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Diálogos na perspectiva histórico-cultural: interlocuções com a clínica da atividade

Review Cultural-historical dialogs in the perspective: interlocutions with the clinic of the activity

Reseña Diálogos en la perspectiva histórico-cultural: interlocuciones con la clínica de la actividad

Banks-Leite, L; Smolka, A. L. B; Anjos, D. D. Diálogos na perspectiva histórico-cultural: interlocuções com a clínica da atividade. Campinas: Mercado de Letras, 306 p.

A obra da qual trata esta resenha faz uma excelente articulação entre as bases conceituais e teóricas que sustentam a perspectiva histórico-cultural em Psicologia e algumas pesquisas realizadas à luz da clínica da atividade (CA), que analisam as relações de trabalhado a partir da ótica dos trabalhadores, focando-se em suas atividades, modos de agir e fazer.

A coletânea de textos em questão teve sua origem no seminário Vygotsky: teoria e método - perspectivas em debate, realizado em 2013 na Faculdade de Educação da Unicamp e organizado pelo Grupo de Pesquisa em Pensamento em Linguagem (GPPL). As seções temáticas desenvolvidas na obra se baseiam no referencial teórico da CA, concebido por Yves Clot, professor titular de psicologia do trabalho do Conservatoire National dês Arts et Métiers (CNAM) de Paris.

As seções temáticas estão divididas em duas partes: a primeira destinada às Questões de desenvolvimento humano e subdividida em "A noção de desenvolvimento e o estatuto dos instrumentos técnicos e semióticos" e "Afetos, emoções e sentimentos no desenvolvimento humano"; a segunda sobre Estudos em clínica da atividade, subdividida em "Papel do expert/ especialista versus intervenant em clínica da atividade", "Autoconfrontações e Estudos da Linguagem: análises do trabalho docente" e "A realização do trabalho de intervenção: potencialidades dos dispositivos metodológicos".

Os dois primeiros capítulos versam sobre a noção de desenvolvimento humano e o estatuto dos instrumentos técnicos e semióticos. O primeiro texto, de Angel Pino , traz a relevo a importância das duas teses elementares de Vygotski para a compreensão do desenvolvimento humano: a de que a especificidade humana é de natureza cultural, assim como são de origem social as funções humanas. Sendo assim, a atividade humana inexoravelmente exige uma passagem dos meios naturais para os simbólicos, ou seja, o encontro das funções biológicas e culturais se dá através do simbólico, da linguagem. O segundo capítulo, de Anselmo Pereira de Lima, ressalta que a atividade humana depende dos instrumentos criados pela cultura, e analisa o processo de desenvolvimento humano por meio da apropriação do instrumento de trabalho numa situação prototípica. Nesse texto o autor coloca em relevo a ideia de que os instrumentos são constituídos por duas partes: uma objetiva, natural e externa ao sujeito e outra parte subjetiva, psicológica e interna; assim, o instrumento é visto pelo sujeito como uma extensão do seu próprio corpo. Desta forma, a apropriação do instrumento se dá por meio de um movimento gradual que vai do exterior ao interior. A análise da situação prototípica observada demonstra que as contingências surgidas com a realização da tarefa exigem uma adaptação dos gestos do sujeito em sua relação com o instrumento de trabalho.

No terceiro capítulo, Mauricio Ernica afirma que a situação prototípica analisada no texto anterior revelou-se um bloqueio no desenvolvimento do trabalho causado pelo dispositivo da formação. Bloqueio estabelecido pelo poder da prescrição (instrução oficial) sobre o modo de fazer genérico, mesmo diante da ineficiência da prescrição, o que vai contra da concepção de Vygotski de que o humano é o sujeito do seu comportamento. "O desenvolvimento humano é um fenômeno com direções potencialmente infinitas, sendo o desenvolvimento realizado apenas um dos resultados no campo de batalha entre a sociedade e o psiquismo". O desenvolvimento tem implicações em termos de poder e é denso historicamente, dessa forma, o agir humano deve ser visto sempre a partir de uma sociedade.

A primeira parte da obra é encerrada com três capítulos que têm como eixo temático a questão da afetividade e das emoções e sua influência no desenvolvimento o humano. O primeiro, de Bader Sawaia e Lavínia L. S. Magiolino, traz a contribuição de pensadores de diferentes áreas do conhecimento como: Rimé, Wallon, Damásio e do próprio Clot, como também demonstra a influencia de Espinoza na concepção de Vygotski sobre a dimensão afetiva do desenvolvimento humano, pois ambos tentam superar a dicotomia entre os aspectos representacional e biológico envolvidos nas questões emocionais humanas, enfatizando a influencia dos processos sociais perversos na origem do sofrimento humano. O capítulo seguinte, escrito por Yves Clot, fala sobre a interfuncionalidade dos afetos, emoções e sentimentos. O autor faz uma diferenciação entre os afetos e as emoções, assim como deixa claro que, apesar das emoções estarem subordinadas à dimensão corporal, seus significados dependem de um modo compartilhado de representar a experiência. Já os afetos, para Clot, de acordo com Espinoza, têm uma relação direta com a ação, aumentando ou diminuindo seu poder. Já o último capítulo, de Ana Luiza Bustamante Smolka, ressalta que enquanto Wallon e Vygotski se preocupam em explicar a gênese e a função das emoções no desenvolvimento humano, Clot busca explicar à dinâmica e o desenvolvimento da atividade; dessa forma, as ideias desses autores interagem de forma complementar.

