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Mobilização de competências na profissão docente: contribuições do modelo da competência

Mobilization of competences in teaching profession: contributions of the competence model

Movilización de competencias en la profesión docente: contribuciones del modelo de competencia

Resumos

O presente estudo tem por objetivo identificar as competências mobilizadas pelos professores nas situações de trabalho e parte de uma pesquisa realizada com dez professoras do Ensino Fundamental I de uma escola pública de João Pessoa, Paraíba. A pesquisa de campo utilizou um roteiro de entrevista semiestruturada e observação participante para produção dos dados, os quais foram analisados pela técnica de análise de conteúdo temática e confrontados com os dados da observação participante. Na discussão dos materiais produzidos, as competências foram categorizadas em cinco dimensões: de processos, de técnicas, de organização, de serviço e dimensões sociais (tomamos como referência central o conceito e classificação elaborados por Zarifian). Apesar da distinção feita nas análises, pode-se afirmar que a complementaridade constitui-se como característica marcante das competências, as quais, na maioria das situações, são mobilizadas conjuntamente.

Competência profissional; trabalho docente; ensino fundamental


In this study we aim at identifying the competences fulfilled by teachers in work situations. The research was conducted with 10 elementary school teachers from a public school in the city of João Pessoa, Paraíba. Two techniques were used to collect data: (a) semi-structured interview script and (b) participant observation. Data were analyzed by thematic content analysis and compared to participant observation data. Discussion: competences were categorized into five dimensions: about processes, service, technical, about the organization and social (we took as the main reference the concept and categorization developed by Zarifian). Despite the distinction made in the analysis, it can be said that the complementarity is the main characteristic of competence and, in most situations, they are mobilized simultaneously.

Professional Competence; teaching work; elementary education


El estudio tiene por objetivo identificar las competencias movilizadas por los profesores en situaciones de trabajo. Se parte de una investigación realizada con diez profesoras de la Enseñza Fundamental I de una escuela pública de João Pessoa, Paraíba. El estudio de campo utilizó una secuencia de Entrevista semiestructurada y Observación participante para la producción de datos. Los datos fueron analizados con la técnica de análisis de contenido temático y confrontados con los datos de la observación participante. En la discusión de los materiales producidos las competencias fueron categorizadas en cinco dimensiones: procesos, técnicas, organización, dimensión de servicio y dimensiones sociales. Se tomó como referencia central el concepto y la clasificación elaborados por Zarifian. A pesar de la distinción indicada en los análisis es posible afirmar que la complementariedad se constituye una característica marcante de las competencias que, en la mayoría de situaciones, se movilizaron conjuntamente.

Competencia profesional; trabajo docente; enseñanza de primer grado


Introdução

Para fazer face a muitas e velozes mudanças ocorridas nos planos social, cultural, político e econômico, algumas organizações "têm procurado adotar mecanismos para promover, de forma mais eficaz, o desenvolvimento profissional e a melhoria do desempenho, nos diversos níveis organizacionais" (Brandão, 2008, p. 323Brandão, H. P. (2008). Aprendizagem e competências nas organizações: uma revisão crítica de pesquisas empíricas. Revista Gestão Organizacional, 6(3),321-342. Recuperado: 02 fev 2013. Disponível: www.ufpe.br/gestaoorg/index.php/gestao/article/download/105/94
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). É nessa tela que a temática da competência desponta e passa a fazer parte das discussões acadêmicas e organizacionais, associada a diferentes instâncias de compreensão: os nível da pessoa, das organizações e dos países (sistemas educacionais e formação de competências).

Nas últimas décadas diversos autores (Le Bortef, 2003Le Boterf, G. (2003). Desenvolvendo as competências dos profissionais (3a ed.). Porto Alegre: Artmed.; Schwartz, 2007Schwartz, Y. (2007). Uso de si e competência. Em Y. Schwartz & L. Durrive (Orgs.), Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana (pp. 207-223). Niterói, RJ: EdUFF.; Weill-Fassina & Pastré, 2007Weill-Fassina, A., & Pastré, P. (2007). As competências profissionais e seu desenvolvimento. Em P. Falzon (Org.), Ergonomia(pp. 175-192). São Paulo: Blucher; Zarifian, 2011Zarifian, P. (2011). Le cas concret de l'application d'une démarche Compétence: le cas de la CNAMTS. Recuperado: 03 set 2013. Disponível: http://philippe.zarifian.pagesperso-orange.fr/page55.htm
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) têm se debruçado sobre estudos que buscam conceituar a competência e analisar sua repercussão sobre a organização do trabalho. Neste artigo adotamos o conceito elaborado por Zarifian, que entende a competência a partir de três definições complementares, a saber:

Competência é a tomada de iniciativa e o assumir de responsabilidade do indivíduo sobre problemas e eventos que ele enfrenta em situações profissionais (Zarifian, 2003, p. 139Zarifian, P. (2003). O modelo da competência: trajetória histórica, desafios atuais e propostas. São Paulo: SENAC.).

A competência é um entendimento prático de situações que se apoia em conhecimentos adquiridos e os transforma na medida em que aumenta a diversidade das situações (Zarifian, 2001b, p. 72Zarifian, P. (2001b). Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas.).

A competência é a faculdade de mobilizar redes de atores em torno das mesmas situações; é a faculdade de fazer com que esses atores compartilhem as implicações de suas ações e fazê-los assumir áreas de corresponsabilidade (Zarifian, 2001b, p. 74Zarifian, P. (2001b). Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas.).

A elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1961, e suas reformas em 1971 e 1996 davam indícios de que as novas formas de gestão observadas nas organizações alcançariam também o âmbito educacional. Almeida (2010)Almeida, M. R. (2010). A atividade de trabalho de professoras de escolas públicas: "Ser professor é rebolar". Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB. acredita que a partir de 1971 e 1996 os programas de reforma educacional passaram a focalizar a escola como a unidade do sistema, transformando-a em núcleo de gestão e planejamento. Isso viria associado a estímulos supostamente capazes de produzir melhores respostas à administração por objetivos, à pedagogia de projetos, à cultura da eficiência e à demonstração de resultados (Oliveira, 2005Oliveira, D. A. (2005). Regulação das políticas educacionais na América Latina e suas conseqüências para os trabalhadores docentes. Revista de Educação e Sociologia, 26(92),753-775. Recuperado: 01 set 2013. Disponível: http://www.scielo.br/pdf/es/v26n92/v26n92a03.pd
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).

Nesse contexto, a identificação de competências a partir da atividade dos próprios professores pode constituir-se em um eficaz instrumento para aprimorá-las e desenvolvê-las, capaz de diagnosticar lacunas, facilitar o planejamento de ações de desenvolvimento profissional e, por conseguinte, melhorar o desempenho dos professores.

O presente artigo apresenta os resultados de uma pesquisa conduzida junto a professores de uma escola pública municipal da cidade de João Pessoa-PB. Nela foi possível identificar as competências mobilizadas pelos professores nas situações de trabalho. Antes de apresentar tais resultados cumpre nos aproximarmos dos conceitos que compõem o Modelo da Competência proposto por Zarifian (2001bZarifian, P. (2001b). Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas., 2003Zarifian, P. (2003). O modelo da competência: trajetória histórica, desafios atuais e propostas. São Paulo: SENAC., 2009b)Zarifian, P. (2009b). Le travail et la compétence: entre puissance et contrôle. Paris: PUF..

O modelo da competência

Como apontamos anteriormente, Zarifian (2003Zarifian, P. (2003). O modelo da competência: trajetória histórica, desafios atuais e propostas. São Paulo: SENAC., 2009bZarifian, P. (2009b). Le travail et la compétence: entre puissance et contrôle. Paris: PUF., 2011)Zarifian, P. (2011). Le cas concret de l'application d'une démarche Compétence: le cas de la CNAMTS. Recuperado: 03 set 2013. Disponível: http://philippe.zarifian.pagesperso-orange.fr/page55.htm
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entende a competência como a faculdade de mobilizar redes de atores em volta de situações, compartilhando desafios e assumindo responsabilidades. Tal assunção de responsabilidades baseia-se na capacidade de tomar iniciativa e responsabilizar-se em situações profissionais com as quais o indivíduo se defronta por meio de uma inteligência da prática que se apoia em conhecimentos adquiridos. Cabe ressaltar que essa inteligência da prática (Dejours, 2012Dejours, C. (2012). Trabalho vivo: trabalho e emancipação. Brasília: Paralelo 15.) é renovada à medida que a competência é convocada no dia a dia do trabalho, sobretudo diante das situações que desafiam o trabalhador, permitindo seu desenvolvimento profissional e pessoal. Assim, a competência se manifesta sempre em relação a algo ou em relação a uma situação. Isso caracteriza aquilo que chamamos de contextualização, prerrogativa para a emergência da competência. É por isso que Schwartz (2007)Schwartz, Y. (2007). Uso de si e competência. Em Y. Schwartz & L. Durrive (Orgs.), Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana (pp. 207-223). Niterói, RJ: EdUFF.afirma ser impossível definir competências para o trabalho senão como competências para as situações de trabalho.

Outra prerrogativa da competência é a mobilização subjetiva. O indivíduo precisa implicar-se subjetivamente em seu trabalho para fazer face àquilo que este lhe requisita. Esta concepção contraria aquela estabelecida pelo "modelo salarial industrial definido no século XVIII" (Zarifian, 2001b, p. 37Zarifian, P. (2001b). Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas.), elevada à sua enésima potência pelo taylorismo e, a seguir pelo fordismo, no qual o trabalho "é definido como um conjunto de operações elementares de transformação da matéria que se pode objetivar, descrever, analisar, racionalizar, organizar e impor nas oficinas" (Zarifian, 2001b, p. 37Zarifian, P. (2001b). Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas.) não reconhecendo que trabalhar somente é possível a partir da mobilização de quem realiza o trabalho.

Zarifian (1999Zarifian, P. (1999). El modelo de la competencia y sus consecuencias sobre el trabajo y los ofícios profesionales. Cinterfor, 33-46, Recuperado: 03 set 2013. Disponível: http://www.cinterfor.org.uy/public/spanish/region/ampro/cinterfor/publ/papel/8/pdf/papel8_3.pdf
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, 2001b)Zarifian, P. (2001b). Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas. classifica as competências em cinco tipos: em processos, em técnicas, em organização, em serviço e competências sociais. A competência em processos é pensada a partir dos conhecimentos que o trabalhador possui sobre os processos de trabalho. Está relacionada com a capacidade de estruturar os processos produtivos da organização. Nesse sentido, a forma como cada grupo profissional se apodera das ferramentas oriundas das inovações tecnológicas e o uso que é feito delas nas situações de trabalho é determinante nesse tipo de competência.

As competências técnicas têm ganhado importância na medida em que são indispensáveis para produzir desempenho. Elas dizem respeito aos conhecimentos específicos sobre o trabalho que deve ser realizado, por isso está relacionada com a capacidade de realizar tecnicamente um produto ou serviço.

As competências para a organização partem do princípio da autonomia: tornar os trabalhadores atores explícitos da evolução da organização (Zarifian, 2009aZarifian, P. (2009a). Compétences, stratégies et organisation. Intervention orale faite devant le Groupe de Veille et d'échanges interentreprises. Recuperado: 31 ago 2013. Disponível: http://philippe.zarifian.pagesperso-orange.fr/page212.htm
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). Requerem do trabalhador o conhecimento dos parâmetros de funcionamento da organização e a capacidade de distribuir recursos adequadamente; saber organizar os fluxos de trabalho e, indo além dos princípios de funcionamento, participar da sua redefinição.

