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Percepção materna do desempenho de crianças com transtorno do desenvolvimento da coordenação

Mother's perception of the performance of children with developmental coordination disorder

Percepción materna de rendimiento de niños con trastorno de desarrollo de la coordinación

Resumos

Crianças com dificuldades na realização de tarefas rotineiras que requerem habilidades motoras podem ter problemas específicos de coordenação motora, atualmente denominados Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC). No Brasil esse diagnóstico ainda é pouco comum, embora seja muito utilizado na literatura internacional. O objetivo deste estudo foi investigar a percepção de mães brasileiras sobre o desempenho nas atividades diárias de crianças com transtorno da coordenação motora. Foram realizadas cinco entrevistas, seguidas por análise de conteúdo. Os relatos evidenciaram que todas as informantes percebem alguma dificuldade de seus filhos na realização de atividades cotidianas e na relação com os colegas, sendo essas dificuldades acentuadas principalmente pela entrada na escola. Os relatos também destacaram o desconhecimento sobre os problemas de coordenação motora e possibilidades de auxílio existentes, apontando para a necessidade de mais informação e maior valorização das percepções maternas

Percepção materna; atividades do cotidiano; transtorno do desenvolvimento da coordenação motora


Children who have difficulty doing daily tasks that require motor skills may have specific motor coordination problems, known nowadays as Developmental Coordination Disorder (DCD). In Brazil, this diagnosis is used very seldom although it is much used in the international literature. The aim of this study was to investigate the perception of Brazilian mothers concerning the daily performance of children with motor coordination disorder. Five interviews were conducted and submitted to content analysis. The narratives showed that all informants perceive difficulties in the performance of daily activities in their children and in the relationship with peers, and these difficulties are more evident with the entrance in school. These findings highlight the unawareness about motor coordination problems and opportunities for getting help, as well as reinforce the need for more information and to value mother's perceptions.

Mother's perception; daily activities; developmental coordination disorder


Niños con dificultades en el desempeño de las tareas rutinarias que requieren habilidades motoras pueden tener problemas específicos de coordinación, actualmente conocidos como trastorno de desarrollo de la coordinación (TDC). En Brasil este diagnóstico es infrecuente, aunque se usa ampliamente en la literatura internacional. El objetivo de este estudio fue investigar la percepción de las madres brasileñas en el desempeño diario de niños con trastorno de la coordinación motora. Cinco entrevistas se llevaron a cabo, seguido de análisis de contenido. Los informes muestran que los encuestados perciben cierta dificultad a sus hijos en la realización de las actividades diarias y las relaciones con los colegas, y estas dificultades acentuadas principalmente por la entrada de la escuela. Los informes también destacó la falta de conocimiento acerca de los problemas de coordinación y las posibilidades de ayuda existentes, apuntando la necesidad de más información y una mayor apreciación de las percepciones maternas.

Percepción materna; actividades cotidianas; trastorno de desarrollo de la coordinación


ARTIGOS

Percepção materna do desempenho de crianças com transtorno do desenvolvimento da coordenação

Mother's perception of the performance of children with developmental coordination disorder

Percepción materna de rendimiento de niños con trastorno de desarrollo de la coordinación

Beatriz Arruda Pereira GalvãoI; Kátia Maria Penido BuenoII; Márcia Bastos RezendeIII; Lívia Castro MagalhãesIV

ITerapeuta ocupacional graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestre em Ciências da Reabilitação pela mesma universidade, coordenadora do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) da Regional Oeste da Prefeitura de Belo Horizonte-MG, Brasil

IIDutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais; professora do Curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Brasil

IIIDoutora em Fisiologia Humana pela Universidade Federal de Minas Gerais; professora do Curso de Terapia Ocupacional da mesma universidade, Brasil

IVDoutora em Educação pela Illinois University at Chicago; professora do Curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Av. Júlio de Castilhos, 1215 - Bairro Exposição – CEP 95. 010-003 - Caxias do Sul-RS, Brasil. E-mail: beatrizgalvao@gmail.com

RESUMO

Crianças com dificuldades na realização de tarefas rotineiras que requerem habilidades motoras podem ter problemas específicos de coordenação motora, atualmente denominados Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC). No Brasil esse diagnóstico ainda é pouco comum, embora seja muito utilizado na literatura internacional. O objetivo deste estudo foi investigar a percepção de mães brasileiras sobre o desempenho nas atividades diárias de crianças com transtorno da coordenação motora. Foram realizadas cinco entrevistas, seguidas por análise de conteúdo. Os relatos evidenciaram que todas as informantes percebem alguma dificuldade de seus filhos na realização de atividades cotidianas e na relação com os colegas, sendo essas dificuldades acentuadas principalmente pela entrada na escola. Os relatos também destacaram o desconhecimento sobre os problemas de coordenação motora e possibilidades de auxílio existentes, apontando para a necessidade de mais informação e maior valorização das percepções maternas

Palavras-chave: Percepção materna; atividades do cotidiano; transtorno do desenvolvimento da coordenação motora.

