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INFÂNCIA E PATOLOGIZAÇÃO: CONTORNOS SOBRE A QUESTÃO DA NÃO APRENDIZAGEM

Infancia y patologización: contornos sobre la cuestión de la no aprendizaje

RESUMO

Neste texto nos propomos a refletir acerca de alguns aspectos relacionados aos processos patologização/medicalização da infância, alinhados a uma perspectiva psicopedagogizante, cultural, social e médica criando algumas conexões desta temática com os conceitos de bipolítica, rostidade e das práticas de poder que operam na perspectiva de um efetivo controle sobre a vida e a existência humana. Ressaltamos como a medicalização tem sido a principal forma de tratamento das supostas patologias e como esta prática tende a individualizar os sujeitos em um sentido negativo atribuindo exclusivamente a estes problemas que têm origem em diversos contextos políticos, históricos e sociais.

Palavras-chave:
criança; aprendizagem; patologização

RESUMEN

En este texto nos proponemos a reflexionar acerca de algunos aspectos relacionados a los procesos patologización/medicalización de la infancia, alienados a una perspectiva psicopedagogizante, cultural, social y médica creando algunos conexones de esta temática, con los conceptos de bipolítica, rostidad y de las prácticas de poder que actúan en la perspectiva de un efectivo control sobre la vida y la existencia humana. Se pone de relieve como la medicalización ha sido la principal forma de tratamiento de las supuestas patologías y como esta práctica tiende a individualizar los sujetos en un sentido negativo atribuyendo exclusivamente a estos problemas que tienen origen en diversos contextos políticos, históricos y sociales.

Palabras clave:
niños; aprendizaje; patologización

ABSTRACT

In this text, we propose a reflection on some aspects related to the pathologization/over- medicalization processes of one’s childhood, from a psycho-pedagogical, cultural, social, and medical perspective. In order to achieve this objective, we connect this theme with the concepts of biopolitics, faciality and power practices that intend to have an effective control over life and human existence. We also wish to highlight how over-medicalization has been a major treatment solution for supposed pathologies and how this practice intends to individualize patients in a negative meaning, attributing, exclusively to them, problems that emerge in diverse political, historical and social contexts.

Keywords:
child; learning; pathologization

PRELÚDIO

Não livra ninguém Todo mundo tem remela Quando acorda às seis da matina Teve escarlatina Ou tem febre amarela Só a bailarina que não tem Medo de subir, gente Medo de cair, gente Medo de vertigem Quem não tem (Buarque & Lobo, 1982Buarque, C.; Lobo, E. (1982). Ciranda da Bailarina. Disponível em: <Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/85948/ >. Acesso em: 13 jan. 2018.
https://www.letras.mus.br/chico-buarque/...
)

O propósito deste texto é problematizar acerca de alguns aspectos que envolvem os processos de patologização e medicalização da infância. Tomaremos como partida alguns aspectos que, nas últimas décadas, têm sido apontados como justificativa aos processos de patologização e medicalização e suas interfaces na produção das relações com as noções de práticas de poderes e os modos de controle fortemente empregadas sobre vida e sobre a existência humana, estes muitas vezes objetivam conter movimentos de produção da diferença em nossa sociedade.

Observamos em nossos estudos que ao menos três tendências vêm sendo apresentadas como mais relevantes e destacamos aqui primeiramente uma perspectiva psicopedagogizante do processo; em um segundo momento, porém não distante dessa noção, uma ideia que alia as questões culturais e sociais aliadas ao fracasso e por fim e mais recentemente, as questões médicas. Apresentaremos abaixo um breve panorama dessas concepções.

A perspectiva que chamamos aqui de psicopedagogizante nos aponta que estudos relativos a concepções de desenvolvimento e aprendizagem se fazem presentes como justificativa ao fracasso escolar, pois se aliam a perspectivas etapistas que servem como base para a construção de campos identitários demarcando o que passamos a chamar de normal e patológico. Nesse sentido, quem escapa aos padrões determinados por essas concepções, acaba sendo determinado como portador de algum tipo de deficiência, transtorno ou dificuldade para aprender. Em relação a isso Lahire (2008Lahire, B. (2008). Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ed. Ática., p. 73) nos apresenta que

...os professores tendem, quando falam de casos particulares, a reter apenas um traço, um elemento da vida da criança (ser canhoto, ter sido operado uma vez, ter problema de saúde...) ou da família (família monoparental, pais desempregados que vivem com a ajuda mínima do Estado...), para convertê-lo em causa do seu problema escolar.

Podemos verificar que tais argumentos tendem a individualizar práticas de aprendizagem das crianças remetendo, quase sempre, a uma visão biológica relativa às questões sociais. Essas visões se apresentam em discussões teóricas recentes, como por exemplo em Patto (1990Patto, M. H. S. (1990). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz.), que argumenta que tais práticas se encontram dentro e fora das escolas

...a ausência, nas classes dominadas, de normas, padrões, hábitos e práticas presentes nas classes dominantes, foram tomadas como indicativas de atraso cultural destes grupos, o que os aproximaria do estado primitivo dos grupos étnicos de origem. Passou-se, assim, à afirmação da existência não tanto de raças inferiores ou indivíduos constitucionalmente inferiores, mas de culturas inferiores ou diferentes... (Patto, 1990Patto, M. H. S. (1990). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz., p. 45, grifo do autor).