As competências em serviço têm como cerne a avaliação de sua utilidade, ou seja, "desenvolver uma competência de serviço é, em seus atos profissionais, procurar saber e prever que impacto terão, direta ou indiretamente, no modo como o produto (o bem ou o serviço) que se executa trará benefícios úteis a seus destinatários" (Zarifian, 2001c, p. 105Zarifian, P. (2001c). Valor, organização e competência na produção de serviço. Em M. S. Salerno (Org.), Relação de serviço: produção e avaliação (pp. 95-149). São Paulo: SENAC.).

As competências sociais incluem atitudes que sustentam os comportamentos das pessoas em três campos: autonomia, tomada de responsabilidade e comunicação. Estão relacionadas com a capacidade do profissional em manter relacionamentos com todo o seu entorno, meio técnico, hierarquia, outras empresas e clientes. "A autonomia e a responsabilidade constroem-se básica e simultaneamente nas aprendizagens que acarretam os comprometimentos em nossa vida social e pessoal e nas mudanças internas dos modos de funcionamento das empresas" (Zarifian, 2001bZarifian, P. (2001b). Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas., p. 148).

Para Zarifian (2011)Zarifian, P. (2011). Le cas concret de l'application d'une démarche Compétence: le cas de la CNAMTS. Recuperado: 03 set 2013. Disponível: http://philippe.zarifian.pagesperso-orange.fr/page55.htm
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, o uso do conceito de competência permitiu o surgimento de uma gestão de pessoas mais alinhada com as expectativas e as necessidades das organizações e dos indivíduos. Assim, a identificação de competências pode aparecer no cenário organizacional como a ferramenta que viabiliza esse alinhamento. Fleury e Fleury (2001)Fleury, M. T. L., & Fleury, A. (2001). Construindo o conceito de competência. Revista de Administração Contemporânea, 5,183-196. Recuperado: 02 fev 2013. Disponível: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141565552001000500010&script=sci_arttext
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consideram que no bojo dessa análise está a relação que a organização estabelece entre a formação de competências e suas estratégias, pois como afirmam Bündchen e Silva (2005)Bündchen, E., & Silva, A. B. (2005). Proposta de um plano de desenvolvimento de competências individuais genéricas alinhado à estratégia empresarial. Revista de Ciências da Administração, 7(13), 1-24. Recuperado: 02 fev 2013. Disponível: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/adm/article/viewFile/2330/2044
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É importante frisar que a compreensão das competências está inserida num contexto estratégico maior. As competências, isoladamente, tem pouco valor. É preciso integrá-las dentro da estratégia organizacional, de modo a obter coerência no gerenciamento das ações estratégicas, evitando a falta de coordenação e fugindo de ações isoladas de caráter fortuito (p. 7).

As competências docentes

Neste artigo, defendemos que não se pode ignorar a importância da competência e sua influência na Educação no contexto atual. No Brasil, nas últimas décadas do século passado já era possível encontrar trabalhos que tentavam identificar as competências necessárias à profissão docente. Depois, um novo impulso se observou com a publicação do livro intitulado "Dez novas competências para ensinar", do educador suíço Philippe Perrenoud. Para o autor, a competência é definida como a "capacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos para enfrentar um tipo de situação" (Perrenoud, 2000, p. 15Perrenoud, P. (2000). Dez novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artmed.). A competência envolve dez grandes capacidades: 1- a de organizar e estimular situações de aprendizagem; 2- a de gerir a progressão das aprendizagens; 3 - a de conceber os dispositivos de diferenciação e fazê-los evoluir; 4 - a de envolver os alunos em suas aprendizagens e no trabalho; 5 - a de trabalhar em equipe; 6- a de participar da gestão da escola; 7- a de informar e envolver os pais; 8- a de utilizar as novas tecnologias; 9- a de enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão; e 10 - a de gerir sua própria formação continuada.

No âmbito da literatura brasileira, Kuenzer (2003)Kuenzer, A. Z. (2003). Competência como práxis: os dilemas da relação entre teoria e prática na educação dos trabalhadores. Boletim Técnico do SENAC, 29(1),17-27. Recuperado: 01 set 2013. Disponível: http://www.senac.br/BTS/291/boltec291b.htm
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se destaca por articular a relação entre teoria e prática na definição da competência. Esta se define para a autora como a

capacidade de agir, em situações previstas e não previstas, com rapidez e eficiência, articulando conhecimentos tácitos e científicos a experiências de vida e laborais vivenciadas ao longo das histórias de vida... vinculada à ideia de solucionar problemas, mobilizando conhecimentos de forma transdisciplinar a comportamentos e habilidades psicofísicas e transferindo-os para novas situações; supõe, portanto, a capacidade de atuar mobilizando conhecimentos (p. 17).

As competências docentes são classificadas por Kuenzer (2000)Kuenzer, A. Z. (2000). A formação dos profissionais da educação: proposta de diretrizes curriculares nacionais. Revista Educação, 25(1),67-83. Recuperado: 01 set 2013. Disponível: http://coralx.ufsm.br/revce/revce/2000/01/a6.htm
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em quatro tipos: competência teórica, competência prática, competência político-social e competência inter-relacional.