A segunda parte do livro que aborda especificamente a clínica da atividade (CA) é introduzida por três capítulos que se interrogam sobre quem são os verdadeiros protagonistas das transformações no campo do trabalho: o expert (especialista), o intervenant (interventor) ou os próprios profissionais do oficio? Tal questão traz consigo muitas outras que dizem respeito à relação entre intervenção e pesquisa. Para resolvê-las Maria Elizabeth Antunes Lima e Matilde Agero Batista, Giselle Reis Brandão e Cláudia Osorio concordam que "o transformar precede o conhecer" e que as funções do especialista e do clínico são muito distintas, haja vista que para o segundo o trabalhador é o protagonista das transformações. Mas existem pontos de discordância entre esta última e algumas ideias apresentadas no capítulo escrito por Angero e Lima, sobretudo no que se refere à questão metodológica, pois "a pesquisa começa quando a intervenção termina". A debatedora, Osorio, tampouco concorda com a separação entre os objetivos da pesquisa e os da intervenção, pois isso seria uma decisão artificial, considerando que pesquisa e intervenção constituem fonte e recurso uma para a outra, sendo impossível separá-las no tempo.

A partir de então o livro passa a abordar o tema da autoconfrontação, procedimento elaborado por Daniel Faïta, como método da CA por excelência. Primeiramente, uma seção de três capítulos trata o tema da autoconfrontação como método utilizado em dois estudos: o primeiro, de Luzia Bueno e Renata Correa Rocha, analisa situações relacionadas a um projeto de formação de professores do ensino fundamental I e o segundo, de autoria de Flavia Fazion e Eliane Gouvêa Lousada envolveu professores de língua francesa em um programa de formação continuada. Essas pesquisas foram comentadas em um terceiro texto, em que a autora M. Cecília Pérez de Souza-e-Silva se questiona sobre o que as autoconfrontações simples e cruzada podem dizer acerca do trabalho do professor? Ela conduz seu debate a partir do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), que serviu de base para os estudos citados. A análise identificou os parâmetros na produção de marcas linguísticas e o efeito de sentido que decorre delas, desta forma, a autora reforça que a autoconfrontação se constitui em um espaço de transformação dos atores sociais.

Nos três capítulos que compõem a última seção do livro, o tema principal segue sendo a utilização da autoconfrontação como método de pesquisa e intervenção no contexto da CA. O primeiro texto desta seção traz uma pesquisa realizada por Raquel Guimarães Soares e Daisy Moreira Cunha com funcionários de um banco estatal com altos índices de absenteísmo. Na pesquisa, os métodos da autoconfrontação serviram para os profissionais perceberem que as atividades impedidas e não realizadas, assim como certos conteúdos latentes na situação de trabalho exerciam um papel importante na saúde psicológica dos trabalhadores e na forma em como eles significavam as próprias ações. Na sequência, Daniela Dias dos Anjos apresenta uma pesquisa realizada com duas professoras dos anos iniciais do ensino fundamental, que precisavam lidar com a questão da heterogeneidade dos saberes das crianças em sala de aula. Ambas precisavam revisar suas atividades de trabalho, pois a diversidade no nível de aprendizado dos alunos constituía um desafio e exigia uma mudança nas práticas pedagógicas.

Nas pesquisas citadas, os profissionais são inicialmente convidados a assistir à filmagem de suas atividades de trabalho, primeiramente acompanhados apenas do pesquisador (Autoconfrontação Simples), posteriormente ao lado de um companheiro de trabalho (Autoconfrontação Cruzada). Nos dois casos eles devem debater sobre o que assistiram. Por fim, o procedimento acaba em um encontro com o coletivo, onde vários companheiros de atividade devem debater sobre as possibilidades de suas ações no ambiente de trabalho, pois de acordo com esta perspectiva as transformações se efetivam e são sustentadas pela coletividade. Finalmente, o último capítulo do livro, de Eliane Gouvêa Lousada e Ermelinda Barricelli, discute a importância das verbalizações propiciadas pelas autoconfrontações como forma de transformar as ações de trabalho a partir das reflexões e da ressignificação dessas atividades. Trata-se, nesse caso, do papel de transformador exercido pela linguagem por meio das verbalizações dos trabalhadores.

Sendo assim, a obra em questão é uma excelente oportunidade para entendermos como os referenciais teóricos e metodológicos da CA estão inseridos no campo da vertente histórico-cultural em Psicologia e como a filosofia Marxista, através do conceito de materialismo histórico-dialético, influencia profundamente a maneira como a clínica da atividade interpreta as ações e as relações de poder no contexto do trabalho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2016
  • Aceito
    02 Nov 2016
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