ABSTRACT

Children who have difficulty doing daily tasks that require motor skills may have specific motor coordination problems, known nowadays as Developmental Coordination Disorder (DCD). In Brazil, this diagnosis is used very seldom although it is much used in the international literature. The aim of this study was to investigate the perception of Brazilian mothers concerning the daily performance of children with motor coordination disorder. Five interviews were conducted and submitted to content analysis. The narratives showed that all informants perceive difficulties in the performance of daily activities in their children and in the relationship with peers, and these difficulties are more evident with the entrance in school. These findings highlight the unawareness about motor coordination problems and opportunities for getting help, as well as reinforce the need for more information and to value mother's perceptions.

Key words: Mother's perception; daily activities; developmental coordination disorder.

RESUMEN

Niños con dificultades en el desempeño de las tareas rutinarias que requieren habilidades motoras pueden tener problemas específicos de coordinación, actualmente conocidos como trastorno de desarrollo de la coordinación (TDC). En Brasil este diagnóstico es infrecuente, aunque se usa ampliamente en la literatura internacional. El objetivo de este estudio fue investigar la percepción de las madres brasileñas en el desempeño diario de niños con trastorno de la coordinación motora. Cinco entrevistas se llevaron a cabo, seguido de análisis de contenido. Los informes muestran que los encuestados perciben cierta dificultad a sus hijos en la realización de las actividades diarias y las relaciones con los colegas, y estas dificultades acentuadas principalmente por la entrada de la escuela. Los informes también destacó la falta de conocimiento acerca de los problemas de coordinación y las posibilidades de ayuda existentes, apuntando la necesidad de más información y una mayor apreciación de las percepciones maternas.

Palabras-clave: Percepción materna; actividades cotidianas; trastorno de desarrollo de la coordinación.

Crianças que têm dificuldades na realização de tarefas rotineiras que requerem habilidades motoras, como escrever, brincar de bola ou andar de bicicleta, podem não ser simplesmente desajeitadas. Elas podem ter problemas específicos de coordenação motora que interferem no desempenho funcional, relacionamento com os colegas e senso de competência, com impacto no cotidiano familiar e escolar (Wang, Tseng, Wilson, & Hu, 2009; Zwicker, Missiuna, Harris, & Boyd, 2012a). Os problemas de coordenação motora na criança, denominados consensualmente de Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação – TDC (American Psychiatric Association, 2000), ocorrem quando, na ausência de outros distúrbios físicos/neurológicos conhecidos, há prejuízo acentuado no desenvolvimento das habilidades motoras (grossas e/ou finas), que resultam em desempenho significativamente abaixo do esperado para a idade cronológica e nível cognitivo da criança nas atividades acadêmicas, de vida diária e no brincar (American Psychiatric Association, 2000).

As evidências indicam que o TDC não é uma condição homogênea, sendo comum a co-ocorrência de outras condições de saúde (Cermark & Larkin 2002; Sugden, Kirby, & Dunford, 2008). Estima-se que mais de 50% das crianças com TDC apresentam diagnóstico múltiplo, como Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), distúrbios de aprendizagem e problemas comportamentais (Sugden et al. , 2008; Asonitou, Koutsouki, Kourtessis, & Charitou,2012). Existem poucos estudos com a população brasileira - dados mais recentes indicam prevalência de 4,3% em crianças de 7 e 8 anos (Cardoso, 2011) e risco de 16,8% na região sul do país (Valentini, Coutinho, Pansera, Santos, & Vieira,2012), enquanto as estimativas internacionais apontam para uma prevalência de 5 a 8% das crianças em idade escolar, com destaque para o sexo masculino (2-3:1) (American Psychiatric Association, 2000).

O diagnóstico do TDC é clínico e geralmente baseado nos escores de testes motores padronizados, sendo que, segundo Sugden et al. (2008), na ausência de um padrão ouro na área, o Moviment Assessment Batery for Children - Movimento ABC (MABC – Henderson, Sugden, & Barnett,2007) tem sido o mais utilizado, tanto na prática clínica quanto em pesquisas. Entretanto, ainda pouco se sabe sobre sua etiologia.

As consequências do TDC podem manifestar-se na realização de atividades de vida diária (AVD's), como vestir-se e realizar a higiene pessoal, nas atividades acadêmicas e participação social (Pless, Persson, Sundelin, & Carlsson, 2001; Summers, Larkin, & Dewey, 2008; Wang et al. , 2009). Devido aos déficits de coordenação motora, é comum que crianças com TDC sejam as últimas a serem escolhidas para participar dos jogos e atividades esportivas, passando a evitar estas situações. Assim, muitas delas apresentam dificuldade em fazer novas amizades, limitando as oportunidades de praticarem suas habilidades e interagir socialmente (Segal, Mandich, Polatajko, & Cook, 2002; Wagner, Bos, Jascenoka, Jekauc, & Petermann, 2012).

A percepção das crianças sobre suas capacidades é influenciada pelo modo como seus pares, pais e professores avaliam seu desempenho e as ajudam a aperfeiçoar ou desenvolver habilidades no gerenciamento das demandas cotidianas (Ahern, 2000). Além disso, a expectativa dos pais pode interferir no processo diagnóstico e terapêutico da criança com TDC, seja dificultando-o, subestimando a criança e/ou não seguindo as orientações, ou facilitando-o, quando se lançam na busca por informações e/ou ajuda especializada. No Brasil, problemas de coordenação motora na infância recebem pouca atenção, sendo subestimados quando comparados a outros transtornos do desenvolvimento (Souza, Ferreira, Catuzzo, & Corrêa, 2006; Valentini et al. , 2012).