Apesar de Perrenoud (2000)Perrenoud, P. (2000). Dez novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artmed. e Kuenzer (2000Kuenzer, A. Z. (2000). A formação dos profissionais da educação: proposta de diretrizes curriculares nacionais. Revista Educação, 25(1),67-83. Recuperado: 01 set 2013. Disponível: http://coralx.ufsm.br/revce/revce/2000/01/a6.htm
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, 2003)Kuenzer, A. Z. (2003). Competência como práxis: os dilemas da relação entre teoria e prática na educação dos trabalhadores. Boletim Técnico do SENAC, 29(1),17-27. Recuperado: 01 set 2013. Disponível: http://www.senac.br/BTS/291/boltec291b.htm
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terem postulado competências docentes, neste estudo optamos pelo conceito e classificação propostos por Zarifian (2001bZarifian, P. (2001b). Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas., 2003Zarifian, P. (2003). O modelo da competência: trajetória histórica, desafios atuais e propostas. São Paulo: SENAC., 2011)Zarifian, P. (2011). Le cas concret de l'application d'une démarche Compétence: le cas de la CNAMTS. Recuperado: 03 set 2013. Disponível: http://philippe.zarifian.pagesperso-orange.fr/page55.htm
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para analisar as competências mobilizadas pelos professores nas situações de trabalho. A escolha justifica-se por algumas razões teóricas. Para Kuenzer (2003)Kuenzer, A. Z. (2003). Competência como práxis: os dilemas da relação entre teoria e prática na educação dos trabalhadores. Boletim Técnico do SENAC, 29(1),17-27. Recuperado: 01 set 2013. Disponível: http://www.senac.br/BTS/291/boltec291b.htm
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, a análise de competências só é possível se estas são entendidas através da práxis educativa tomada enquanto unidade teórico-prática e unitária. Desse modo, rejeita-se qualquer processo que tome como referência competências definidas a partir da prévia divisão dos espaços e tarefas dos processos educativos. Essa concepção aproxima-se de Zarifian (2001bZarifian, P. (2001b). Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas., 2003)Zarifian, P. (2003). O modelo da competência: trajetória histórica, desafios atuais e propostas. São Paulo: SENAC. na medida em que valoriza a atividade de trabalho dos professores.

O conceito proposto por Perrenoud (2000)Perrenoud, P. (2000). Dez novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artmed. para a competência é marcadamente cognitivo, enquanto o conceito de Zarifian (2001bZarifian, P. (2001b). Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas., 2003)Zarifian, P. (2003). O modelo da competência: trajetória histórica, desafios atuais e propostas. São Paulo: SENAC.admite o aspecto cognitivo, mas valoriza outros aspectos que estão ligados à mobilização subjetiva de cada trabalhador, sem focar no cognitivo. Assim, embora Zarifian proponha os cinco tipos de competência, em seu caso o interesse repousa, sobretudo, em como as pessoas se mobilizam em situações concretas de trabalho e menos no que se faz em cada ofício, de uma maneira genérica.

Método

A pesquisa foi realizada em uma escola pública municipal de João Pessoa-PB. Os critérios para a seleção foram: ser considerada pela Secretaria de Educação e Cultura (SEDEC) como uma escola de grande porte (com mais de 701 alunos matriculados) e disponibilizar o Ensino Fundamental I para seus alunos (turmas de 1º a 5º ano).

Por ser a pesquisa de cunho qualitativo, nós nos aproximamos da experiência de um grupo específico de professores, e assim nos deparamos com a questão de decidir que critérios guiariam a escolha das, já que o critério de escolha da amostra foi intencional. Entendemos que escolas de diferentes portes permitem aos professores vivenciar situações distintas umas das outras, e por isso, para este estudo, julgamos que uma escola de grande porte e com muitos alunos, situada em um bairro com boa estrutura de aparelhos urbanos, mas cujos moradores fossem, em grande parte, famílias de baixa renda, poderia oferecer oportunidades de conhecer uma realidade capaz de trazer elementos que pudessem trazer luz às questões que investigávamos. Embora soubéssemos que poderíamos ter usado outro critério de escolha, como a amostra era intencional, escolhemos essa escola porque certamente obteríamos resultados que também ajudariam a compreender o mosaico das competências docentes no Brasil.

Participaram desta pesquisa dez professoras provenientes da escola selecionada. A inclusão das profissionais atendeu aos seguintes requisitos: (i) lecionar em turmas do Ensino Fundamental I como professora polivalente; (ii) aceitar participar voluntariamente da pesquisa, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Embora o autor que tomamos como referência não apresente nenhuma proposta metodológica que se coloque como canônica, seus textos mostram (Zarifian, 2001aZarifian, P. (2001a). Mutações dos sistemas produtivos e competências profissionais: a produção industrial do serviço. Em M. S. Salerno (Org.), Relação de serviço: produção e avaliação (pp. 67-93). São Paulo: SENAC., 2001bZarifian, P. (2001b). Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas., 2001cZarifian, P. (2001c). Valor, organização e competência na produção de serviço. Em M. S. Salerno (Org.), Relação de serviço: produção e avaliação (pp. 95-149). São Paulo: SENAC., 2003Zarifian, P. (2003). O modelo da competência: trajetória histórica, desafios atuais e propostas. São Paulo: SENAC.) que abordar a competência requer uma aproximação com aqueles que realizam o trabalho. Por isso resolvemos escolher como participantes professoras polivalentes, uma vez que isto nos permitiria desenvolver atividades com profissionais que trabalham em contextos semelhantes lecionam para diferentes turmas, mas em nenhuma disciplina específica.

