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SAÚDE MENTAL, ADOECIMENTO E TRABALHO DOCENTE

Salud mental, padecimiento y labor docente

RESUMO

A percepção dos docentes de Ensino Fundamental sobre a sua saúde mental foi o foco desta pesquisa. Trata-se de uma pesquisa quantitativa que procura compreender as percepções das condições de saúde mental de escolas públicas no interior do Rio Grande do Sul, Brasil. O método da coleta de dados utilizado foi um questionário adaptado do Protocolo de Atenção à Saúde Mental e Trabalho respondido por 249 professores. Realizou-se a análise dos dados por intermédio do software Statistical Package for the Social Sciences - SPSS 18. Encontrou-se, como principais resultados, que índices de satisfação, motivação e identidade com a atividade docente são muito significativos. Os professores indicam comprometimento com o trabalho, valorizam a profissão, mas queixam-se de que socialmente não são valorizados, mas paradoxalmente estão muito medicados.

Palavras-chave:
educação; trabalho docente; saúde mental

RESUMEN

La percepción de los docentes de educación básica sobre su salud mental fue el enfoque de esta investigación. El objetivo de esta investigación cuantitativa fue comprender de esas percepciones las condiciones de salud mental de escuelas públicas en el interior de RS, Brasil. El método de la recolecta de datos utilizado fue un cuestionario adaptado del Protocolo de Atención a la Salud Mental y Labor respondido por 249 profesores. Se realizó el análisis de los datos por intermedio del software Statistical Package for the Social Sciences - SPSS 18. Se encontró, como principales resultados, que índices de satisfacción, motivación e identidad con la actividad docente son muy significativos. Los profesores indican comprometimiento con el trabajo, valoran la profesión, pero se quejan de que socialmente no son valorizados, sin embargo, paradoxalmente están muy medicados.

Palabras clave:
educación; labor docente; salud mental

ABSTRACT

The perception of Elementary School teachers about their mental health was the focus of this research. This is a quantitative research that seeks to understand the perceptions of mental health conditions in public schools in the interior of Rio Grande do Sul, Brazil. The data collection method used was a questionnaire adapted from the Mental Health and Work Protocol answered by 249 teachers. Data analysis was carried out using the Statistical Package for the Social Sciences - SPSS 18 software. It was found, as main results, that satisfaction, motivation and identity indices with the teaching activity are very significant. Teachers indicate commitment to work, value the profession, but complain that socially they are not valued, but paradoxically are heavily medicated.

Keywords:
education; teaching work; mental health

INTRODUÇÃO

Saúde e educação são áreas entrelaçadas e que produzem práticas e discursos que formam nossos modos de existir. Ensinamos e aprendemos sobre saúde e, ao adoecermos, procuramos suporte naquilo em que acreditamos. Nossa práxis profissional e a forma como nos conduzimos no mundo do trabalho suscita em nós, nos nossos corpos, processos de saúde e adoecimento. Produzimos e reproduzimos práticas de cuidado em nossa vida cotidiana. Medicina e educação se aproximam e se constituem mutuamente, e a tecnologia de cuidado prioritária nas escolas, em casos de adoecimento, seja de professores e alunos, é a medicação. O campo dialógico de produção e reprodução dessa tecnologia de cuidado nem sempre é discutido. Com muita facilidade associamos o adoecimento ao corpo biológico e com frequência o dissociamos das condições de vida, dentre elas a de trabalho.

O objetivo desta pesquisa quantitativa foi compreender essas percepções acerca das condições de saúde mental de escolas públicas no interior do Rio Grande do Sul (RS), Brasil. Ou seja, como os professores interpretam as suas condições de trabalho, em relação a satisfação, motivação, valorização, reconhecimento, autonomia, esgotamento emocional, estresse, medo, dentre outros analisadores. Podendo observar como eles percebem as vivencias, rotinas de trabalho e como elas implicam em suas vidas. Assim, foi possível observar através das condições de produção, como são as relações entre o adoecimento mental e as condições de trabalho dos docentes. Gasparini, Barreto e Assunção (2005Gasparini, S. M.; Barreto, S. M.; Assunção, A. Á. (2005). O professor, as condições de trabalho e os efeitos sobre sua saúde. Educação e Pesquisa, 31, 189-199.) apontam que tais questões são importantes, já que ajudam a entender o processo de saúde/doença do educador, que se trata de um desafio na atualidade.