Ao considerar as particularidades da prática clínica na área infantil, reconhece-se que a participação da família é decisiva para o êxito dos processos terapêuticos; no entanto, pouco se sabe acerca da perspectiva das famílias sobre os problemas das crianças. Se cada família apresenta as próprias crenças e valores, desconsiderá-los pode conduzir ao fracasso do tratamento e frustração de ambas as partes. Desta forma, o objetivo do presente estudo foi investigar a percepção de mães brasileiras sobre o desempenho cotidiano de crianças com o transtorno da coordenação motora.

MÉTODO

Para investigar as percepções de mães de crianças identificadas com TDC e o impacto dessa condição no cotidiano da família, optou-se pela abordagem qualitativa que, segundo Minayo (2007), se aplica ao “estudo das relações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, sentem e pensam” (p. 57). O presente estudo, de caráter exploratório, integra um projeto maior de exame da validade da Avaliação da Coordenação e Destreza Motora (ACOORDEM – Magalhães, Nascimento, & Rezende, 2004), conduzido por Cardoso (2011), no qual os pais de 793 crianças, entre sete e oito anos, com e sem sinais de problemas de coordenação motora, de escolas públicas e particulares da Região Metropolitana de Belo Horizonte, responderam ao Developmental Coordination Disorder Questionnaire, DCDQ-Brasil (Prado, Magalhães, & Wilson, 2009). Dentre essas crianças, foram recrutadas, para o estudo original, 91 com sinais de TDC e seus pares com desenvolvimento típico, todas avaliadas com o Movement Assessment Battery for Children 2 – MABC-2 (Henderson et al. , 2007). Ao final do processo de avaliação, foram identificadas 34 crianças sem sinais de outras doenças conhecidas, mas que apresentavam desempenho motor e funcional abaixo do esperado para a idade, indicativo de TDC, mas sem diagnóstico confirmado.

O DCDQ-Brasil (Prado et al. , 2009) é um questionário para pais, traduzido e adaptado para o Português, específico para triagem de TDC em crianças de cinco a 15 anos. O MABC-2 (Henderson et al. , 2007) é um teste padronizado de desenvolvimento motor para identificação do TDC, muito usado internacionalmente devido a facilidade de aplicação e interpretação.

A partir das 34 crianças consideradas candidatas para participação no presente estudo, foram estabelecidos os seguintes critérios de inclusão: a) pontuação no DCDQ-Brasil e no MABC-2 abaixo do ponto de corte, b) relato dos pais indicando prejuízo na realização das atividades de vida diária e acadêmicas; e, c) interesse e capacidade dos pais para relatar, de modo consistente, as experiências das crianças e suas percepções sobre o desempenho cotidiano. Os critérios de exclusão foram: a) presença de outra condição de saúde, como paralisia cerebral, transtorno invasivo do desenvolvimento, déficits cognitivo e/ou sensoriais, e b) a criança frequentar algum tipo de terapia motora.

Das 34 crianças, somente foram localizados, via registros nas secretarias das escolas, os contatos atualizados de nove famílias, as quais foram contatadas, por telefone, informadas sobre os objetivos e convidadas a participar do estudo. Para as informantes que concordaram em participar foram agendadas entrevistas em horário e local de sua conveniência, sendo reforçada a garantia de confidencialidade. Nestas ocasiões, as informantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE e, em seguida, a pesquisadora iniciou a entrevista, deixando-as à vontade para falar sobre os cuidados e atenção à criança, sua rotina em casa e na escola. O projeto e respectivo TCLE foram aprovados pelo Comitê de ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP/UFMG - ETIC 80/08).

Participantes

Ao contatar as famílias das crianças identificadas com TDC, pais e mães foram encorajados a participar da entrevista, no entanto, apenas mães (biológicas ou responsáveis pela função materna) se dispuseram a colaborar com o estudo. No total, foram realizadas oito entrevistas no período de dezembro de 2009 a agosto de 2010, mas apenas cinco seguiram para análise. As exclusões ocorreram por diferentes razões. Uma das mães, portadora de transtorno mental, não se mostrou em condições de fornecer informações; duas crianças, embora tenham obtido pontuação nos testes sugestiva de TDC, à entrevista, não pareciam apresentar dificuldades no desempenho funcional ou escolar associado a questões motoras. Essas crianças apresentavam sinais sugestivos de outras condições de saúde que possivelmente interferiram de modo negativo na capacidade para cooperar durante a avaliação, resultando em baixa pontuação. Assim, quatro mães participaram das entrevistas, além de uma avó, tia e bisavó maternas, que são responsáveis pelos cuidados da criança 3. Ressaltamos que esta entrevista foi mantida, pois não houve divergência entre as falas.

De forma a facilitar a identificação das informantes, nas Tabelas 1 e 2 são apresentados o perfil das crianças, que foram o foco das entrevistas, e de suas mães, respectivamente. Os nomes de todas as crianças, bem como de familiares ou colegas aqui mencionados, foram substituídos por nomes fictícios, visando preservar a confidencialidade. Na apresentação dos achados, as informantes serão identificadas por numerais referentes à ordem da entrevista.