As idades das participantes variaram de 26 a 55 anos e 50% delas têm tempos de docência que variam entre dez e quinze anos, duas têm menos de dez anos e três têm mais de dezesseis anos de exercício da profissão. O tempo médio de trabalho dessas profissionais na atual escola é de aproximadamente quatro anos. Com relação ao perfil biopsicossocial, quatro dessas profissionais são casadas, quatro são solteiras, uma é divorciada e uma é viúva. Além disso, sete professoras têm filhos, em sua maioria, crianças e adolescentes. Em relação ao vínculo empregatício, seis docentes são concursadas e as demais, são contratadas como prestadoras de serviço. A renda pessoal de duas professoras é inferior a R$ 500,00 (abaixo do salário mínimo da época R$ 545,00), uma delas recebe de R$ 501,00 a R$ 1.000,00, três delas recebem de R$ 1.001,00 a R$ 1.800,00 e quatro delas recebem de R$ 1.801,00 a R$ 3.000,00 por mês. Cinco das entrevistadas são responsáveis pela única renda da família. Nenhuma delas reside sozinha, ou seja, todas as educadoras ajudam no sustento de pelo menos uma pessoa com seu salário.

Duas técnicas foram utilizadas na produção dos dados: roteiro de entrevista semiestruturada e observação participante. O roteiro de entrevista semiestruturada abordou questões referentes à atividade docente e às competências mobilizadas nessa atividade. A técnica de entrevista semiestruturada (Richardson, 1999Richardson, R. J. (1999). Pesquisa social: Métodos e técnicas. São Paulo: Atlas.) permite partir de um roteiro básico, porém não aplicado rigidamente. Os dados produzidos com este instrumento foram analisados pela técnica de análise de conteúdo temática, sendo o processo de análise conduzido na perspectiva de Laville e Dionne (1999)Laville, C., & Dionne, J. (1999). A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artmed., que segue as seguintes etapas: 1- fase preparatória; 2- recorte dos conteúdos; 3- definição das categorias analíticas; 4- categorização final das unidades de análise; e 5- análise e interpretação.

O produto final - mas não acabado - da análise de conteúdo foi confrontado com os dados produzidos nas observações participantes, o que nos serviu de base para uma compreensão mais complexa da dinâmica de mobilização das competências docentes. A escola selecionada oferece o Ensino Fundamental I somente no período matutino, por isso as observações foram feitas no decurso da atividade de trabalho, desde o momento em que as professoras entravam na escola (07h, aproximadamente) até sua saída (11:30h, aproximadamente). Chegávamos à escola antes das professoras e saíamos somente após a partida delas. No início da manhã a professora que seria observada nos apresentava aos alunos, explicava o motivo da nossa presença e dava prosseguimento ao seu trabalho. De posse de papel e lápis, tomamos nota de comportamentos, atitudes, frases e expressões corporais, na tentativa de descrever efetivamente o que aconteceu em sala de aula. Os registros eram feitos imediatamente, para não haver perda de informações relevantes e detalhadas sobre o que se observava. Ao final de cada dia de observação, um diário de campo contendo relatos e descrições apontava os sentimentos e reflexões da pesquisadora. Isto se repetiu nos cinco dias distintos em que o trabalho das professoras foi observado. Durante as observações havia a presença de estagiária em quatro salas.

Para garantir o anonimato das participantes, na seção seguinte, cada entrevista foi identificada com uma sigla formada pela letra E, de entrevistada, seguida de um número para diferenciar cada professora. Nas observações, essa sigla foi acrescida da abreviação OBS.

Resultados e discussão

As competências mobilizadas pelas professoras nas situações de trabalho

Zarifian (2005)Zarifian, P. (2005). Compétences et stratégies d'entreprise. Paris: Liaisons. define como profissional competente aquele que desenvolve a capacidade de procurar alternativas para solucionar os problemas com os quais se depara no exercício ocupacional e o faz de maneira satisfatória. Para tanto, ele busca informações, articula experiência a conhecimentos, habilidades, emoções e valores. A competência não se exerce sem a mobilização de uma ampla gama de recursos: os recursos da organização, dos pares que compõem as redes a que o trabalhador pertence, mas também - e principalmente - os recursos próprios do sujeito. Isso se revela nos discursos das professoras por expressões como dedicação, profissionalismo, responsabilidade, compromisso, vontade de crescer e determinação.

A noção de mobilização subjetiva admite que o trabalho só pode ser realizado porque o profissional se implica nas situações de trabalho, de modo que uma pessoa só pode ser competente nessa situação ao se confrontar com ela (Zarifian, 2009aZarifian, P. (2009a). Compétences, stratégies et organisation. Intervention orale faite devant le Groupe de Veille et d'échanges interentreprises. Recuperado: 31 ago 2013. Disponível: http://philippe.zarifian.pagesperso-orange.fr/page212.htm
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), e não de maneira genérica e descontextualizada. Por isso, nesta investigação, Em vez de pensar em competências necessárias ao trabalho docente, como se fosse possível estabelecer de antemão as competências que o meio vai requisitar às professoras, optamos por demonstrar, através das falas e das observações, competências sendo mobilizadas pelas docentes.

1 Competências técnicas

As competências técnicas dizem respeito aos conhecimentos específicos sobre a tarefa que deve ser realizada. No trabalho docente, tanto o conteúdo específico da disciplina lecionada quanto o domínio de habilidades que tornam possível a construção do conhecimento marcam aqui seu lugar. O domínio dessa competência não requer somente diversidade didático-pedagógica, mas também criatividade do professor para buscar o recurso certo no momento em que a necessidade aparece. A fala das docentes exemplifica isso:

E4 - Às vezes, quando eles estão cansados, a gente, pra eles relaxarem, vai brincar de massinha.

OBS-E8 - Estagiária organiza uma dinâmica com garrafas PET. É um jogo de boliche. Cada criança tem direito a fazer um arremesso e deve efetuar a soma, a adição das garrafas derrubadas. Cada garrafa possui um número. Todas as crianças se envolvem na brincadeira.