A partir deste olhar, uma outra perspectiva amplia essa noção e abre um campo profícuo nos processos acerca do fracasso escolar. Essas abordagens acenam para as diferenças culturais, sociais e religiosas entre as classes como justificativa para legitimar o fracasso aliado às classes mais baixas e, com isso, a escola passa a ser uma instituição social que incorpora certa valorização a determinados tipos de conhecimentos e comportamentos encontrados das classes dominantes. Para além disso, os modos de se manifestar o conhecimento e socialização adquiridos se encontram limitados pelos modos pelos quais a escola determina como estes podem ser expostos e demonstrados, definindo campos de saber e poder legitimados por instituições.

De forma complementar, os estudos de Patto (1990Patto, M. H. S. (1990). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz.) e Lahire (2008Lahire, B. (2008). Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ed. Ática.) com famílias de baixa renda, cujos filhos a escola considerava que apresentavam dificuldades de aprendizagem, nos mostram o contrário do discurso que se costuma ouvir, de que estas famílias se omitem e não valorizam a educação escolar de seus filhos, revelando assim a importância dada por estas à formação escolar. Sobre esses alunos Patto (1990, p. 340) ainda destaca que

A inadequação da escola decorre muito mais de sua má qualidade, da suposição de que os alunos pobres não têm habilidades que na realidade muitas vezes possuem, da expectativa de que a clientela não aprenda ou que o faça em condições em vários sentidos adversas à aprendizagem, tudo isso a partir de uma desvalorização social dos usuários mais empobrecidas da escola pública elementar. É no mínimo incoerente concluir, a partir de seu rendimento numa escola cujo funcionamento pode estar dificultando, de várias maneiras, sua aprendizagem escolar, que a chamada ‘criança carente’ traz inevitavelmente para a escola dificuldades de aprendizagem.

Por fim, mais recentemente outras explicações aliam o tal fracasso escolar das crianças aos processos de patologização de comportamentos e da não aprendizagem. Sob este aspecto, Christofoletti (2012Christofoletti, R. (2012). Dissertação-fílmica: cinema, loucura e resistência. Dissertação de Mestrado em Educação, Instituto de Biociências, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro. Recuperado dehttp://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/90052/christofoletti_r_me_rcla.pdf?sequence=1&isAllowed=y
http://repositorio.unesp.br/bitstream/ha...
) em sua pesquisa nos alerta que houve uma apropriação da não aprendizagem pelo saber médico e isso acabou conferindo a ela um status de doença. O pesquisador ainda nos revela que nos vemos diante de um processo de medicalização da vida que vem tornar médico tudo aquilo que não é especificamente desta ordem. Com isso notamos o desenvolvimento de uma tendência em transformar a tudo e a todos que escapam do modelo considerado ideal em patologia. Para Voltolini (2016Voltolini, R. (2016). Saúde mental e escola. In Secretaria Municipal de Educação (Ed.). Caderno de debates do NAAPA: questões do cotidiano escolar (pp. 81-95). São Paulo: SME/COPED. Recuperado de http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/27601.pdf
http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/P...
, p. 81) nas práticas educativas,

...a terminologia médica e seus produtos (remédios, categorizações diagnósticas, encaminhamentos, etc.) têm estado presentes de forma abundante em suas práticas. O saber médico, cada vez mais frequente e mais poderoso nas sociedades contemporâneas, chegando mesmo a ser definido como um saber que alimenta e regula os mecanismos de controle da sociedade...

Quando buscamos explicações médicas para as questões relacionadas ao “mau desempenho” escolar, tendemos a perder de vista os processos produtores e constituidores de subjetividade desconsiderando contextos como a escola, na qual esses processos se materializam. Para Souza (2016Souza, M. P. R. (2016). Medicalização. In Secretaria Municipal de Educação(Ed.), Caderno de debates do NAAPA: questões do cotidiano escolar (pp. 59-79). São Paulo: SME/COPED. Recuperado dehttp://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/27601.pdf
http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/P...
, pp.63-64)

...medicalizar é atribuir ao indivíduo questões que estão para além dele e que precisariam ser resolvidas, modificadas, revisadas em outros âmbitos, por serem atinentes ao campo das políticas públicas, da cultura, da sociedade. Essas questões são transformadas em patologias, distúrbios ou transtornos de cunho pessoal ou familiar...