Rocha e Fernandes (2008Rocha, V. M.; Fernandes, M. H. (2008). Qualidade de vida de professores do ensino fundamental: uma perspectiva para a promoção da saúde do trabalhador. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 57, 23-27. http://dx.doi.org/10.1590/S0047-20852008000100005.
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) apontam que na atualidade a profissão docente encara altas exigências. O ritmo de trabalho acelerado, desempenho por produtividade, falta de autonomia, baixa remuneração, exigências de trabalho, desvalorização, desqualificação social e excesso de esforço físico e mental; todas essas demandas se interligam em um mundo que se globaliza, tenciona-se e exige flexibilidade constante, além de o docente ter que dar conta de novas tecnologias na sua práxis. Esse cenário tem contribuído com os agravos da saúde psicológica e física dos professores. Emerge disso um cenário adverso à qualidade de vida desses profissionais, difundindo um modo de existir propenso a mal-estares e desestabilização de sua saúde.

Faz-se necessário refletir sobre as formas de adoecimento dos professores, sobre os sentidos que se constroem e sobre suas condições de trabalho e saúde. Desse modo, nossa intenção com este estudo é apresentar as percepções dos professores de Ensino Fundamental sobre seu trabalho, risco de adoecimento e medicalização de professores de cinco municípios do interior do Rio Grande do Sul.

Adoecimento e trabalho docente

Segundo Marcelo (2009Marcelo, C. (2009). Desenvolvimento Profissional Docente: passado e futuro. Revista de Ciências da Educação, 8, 7-22.), a profissão docente é caracterizada como uma “profissão do conhecimento”; portanto, saber é o elemento que legitima essa profissão. Ainda de acordo com esse autor, o trabalho docente é fundamentado no “compromisso em transformar esse conhecimento em aprendizagens relevantes para os alunos” (p. 8). Nesse sentido, para ser professor, nos tempos atuais, é essencial que se ampliem, constantemente, as competências profissionais, tendo em vista que o conhecimento e a sociedade se transformam a todo o momento.

Há um reconhecimento de que os professores são fundamentais para o desenvolvimento da sociedade; paradoxalmente, notamos uma precariedade nas condições de trabalho vivenciadas por esses profissionais. Isso faz parte de um processo histórico que se reflete na qualidade do ensino e em sua saúde, de forma cada vez mais evidente, determinado pela inadequação das condições em que são realizadas as atividades desses profissionais (Pereira, Teixeira, Pelegrini, Meyer, Andrade, & Lopes, 2014Pereira, E. F.; Teixeira, C. S.; Pelegrini, A.; Meyer, C.; Andrade, R. D.; Lopes, A. da S. (2014). Estresse Relacionado ao Trabalho em Professores de Educação Básica. Ciencia & trabajo, 16, 206-210.).

Estudos como o de Cortez, Souza, Amaral e Silva (2017Cortez, P. A.; Souza, M. V. R. de; Amaral, L. O.; Silva, L. C. A. da. (2017). A saúde docente no trabalho: apontamentos a partir da literatura recente. Cadernos Saúde Coletiva, 25, 113-122. doi: 10.1590/1414-462X201700010001.
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) apontam para o crescimento do adoecimento docente relacionado ao trabalho e ao sofrimento psíquico. Ressaltam que se deve compreender os elementos relacionados à saúde no trabalho do professor de forma multideterminada. No entanto, apresentam pontos que convergem em diferentes estudos, tais como: a intensificação da jornada de trabalho; a desarticulação das políticas que legislam sobre o tema, pois perpetua-se a construção de um ciclo de adoecimento físico e mental, intensificado pelo sofrimento que leva à desestruturação psíquica e outros problemas aos professores.

