpretados pelo outro e, assim, internalizados, que há a possibilidade de " criação" de outros gestos. Essa atividade de " mão dupla" é própria da natureza dialógica e interativa da linguagem e é o que possibilita a criação de um sistema gestual. Não é um input lingüístico que proporciona a linguagem, mas sim, a relação de interdependência entre contexto social e linguagem, entre um signo e o seu sentido compartilhado por duas ou mais pessoas. O lugar da linguagem deixa de ser o reservado à natureza, ao biológico, e passa a ocupar um lugar histórico-cultural.

Ressalte-se, aqui, que no processo de aquisição de linguagem na surdez encontramos uma condição de grande diversidade. Essa diversidade se dá pela heterogeneidade lingüística, pelo uso da leitura labial, da língua de sinais, da fala, da " audição" alcançada por meio das próteses auditivas e dos implantes cocleares. Essas condições dependem ainda de outras variáveis: usos da língua, interlocutores com diferentes graus de proficiência, possibilidades de adquirir uma segunda língua, métodos formais ou não formais na aprendizagem da segunda língua, tipo de relação de cada sujeito com essa(s) língua(s) (conforme Santana, 2003). O uso dos gestos manuais faz parte dessa diversidade. Ressalte-se que esses gestos nem sempre são considerados importantes pelos pais ouvintes, que pretendem, muitas vezes, obrigar o filho surdo a adquirir a fala a qualquer custo, sem considerar que o gesto também é linguagem. É por isso que o estudo desses gestos é importante para o entendimento do processo de aquisição. Afinal de contas, até que ponto os gestos " ajudam" a criança na aquisição da linguagem?

De uma perspectiva interacionista, temos estudos como o de Pereira (1989), que faz uma análise sobre o desenvolvimento gestual em crianças deficientes auditivas na interação com as mães ouvintes e entre as crianças deficientes auditivas. Em sua pesquisa a autora conclui que há um desenvolvimento da modalidade gestual nas crianças deficientes auditivas, mas há variações no grau e no tipo de desenvolvimento, dependendo da imagem que o parceiro vai construindo do outro enquanto interlocutor, que inclui tanto as potencialidades comunicativas do parceiro quanto o ajustamento à atualização dessas potencialidades. Há uma mudança no estatuto simbólico do gesto. Os gestos aparecem primeiramente usados com a função de regular a participação do parceiro na atividade conjugada (gestos de apontar, dar, mostrar), distanciando-se de uma função de referencialidade mais complexa. Esses mesmos gestos fazem parte do desenvolvimento comunicativo da criança ouvinte. Em seguida, surgem os gestos referenciais de natureza icônica, que servem para fazer referência a objetos, a fatos passados, para a instauração do jogo simbólico, e até mesmo para a construção dos primórdios de relato ficcional.

Para a autora, o gesto é empregado pelos falantes como um complemento da fala, e coopera na elaboração do enunciado completo. O fato de o gesto ser mais ou menos independente da fala permite que, em determinados contextos, ele ocupe o papel de figura, ficando a fala como fundo, e, em outros, a fala ocupa o papel de figura, ficando o gesto como fundo. Nas crianças ouvintes, à medida que a linguagem oral se desenvolve, a fala passa para o primeiro plano e o gesto fica como pano de fundo. Nas crianças surdas, a modalidade oral é observada apenas na forma de vocalizações, seja com as mães, seja com outras crianças. Nesse caso, em que a vocalização acompanha os gestos, a autora acredita ser possível falar de uma só matriz comunicativa: as vocalizações constituiriam um pano de fundo associado ao primeiro plano, representado pelos gestos.

Diante disto, Pereira conclui que todas as crianças observadas em sua pesquisa, em interações com suas mães ouvintes apresentam as duas modalidades para se comunicar, sendo a modalidade oral apenas na forma de vocalizações. Nas palavras da autora, " ainda que todas as mães tenham demonstrado possibilidades de comunicação com os filhos, através, principalmente, da interpretação de seus comportamentos, cada uma tendia a privilegiar a modalidade interativa correspondente à sua particular representação do déficit" (Pereira, 1989, p. 229-230).