De modo complementar, Luengo (2010Luengo, F. C. (2010). A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância. São Paulo: Cultura Acadêmica. Recuperado de https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/109138/ISBN9788579830877.pdf?sequence=2&isAllowed=y
https://repositorio.unesp.br/bitstream/h...
) nos revela que a literatura voltada para o fracasso escolar destaca o “mau comportamento” e a “dificuldade em aprender” como algo que merece atenção a partir de um diagnóstico e tratamento medicamentoso e isso acaba resultando no diagnóstico de vários transtornos nas crianças, tais como: disortografia, dislexia, discalculia, disgrafia e o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), que encabeça a lista dos transtornos a que mais são prescritos medicamentos, visto como a doença do “não aprender” e dos comportamentos “hiperativos”, “desobedientes” e “desatentos”.

Moysés e Collares (2013Moysés, M. A. A.; Collares, C. A. L. (2013). Medicalização: o obscurantismo reinventado. In Collares, C. A. L.; Moysés, M. A. A.; Ribeiro, M. C. F. (Eds.), Novas capturas antigos diagnósticos na era dos transtornos: memórias do II seminário internacional educação medicalizada: dislexia, TDAH e outros supostos transtornos (pp. 41-64). Campinas: Mercado de Letras.) em seus estudos sobre patologização/medicalização relatam que o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) foi criado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) e em 1952 em sua primeira versão trazia 106 categorias de desordens mentais, na segunda versão (DSM-II) em 1968 havia 182 desordens. Já em 1968 com o DSM-III pode-se perceber uma inclinação da psiquiatria americana para o modelo biomédico, biologizante, organicista com 265 transtornos elencados. Em 1994, o DSM-IV chegou à marca de 297 transtornos;, nele foi incluído o “espectro” que abarca pessoas que apresentam algumas características de um transtorno, mas não preenchem o quadro completo.

No ano de 2013 em sua quinta versão (DSM-V), chegou-se à marca de 306 transtornos (Ribeiro, 2015Ribeiro, M. I. S. (2015). A medicalização na escola: uma crítica ao diagnóstico do suposto transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador. Recuperado dehttps://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/17307/1/Tese_Doutorado_Maria_Izabel_Souza_Ribeiro.pdf
https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream...
); estes dados nos revelam o quanto nossa vida de um modo geral tem sido regulada pelo saber médico, a cada nova edição mais e mais “doenças” são inventadas ou incluídas em uma tentativa de não deixar escapar nada nenhum traço, característica ou conduta do ser humano.

Alguns estudos (Luengo, 2010Luengo, F. C. (2010). A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância. São Paulo: Cultura Acadêmica. Recuperado de https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/109138/ISBN9788579830877.pdf?sequence=2&isAllowed=y
https://repositorio.unesp.br/bitstream/h...
; Cabral, 2016Cabral, C. O. G. (2016). Entre Xaropes, Baleias e TDAHs: a escola e a medicalização. Dissertação de Mestrado em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. Recuperado de https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/1631/1/claudioorlandogamaranocabral.pdf
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; Moisés & Collares, 2015) revelam que a prática médica tem sido vista como uns dos principais meios de “solucionar” os problemas enfrentados pelas crianças; transformam-se assim as condutas, os modos de agir e ser delas em patologia e em seguida como consequência disto estas passam a ser medicadas.

Segundo Moysés e Collares (2015Moysés, M. A. A.; Collares, C. A. L. (2015). Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In: Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; Grupo interinstitucional queixa escolar (Eds.), Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos (2a. ed., pp. 79-126) São Paulo: Casa do psicólogo, p. 80)

Nas sociedades ocidentais é crescente o deslocamento de problemas inerentes à vida para o campo médico, com a transformação de questões coletivas, de ordem social e política, em questões individuais, biológicas. Tratar questões sociais como se fossem biológicas iguala o mundo da vida ao mundo da natureza. Isentam-se de responsabilidades todas as instâncias de poder, em cujas entranhas são gerados e perpetuados tais problemas.

Biologizar a vida neste contexto significa olhar para o ser humano somente pelo viés da vida em sua constituição orgânica ou genética, ignorando assim, de certa forma, a vida na constituição da subjetividade dos indivíduos e em sua dimensão sócio-histórica. Em relação a isso Oliveira (2013Oliveira, I. B. (2013). O conhecimento na era dos transtornos: limites e possibilidades. In Moysés, M. A. A.; Collares, C. A. L.; Ribeiro, M. C. F. (Eds.), Novas capturas antigos diagnósticos na era dos transtornos: memórias do II seminário internacional educação medicalizada: dislexia, TDAH e outros supostos transtornos (pp.79-92). Campinas: Mercado de Letras., p. 87) destaca que

... a perspectiva científica de compreender o mundo físico estendeu-se ao mundo social e às relações humanas, produzindo não só modos supostamente científicos de compreensão destes, como criando, a partir disso, padrões de normalidade física, psíquica, comportamental e social, dogmaticamente considerados, legitimando, com isso, a percepção de tudo aquilo que não se encaixa nos padrões como erro ou desvio.