Araújo, Pinho e Masson (2019Araújo, T. M. de; Pinho, P. de S.; & Masson, M. L. V. (2019). Trabalho e saúde de professoras e professores no Brasil: reflexões sobre trajetórias das investigações, avanços e desafios. Cadernos de Saúde Pública, 35, 1-14. doi: 10.1590/0102-311X00087318.
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) destacam um processo crescente de intensificação do trabalho, relacionando-o à precarização econômica (condições salariais, jornada de trabalho, contrato) e precarização das condições de trabalho (mudanças na organização e processo produtivo e tecnologias) modelos de gestão flexível que alteram as rotinas laborais e as formas de controle. Esses, entre outros fatores, geram repercussões na saúde física e mental e no desempenho profissional do professor. Apesar de esses elementos serem conscientes aos professores, as práticas são voltadas ao indivíduo, reforçando os marcos mais tradicionais da assistência voltada ao corpo doente, com pouco ou nenhum foco no ambiente adoecedor. Os estudos denotam que o adoecimento ainda é percebido numa perspectiva individualizante, representando uma perda da perspectiva histórica e social, pois o que acontece no plano individual também é coletivo.

Ao apontar para um corpo que adoece, descontextualizado de suas condições de produção, limita-se a potência transformadora dos sujeitos, pois o foco recai sobre um corpo doente que deve ser medicado e não sobre um corpo docente que deve ser convocado a pensar os diferenciais de gênero, de valorização/desvalorização social e de invisibilidade do trabalho, nas mudanças da relação do sujeito atual com a verdade, o saber, e as novas formas de construção e alienação das relações de trabalho.

Segundo Marcelino (2011Marcelino, A. L. G. (2011). Adoecimento Docente: Narrativas do trabalho em busca do “que viver” (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul - RS.), as formas de viver o trabalho e o adoecimento docente estão atreladas às concepções culturais do que é, para o professor, a docência; resumindo-as: 1. Concepção hegemônica: conceito de docência como profissão; 2. Concepção idealista ou religiosa: conceito de docência como vocação; 3. Concepção materialista: conceito de docência como ato político, e 4. Concepção orgânica: conceito de docência como modo de vida. A maneira como os professores experienciam o exercício da docência pode afetar em maior ou menor grau sua percepção de adoecimento. Sim, o professor é um trabalhador, mas essas concepções de trabalho o desterritorializam das próprias condições de seu fazer e o enlaçam no valor social do trabalho, muito mais que as condições materiais, econômicas e insalubres do seu cotidiano. O trabalho do professor transcende a jornada laboral; esse tempo invade outros espaços de vida e o adoece, o destituindo de um tempo para viver.

A partir de Agamben (2002Agamben, G. (2002). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG. ), podemos pensar que esse corpo é, desde sempre, corpo biopolítico e que o homem pós-moderno altera a sua relação com a vida, pois, nesses tempos, o saber é múltiplo, as verdades e a vida são provisórias. A relação com o outro e consigo é fluída. Nesse sentido, o professor que sustenta seu lugar de valor calcado no saber sofre com essas mudanças. A ciência continua a ser seu horizonte, mas agora minada pela própria instabilidade. Outros saberes se empoderam e se sustentam no direito de expressão, mesmo que esvaziados de sentido. A docência mudou de lugar e causa um mal-estar que ainda está sendo processado na vida cotidiana das escolas. O professor adoece apartado desse novo contexto.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa quantitativa. Para a sua realização, foram aplicados questionários semiestruturados em 249 professores de 11 escolas públicas, de cinco municípios do interior do estado do Rio Grande do Sul. O instrumento utilizado foi um questionário adaptado do Protocolo de Atenção à Saúde Mental e Trabalho, organizado por Bahia (2014), que consiste em uma ferramenta que tem como objetivo o diagnóstico e manejo das principais situações de adoecimento e transtornos mentais relacionados ao trabalho. Nesse questionário os participantes deveriam assinalar as respostas, através de uma escala Likert de cinco pontos, que diferenciam entre zero (nunca) e cinco (sempre). Os indicadores da escala se deram através de prazer e sofrimento no trabalho (satisfação, motivação, valorização, reconhecimento, autonomia, esgotamento emocional, estresse, medo, dentre outros analisadores). Ao final do questionário havia uma questão aberta a respeito do uso de medicação.

Os questionários foram aplicados por estudantes do curso de Psicologia que praticavam estágio nas escolas da rede pública, e os docentes foram convidados a participar conforme seu interesse. Após a coleta dos dados, os decodificamos e construímos tabelas, transferindo as informações para o software Statistical Package for the Social Sciences - SPSS 18.0, que transformou esses dados em cálculos estatísticos para posterior análise.