Coleta dos dados

A técnica metodológica utilizada para coleta dos dados foi a entrevista semiestruturada, na qual o informante fala livremente sobre o tema proposto, limitado, contudo, por um roteiro de questões (Minayo, 2007).

Neste estudo, o roteiro foi construído com base na literatura visando contemplar tanto as atividades realizadas pela criança em sua rotina em casa, na escola e outros ambientes, como a percepção dos familiares acerca de seu desempenho. Elaborada a primeira versão, o roteiro foi submetido à apreciação de uma pesquisadora externa e, após alguns ajustes, administrado de forma bem sucedida a três mães de crianças em acompanhamento no Laboratório de Integração Sensorial (LAIS) da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG. Considerando que informações relevantes foram obtidas com uso desta versão, sem necessidade de modificações, o roteiro foi considerado adequado para os objetivos do estudo.

As entrevistas foram gravadas em equipamento de áudio (Sony Digital Voice Recorder), com autorização das participantes. O número de entrevistas não foi estabelecido a priori, uma vez que utilizou-se critério de redundância (Fontanella, Ricas, & Turato, 2008). O tempo de entrevista variou de 40 a 90 minutos, perfazendo um total de 05 horas e 38 minutos de gravação. Em seguida, as entrevistas foram transcritas para recuperar a integralidade dos depoimentos. Todas as informantes foram convidadas a ler a transcrição de seus depoimentos, visando garantir a confiabilidade dos dados.

Análise dos Dados

Foi utilizada análise de conteúdo, técnica para descrição objetiva e sistemática do conteúdo manifesto das comunicações, que visa produzir inferências a partir dos vestígios e indícios postos em evidência no discurso (Bardin, 1979).

A coleta de dados deste estudo foi iniciada sem um referencial teórico definido a priori. Essa postura foi adotada principalmente com o objetivo de evitar enrijecimento da análise na tentativa de se encaixar os resultados em uma teoria previamente definida. Após o início da fase de análise das entrevistas, procuraram-se referenciais teóricos que pudessem dar suporte ao trabalho. O referencial de Goffman (1988) foi escolhido devido ao fato das informantes apresentarem relatos marcados pela ênfase na normalidade de suas crianças e no receio delas experimentarem situações de estigmatização. No entanto, à medida que a análise avançou, optou-se por manter a riqueza das descrições sem atrelá-las a uma perspectiva teórica em profundidade, como foi feito em todos os trabalhos realizados nessa área, citados na revisão da literatura.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da análise das entrevistas, procurou-se apreender as percepções das mães sobre o desempenho nas atividades diárias de suas crianças com TDC. Da análise dos dados emergiram os temas mais relevantes que nortearam a construção das seguintes categorias: o fazer e o não fazer, relação com os colegas, e dilemas de quem cuida.

O fazer e o não fazer

As percepções expressas pelas mães envolvem formas particulares de olhar e sentir suas crianças. De modo geral, todas elas percebem alguma dificuldade das crianças, principalmente nas seguintes atividades e domínios da vida cotidiana:

- atividades de vida diária: “ Ela entra pro banho, eu deixo. Ali, ela conversa o tempo todo, ela canta, ela grita, ela pula, costuma escorregá e caí” (M2); “ Ele escova, mas com muita dificuldade” (T3);

- atividades escolares: “ O colorido dela é terrível! Os desenhinho dela tamém... Muito forte e assim de qualqué jeito” (M2) ; “é, ele num consegue encaxá a mão na tesourinha; éee, e quando encaxa, ás vezes, corta a palavra que tá precisando colá. Sai só a metade da palavra” (M5).

- brincar:

Mas ele ainda anda de bicicleta, meio torto ainda. O guidon fica tremendo, ele num consegue freiá; ele té esquece do freio, vamo supor se tá com aquele obstáculo na frente ele, ele num consegue freiá. Ele vai assim (demonstra e todos riem). Ele é assim, desajeitadinho mesmo. (M4).

Custô pra aprendê a pulá corda, mas custô! Ela vai jogá peteca a peteca vai pra trás, se ocê manda a peteca, dá pra ela rebatê ela não rebate, ela dexa ela caí pra depois ela pegá pra batê, e assim mesmo custuma não acertá... Jugá bola é otro caos! (M2).

O constatar das dificuldades, principalmente nas AVD's, mostrou-se associado à atitude das mães de fazer para sua criança, poupando-a do não conseguir, do fracasso. Em algumas situações observou-se que as crianças sequer têm a oportunidade de experimentar a realização de determinadas atividades, como relatam, por exemplo, a tia e avó da criança 3: “ Não, porque sempre alguém corta; Não porque sempre dá a ele descascado. ” Falas que podem ser entendidas como uma consequência da percepção da dificuldade já incorporada como estratégia compensatória. Summers et al. (2008) afirmam que o nível de assistência e tempo fornecidos a crianças com TDC em tarefas rotineiras geralmente é maior do que o fornecido as crianças com desenvolvimento típico da mesma idade.

O prejuízo na execução das tarefas escolares pareceu despertar mais a atenção das informantes do que as outras atividades. Provavelmente devido ao fato de tal percepção ter sido influenciada pelo ingresso das crianças na escola: “ Não, porque igual eu tô te falano, eu fui percebê foi nessa escola que ele teve agora. Que a Maria foi e falô comigo, mas eu nunca, num sabia, num percebia que, eu achava que era normal” (M4).