Para Behares (1995), que discute essa questão a partir de uma perspectiva interacionistam seguindo um viés da psicanálise, há pontos discutíveis nas conclusões de Pereira (1989). Primeiro, sua interpretação está baseada numa visão empírica do outro - no caso, a mãe ouvinte; desse modo, os gestos da criança só teriam como pólo referencial os movimentos anímicos da mãe, responsável por sua interpretação a partir de sua experiência. Segundo: o gesto é definido sempre em relação à comunicação; assim, para ele, as relações do gesto com a língua se apresentam, no trabalho de Pereira, como muito difíceis de serem estabelecidas nas contingências da comunicação. Terceiro: o estatuto de instrumento da comunicação atribuído aos gestos faz com que a autora negligencie a compreensão das relações deles com a língua.

Os três pontos ressaltados pelo autor referem-se, principalmente, à falta de discussão da relação entre o gesto e o outro. O que Behares (1995) põe em discussão é que o outro que interessa à criança não é o outro social, nem o interlocutor privilegiado na relação com ela, mas sim, o Outro (língua). Há, assim, uma recusa em conceber a criança como um sujeito psicológico, em reduzir a linguagem a uma função representativa (comunicativa) e em entender o processo de aquisição da linguagem como uma ampliação quantitativa do conhecimento sobre a linguagem.

Para Behares (1995), nenhum estudo trata das relações do simbolismo esotérico com as línguas oral ou de sinais. Isso porque a maioria dos trabalhos relaciona os gestos com a comunicação, embora reconheçam a essência do fenômeno no fato de não existir input de língua acessível à criança. O autor destaca a necessidade de discutir essa questão levando em conta a língua em funcionamento e pensar suas características como efeitos desse funcionamento. Para ele, não é possível caracterizá-lo dentro de uma teoria da comunicação, já que a fala das crianças é sempre um efeito discursivo.

O simbolismo esotérico é o efeito da interpretação da mãe a partir de sua língua oral, mas não é, nem tem por resultado, a língua na modalidade oral. Behares (1997) chama de mal-entendidos os diálogos em que cada participante fica alheio aos processos metafóricos e metonímicos nos quais cada um submete os significantes do outro, reorganizando-se os enunciados sobre si mesmos1 1 Esses conceitos são discutidos na abordagem teórica proposta por De Lemos (1992) que leva em conta os trabalhos da psicanálise lacaniana e do estruturalismo lingüístico para compreender a estrutura da linguagem e o seu funcionamento. Assim, conceitos como o de eixo metafórico (seleção) e eixo metonímico (combinação), já considerados por Jakobson e Lacan, são levados em conta para a discussão do processo de aquisição de linguagem. . Esse tipo de diálogo, para o autor, não consegue devolver aos participantes, no plano do imaginário, a ilusão de que estão falando sobre a mesma coisa. Para o autor, o aparecimento do mal-entendido coincide com a aparição do simbolismo esotérico como forma alternativa e precária de funcionamento da língua oral. Esse simbolismo esotérico emergiria naqueles contextos em que o funcionamento da língua oral apresenta impasses, como forma de apaziguar certos efeitos graves que o seu aspecto mais radical pode ocasionar na estrutura do psiquismo das crianças surdas. Poder-se-ia dizer que os diálogos em que prevalece o mal-entendido, nos casos de mãe ouvinte e filho surdo, não permitiriam dar lugar a processos de aquisição da linguagem, já que nesses casos o surdo não pareceria ficar habilitado a passar facilmente de uma posição de interpretado a uma posição de intérprete de si mesmo e do outro.

Essa posição de interpretado e de intérprete de si e do outro só é possível pela aquisição de uma língua. Os gestos não poderiam, assim, ocupar esse lugar. Para discutir melhor essas questões vejamos os dados abaixo.

MÉTODO

Para este estudo, parto de uma metodologia de análise de dados qualitativa que vai ao encontro da perspectiva teórica na qual me coloco, uma perspectiva discursiva. Isso implica a análise das interações, das posturas e dos gestos interpretativos dos sujeitos e a relação da língua com seu exterior discursivo. Para tanto, realizarei uma análise transversal do caso de duas crianças que realizaram a cirurgia do implante coclear e discutirei um trecho de entrevista realizada com instrutores surdos de língua de sinais. A coleta de dados foi realizada no Centro de Pesquisas Audiológicas (USP/Bauru) e no CEPRE (Unicamp), onde a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética. Os dados foram filmados e posteriormente transcritos para a realização da análise. As transcrições realizadas seguem as normas propostas pelo Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta de São Paulo – núcleo Unicamp (Projeto NURC). Os nomes dos sujeitos foram alterados para preservar sua identidade.