Além disso, Luengo (2010Luengo, F. C. (2010). A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância. São Paulo: Cultura Acadêmica. Recuperado de https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/109138/ISBN9788579830877.pdf?sequence=2&isAllowed=y
https://repositorio.unesp.br/bitstream/h...
) chama a atenção para divisões binárias que tendemos a ter sobre as coisas como: ordem-desordem, saúde-doença, louco-não louco, raças superiores-inferiores e normal-anormal. Esse modo de olhar para as coisas e de conceber a vida nos limita muito, pois é como se só pudéssemos ser uma coisa ou outra, como se não fosse possível transitar entre elas e ser hora uma coisa, hora outra, ou ainda ser uma outra que nem sequer foi nomeada, ou seja, este modo de operar não dá conta de toda a elasticidade que o viver a vida nos demanda. Essas

São situações em que as rugosidades do corpo (nossas ‘deficiências’, nossa variabilidade genética), as diferenças culturais (um sotaque, um estilo regional), as diferenças de classe, de idade ou ainda aquelas relativas às variações quanto aos modos de ser (nossas idiossincrasias, nossos pequenos territórios subjetivos) impõem aos encontros humanos um trabalho permanente de abertura à alteridade e à produção do comum. (Vicentin, 2016Vicentin, M. C. (2016). Criançar o descriançável. In Secretaria Municipal de Educação (Ed.), Caderno de debates do NAAPA: questões do cotidiano escolar (pp. 35-43). São Paulo: SME/COPED. Recuperado dehttp://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/27601.pdf
http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/P...
, p. 35).

E isso exige de nós uma abertura e uma sensibilidade maior para aquilo que nos é diferente ou outro, para não olhar para essa diferença como algo inferiorizado, mas sim como uma possibilidade de partilha e de produção comum. Dessa forma, se faz importante pensarmos nos modos de olhar que temos utilizado para ver as crianças que resistem às normas que as moldam e regulam, cujos movimentos e corpos resistem à expropriação da experiência, ao submetimento de suas paixões e desejos aos modos já dados e instituídos de ser. Percebemos essas paixões e desejos das crianças não como algo que se dá a partir de uma falta, mas sim como algo fluido, como um fluxo que produz deslocamentos e cria modos outros de ser, viver e se fazer quebrando assim com a ordem instituída e pré-estabelecida anteriormente; trata-se de um

...convite a pensar que, somos seres de desejo. Desejar não como propriedade, como posse ou algo que se possa se erguer e dizer ‘eu desejo isso’ ou se apossa. Muito menos desejar a partir da falta, da castração, da ausência de algo. Desejar sem capturar, sem aprisionar, sem se apossar. Desejar sem meta, nem fim, nem continuação infinita. Desejar como delirar, delira-se sobre o mundo, as coisas, os seres. O desejo pode ser revolucionário, de expedição de exploração, de experimentação, passante, movente. O desejo faz fluir, cortar, correr, deslizar. O desejo é sentido, pode fazer algo, produzir efeito, conexões, disjunções, circuitos e curto circuito (Chisté, 2015Chisté, B. S. (2015). Devir-criança da matemática: experiências educativas infantis imagéticas. Tese de Doutorado em Educação Matemática, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro. Recuperado de https://repositorio.unesp.br/handle/11449/127793, p. 43).

PODER, BIOPOLÍTICA E EDUCAÇÃO

Procurando bem Todo mundo tem pereba Marca de bexiga ou vacina E tem piriri, tem lombriga, tem ameba Só a bailarina que não tem E não tem coceira Verruga nem frieira Nem falta de maneira Ela não tem Futucando bem Todo mundo tem piolho Ou tem cheiro de creolina Todo mundo tem um irmão meio zarolho Só a bailarina que não tem (Buarque & Lobo, 2018)

A epígrafe acima nos oferece pensar uma outra perspectiva acerca dos processos ligados às relações acerca do dito fracasso escolar, pois nos apresenta uma noção em que as marcas, as diferenças são constitutivas dos processos de produção de subjetividade na relação com a alteridade. Situações como essas nos remetem ao contexto da biopolítica e segundo Pelbart (2003Pelbart, P. P. (2003). Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Editora Iluminuras ltda.), este termo criado por Michel Foucault aparece pela primeira vez em 1974 em uma conferência pronunciada pelo filósofo no Rio de Janeiro, intitulada “O nascimento da medicina social”. O pesquisador ainda nos esclarece que a biopolítica estaria dentro de uma estratégia mais ampla que Foucault denomina de biopoder, que sucede historicamente do poder de soberania.

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal., p. 80).

Assim, de um modo geral, podemos inferir que a biopolítica corresponde a um poder que é exercido sobre o corpo, sobre a vida humana. Primeiramente o problema do corpo, segundo Foucault (1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal.), é colocado pelo Estado como uma forma maior de sua organização enquanto nação; neste momento começa-se a criar certa regulação dos saberes e da formação médica; surgem também as primeiras estatísticas relacionadas ao nascimento e à mortalidade da população.