O uso dinâmico de materiais, articulado ao conteúdo curricular das disciplinas, prende a atenção das crianças, quebra a monotonia da sala de aula e facilita a aprendizagem - objetivo central do que se pretende oferecer ao estudante. De acordo com as professoras, o domínio dos conteúdos a serem ministrados acontece com o passar dos anos, com a experiência adquirida no trabalho; mas a pequena variedade de material disponível na rede pública dificulta a realização do trabalho, o que obriga as docentes a mobilizar-se ainda mais, a fim de se colocar em uma postura competente. Isto se tornou evidente nas observações realizadas.

A repetição do conteúdo já ministrado em outro momento ajuda em sua fixação e em sua generalização para outros contextos. Observado em todas as turmas, esse recurso faz parte do cotidiano da sala de aula:

OBS-E9 - Ao corrigir um exercício sobre adjetivo, a professora aproveita e revisa as regras de concordância nominal e verbal.

2 Competências de serviço

As competências de serviço têm como cerne a avaliação da utilidade: o profissional deve procurar saber e prever que impacto, direto ou indireto, terá o seu trabalho na vida do estudante. Na sala de aula o professor precisa conhecer, mesmo que de forma sucinta, seus alunos, suas necessidades e desafios de aprendizagem, e avaliar se o recurso utilizado para ministrar determinado conteúdo é o mais adequado.

E7 - Antes de fazer uma atividade, eu penso: essa atividade é pra turma X, será que a minha aluna Y vai acompanhar essa atividade? Será que o aluno Z vai conseguir?

E3 - Nós temos que levar em consideração a vida de cada aluno.

Como estamos tratando da Educação Básica, a avaliação da utilidade se estende aos pais/responsáveis pelas crianças. As reuniões, além de serem um momento para estimular a participação dos pais no processo educativo dos filhos, servem para dar às professores o feedback da qualidade do trabalho realizado, como menciona a docente:

E10 - Fizemos uma reunião agora com os pais dos alunos, e eu gosto muito de conversar com eles, também pra saber se eles tão gostando da professora, da metodologia.

Dada a ausência dos pais nas escolas, muitas vezes esse tipo de reunião torna-se o único momento em que esse feedback pode acontecer. É importante ressaltar que as docentes entendem o seu trabalho como algo que interfere na vida dos estudantes. Assim, levar em conta as peculiaridades do contexto é uma competência que pauta as estratégias de ação definidas:

E9 - De acordo com a sociedade, de acordo com os alunos que você tem, você deve agir de uma maneira ou não; isso vai depender da nossa clientela, porque cada escola e cada local é um tipo de clientela.

A preocupação das professoras em desenvolver um trabalho de qualidade compreende o atendimento às necessidades dos seus alunos. Isso pôde ser constatado através do projeto desenvolvido pela maioria das docentes, que algumas intitulam de Identidade. Este projeto consiste na elaboração de um perfil individual de cada aluno, com breve histórico das vivências passadas do discente, suas habilidades e dificuldades de aprendizagem. Esse perfil é alimentado com informações durante todo o ano e ajuda na identificação de deficiências a serem supridas, dos avanços conseguidos e dos meios mais eficazes para isso. De fato, a relação de serviço que se estabelece entre a professora e seus alunos atinge seus objetivos, ou seja, é capaz de produzir transformação positiva nas "condições de ação de um destinatário" (Zarifian, 2001a, p. 69Zarifian, P. (2001a). Mutações dos sistemas produtivos e competências profissionais: a produção industrial do serviço. Em M. S. Salerno (Org.), Relação de serviço: produção e avaliação (pp. 67-93). São Paulo: SENAC.) - nesse caso, os alunos, se no trabalho dela há uma tentativa de adequação dos conteúdos ministrados de forma parcialmente singular para cada um deles.

A criação desse perfil individual dos alunos nasce da iniciativa de cada professora de tentar melhorar a qualidade do serviço que presta. Zarifian (2003)Zarifian, P. (2003). O modelo da competência: trajetória histórica, desafios atuais e propostas. São Paulo: SENAC. assevera que "o conceito de iniciativa significa a competência, em si mesma, em ação, o engajamento do sujeito não em relação a regras, mas em relação a um horizonte de efeitos, aqueles que sua autonomia singular provoca" (p. 87).

3 Competências sociais

As competências sociais estão relacionadas com a capacidade do profissional de manter relacionamentos com todo o seu entorno, com a hierarquia e a comunidade. No contexto escolar essa competência é mobilizada a todo instante, normalmente coadunada a uma segunda (serviço ou técnica, principalmente), haja vista o contato direto com os alunos por um longo intervalo de tempo (quatro horas e meia). Uma das docentes afirma que para mobilizar eficazmente essa competência, além de estabelecer um contrato de convivência com os alunos, o profissional deve se tornar amigo dos alunos:

E1 - ... porque, quando você vem meio que impondo as coisas, ou muito sério, né, cria-se uma barreira. Eu acho que amizade, aproximação, tá ali não só como professor, mas também como amigo, né, como alguém que possa escutar. Que muitas vezes os alunos vêm com problemas de casa e a gente percebe logo isso.

Essa competência também é mobilizada cada vez que a professora precisa da ajuda de um outro educador; o que é constante quando pensamos na pluralidade de situações que forjam o ambiente educacional:

E10 - Conversando com minhas colegas de trabalho... Eu vou pedir socorro à supervisora, à bibliotecária pra me ajudar... Conversar com a especialista também, né? Então, eu procuro... vários caminhos, né? Quando eu vejo que eu não tô dando conta daquilo, não tá surtindo efeito o meu trabalho, então eu procuro uma pessoa que tenha mais conhecimento pra me ajudar.