A escola parece funcionar como um marco, porque é nesta instituição que as crianças são confrontadas com padrões mais rígidos de desempenho, além de serem inevitavelmente comparadas com os colegas. As demandas de sala de aula e educação física, por exemplo, que geralmente requerem uma ampla variedade de habilidades motoras, e o convívio com os colegas muitas vezes geram situações de conflito e ansiedade, que as mães definitivamente não querem ver seus filhos experimentar, tanto pelo temor com o futuro – como eles se desenvolverão nesse novo ambiente e o que elas poderão fazer para ajudá-los – como pelo receio de que eles sejam estigmatizados, rejeitados e sofram por isso: “ E teve uma época que ele ficô tão triste por causa disso, porque os menino acho que tava chamando ele de molezão na escola que ele num conseguia copiá e ele, ele fico muito triste” (M4).

Goffman (1988) afirma que aqueles que não se ajustam às expectativas sociais, recebem um status diferenciado e podem se tornar pessoas estigmatizadas, criando uma situação conflituosa no que se refere à formação da sua identidade social e pessoal. Segundo este autor, estigma diz respeito a um atributo depreciativo, uma categorização social que desqualifica as pessoas ou grupos, desabilitando-os para o convívio social pleno. Tal atributo pode referir-se tanto a aspectos físicos e comportamentais/morais, como de nação e raça. Em outras palavras, a pessoa estigmatizada é considerada como tendo uma característica diferente da aceita pela sociedade e, por isso, é tratada de maneira diferente (Goffman, 1988).

Se, por um lado, as falas maternas revelaram apreensão quanto à possibilidade de estigmatização, por outro, observou-se grande valor atribuído à escolarização das crianças. Neste sentido, foi constatada mobilização das informantes a fim de manterem as crianças no que elas consideram boas instituições e, consequentemente, no empenho em acompanharem a vida escolar infantil. Alguns relatos se destacaram, ora por tratarem de experiências bem sucedidas – “ Na escola, as profe, a diretora, ela tem ajudado muito ele, sabe? Ele já melhorô muito, porque essas dificuldades que ele tem ela já passô pra gente” (T3)–, ora por evidenciarem o desconhecimento e despreparo por parte do corpo docente ao lidar com as dificuldades dessas crianças:

A professora, a diretora e a coordenadora, elas tavam falando assim, levando prum lado tão assim que Anderson virô pra uma delas lá e perguntô, é... “Cê acha que ele tem assim, ele é, tem alguma síndrome, pelo que cê tá falando aí que ele num consegue, que que é? Ele tem problema mais sério?” Levando pra esse lado, umas coisas malucas assim de gente que num tá muito preparada, só qué os mininos prontos né? Querem as crianças prontas é, ali faz e acontece, reerguê o minino, não! (M5).

Considerando a escola como um ambiente promissor para a identificação de crianças com TDC, alguns dos relatos se assemelham às questões reportadas por Missiuna, Moll, Law, King e King (2006a) no que tange à falta de compreensão dos educadores face às dificuldades apresentadas por estas crianças, resultando, como nos casos de M4 e M5, em mudanças frequentes de escolas. Como o TDC é um diagnóstico ainda pouco conhecido no sistema escolar (Missiuna, Moll, King, Law, & King, 2006b; Sugden et al. , 2008), alguns obstáculos dificultam o processo de busca por ajuda para esta população. Magalhães, Rezende, Amparo, Ferreira e Renger (2009) verificaram que, na rede pública de ensino no Brasil, as alternativas de auxílio existentes são poucas, pois na maioria dos casos as escolas não contam com suporte de equipes de saúde; e, apesar de, no ensino particular mais professoras afirmarem recorrer ao encaminhamento para profissionais especializados, tal número é pequeno, indicando o desconhecimento ou pouca confiança em recursos fora da escola.

Uma vez que todas as mães percebiam alguma dificuldade de suas crianças na realização de atividades cotidianas, seja em casa e/ou na escola, foi indagado o que pensavam sobre isso, surgindo diferentes explicações: – “ Ah, se bem que a, aqui em casa todo mundo é lento, né? Eu acho que a lentidão dele, acho que vem da mãe dele... Que é hereditário mesmo. ” (M3) ; – “Acho que é dele mesmo né? é da saúde. Um poco meu e um poco do que eu sou, das minhas dificuldades que eu tenho também. ” (M5).

é interessante observar que parte das entrevistadas atribuiu as dificuldades a si próprias ou a questões familiares, com algumas aventando, inclusive, uma possível hereditariedade do transtorno, noção que parece circular no senso comum. Algumas mães também indicaram que os cuidados maternos, especialmente a superproteção, poderiam ter resultado nas dificuldades percebidas. O relato de M1 é bastante explicito nesse sentido: “E u acho que eu fazia tanto medo neles assim de, não pode porque cai cai, e eles já tinham idade pra descer e ficavam assim: 'mãe, me desce'”. Destaca-se, ainda, a observação de que as mães que, naquele momento, não conseguiram justificar suas percepções tiveram certa preocupação em, rapidamente, normalizar suas crianças, como numa tentativa de protegê-las: “ Eu acho que ele não chega a se anormal, entendeu?” (M4) ; “Tá no meio termo né, do normal e não normal, tá no meio. ” (M2). Isso pode ter se dado em função da necessidade de evitar que tais crianças fossem consideradas como diferentes das demais, portadoras de uma condição que, aparentemente, não tem explicação. O que, de certa maneira, reflete a cobrança social de desempenho padrão a ser seguido por todos (Goffman, 1988), e o temor destas mães em ver suas crianças estigmatizadas.