A presente pesquisa passou pela aprovação do Comitê de Ética local sob o número de CAEE: 09843019.0.0000.5343. Todos os participantes foram informados a respeito dos objetivos e métodos propostos por esse trabalho e receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conscientizando-os sobre tais relatos, com o propósito de manter a privacidade dos participantes.

RESULTADOS

Este estudo contou com a participação de docentes de escolas públicas, e os questionários foram aplicados por estagiários de Psicologia conforme parceria estabelecida com as escolas da rede pública de educação do vale do Rio Pardo, totalizando 249 questionários. A pesquisa contou com 161 participantes do sexo feminino, representando 64,7% do total, e 40 participantes do sexo masculino, que indicam 16,1% do total. Ainda, 48 pessoas não responderam, o que equivale a 19,2%. Os dados sugerem que o número de mulheres é muito superior ao de homens, no magistério; isso está alinhado ao que aponta a CEDERJ (2020): “O processo de feminização do magistério se efetivou a partir do desenvolvimento da industrialização e urbanização do sistema capitalista, no século XIX. [...] Começou-se a identificar a profissão docente com características atribuídas às mulheres, como: docilidade, submissão, sensibilidade e paciência.” (p. 78).

Cardoso (2019Cardoso, J. da S.; Nunes, C. P.; Moura, J. S. (2019). Adoecimento Docente: Uma Breve Análise da Saúde de Professores do Município de Medeiros Neto/Ba. Teias, 20(57), 125-140. doi: 10.12957/teias
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) cita estudos que evidenciam que as professoras são as mais atingidas por adoecimentos no ambiente de trabalho, já que são maioria na carreira docente. Além disso, na sociedade que vivemos, são exigidas múltiplas jornadas das mulheres. Uma parcela muito significativa, além de ter todas as responsabilidades que envolvem o ofício de lecionar, precisa cuidar de suas famílias e lares. Esses e outros fatores contribuem para que essas profissionais sejam mais afetadas por doenças que afligem os trabalhadores da área da educação. Ademais, em relação à jornada de trabalho de professores:

[...] são longas, com raras pausas de descanso e/ou refeições breves e em lugares desconfortáveis. O ritmo intenso e variável, com início muito cedo pela manhã, podendo ser estendido até à noite em função de dupla ou tripla jornada de trabalho. No corre-corre os horários são desrespeitados, perdem-se horas de sono alimenta-se mal, e não há tempo para o lazer. São exigidos níveis de atenção e concentração para a realização das tarefas. Quando o trabalho é desprovido de significação, não é reconhecido ou é uma fonte de ameaças à integridade física e/ou psíquica acaba por determinar sofrimento ao professor. (Tavares, 2007Tavares, E. D.; Alves, F. A.; Garbin, L. de S.; Silvestre, M. L. C.; Pacheco, R. D. (2007). Projeto de qualidade de vida: combate ao estresse do professor (Conclusão do curso de Gestão da Qualidade de vida na empresa). Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP., p. 19).

De acordo com o nosso estudo, é possível identificar que a faixa de idade se concentra entre 36 a 40 anos. Esse dado vai ao encontro da informação trazida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP, que apresenta um perfil do professor da educação básica no Brasil e demonstrou que os professores típicos brasileiros, no ano de 2017, tinham uma média de 41 anos de idade (Brasil, s/d).

Recortamos todas as informações sobre como os docentes se percebem a partir das respostas nos protocolos de saúde mental e trabalho. A Figura 1 demonstra como os professores percebem sua satisfação, motivação e orgulho no ofício da profissão. Notamos que frequentemente, 42,2% sentem-se satisfeitos, 57% percebem-se sempre motivados e 57% estão orgulhosos da profissão que exercem.

Figura 1
Satisfação, Motivação e Orgulho pelo que faço.

