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O lúdico e a ampliação de perspectivas em atividades pedagógicas

The playful and the expansion prospects in educational activities

El lúdico y la ampliación de perspectivas en actividades pedagógicas

A prática profissional presentemente relatada deu-se em uma Escola Municipal de Ensino Fundamental I, situada em um município do interior do estado de São Paulo, região Noroeste, através do trabalho de estagiárias do último ano do curso de Psicologia, alunas de uma faculdade situada no citado município.

As estagiárias permaneceram na citada escola municipal durante o ano letivo de 2013, a fim de realizar o Estágio Supervisionado, curricular e obrigatório. As supervisões de estágio foram ministradas pela presente relatora, e a prática no estágio deu-se por meio da proposta da atuação da Psicologia Escolar como instrumento de prevenção a situações escolares mais contundentes que muitas vezes aparecem como violências verbais e físicas, tais como brincadeiras violentas durante o intervalo para o lanche, xingamentos entre alunos e mesmo de alunos para com professores.

Ao adentrarem a escola, as estagiárias buscaram estar no contexto escolar, inserirem-se na realidade local cavando a compreensão das situações escolares, educacionais e de relacionamento vigentes do ponto de vista de quem as produzia, ou seja: os atores dessa realidade. Conforme Martins (2002Martins, J. B. (Org). (2002). Psicologia e educação: tecendo caminhos. São Carlos: RiMa. 2002., p.24), "O cotidiano escolar, enfim, caracteriza-se como um campo de intersecção entre sujeitos individuais que levam seus saberes específicos para a construção da escola."

A primeira reação dos professores da E. M. foi de rejeição às estagiárias: não aceitavam nenhuma sugestão, não desejando sequer conversas simples, triviais, na interação com elas. Limitavam-se a cumprimentá-las à chegada e despedirem-se à saída. O que encontramos como solução foi abordar as crianças durante os horários de intervalo para o lanche, já que de outra forma o acesso estava, ao menos naquele momento, impossibilitado.

As estagiárias passaram a levar brinquedos e propor atividades simples durante os 20 minutos de intervalo para o lanche. O horário de permanência delas nessa unidade escolar era de quatro horas semanais, sendo às quartas-feiras, das 8 às 12h (período da manhã). O intervalo acontecia das 9:40 às 10h. Nesse período, a escola contava com quatro anos do Ensino Fundamental I, sendo do primeiro ao quarto ano, havendo uma sala de aula para cada ano , totalizando quatro salas de aula.

As brincadeiras propostas por elas foram chamadas brincadeiras dirigidas, pela forma como as estagiárias as conduziram: a brincadeira era proposta, e elas organizavam e monitoravam o processo do início ao final. Todo o procedimento era detalhadamente acompanhado por elas, simultaneamente. A primeira brincadeira proposta foi "Fora e dentro", e consistia em propor às crianças que estivessem fora ou dentro de um espaço delimitado pelas estagiárias, através do uso de uma corda. Contou com uma boa adesão da parte dos alunos. À medida que os dias passavam e elas insistiam em trazer a brincadeira para o momento escolar que eles viviam, mais alunos aderiam. A segunda brincadeira proposta foi o "Boliche", e constou de um jogo de boliche, viabilizado por garrafas pet vazias e bolas feitas de meias. A adesão nesse momento foi total.

Brincar é uma atividade necessária ao desenvolvimento físico e cognitivo, trazendo reflexos igualmente para a vida moral. Saber-se enquanto pessoa tanto quanto olhar para o outro também deste ponto de vista são situações proporcionadas pelo brincar. Conforme Pereira (2005Pereira, E. T. (2005). Brincar e criança. Em: A., Carvalho; &, cols. (orgs), Brincar (es). Belo Horizonte: Editora UFMG. , p.23), "As brincadeiras são uma linguagem que perpassa toda a nossa experiência de vida. Também nelas a criança se encontra e delas se apropria para se constituir como ser humano". Assim, é fundamental que, como educadores, abramos espaço para que elas possam existir na realidade educacional.