RESULTADOS

Episódio 1

Entrevista realizada com instrutora de sinais surda. Até os treze anos ela freqüentou uma instituição que na época seguia uma abordagem oralista, e aprendeu a língua de sinais na Associação dos Surdos de Campinas.

Investigadora: Como a sua família conversava com você?

Instrutora de língua de sinais: É difícil comunicar. Mãe fala. Eu não entendo. Difícil. Vem cá //gesto de chamar alguém// e mostra. Entende. Mãe faz //dirige-se à lousa e escreve " gesto" e " mímica" //.

Investigadora: Mas tem coisas que você não pode mostrar...

Instrutora de língua de sinais: Surdo nervoso. Como explicar... Fala pouco. Mãe mostra, surdo " não’’, " outro" . Difícil. Mãe brava //expressão facial de raiva//.

Episódio 2

Para ilustrar essa discussão vejamos abaixo dois episódios de Vinícius. Ele passou a " ouvir" com quatro anos e dez meses, quando realizou o implante coclear. Antes do implante ele usava prótese auditiva. Vinícius faz terapia fonoaudiológica desde os três meses de idade. Ressalte-se que os pais sempre ofereceram interações significativas de linguagem. Melhor dizendo, desde antes do implante coclear os pais sempre consideraram Vinícius um " interlocutor" , mesmo quando as significações eram mais gestuais que orais. No episódio abaixo ele estava com quatro anos e sete meses:

Vinícius e sua mãe olham um livro de histórias:

Mãe de Vinícius: Quem é esse? //aponta para uma figura de cachorro no livro//.

Vinícius: Fafa ta tãtã //aponta para trás e para a figura enquanto vocaliza//.

Mãe de Vinícius: O cachorro?

Vinícius: Papa totua tã // direciona o olhar para a mãe e aponta para a figura e para trás enquanto vocaliza//.

Mãe de Vinícius: Você //aponta para Vinícius// viu //aponta para o olho// o cachorro //aponta em direção à rua//lá na rua?// aponta para trás//.

Vinícius: //olha para a mãe, observa seus gestos e faz uma expressão facial indiferente, como se não entendesse o que a mãe falou (e gesticulou), e passa a página do livro//.

Episódio 3

No episódio abaixo Vinícius está com cinco anos e quatro mkeses (sete meses após a ativação dos eletrodos do implante coclear). A mãe mostra uma cama coberta com uma colcha no livro:

Mãe de Vinícius: Olha aqui // aponta para a cama //.

Vinícius: // aponta para a mãe enquanto fala // da bãbãe.

Mãe de Vinícius: A cama da mamãe? Que cor é a cama da mamãe? // aponta para o desenho//.

Vinícius: // aponta para a colcha e faz gesto de dormir //. (...)

Mãe de Vinícius: Rosa. (...) Que animal é esse?

Vinícius: A opa.

Mãe de Vinícius: Que animal é esse? É a cobra?

Vinícius: É a ópa. A mamã // aponta para a mãe // fa // aponta para si e faz gesto de zig zag com a mão enquanto vocaliza // tititita // aponta para a cobra // eta.

Mãe de Vinícius: Uma cobra assim? // mãe repete o gesto que ele fez // Você quer uma cobra?

Vinícius: // faz gesto de sim com a cabeça //.

Episódio 4

Fernando, surdo de grau profundo, está com quatro anos e dez meses. Ele realizou a cirurgia do implante com três anos e oito meses; contudo, Fernando ouve, mas não compreende o que ouve. Repete um enunciado (com aproximações fonológicas), mas sem compreensão da linguagem oral ou mesmo produção espontânea. Quando Fernando quer se comunicar, utiliza gestos. No episódio abaixo ele e o pai vêem um livro de história. A criança está sentada ao lado esquerdo do pai.

Fernando: //aponta para a figura e balança as mãos rapidamente, num gesto de voar //tatatatatatatatatatatatatata.

Pai de Fernando: O que que é isso?

Fernando: //continua a balançar as mãos enquanto produz sons// titititititi.

Pai de Fernando: O pássaro?

Fernando: //aponta para a figura de novo e continua a balançar as mãos enquanto fala //tatatatatatatata.

Pai de Fernando: O pássaro? //Apontando para a figura//.

Fernando: A pa.