Posteriormente, com o avanço da industrialização e o desenvolvimento das estruturas urbanas, se passa a ter maior preocupação com as questões relacionadas à higiene. Ainda segundo o autor, o poder político da medicina passa a isolar e individualizar os sujeitos no intuito de vigiá-los de modo a constatar o estado de saúde de cada um e assim fixar na sociedade um espaço dividido, esquadrinhado e inspecionado por um olhar e registro permanente de todos os fenômenos. Inicia-se um controle maior da população em relação às epidemias e doenças capazes de se tornarem epidêmicas e à localização e eventual destruição dos focos de insalubridade. Aparece no século XIX “... uma medicina que é essencialmente um controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas” (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal., p. 97).

Percebemos que primeiramente o poder sobre o corpo se deu a partir de um âmbito maior que seria o Estado enquanto organização e posteriormente ele foi se refinando e se especificando passando da população para a individualização do sujeito; contudo, é necessário ressaltar que mesmo com a especificação do poder sobre o corpo individual este não deixou de atuar também de um modo geral na população. Neste contexto destacamos aqui duas estratégias de poder sobre o corpo: a disciplina e a biopolítica.

Segundo Kohan (2005Kohan, W. O. (2005). Infância. Entre educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica.) a disciplina é uma criação conceitual de Foucault que nos permite pensar os mecanismos e o funcionamento de algumas instituições modernas e as relações entre o saber e o poder nas sociedades que comportam tais instituições nas quais circulam as crianças. O pesquisador ainda destaca que as principais técnicas do dispositivo disciplinar são: o exame, a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora. Esta, por sua vez, compara, hierarquiza, diferencia, homogeneíza e exclui aqueles que apresentam comportamentos considerados inadequados, tais como: atrasos, falta de atenção, desobediência, descortesia, gestos impertinentes e descuido.

O autor ainda ressalta que essa sanção se organiza em torno de prêmios e castigos, ou seja, quem se comporta “bem” é premiado e quem se comporta “mal” é punido e castigado com vistas a corrigir suas ações. Já o exame combina a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora, trata-se de uma técnica que atua principalmente para classificar e qualificar, sendo assim um registro disponível “... às finalidades de toda instituição que examina e que justifica as suas operações no sentido de ortotratar o indivíduo” (Carvalho, 2013Carvalho, A. F. (2013). A escola: uma maquinaria biopolítica de rostidades? Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação- RESAFE, 20, 4-29. Recuperado dehttp://periodicos.unb.br/index.php/resafe/article/viewFile/9662/7119
http://periodicos.unb.br/index.php/resaf...
, p. 10).

Desse modo podemos inferir que a disciplina atua no corpo de forma individual, no qual a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora são constantes, ela opera para controlar e docilizar os corpos com vistas a elevar sua produtividade; aqui o sujeito é concebido mais como um homem-corpo ou como um corpo-máquina.

Em relação à biopolítica, Brasil (2008Brasil, A. G. (2004). Modulação/Montagem: ensaio sobre biopolítica e experiência estética. Tese de Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea, Escola de comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Recuperado dehttp://www.pos.eco.ufrj.br/site/teses_dissertacoes_interna.php?tease=9
http://www.pos.eco.ufrj.br/site/teses_di...
, p. 51) realça que “Trata-se de um desdobramento da disciplina, no momento em que o poder investe não apenas o indivíduo, mas a própria vida, vida da espécie, tratada agora como população”. Esta surge posteriormente à disciplina e tem o intuito de gerir a vida abarcando assim os fenômenos globais relacionados à população, tais como: educação, saúde, segurança e cultura, buscando regular a vida em seus diversos aspectos; aqui o sujeito é visto como um homem-espécie ou corpo-espécie. Para Pelbart (2003Pelbart, P. P. (2003). Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Editora Iluminuras ltda.)

Quando o biológico incide sobre o político, o poder já não se exerce sobre sujeitos de direito, cujo limite é a morte, mas sobre seres vivos, de cuja vida ele deve encarregar-se. Se a irrupção da vida na história, por meio das epidemias e fome, pode ser chamada de biohistória, agora trata-se de biopolítica - a vida e seus mecanismos entram nos cálculos explícitos do poder e saber, enquanto estes se tornam agentes de transformação da vida. A espécie torna-se a grande variável nas próprias estratégias políticas. (Pelbart, 2003Pelbart, P. P. (2003). Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Editora Iluminuras ltda., p. 58, grifo do autor).