O resultado da adoção das brincadeiras dirigidas durante os intervalos para lanche foi a redução de 90% nas brincadeiras de correr e nas brincadeiras de chutes existentes entre os alunos de todos os anos, cujo horário de intervalo coincidia. Podemos fazer esta afirmação tendo por base a declaração dos professores que, aliviados, indicavam este dado estatístico, assinalando as mudanças no teor do relacionamento das crianças com seus pares, reveladas pela notável diminuição nos conflitos entre os mesmos. Os alunos passaram a brincar juntos, e a extrapolar quanto aos movimentos de competição nas atividades dirigidas, trabalhadas coletivamente. Ou seja: o coletivo passou a abarcar a demanda por competição, e por conseguinte, o pedido subjacente de reconhecimento da potência de cada um. Conforme Comparato (2006Comparato, F. K. Ética. São Paulo: Cia das Letras, 2006., p.699), "Cada indivíduo, ou grupo social, se valoriza, pelo desenvolvimento contínuo de suas potencialidades, na medida em que se abre a todos os outros, neles reconhecendo o complemento necessário de si próprio".

Os professores, vendo os resultados, buscaram uma integração junto às estagiárias. Passaram a dialogar com elas e se abriram para propostas e consolidação de projetos, embora ainda se mostrassem arredios quanto a contatos muito estreitos.

A partir de então, foi possível às estagiárias desenvolverem atividades diversificadas com os alunos, e as propostas surgidas e aceitas foram: Projeto Folclore para primeiro e segundo anos; Projeto Boas Maneiras e Valores, para terceiro e quarto anos. Os projetos foram desenvolvidos e aplicados em conjunto com a Direção e os professores, e contou com a participação maciça dos alunos.

As brincadeiras dirigidas continuaram a constar como trabalho da equipe de estagiárias até o final do ano letivo de 2013. Foi possível a integração entre os alunos, que passaram a se relacionar com menos atritos, e priorizando ações que trouxessem resultados. Ficou viável, a partir da aproximação realizada pelas estagiárias, a experiência e início de apreensão do conceito de alteridade que, segundo o Dicionário Houaiss (2009Houaiss, A. (2009). Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, p.33), consta da "qualidade do que é o outro; diversidade", condição esta de fundamental importância às relações humanas.

A partir do apresentado, é possível constatar a relevância do lúdico junto às atividades pedagógicas. O avanço trazido pela brincadeira em termos de aprimoramento das relações humanas na citada E. M. foi muito significativo e, mesmo que não tenha resolvido todas as questões pedagógicas e educacionais vigentes no contexto da citada escola, auxiliou no referente a novas formas de ver e apreender o contexto em relação às possibilidades ofertadas pelo mesmo. Segundo Dallabona e Mendes (s/d), "A capacidade de brincar possibilita às crianças um espaço para resolução dos problemas que a rodeiam. (...) O brincar é o fazer em si (...)." A oportunidade foi dada e aproveitada, e este aproveitamento foi fundamental à saúde das relações dentro da escola. O pensar as possibilidades emergiu do contato com a tradução da brincadeira e expressões desta. Conforme Vigotski (2008Vigotski, L. S. (2008). A brincadeira e seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Revista virtual de gestão em iniciativas sociais (8), 18-36. Recuperado: 31 mai. 2015. Disponível: Disponível: http://www.ltds.ufrj.br/gis/2008 .
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, p.36), "A relação entre a brincadeira e o desenvolvimento deve ser comparada com a relação entre a instrução e o desenvolvimento". E ainda: "À medida que a brincadeira se desenvolve, temos o movimento para o lado no qual se toma consciência do objeto da brincadeira" (Vigotski, 2008Vigotski, L. S. (2001). Pensamento e linguagem São Paulo: Martins Fontes, 2001., p.37). Discutindo a questão da consciência a respeito do lugar em que se está e da atuação junto a este que o brincar proporciona à criança, temos em Toassa (2009Toassa, G. (2009). Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural. Tese Doutorado. Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo/SP. 348p., p.248), "As crianças vivem num meio impregnado de sentido, e este aspecto é determinante para a construção de uma personalidade e uma consciência de si".