Pai de Fernando: Ó, o auau aqui, ó //aponta para outra figura//.

Fernando: Ouou.

Pai de Fernando: Auau.

Fernando: Ouou ta//aponta para a frente e faz gesto com a mão, perpendicular ao seu corpo na direção da direita e em frente ao seu rosto. Faz esse movimento três vezes rapidamente, enquanto fala// Pa pa pa.

Pai de Fernando: O quê?

Fernando: //Aponta, com a mão esquerda, para cima e para frente//a::

Pai de Fernando: Ah //afirmando//.

Fernando: Ah! //afirmando na mesma entonação do pai//.

Pai de Fernando: Você fala fácil // com tom de ironia//.

DISCUSSÃO

No episódio 1 vemos, pelos comentários da instrutora de língua de sinais surda, que durante sua infância, na ausência de uma língua, sua mãe procura interpretar os gestos e as mímicas através do conhecimento compartilhado entre ela e a criança, mas nem sempre o que é realizado " iconicamente" coincide com o que a mãe consegue interpretar. Embora saibamos que há alguns signos que coincidem, como o gesto de tesoura e o léxico da língua de sinais que significa tesoura, esses signos só adquirem valor dentro de um mesmo sistema, ou seja, essa relação não é direta, embora tenham propriedades semelhantes (simbólicas, interativas, interpretativas). Isso porque nos gestos as escolhas subjetivas que a criança faz para a sua produção são resultantes de sua percepção do mundo. Essas escolhas, ao mesmo tempo em que demonstram um trabalho simbólico e interpretativo da criança sobre o mundo, demonstram as limitações dos gestos domésticos em termos lingüísticos. O gesto, por sua natureza semiótica (e não semântica), não pode ser interpretante e interpretado, como a língua.

No episódio 2, observa-se que tanto a mãe quanto a criança servem-se de gestos articulatórios e manuais para interpretar, comunicar, significar e dar inteligibilidade aos fatos vividos. Vinícius tenta contar um fato vivenciado por ele, vocaliza e faz gestos indicativos. É provável que ele tenha visto um cachorro em algum lugar e por isso aponta para o cachorro e para outro lugar (talvez na rua). A mãe, interpretando o gesto e as vocalizações da criança, também se serve de gestos para dar " interpretabilidade" ao enunciado de seu filho, juntamente com uma fala que ele não ouve e à qual não atribui sentido. O gesto da mãe, apesar de ser basicamente indicativo (" apontar" para o filho, para a rua, para o olho), parece não ser entendido pela criança. Isso acontece pela impossibilidade de o gesto ocupar o papel de interpretante, dado apenas pela língua. Assim, diante da falta da " palavra" , cada sujeito acaba por elencar os seus próprios gestos para comunicar o que deseja, ou seja, os gestos acabam sendo idiossincráticos, e por isso nem sempre compreendidos pelo outro. Os sentidos vão sendo construídos pelos interlocutores como que à deriva.

O episódio 3 evidencia o momento de aquisição da linguagem oral, ao mesmo tempo em que demonstra esse processo de continuidade que se dá entre gesto e língua, como se o gesto manual fosse sendo substituído pelo gesto fônico de forma processual. Dito de outra forma, o gesto manual ainda ocupa um lugar de " figura" tanto quanto o gesto fônico, demonstrando, assim, as marcas de subjetividade que se dão nesse processo de mudança do gesto para a língua. Há, nesse caso, uma sobreposição de semioses: o que é enunciado oralmente é também enunciado gestualmente. Quando a língua é adquirida, a iconicidade dos gestos torna-se insuficiente para interpretar e dar interpretabilidade ao mundo; ou seja, de posse de uma língua, o sujeito modifica sua relação com o próprio gesto.

No episódio 4 podemos observar que, mesmo conseguindo imitar a fala do pai, é através dos gestos que Fernando procura fazer sua narrativa, embora o pai não o compreenda. Sua seqüência de gestos (articulatórios e manuais) evidencia uma atividade simbólica, de interpretação e de representação do mundo. Seu discurso é composto de gestos manuais e articulatórios. As cenas enunciativas são montadas através da fala e de gestos idiossincráticos, mas essencialmente icônicos, os quais Fernando espera que seu pai consiga interpretar. Fernando comenta, explica e " narra" através de gestos, mas o pai não o entende. A significação só é completa quando há esse elo entre o sujeito e o outro, uma via de mão dupla.