O poder sobre a vida enquanto espécie vai se aprofundando e se especificando cada vez mais, agora não basta mais apenas disciplinar o corpo para uma maior produção deste, mas deve-se atuar sobre ele ditando quais são os melhores e mais adequados meios para se viver a vida, “O corpo se tornou aquilo que está em jogo numa luta entre os filhos e os pais, entre a criança e as instâncias de controle.” (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal., p. 147). Sobre essa tecnologia de poder Brasil (2008)Brasil, A. G. (2004). Modulação/Montagem: ensaio sobre biopolítica e experiência estética. Tese de Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea, Escola de comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Recuperado dehttp://www.pos.eco.ufrj.br/site/teses_dissertacoes_interna.php?tease=9
http://www.pos.eco.ufrj.br/site/teses_di...
nos diz que se trata de uma

...rede de estratégias - difusas e imanentes - através das quais o poder investe a vida humana, em suas dimensões biológica, subjetiva e social. Hoje, para além do Estado, a biopolítica é convergente ao processo de expansão do capitalismo avançado, confundindo-se com as técnicas de gestão, marketing e consumo. (Brasil, 2008Brasil, A. G. (2004). Modulação/Montagem: ensaio sobre biopolítica e experiência estética. Tese de Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea, Escola de comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Recuperado dehttp://www.pos.eco.ufrj.br/site/teses_dissertacoes_interna.php?tease=9
http://www.pos.eco.ufrj.br/site/teses_di...
, p. 2)

Questões como essas nos levam a refletir acerca da constituição dos modos de existência nos quais a produção normativa dos corpos e da vida tem se constituído como a principal estratégia da biopolítica. Antes o capitalismo se pautava em vender bens, produtos para serem consumidos, agora este tem passado a investir não mais em mercadorias, o que ele vende atualmente e faz circular não são mais apenas produtos, mas sim modos de vida e do viver,

O fato é que consumimos, mais do que bens, formas de vida - e mesmo quando nos referimos apenas aos estratos mais carentes da população, ainda assim essa tendência é crescente. Através dos fluxos de imagem, de informação, de conhecimento e de serviços que acessamos constantemente, absorvemos maneiras de viver, sentidos de vida, consumimos toneladas de subjetividade. Chama-se como se quiser isto que nos rodeia, capitalismo cultural, economia imaterial, sociedade de espetáculo, era da biopolítica, o fato é que vemos instalar-se nas últimas décadas um novo modo de relação entre o capital e a subjetividade. (Pelbart, 2003Pelbart, P. P. (2003). Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Editora Iluminuras ltda., p. 20, grifo do autor).

A escola reflete todos esses cruzamentos e interconstituições de poderes que atuam e circunscrevem nossa vida modelando assim nossas subjetividades, uma vez que “O que conta, do início ao fim, é o tipo de indivíduo que se requer, e o que se pretende com ele atingir” (Carvalho, 2013Carvalho, A. F. (2013). A escola: uma maquinaria biopolítica de rostidades? Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação- RESAFE, 20, 4-29. Recuperado dehttp://periodicos.unb.br/index.php/resafe/article/viewFile/9662/7119
http://periodicos.unb.br/index.php/resaf...
, p. 9); assim a instituição escolar foi se desenvolvendo como um meio eficiente de criação de hábitos, organização, moralização e disciplinamento e isso serviu diretamente aos interesses do capital que procurava trabalhadores submissos, asseados e aplicados ao trabalho. Nesse sentido a escola não é democrática, pois opera com padrões claros de normas, regras e condutas e quem de certo modo resiste a isso ou atua de outra maneira, passa a ser considerado desviante da norma ou diferente, nesse caso aqui a diferença

...refere-se aquela que coloca o humano na condição de desviante em função de causas e origens ligadas a aspectos ideologicamente determinados e socialmente incorporados. Nessa medida, o indivíduo ‘diferente’ aqui referido é aquele que não compartilha as expectativas determinadas socialmente e que acaba por incorporar o rótulo de deficiente (lançado pelas dinâmicas sociais), que têm origem nas concepções de desvio e anormalidade. (Souza & Leite, 2008Souza, F. C.; Leite, C. D. P. (2008). O “Papa dos loucos”: uma leitura sobre a diferença a partir da obra “O corcunda de Notre-Dame” de Victor Hugo. Teias, 18, 27-35. http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/24041/17010
http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.p...
, p. 28).

MAQUINÁRIA, ROSTIDADE E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE

Ao longo da história podemos constatar que a diferença entre adulto e criança foi se transformando em uma relação de inferioridade e superioridade; concomitante a isso podemos perceber recentemente que a diferença tem passado a ser vista como desvio/deficiência estabelecida também dentro de uma relação entre superiores e inferiores. Uma vez que

Esse campo habitado por tantos alunos que não aprendem, esse grupo heterogêneo que dá relevo à construção de um sistema de educação fruto da intensa desigualdade social em nosso país, foi se constituindo e se conectando com um discurso produtor da ideia de que os fracassados teriam problemas constituídos por seus corpos, e que seus corpos seriam constituídos por algo fora do campo social. (Machado, 2013Machado, A. M. (2013). Uma nova criança exige uma nova escola: a criação do novo na luta micropolítica. In Collares, C. A. L.; Moysés, M. A. A.; Ribeiro, M. C. F. (Eds.), Novas capturas antigos diagnósticos na era dos transtornos: memórias do II seminário internacional educação medicalizada: dislexia, TDAH e outros supostos transtornos (pp. 191-202). Campinas: Mercado de Letras., p. 194).