Trabalhar não é somente se defrontar individualmente com o real, mas também produzir coletivamente maneiras de trabalhar, formas de enfrentamento dos percalços que a imprevisibilidade do trabalho provoca, e isso exige cooperação. A relação com outrem no trabalho é uma parte integrante da atividade que, mesmo quando esta é realizada de forma individual, é sempre, de alguma forma, conjunta, endereçada (Clot, 2010Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum.); logo, a ação da docente está relacionada com a atividade dos outros e se forma através dela, fazendo alguma coisa dessa em sua própria atividade. A estratégia de buscar auxílio dos diversos profissionais que compõem o ambiente estudantil é uma oportunidade de desenvolver novas competências, pois possibilita a troca de experiências em perspectivas distintas forjadas pelo aparato profissional que cada um coloca em ação no local onde trabalha.

No cotidiano escolar, a indisciplina dos alunos comparece como o grande desafio às professoras, requisitando delas competências sociais para resolver conflitos, apaziguar os alunos e controla a turma.

E9 - Eu sempre digo pros meus alunos que eu tenho que ouvir as duas partes, e não ouvir só uma parte: "Ah mais ele me xingou"... vamos ouvir as duas partes. Vamos conversar: "quem foi que começou primeiro?" A gente tem que ouvir as duas partes.

E4 - A maior parte do tempo eu não passo ensinando no colégio público, eu passo apartando briga... Então, 70% do meu tempo eu tô cuidando deles, e não ensinando, porque se eu me viro pra ensinar, eles já começaram a brigar, o outro puxou o cabelo... O meu tempo aqui é apartando briga, é ensinando, é dizendo os modos de conduta, como se comportar, não pode fazer isso...

Nesses depoimentos, percebemos como o controle de turma mobiliza competências sociais e viabiliza a realização da atividade docente. Entendemos o controle de turma como a manutenção do ambiente propício e favorável ao processo de ensino-aprendizagem, que demanda da professora esforço e discernimento específico (Neves & Seligmann-Silva, 2006Neves, M. Y., & Seligmann-Silva, E. (2006). A dor e a delícia de ser (estar) professora: trabalho docente e saúde mental. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 6(1),19-49.) para desenvolver seu trabalho e garantir a participação dos alunos.

4 Competências em processos

A competência em processos é pensada a partir dos conhecimentos do trabalhador sobre os processos de trabalho. Está relacionada com a capacidade de estruturar os processos produtivos da organização. No caso das professoras, o conhecimento da lógica de complexificação gradativa dos conteúdos a trabalhar em sala de aula, assim como dos níveis de seriação que o sistema educacional oferece aos estudantes, faz parte dessa competência e é exemplificado com a preocupação desta docente em desenvolver nos alunos as habilidades requisitadas para a série cursada:

E2 - Eu puxo muito leitura, escrita e as quatro operações, principalmente terceiros anos, que é a segunda série, né? Eu sempre puxo muito isso pra eles, pra eles terem a noção das quatro operações, saírem lendo e escrevendo. Quando for pra o quinto ano, pro quarto ano, ter a noção.

As professoras reconhecem que a formação escolar que elas tiveram as ajuda na construção dessa competência, conforme pontua uma das docentes: a Pedagogia me ensinou mais a base teórica: saber por que aquilo tá acontecendo, qual a fase a criança tá, a fase de escrita (D4). A competência em processos facilita a mobilização de competências técnicas, pois habilita o educador a distinguir, a partir do conhecimento do desenvolvimento sociopsicomotor dos alunos e do grau de complexidade dos conteúdos curriculares, qual recurso deve ser aplicado.

O domínio de ferramentas tecnológicas e seu uso adaptado às necessidades do ofício também fazem parte das competências em processos. Essas ferramentas podem agilizar o trabalho burocrático extraclasse das professoras, como a informatização da SEDEC já tem possibilitado (atualização das cadernetas on-line, por exemplo), e podem tornar-se recursos que mobilizam competências técnicas na sala de aula:

E3 - A gente trabalhou a dengue com os slides, o cuidado com a dengue, você trabalha até o cuidado que a gente tem que ter em casa.

5 Competências sobre a organização

As competências em organização requerem do trabalhador o conhecimento dos parâmetros de funcionamento da organização e a capacidade de distribuir recursos adequadamente. Em se tratando das professoras, é necessário que conheçam as peculiaridades da escola em que trabalham, onde ela está situada e quais implicações isso traz para a organização do trabalho e para os alunos que ela recebe. Os altos índices de violência no bairro em que a escola pesquisada está localizada requerem das docentes o manejo de situações como esta:

E3 - Muitas vezes, eles vêm com fatos de fora da escola e a gente tem que também trabalhar aquele fato dentro da realidade da escola, né? Muitos falam assim: "Tia, mataram um fulano ali..." Aí eu vou explicar: "Por que foi? Porque era envolvido em droga, vocês sabem que droga não faz bem à saúde nem bem à comunidade..."

Essa questão trazida perpassa a atividade de trabalho das professoras, devido ao fato de a escola estar situada em um bairro violento. Existe uma preocupação das docentes no sentido de que seus alunos não reproduzam na escola o que acontece fora dela e se mantenham afastados dessas situações.

A importância de construir um conhecimento contextualizado é enfatizada no discurso de algumas professoras e explicita a noção de prestação de serviço, pois evidencia o cuidado delas em adequar o trabalho prescrito à realidade dos alunos:

E2 - A gente trabalha muito com o dia a dia deles, porque tem comunidade que é carente, né? Tem comunidade que realmente é bem humilde mesmo, a gente tem que trabalhar com o dia a dia deles.

E6 - Você tá envolvida com a cultura do seu estado, da sua cidade, da sua comunidade.