Se a sociedade estabelece os critérios que definem o que é ou não considerado normal, aceito e desejável em termos de bem estar e convivência social, é esperado que mães e demais familiares busquem camuflar comportamentos desviantes de suas crianças, protegendo-as assim da condição de diferentes das demais. Desta forma, ao distanciar suas crianças da anormalidade, as mães afugentam o que, coletivamente, definiu-se como problemático e as consequências advindas desta condição. Nesse sentido, considerando a prática terapêutica na área infantil, onde administrar testes diagnósticos e cogitar hipóteses fazem parte da rotina, os terapeutas devem estar atentos sobre como tratar deste assunto junto às famílias. Missiuna et al. (2006b) afirmam que a ideia de rotular as crianças é controversa, sendo importante refletir sobre algumas questões: como despertar a atenção dos familiares para as dificuldades das crianças sem estigmatizá-las? Como assegurar que crianças com TDC recebam o apoio e a assistência necessários na escola a fim de melhorar seu desempenho sem rotulá-las como diferentes? Tais questões constituem importante dilema ético-profissional que merece atenção em estudos futuros.

Relação com os colegas

As experiências das crianças identificadas com TDC com seus colegas foi um tema recorrente na fala de todas as mães. Em consonância aos achados de Segal et al. (2002) e Missiuna et al. (2006a), a aproximação e interação com os colegas, dentro e fora da escola, parece também constituir motivo de preocupação para todas as mães, com exceção de M2. Essa preocupação parece estar associada a tentativa de evitar a estigmatização, uma vez que, por não possuírem as condições requeridas para participar das atividades propostas pelo grupo do qual fazem parte, as crianças com TDC se tornam desqualificadas e rejeitadas pelos seus pares:

... aí ela (uma colega da escola) foi, virô e falô assim: “é, Murilo é tão esquisito! Ele é diferente né? Olha só como que ele é diferente: ele num fala direito, ele num brinca direito, só fica assim, mas a minha mãe falô que ele é bino” (albino). Rotulando é! Que ele era esquisito, que ele era diferente. Aí ele num quis fica lá por causa dos coleguinhas. (M5).

A literatura destaca que crianças com problemas de coordenação motora tendem a ter menos amigos e ser pouco convidadas a brincar, uma vez que não conseguem acompanhar os demais nos jogos e brincadeiras. Muitas delas se tornam alvos de chacota dos colegas, passando a evitar atividades físicas e brincadeiras em grupo, o que limita as oportunidades de praticarem suas habilidades, constituindo assim um ciclo vicioso (Mandich, Polatajko, & Rodger, 2003). Ou então, como no caso da criança 1, são chamadas unicamente por possuir o brinquedo de interesse: “Porque às vezes os meninos não têm bola e eles têm um monte de bola, aí eles chamam ele, pra ele levar a bola. Mas ele num consegue acompanhar as crianças. ” (M1).

Neste estudo as informantes notam um comportamento mais retraído, passivo e inseguro de suas crianças, principalmente na aproximação dos colegas; similar ao verificado por Jarus, Lourie-Gelber, Engel-Yeger e Bart (2011), os quais observaram que estas crianças tendem escolher atividades individuais, o que pode prejudicar ainda mais seu processo de socialização. Socialização aqui entendida enquanto processo contínuo constituído pelo conjunto de interações nas diversas dimensões da vida (família, escola, etc. ), no qual valores e conceitos são internalizados, compartilhados e desenvolvidos de maneira dinâmica (Marchi, 2009): “ Ele não é lá, ele não é muito de relaciona bem, não. Com otras criança. Ele não é soltinho não, sabe? Ele é mais retraído. ” (T3). Ou ainda:

Fica só olhando assim. Não entra na brincadeira. Mas se alguém fala assim, ô, ô fulano, vamo brinca? Aí ele vai. Mas, ele não sabe, né? Ele não sabe brincá do jeito que os meninos brincam, aí ele fica um pouco com vergonha. (A3).

Entender desse modo a socialização permite pensar que, face ao frequente não conseguir, a conscientização de suas limitações e provável rejeição pelos colegas, as crianças com TDC desenvolvem estratégias compensatórias, tais como:

- Recusa em participar da brincadeira: “Tá cansado! Jugá bola: tá cansado! Não gosta de jugá bola. De chutá bola. Impressionante!” (M5).

- Preferência por brincar com crianças mais novas:

Num tem uma agilidade de brincá, então ele sente assim um pouco excluído, pelos mais ou menos da idade dele, aí aquelas criança menor jáaa, já, já tem a q uela, já aproxima mais dele e ele vai e fica mais com essas criança por isso. é o que eu percebo. ” (T3).