Se anteriormente a criança era vista como um devir, ou seja, como alguém que não é mas virá a ser, a criança considerada deficiente não é e nunca poderá vir a ser, pois ela estaria fora dos padrões do que se considera um cidadão desejável que irá para a escola aprender as normas de convívio da sociedade e posteriormente ocupar um espaço de trabalho gerando capital. Assim,

[...] a escola também é um conversor de poder biopolítico porque, enquanto instituição, ela convoca, agrega e faz circular uma série incalculável de saberes conforme o substrato maquínico do Estado. E isto não tem a ver apenas com a formação curricular. Tais saberes rostificam, binarizando os indivíduos em seus devidos agrupamentos. O que está em jogo é toda demanda da maquinaria social significante, convocada com o intuito de localizar e de tratar os grupos ou populações inteiras de indivíduos. Aqui se encontram as maquinarias da família, da medicina, das funções “psis” - psiquiatria, psicologia, psicopedagogia -; mas também a maquinaria das leis e dos estatutos, da vestibularização da existência - provas que qualificam o conhecimento, o comportamento, o pensamento, o índice de massa corpórea (obesidade infantil, merenda apropria, falta de merenda etc.). (Carvalho, 2013Carvalho, A. F. (2013). A escola: uma maquinaria biopolítica de rostidades? Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação- RESAFE, 20, 4-29. Recuperado dehttp://periodicos.unb.br/index.php/resafe/article/viewFile/9662/7119
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, p. 20).

Em relação aos conceitos de máquina e rostidade, Carvalho (2013Carvalho, A. F. (2013). A escola: uma maquinaria biopolítica de rostidades? Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação- RESAFE, 20, 4-29. Recuperado dehttp://periodicos.unb.br/index.php/resafe/article/viewFile/9662/7119
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) nos apresenta que estes foram cunhados pelos pensadores Gilles Deleuze e Félix Guattari, para os quais toda a sociedade é traçada por maquinarias de produção de subjetividade, diferente de uma máquina mecânica a máquina de produção de subjetividade engendra e agencia uma série de outras máquinas. Por exemplo, a escola é uma máquina social que põe em ação um conjunto de outras máquinas, tais como: máquina de formação, máquina de produção moral, máquina disciplinar, máquina de costumes e comportamentos, dentre outras; toda máquina é atravessada por um campo social regulador, produtor e conector de uma relação de significantes que exigem determinado tipo de competência.

A respeito da máquina de rostidade Deleuze e Guattari (1996Deleuze, G.; Guattari, F. (1996). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3). São Paulo: Editora 34.) explicitam que esta consiste em mais uma tecnologia de poder que atua na significância e na subjetivação e do cruzamento dessa semiótica surge um dispositivo, um rosto. Podemos inferir que a significância atribui uma identidade, um significado, um sentido e isso irá gerar um processo de subjetivação, ou seja, um modo de lidar com a coisa, a rostidade atua assim como um meio de mapear os sujeitos.

Para os autores somos introduzidos a um rosto mais do que possuímos um, uma vez que “... determinados agenciamentos de poder têm necessidade de produção de rosto...” (Deleuze & Guattari, 1996Deleuze, G.; Guattari, F. (1996). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3). São Paulo: Editora 34., p. 42, grifo do autor) e para estes agenciamentos ninguém pode ficar sem rosto, todos precisam passar pela máquina para serem devidamente identificados e tratados de acordo com o rosto que receberem. É preciso esclarecer que quando falamos em rostidade, esta não se atribui somente ao rosto em si, o corpo inteiro pode ser rostificado, “mesmo um objeto de uso será rostificado: sobre uma casa, um utensílio ou um objeto, sobre uma roupa, etc., dir-se-á que eles me olham, não porque se assemelhem a um rosto, mas porque estão presos ao processo...” (Deleuze & Guattari, 1996, p. 41, grifo do autor) de significância e subjetivação se conectando assim à máquina de rostificação.

Vemos atuar aqui uma ideia identitária que vai produzindo os sujeitos e os colocando em um lugar fixo definindo assim zonas de frequência e delimitando um campo de significantes

Rosto de professora e de aluno, de pai e de filho, de operário e de patrão, de policial e de cidadão, de acusado e de juiz (‘o juiz tinha um ar severo, seus olhos não possuíam horizonte...): os rostos concretos individuados se produzem e se transformam em torno dessas unidades, dessas combinações de unidades... (Deleuze & Guattari, 1996Deleuze, G.; Guattari, F. (1996). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3). São Paulo: Editora 34., p. 44).

A máquina vai produzindo não somente rostos, mas campos identitários, paisagens, nas quais agem no sujeito um conjunto de forças que demarcam determinados territórios.