Atribuímos essa estratégia docente à tentativa de facilitar o processo de aprendizagem e garantir o uso prático do conhecimento construído na sala em situações fora da escola, na vida das crianças; é uma aproximação da prática escolar com o cotidiano.

A observação da atividade de trabalho mostrou-se uma ferramenta indispensável para a confrontação entre as competências que as professores disseram mobilizar e as que, de fato, foram mobilizadas nas situações de trabalho. As competências técnicas predominaram no discurso das docentes, enquanto nas observações as competências sociais ganharam evidência. Os registros não se limitaram à mera descrição dos fatos observados, ao contrário, por meio das observações obtivemos uma visão mais detalhada dos movimentos e manobras dessas professoras na realização de suas tarefas, bem como das estratégias utilizadas na regulação da atividade, aspectos que não tinham sido contemplados nas entrevistas.

Considerações finais

Este artigo teve como objetivo principal identificar as competências mobilizadas pelas professoras do Ensino Fundamental I nas situações de trabalho. No tocante às competências técnicas, foi possível identificar a mobilização de diversos recursos didático-pedagógicos, o que demandava criatividade das professoras para lançar mão do recurso certo no momento em que a necessidade aparecia. A pequena variedade de material disponível na rede pública foi um obstáculo na realização do trabalho e fazia com que as docentes se mobilizassem ainda mais para se colocar em uma postura competente. Competências em serviço têm norteado a atividade de trabalho dessas docentes. Todas elas demonstraram preocupação em conhecer pelo menos um pouco cada aluno e adequar os recursos pedagógicos às suas necessidades para garantir a aprendizagem.

Competências na organização foram mobilizadas para fazer face ao contexto violento no qual a escola está inserida. A importância de construir um conhecimento contextualizado também foi enfatizada no discurso de algumas professoras, demonstrando seu cuidado em adequar o trabalho prescrito à realidade dos alunos. A preocupação das docentes em desenvolver nos alunos as habilidades requisitadas para a série cursada marcou a mobilização de competências sobre processos. O trabalho docente é realizado em constante contato com os alunos, o que torna as competências sociais as mais requisitadas pelas situações de trabalho. A indisciplina dos alunos compareceu como o grande desafio às professoras, mobilizando competências na resolução de conflitos e apaziguamento de alunos e no controle de turma. No que diz respeito à indisciplina, as docentes queixaram-se das falhas na educação familiar e da falta de acompanhamento dos pais no processo educativo dos filhos.

Embora tenhamos feito a opção didática de expor as análises a partir de uma classificação, podemos afirmar que a complementaridade constitui-se como a característica mais marcante das competências, as quais, na maioria das situações, mobilizada conjuntamente. Observamos que, mesmo diante de situações singulares, as trabalhadoras conseguiram tirar proveito das experiências anteriores e criaram estratégias que as ajudaram na resolução do imprevisto emergente. Nesse momento, através da inteligência da prática, várias competências foram mobilizadas para garantir a realização do trabalho.

Identificamos a necessidade de capacitar os educadores a usar novas tecnologias relacionadas às atividades educativas, já que o ambiente escolar é notadamente marcado pela imprevisibilidade e as crianças a cada dia trazem situações inusitadas às docentes. Capacitar as educadoras para desenvolver instrumentos didáticos através de materiais reciclados também é uma alternativa à escassez de material da rede pública. Outra questão também relevante diz respeito à indisciplina. Essa dificuldade é, muitas vezes, colocada sob a responsabilidade da professora, que supostamente não teria domínio de turma. Em nosso entender, tal problema em geral não é fruto da incompetência do professor em ter controle de turma, mas de uma série de questões estruturais que o excedem e que toda a sociedade precisa estar implicada em solucionar - como violência em casa e no bairro, falta de estrutura escolar para dar conta de problemas singulares de cada estudante e outras. Exatamente por isso, entendemos que a solução não está estritamente vinculada à sala de aula e ao desenvolvimento de competências docentes, mas à reestruturação de uma série de elementos que escapam à esfera da sala de aula.

A identificação de competências mobilizadas nas situações de trabalho possibilitou o diagnóstico de lacunas, o que poderá auxiliar na criação de estratégias e propostas de ação capazes de melhorar as condições de trabalho e de vida das trabalhadoras. Para tanto, faz-se necessário estabelecer diálogo entre aqueles que propõem as medidas e aqueles que as executam.

No caso específico deste estudo, buscamos uma aproximação com as situações vividas pelas professoras em seu dia a dia; no entanto evidenciamos uma limitação que remonta à dificuldade de apreender competências em processos, provavelmente devido a falhas na elaboração dos instrumentos para produção de dados. Isto permitiu um olhar situado, mas não lançou luz suficiente aos fluxos. Outra possibilidade seria expandir as observações para outros contextos da escola, já que a técnica registrou somente o trabalho realizado em sala de aula e não possibilitou a análise das professoras em sua interação com os demais profissionais.

As complexas questões ligadas ao exercício da competência no dia a dia das professoras requer delas grande mobilização. Entendemos que o quadro que apresentamos neste artigo é, por definição, parcial, situado, ligado às situações concretas de vida e trabalho dessas docentes em um momento específico, já que é impossível antecipar plenamente as competências que se manifestam e se atualizam em cada situação em uma relação escolar.

Permanece o desafio - que pretendemos enfrentar e vencer em outras pesquisas - de melhor compreender como o evidenciar das competências pode lançar luz para se pensarem questões centrais para a educação, como a formação docente, as condições de vida e trabalho dos professores, a relação da escola com a comunidade e outras.

  • O presente estudo é oriundo de dissertação de Mestrado em Psicologia (Universidade Federal da Paraíba) e contou com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2014

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2013
  • Revisado
    20 Ago 2013
  • Aceito
    28 Ago 2013
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