- Preferência por brincadeiras mais paradas: – “Acaba que a criança hoje em dia, num, num é bom mas o que que eles fazem: jogam vídeo-game, vêm televisão e ficam no computador o tempo inteiro. (M1); “O negócio dele mais é tele, gosta de filme, ele gosta muito de filme, né? Ele gosta de, é, brincá no computador com joguinho. ” (T3).

Essas estratégias reforçam as evidências (Missiuna, Moll, King, King, & Law, 2007) de que tais crianças tendem a apresentar pior competência percebida em relação à suas habilidades físicas do que crianças sem problemas motores. Segundo Cairney, Veldhuizen e Szatmari (2010) a competência física é importante na aceitação social e auto-estima das crianças, caso contrário, elas insistiriam um pouco mais em determinadas atividades, reagiriam às provocações dos colegas e experimentariam novas situações envolvendo habilidades motoras, o que definitivamente não foi verificado nas entrevistas.

Diferenças nas experiências de socialização podem também ajudar a explicar diferenças do impacto do TDC no cotidiano das crianças e, talvez, na percepção de seus familiares, sendo que pais de crianças com prejuízo mais acentuado nas relações com os colegas tendem a atentar mais para seu desempenho e desenvolvimento (Cairney et al. , 2010; Zwicker, Harris, & Klassen, 2012b). No caso da criança 2, por exemplo, a mãe não compartilhou qualquer preocupação com o processo de socialização de sua filha, embora reconheça que ela tenha dificuldade para brincar com as outras crianças. Contudo, a despeito das particularidades de cada criança, foi interessante observar o destaque conferido ao relacionamento com os colegas por parte de quase todas as informantes. Parece que, para estas mães, questões comportamentais (inibição, dificuldade de entrosamento e baixo senso de competência percebida), entendidas como capazes de interferir negativamente no processo de socialização infantil, têm um efeito mobilizador mais forte do que as dificuldades motoras em si.

Dilemas de quem cuida

Discorrer sobre a rotina das crianças pode parecer tarefa trivial, contudo, esmiuçar determinados pontos, recordar algumas experiências e refletir sobre outras nem sempre valorizadas, pode despertar sentimentos e atitudes bastante complexos. De maneira geral, essa foi a tônica da terceira e última categoria.

Inicialmente, era clara a surpresa de algumas mães ao serem abordadas sobre o modo como atividades corriqueiras, tais como vestir o uniforme ou escovar os dentes, eram desempenhadas. Parecia tão óbvio que respostas como “normal ué!” (M2 e M4) despontavam quase que automaticamente. No entanto, com o decorrer da entrevista e maior entrosamento entre as partes, o espanto foi perdendo espaço e outras falas, reveladoras de novas percepções e atitudes, foram emergindo. O protecionismo excessivo, por exemplo, ficou evidente no relato de quase todas as participantes – “ Eeee . . . eu num sei se porque eu sô muito protetora” (M5); “Se acaba protegendo demais” (M1)–, indicando comportamentos que podem tanto ocultar um excesso de cuidado (compatível com a percepção de que há algo diferente, mencionada na primeira categoria), como um mecanismo de defesa a fim de evitar a exposição da criança a situações de fracasso e/ou críticas.

Houve também relatos do sentimento de culpa face ao desvelar das dificuldades de seus filhos e constatação de que algumas de suas atitudes poderiam tê-los prejudicado:

Às vezes eu fico até me culpando sabe? Porque às vezes, igual eu falo, às vezes eu não deixo brincar, não deixo correr e eu acabo fico pensando será que eu que num fico protegendo demais e num deixo ele desenvolver, sabe? (M1).

Eu acho que eu errei também por muita proteção eu fiquei muito com ele: num pode caí, num pode batê a cabeça, entendeu? ...Mais eu me culpo, mãe tem mania de culpa né, mas eu me culpo muito mais. (M5).

Para Missiuna et al. (2006a) a culpa é um sentimento comum entre os pais, refletindo a preocupação de que eles mesmos possam ser os causadores do problema em questão. Culpam-se por atos presentes ou passados, sendo esse sentimento mais acentuado se, de fato, houver em suas histórias, fatos que julgam errados ou socialmente condenáveis:

Mas eu vi que foi uma experiência boa pra ele, mas eu sofri mais de ter visto, porque na hora que eu vi ele passar assim, ele fechava o olho. Eu pensava assim: gente, se eu pudesse eu pulava e tirava o meu filho, pra ele num tá passando por aquilo, sabe?(risos) Ai meu Deus! (M1).

Essa fala de M1 carrega ainda a dor da exposição, da explicitação da dificuldade e o temor do risco da exclusão, da ridicularização.

A análise das entrevistas demonstrou que tais comportamentos parecem passar por estágios, num processo de adaptação, que parte do não perceber as dificuldades das crianças ao protecionismo excessivo, culminando num dilema que oscila entre adotar uma postura mais incentivadora, visando maior independência das crianças na execução das atividades cotidianas: “Então assim, eu acho que eu tenho que botá ele pra frente tamém” (M5); “Otro dia já pus o prato pra ela lavá; o prato e o garfo dela e a faca ela que já tá lavando, mais a xícara dela” (M2); “Assim, eu com muita assim, conversando vai menino, cê já tá na quarta-série, cê já tá grande, cê é capaz; vai mais rápido um poquinho, cê consegue!” (M4). Ou conformar-se com o desempenho atual e, em alguns momentos, “ deixar pra lá”: “ Agora eu tô assim fazendo vista grossa, coração fica na mão, apertado, porque eu vejo a dificuldade. ” (M5).