Frente aos dados de satisfação, motivação e orgulho, podemos pensar que ainda vivemos em uma sociedade que é pautada pelo conhecimento, que traz algumas implicações na percepção de ser professor. Desse modo, lecionar é uma atividade complexa, uma vez que está permeada pelos constantes desafios e tensionamentos no trabalho docente. Quando o professor educa seus alunos, almeja que estes estejam preparados para enfrentar a mesma sociedade cheia de mudanças e incertezas em que ele vive (Mendes & Baccon, 2015Mendes, T. C.; Baccon, A. L. P. (2015). Profissão docente: o que é ser professor? Anais do XII Congresso Nacional de Educação - EDUCERE. Curitiba: Universitária Champagnat.). Em relação a esse processo, que é educacional, esses autores mencionam que:

A docência não é uma atividade que gera produtos imediatos e materiais. Trata-se de um trabalho que demanda investimento energético afetivo por parte do professor que, ao ensinar, deixa marcas no aluno e modifica a si mesmo. Desse modo, refletimos que a profissão docente não pode ser analisada como mecânica e sem sentido, porque nela estão envolvidos sentimentos, relações, saberes de diferentes ordens, o individual e ao mesmo tempo o coletivo. (Mendes & Baccon, 2015Mendes, T. C.; Baccon, A. L. P. (2015). Profissão docente: o que é ser professor? Anais do XII Congresso Nacional de Educação - EDUCERE. Curitiba: Universitária Champagnat., p. 397).

A docência se define por uma atividade completamente relacional; é estar imerso em relações interpessoais o tempo todo. Professores, além do ofício de lecionar e transmitir o conhecimento aos seus alunos, também se envolvem emocionalmente e cognitivamente, existindo uma preocupação constante com o aprendizado, acarretando desgastes, e ao mesmo tempo proporcionando prazer, realização e gratificação numa profissão que é basicamente relacional seja com os alunos, com a comunidade e com a instituição. Partilhar momentos com o outro, ensinar, fazer com que os sujeitos sejam seres pensantes, pode estar relacionado com orgulho, satisfação e identificação com esse trabalho. Segundo Mendes e Baccon (2015Mendes, T. C.; Baccon, A. L. P. (2015). Profissão docente: o que é ser professor? Anais do XII Congresso Nacional de Educação - EDUCERE. Curitiba: Universitária Champagnat.) são esses sentimentos que motivam a permanência desses profissionais nesse ofício, constituindo o seu significado existencial.

A seguir, a Figura 2 evidencia como os pesquisados se sentem em relação ao bem-estar. Os professores frequentemente se percebem bem e realizados; no entanto, não se percebem reconhecidos no contexto de trabalho. Isso corrobora com a Figura 1, que demonstra que os professores que se sentem satisfeitos, motivados e orgulhosos da profissão; logo, percebem um bem estar e realização profissional no contexto educacional.

Figura 2
Bem-estar, Realização Profissional e Reconhecimento.

Na Figura 3, 72,7% (somando: às vezes e raramente) dos professores sentem pouca valorização. Além disso, 47,8% se percebem em esgotamento emocional, 71,5% apontam estresse no ambiente de trabalho e 48,6% da amostra estão insatisfeitos. A partir desses dados podemos refletir que a profissão docente, ao longo das últimas décadas, sofreu diversas mudanças e o sistema educacional enfrenta uma crise sem precedentes, em que professores precisam lutar por condições dignas de trabalho e respeito. No entanto, é exigida cada vez mais desses profissionais uma boa qualificação e constante atualização do conhecimento. A falta de investimento no sistema educacional faz com que eles tenham que investir os próprios recursos para manter-se qualificados (Freitas & Cruz, 2008Freitas, C. R.; Cruz, R. M. (2008). Saúde e trabalho docente. Anais do Encontro Nacional de Engenharia de Produção - ENEGEP. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. ). Ademais, “o mestre, visto antes como uma figura profissional essencial para a sociedade, é hoje um profissional que luta pela valorização e reconhecimento social do seu trabalho” (Lemos, 2005Lemos, J. C. (2005). Carga psíquica no trabalho e processos de saúde em professores universitários (Tese de doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina - SC. , p. 5).

Figura 3
Valorização, Esgotamento Emocional, Estresse e Insatisfação.