A abertura demonstrada às novas perspectivas de relacionamento, bem claras pelas atitudes frente às estagiárias, inaugurou uma nova maneira de se buscar saídas para situações de conflito. Temos, em Vigotski (2001Vigotski, L. S. (2001). Pensamento e linguagem São Paulo: Martins Fontes, 2001., p.135), que "a ação na esfera imaginativa, a criação das intenções voluntárias e a formação dos planos da vida real e motivação volitiva, tudo aparece na brincadeira". E a perspectiva de novas leituras acerca da dimensão do papel de cada um no processo de relacionar-se, aprender e ensinar, a partir das novas linguagens (aqui, a linguagem lúdica) possíveis.

Considerações finais

É possível constatar que a atenção das estagiárias em Psicologia, quando da intervenção psicológica, à necessidade infantil de brincar e de, brincando, interagir, foi fundamental ao êxito da tarefa "intervenção", eixo da nossa proposta de trabalho de Estágio Supervisionado em Psicologia Escolar. As brincadeiras dirigidas proporcionaram momentos em que se fez palpável a condição de aprendizes e professores a todos os envolvidos no contexto, uma vez que alunos, professores, coordenadores, funcionários e mesmo as futuras psicólogas puderam se beneficiar do momento da intervenção como um canal através do qual se viabilizou o lançamento profícuo de sementes cujos frutos da aprendizagem foram colhidos enquanto se exercitava a interação lúdica.

Conforme Galdini e Aguiar (2003Galdini, V.; & Aguiar, W. M. J. (2000). Intervenção junto a professores da rede pública: potencializando a produção de novos sentidos. Em: M. E. M., Meira; & M. A. M., Antunes (Orgs.), Psicologia escolar: práticas críticasSão Paulo: Casa do Psicólogo., p.91), "Os novos sentidos produzidos devem se constituir a partir de um esforço que rompa o cotidiano, desmistifique velhas concepções, aprofunde compreensões rasteiras, ultrapasse a aparência". Captar as potencialidades por meio da intervenção psicológica abriu espaço para a ampliação da perspectiva pedagógica e consequente renovação da postura desta. A Educação não pode se esquecer de que a base da formação do conceito de alteridade reside na busca pela compreensão do outro. E romper com o que estagna os avanços no cotidiano consiste na exata produção de sentido. Com isso, os brincares (e seus desdobramentos )podem frutificar o ano todo.

Referências

  • Comparato, F. K. Ética. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
  • Dallabona, S. R.; & Mendes, S. M. S. O lúdico na educação infantil: jogar, brincar, uma forma de educar. Instituto Catarinense de Pós-graduação. Acesso 24 mai. 2015. Disponível: Disponível: http://www.icpg.com.br
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  • Galdini, V.; & Aguiar, W. M. J. (2000). Intervenção junto a professores da rede pública: potencializando a produção de novos sentidos. Em: M. E. M., Meira; & M. A. M., Antunes (Orgs.), Psicologia escolar: práticas críticasSão Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Houaiss, A. (2009). Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva
  • Martins, J. B. (Org). (2002). Psicologia e educação: tecendo caminhos. São Carlos: RiMa. 2002.
  • Pereira, E. T. (2005). Brincar e criança. Em: A., Carvalho; &, cols. (orgs), Brincar (es). Belo Horizonte: Editora UFMG.
  • Toassa, G. (2009). Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural. Tese Doutorado. Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo/SP. 348p.
  • Vigotski, L. S. (2008). A brincadeira e seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Revista virtual de gestão em iniciativas sociais (8), 18-36. Recuperado: 31 mai. 2015. Disponível: Disponível: http://www.ltds.ufrj.br/gis/2008
    » http://www.ltds.ufrj.br/gis/2008
  • Vigotski, L. S. (2001). Pensamento e linguagem São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2015
  • Revisado
    13 Ago 2015
  • Aceito
    18 Dez 2015
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