De acordo com os relatos, conciliar as demandas do dia a dia e facilitar a independência das crianças, incorporando encorajamentos para que elas executem as atividades sozinhas é um grande desafio. Desafio esse agravado pelo fato das mães não saberem exatamente o que a criança tem e, por conseguinte, não saberem como ajudá-la – “ Até queria né, se tivé alguma coisa que eu pudé né, fazê, ajuda” (M4) –, além da falta de apoio familiar: “Ah, não muito, o pai dele é... Por exemplo, igual eu falo, às vezes eu falo assim com ele: as crianças num sabe jogar porque você, que é o pai, que devia pegá a bola, ensinar, não ensina”. (M1).

Neste ponto, observa-se que as tentativas de normalização do desempenho da criança surtem importante efeito na percepção dos outros membros da família que, por não notarem algo de diferente, parecem ajudar pouco nesse sentido. Contudo, segundo Cermak e Larkin (2002), é esperado que haja esta variação no modo de perceber e compreender as dificuldades motoras das crianças por parte dos familiares. Como no caso do pai da criança 5, que tem expectativas além da capacidade do filho, em termos de coordenação motora, causando situações desgastantes que contribuem para distanciamento entre os dois: “E quando Anderson qué, se oferece (para brincar), ele não qué porque ele sabe que ele num vai dá conta i o pai vai xingᔠ(M5).

Com o passar do tempo, à medida que as limitações se tornam mais óbvias para os pais e educadores, é esperado que elas se tornem mais evidentes também para as crianças (Ahern, 2000). Contudo, no que tange a autopercepção destas, os relatos divergiram um pouco entre as que parecem não perceber qualquer diferença – “Eu acho que ele num tem muita noção né, até porque a gente leva isso numa brincadera e não cunversa muito sobre esse assunto” (M4) –, e as que percebem e sofrem: “Ele se cobra e ele mesmo vai começá se rotulá, ele tá começando a percebê, entendeu?” (M5).

A fala de M4 é bastante ilustrativa, pois à medida que as dificuldades percebidas são tratadas pelos pais como brincadeira, espera-se que, para a criança, elas também não tenham tanto valor. As demais falas reforçam o efeito da comparação com outras crianças, que, nesses casos, contribui para sentimentos de inferioridade. Goffman (1988) afirma que a necessidade de ser aceito e estar integrado na sociedade faz com que todos, desde muito cedo, busquem ser como os outros, independente da idade ou condição social e, quando essa busca não é alcançada, o sofrimento pode ser insuportável.

CONCLUSÃO

Ao investigar a percepção de mães brasileiras sobre o desempenho nas atividades diárias das crianças identificadas com TDC, verificou-se que as falas das informantes apresentaram-se com algumas incertezas e marcadas pela tentativa de normalizar o que se percebia “ um pouco diferente”. Apesar da constatação de dificuldades na realização das AVD's e no brincar, estas não necessariamente eram vistas como um problema, sendo que o prejuízo na execução das tarefas escolares parecia despertar mais a atenção das informantes.

Observou-se ainda que questões comportamentais mobilizam mais as mães brasileiras do que a precária coordenação motora em si. Talvez essa seja uma das razões pelas quais, nos casos das crianças com TDC que fazem algum tipo de terapia motora, as mães nem sempre sigam as recomendações e deem continuidade às tarefas propostas pelos terapeutas, pois não compartilham a percepção de que o problema é motor. Pode ser que, para elas, a lentidão ou desajeitamento da criança não sejam problemas tão relevantes quanto, por exemplo, a dificuldade para se relacionar e ser aceito pelos colegas, especialmente no ambiente escolar. Tal constatação reforça a necessidade de os profissionais que cuidam dessas crianças conhecer e valorizar o que é significativo para as mães, orientando-as quanto a estratégias e recursos que possam ser utilizados no dia a dia a fim de melhorar a participação nos diversos contextos e a interação de suas crianças com os colegas. Os dados evidenciam que os problemas de coordenação motora ainda são pouco reconhecidos, sendo importante esclarecer as mães, os educadores e profissionais de saúde sobre as características do TDC e quanto à co-ocorrência dos problemas de coordenação motora, aprendizagem e comportamento.

Por fim, deve-se destacar as limitações desse estudo, com destaque para a dificuldade em obter os contatos para localizar as famílias e a homogeneidade no perfil das informantes. Contudo, apesar das limitações, o estudo suscita perguntas capazes de conduzir a novos percursos metodológicos, tais como investigar a percepção dos pais sobre o desempenho de seus filhos, a percepção das professoras ou então de familiares de crianças brasileiras um pouco mais velhas, ou mesmo na adolescência. Espera-se que as questões aqui levantadas possam contribuir para melhor entendimento da perspectiva de mães brasileiras e, desta forma, melhorar a assistência às crianças com TDC.

Recebido em 07/04/2013

Aceito em 03/10/2014

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Nov 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Recebido
      07 Abr 2013
    • Aceito
      03 Out 2014
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