Evidenciam-se, nos episódios acima, semelhanças e diferenças entre gestos e língua. Na ausência de uma língua os gestos ocupam um lugar privilegiado; contudo, enquanto há semelhanças de ordem cognitiva, simbólica e interpretativa, há diferenças lingüísticas, pois o gesto não possui uma natureza minimamente referenciada em termos sintáticos, semânticos e fonológicos, embora possamos, em muitos momentos verificar o continuum que se estabelece entre gesto e língua.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O gesto faz parte da linguagem, seja ela falada ou sinalizada. Por isso não é de admirar que no início da aquisição da linguagem o gesto tenha um papel importante, de figura, para utilizar os termos de Pereira (1989). No decorrer dessa aquisição o gesto adquire um papel de fundo, mas esse papel pode estar e está relacionado diretamente às interações sociais. Há muitos momentos em que, mesmo após a aquisição de uma língua, o gesto assume o papel de figura (gesto de " adeus" , gestos de telefone significando " eu te ligo" , gesto de " vem cá" ).

O gesto, na ausência de uma língua minimamente referenciada, confere ao surdo o papel de interlocutor no diálogo (Santana, 2003). A criança surda, como a ouvinte, é especular aos gestos articulatórios da mãe, e esta atribui forma, sentido e significado à fala da criança (De Lemos, 1982). O uso de gestos como processo de significação acaba por fazer com que a criança consiga atuar no mundo simbolicamente mesmo quando não adquire por completo uma língua. Mas o fato é que, sem uma língua, não conseguimos demonstrar ao outro grande parte do que percebemos, sabemos, reconhecemos, sentimos. O modo de narrar reduz-se a pequenos " enunciados" compostos de gestos e de expressões faciais que tentam significar essencialmente substantivos e alguns verbos que podem ser simbolizados através de mímicas. Os gestos indicativos ocorrem, essencialmente, em um primeiro momento, na presença do referente, até que esse gesto indicativo possa, em um segundo momento, ser substituído pelo gesto icônico, os sinais domésticos convencionalizados, que evidenciam a relação particular da criança com sua linguagem.

Na aquisição da linguagem do surdo, diferentemente do que ocorre com os ouvintes, o gesto constitui-se como o próprio enunciado durante muito mais tempo e revela uma relação particular do sujeito com sua " linguagem" , nesse caso, manual. Esses gestos podem ser considerados importantes para o processo de aquisição de linguagem, seja esta oral ou de sinais.

Percebe-se assim que, durante a aquisição da linguagem oral ou da de sinais, a relação entre língua e gesto é de interdeterminação, um continuum simbólico, poderíamos dizer, entre gesto e língua, o que toma a noção de continuidade sensório-motora da linguagem (Albano, 1990), entendida aqui como um contínuo que avança do visuomanual para o audioverbal, no caso da fala, ou permanece no visuomanual, mudando seu estatuto para língua. A realização do gesto permeia o aspecto simbólico e é por ele permeada, não se tratando, simplesmente, da realização de um ato motor. Ele serve como mediador entre outras funções simbólicas, o que sugere que não há processos simbólicos dicotômicos.

O estudo dos fenômenos neurolingüísticos já evidenciava essa correlação quando, por exemplo, nos fenômenos afásicos evidenciamos dificuldades de linguagem e de gestos. Em muitos casos o gesto serve de prompting para a oralidade, quando há dificuldade na evocação espontânea da linguagem. Isso demonstra que os gestos fazem parte da linguagem e, como ela, possuem também uma natureza simbólica, cognitiva, interativa e determinada culturalmente.

Recebido em 29/06/2006

Aceito em 20/05/2007

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  • Endereço para correspondência:

    Ana Paula Santana
    Rua: Mal. Lott, 291, Casa 02, Santa Felicidade
    CEP 82410-090, Curitiba-PR
    E-mail:
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    Esses conceitos são discutidos na abordagem teórica proposta por De Lemos (1992) que leva em conta os trabalhos da psicanálise lacaniana e do estruturalismo lingüístico para compreender a estrutura da linguagem e o seu funcionamento. Assim, conceitos como o de eixo metafórico (seleção) e eixo metonímico (combinação), já considerados por Jakobson e Lacan, são levados em conta para a discussão do processo de aquisição de linguagem.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Recebido
      29 Jun 2006
    • Aceito
      20 Maio 2007
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