Muitos professores se percebem desmotivados e insatisfeitos com o exercício da profissão, o que pode acarretar danos à sua saúde física e mental. Se esses professores estiverem desmotivados ou até mesmo adoecidos, provavelmente terá interferência no processo de aprendizagem dos alunos, prejudicando a qualidade e a produtividade do trabalho (Larocca & Girardi, 2011Larocca, P.; Girardi, P. G. (2011). Trabalho, satisfação e motivação Docente: Um estudo Exploratório com Professores da Educação Básica. Anais do Congresso Nacional de Educação - EDUCERE. Curitiba, PR, Brasil. ). Frente a esses cenários, muitos dos docentes estão desmotivados com os baixos salários (atrasos e parcelamentos), desprestígio social, falta de reconhecimento do trabalho, sobrecarga de diversas tarefas, indisciplina de alunos, cobrança de pais, da escola, violência, falta de segurança, dentre outros.

Além disso, a profissão docente consome grande parte do tempo dos professores e, muitas vezes, o ritmo da sua atividade é intenso, exigindo altos níveis de concentração e atenção para a execução das metas pedagógicas. Por esse motivo, geralmente os docentes apresentam sintomas como ansiedade, angústia, cansaço e irritabilidade excessivos, relacionados ao estresse no ambiente de trabalho, como demonstra o estudo de Junior e Lipp (2008Goulart, E. Jr.; Lipp, M. E. N. (2008). Estresse entre professoras do ensino fundamental de escolas públicas estaduais. Psicologia em Estudo, 13, 847-857. https://doi.org/10.1590/S1413-73722008000400023.
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), no qual consta que 56% da população pesquisada apresenta algum nível de estresse.

Dessa forma, é importante ressaltar que tais sintomas podem influenciar negativamente a qualidade de vida dos professores, bem como na comunicação clara com os colegas, alunos e comunidade escolar, elemento fundamental para a realização de suas atividades. Além disso, os docentes podem se sentir desmotivados e insatisfeitos em lecionar, o que contribui para um baixo desempenho profissional, gerando o agravo do estresse ocupacional (Junior & Lipp, 2008Goulart, E. Jr.; Lipp, M. E. N. (2008). Estresse entre professoras do ensino fundamental de escolas públicas estaduais. Psicologia em Estudo, 13, 847-857. https://doi.org/10.1590/S1413-73722008000400023.
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).

Na Figura 4 podemos notar que, ao juntarmos os índices às vezes e frequentemente, temos um total 65,9% de sobrecarga de trabalho. Se fizermos o mesmo somatório dos mesmos indicadores, resultam 66,7% de frustração na profissão. Acrescido a isso, 41 % se sentem inseguros no ambiente de trabalho.

Figura 4
Sobrecarga, Frustração, Insegurança.

Estudos como o de Lemos (2009LEMOS, José Carlos Galvão. Do encanto ao desencanto, da permanência ao abandono: o trabalho docente e a construção da identidade profissional. 2009. 315 f. Tese (Doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.), demonstram que a frustração no trabalho docente está conectada à falta de reconhecimento da profissão que é colocada em segundo plano na esfera social, o tempo insuficiente para a realização de atividades, as condições impróprias de trabalho e aos baixos salários. De acordo com o mesmo autor, a frustração dos docentes “[...] é com o seu trabalho, o trabalho realizado, não com o trabalho do professor de uma forma geral” (p. 244). Além disso, a enorme carga de trabalho dos docentes e a obrigatoriedade por ofertar qualidade de ensino, apesar de disporem de poucos recursos materiais e humanos, geram sentimento de frustração, insegurança e sobrecarga no ambiente de trabalho (Gomes & Brito, 2006Gomes, L.; Brito, J. (2006). Desafios e possibilidades ao trabalho docente e à sua relação com a saúde. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 6, 49-62. ).

Semanalmente, a carga horária dos docentes deve estar distribuída entre passar um tempo em sala de aula e reservar outro para a elaboração das atividades escolares. Entretanto, devido a fatores como a múltipla jornada de trabalho dos professores - grande parte atua em mais de uma escola, os inúmeros deslocamentos diariamente (da sua moradia e até as escolas), o alto número de alunos por turma, o pouco tempo para preparação das atividades escolares - grande parte dos docentes preparam-nas em casa-, as más condições no ambiente de trabalho (falta de materiais como livros, computadores, entre outros) e as interrupções constantes por parte dos colegas, alunos, pais e equipe diretiva, o tempo livre dos docentes está destinado para tais tarefas, o que contribui para uma sobrecarga no ambiente de trabalho. De acordo com Gomes e Brito (2006Gomes, L.; Brito, J. (2006). Desafios e possibilidades ao trabalho docente e à sua relação com a saúde. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 6, 49-62. ), “o trabalho real do/a professor/a extrapola os limites do tempo e do espaço do trabalho na escola”, ou seja, o tempo para a realização de todas essas atividades é escasso” (p. 56).