Quando nos indagamos: o que é uma bela casa? Um bom instrumento? Uma paisagem paradisíaca? Convocamos certa rostidade. Cada resposta possível gera um equivalente de exclusão. O bom instrumento não pode ser, ao mesmo tempo, ruim. A maquinaria de rostidade agencia toda forma de produção binária que, por segmentar o rosto-significado, extrai dele um sentido em oposição a outro. (Carvalho, 2013Carvalho, A. F. (2013). A escola: uma maquinaria biopolítica de rostidades? Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação- RESAFE, 20, 4-29. Recuperado dehttp://periodicos.unb.br/index.php/resafe/article/viewFile/9662/7119
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, p. 617)

Para a máquina não é possível atuar com diversos fluxos ou ramificações, pois isso de certa forma poderia afetar e “quebrar” algumas de suas engrenagens; ela opera assim somente por binarização.

Qualquer que seja o conteúdo que se lhe atribua, a máquina procederá à constituição de uma unidade de rosto, de um rosto elementar em correlação biunívoca com um outro: é um homem ou uma mulher, um rico ou um pobre, um adulto ou uma criança, um chefe ou um subalterno, ‘um x ou y’. (Deleuze & Guattari, 1996Deleuze, G.; Guattari, F. (1996). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3). São Paulo: Editora 34., p. 44, grifo do autor)

Podemos perceber a atuação da máquina de rostidade através dos processos de patologização/medicalização, uma vez que a criança ou o sujeito ao serem diagnosticados como desviantes ou deficientes, passam a constituir uma subjetividade, uma rostidade, e com isso o sujeito deixa de ser ele mesmo e passa a ter o rosto da doença e essa se torna a única coisa que constitui sua subjetividade. Ou seja, as características daquele sujeito vão servir apenas para confirmar ou justificar uma “doença”, e com isso acabamos de certa forma não olhando e percebendo toda a complexidade que existe naquele ser humano.

Em torno da questão da deficiência também é importante refletirmos que esta não é somente atributo de alguns sujeitos em específico, uma vez que se nossa inteligência não os entende e nossa racionalidade não os alcança é em virtude de uma deficiência que não é desse outro, mas sim nossa (Pagni, Silva, & Carvalho, 2016Pagni, P. A.; Silva, D. J.; Carvalho, A. F. (2016). Biopolítica, formas de controle sobre a vida e a deficiência: olhares outros sobre a inclusão e a resistência na escola. Childhood & philosophy, 12(24), 205-210. http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/childhood/article/view/25334/18058
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), se considerarmos essa ideia veremos que a deficiência não se encontra somente no outro, mas sim em cada um de nós que não nos dispomos a enxergar a pluralidade das coisas.

Neste contexto, este tipo de educação não tem preparado as pessoas para saberem lidar com as diferenças, com a vida e seus problemas. Ela incute nas crianças uma ideia de “divisão” onde a diferença é vista como inferioridade e não como outra maneira de ser dentre várias outras possíveis. Mediante o exposto, cabe aqui esclarecermos que não negamos que aprendizagem tem sua importância, porém esta não é a única função da escola. Barros (p. 95, 2008Barros, M. (2008). Memórias Inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil.) nos traz um alerta sobre as importâncias.

Um fotógrafo-artista me disse outra vez: Veja que pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante de que o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produz em nós. Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes... Há um desagero em mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizerem algum exame mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar que eu gosto mais de conversar sobre restos de comida com as moscas do que com homens doutos.

Diante dessa lógica conteudista que visa somente a preparação para o mercado e para a competição, a escola tem perdido uma de suas funções primordiais que vai além da aprendizagem de conteúdos, a escola também é lugar da produção e do cultivo do ser humano em todas as suas esferas, é lugar de trocas e experiências, uma vez que é no encontro com o outro que o ser humano vai se fazendo humano.

Nesse sentido, mais importante do que estar presente nas relações educacionais, é ser presença e compreender a importância do outro e das diferenças entre nós. Nessa perspectiva, o que mais importa na questão da escola, não está ligado à quantidade de aprendizagem que se é produzida, mas sim aos encontros e as experiências que ocorrem, conforme nos alerta Larrosa (2002Larrosa, J. B. (2002). Notas sobre a experiência e o saber experiência. Revista Brasileira de Educação, 19, 20-28., p. 21) “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.” É preciso estarmos mais abertos e sensíveis para o que nos é diferente e outro, para que assim possamos viver toda a intensidade da experiência, uma vez que

O novo, no tempo - como na educação e em quase todas as outras coisas - é questão de experiência. De atenção. De escuta. De inícios imprevistos, interruptores, criadores. De pensar inícios e de iniciar-se no pensar. A cada vez. Sempre, com a intensidade da primeira vez. Com a intensidade da... infância. (Kohan, 2007Kohan, W. O. (2007). Infância, estrangeiridade e ignorância: ensaios de filosofia e educação. Belo Horizonte: Autêntica., p. 134).

Diante de todos estes aspectos que envolvem os processos de medicalização e patologização aliados a uma perspectiva psicopedagogizante, social, cultural e agora médica nos fica a seguinte indagação: O que pode a criança marcada pelas questões do processo de desenvolvimento escolar nos fazer pensar sobre o processo de escolarização na sociedade contemporânea?

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  • O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2019
  • Aceito
    26 Mar 2020
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