Finalmente, ao responderem sobre o uso de alguma medicação, como mostra a Tabela 1, observamos que 33,7% fazem uso de alguma medicação. Esse índice é preocupante, pois como enfatizam Firbida e Vasconcelos (2019Firbida, F. B. G.; Vasconcelos, M. S. (2019). A construção do conhecimento na Psicologia: a legitimação da medicalização. Psicologia Escolar e Educacional, 23, 1-8. https://doi.org/10.1590/2175-35392019016120
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), são alarmantes os processos de medicalização na educação. Percebemos a influência da área biomédica, permeando o ensino na modernidade, principalmente via a medicalização do contexto escolar e do trabalhador. As inúmeras dificuldades relativas ao processo de escolarização passam a ser medicalizadas, patologizadas e sustentadas por explicações biologizantes.

Tabela 1
Uso de Medicação

DISCUSSÃO

A partir dos dados analisados podemos compreender como professores de escolas públicas no interior do Rio Grande do Sul interpretam suas condições de trabalho, instigados pela ferramenta que pretende analisar a relação saúde mental e suas atividades laborais. Podemos observar que a partir das vivências do seu cotidiano de trabalho, os professores atribuíram os seguintes aspectos: satisfação, motivação, valorização, reconhecimento, autonomia, esgotamento emocional, estresse, medo entre outros analisadores. Dessa forma, percebe-se que tais indicadores acarretam de forma positiva ou negativa na saúde mental dos docentes.

As pesquisas apresentadas indicam aumento significativo de exigências e demandas de trabalho dos educadores. Atrelado a isso, no ano de 2021 (quando esta pesquisa foi realizada) os professores no Sul do Brasil enfrentavam dificuldades econômicas, devido ao parcelamento e atraso de salários. Paradoxalmente ao que podíamos esperar, quando correlacionamos fatores de estresse e insatisfação no trabalho docente, notamos índices de satisfação, motivação e identidade com a atividade docente muito significativos. Os professores indicam comprometimento com o trabalho, valorizam a profissão, mas se queixam de que socialmente não são valorizados. Não ser reconhecido socialmente foi um dos poucos pontos negativos apresentados neste estudo pelos professores.

No entanto, observamos um índice que consideramos significativo de professores que fazem uso de medicação (33,7%). Como apresentam Ferreira, Silveira, Sá, Feres, Souza e Martins (2015Ferreira, R. C.; Silveira, A. P. da; Sá, M. A. B. de; Feres, S. de B. L.; Souza, J. G. S.; Martins, A. M. E. de B. L. (2015). Transtorno mental e estressores no trabalho entre professores universitários da área da saúde. Trabalho, Educação e Saúde, 13, 135-155. http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sip00042
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), o uso de medicamentos prescrito aos educadores perfaz 31% dos professores. Tais autores associam isso ao aumento na prevalência de transtornos mentais, o que nos alerta para que os instrumentos que utilizamos para verificar o bem-estar psicológico e a saúde mental dos professores possam ser revistos e ampliados com novos questionamentos que analisem a necessidade de medicação e os transtornos mentais no trabalho docente. Isso pode ser um indicativo de um processo de adoecimento da e na educação.

Embora os índices de saúde mental e satisfação com o trabalho sejam positivos, como apontado pela nossa amostra, nos questionamos a respeito de um indicador considerável de medicação para suportar as condições de trabalho. Isso nos faz pensar se os professores estão atentos e percebem o seu processo de adoecimento, frente as suas condições de trabalho.

Uma limitação que percebemos neste estudo foi o enfoque exclusivamente quantitativo; consideramos que se os professores tivessem sido entrevistados poderíamos ter discutido outros aspectos e aprofundado as questões supracitadas. Nesse sentido, sugerimos novos estudos na área, principalmente que problematizem o uso de medicação e a medicalização na área da educação, com o intuito de que possam trazer outras contribuições para a comunidade científica.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2020
  • Aceito
    30 Abr 2022
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