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As retraduções de Trauer und Melancholie para o português: o léxico freudiano sob o olhar da Linguística de Corpus

[ Trauer und Melancholie retranslated into Portuguese: Freud's lexicon from the perspective of Corpus Linguistics]

Resumo

Este trabalho se propõe a utilizar os princípios inerentes à Linguística de Corpus - listas de palavras, palavras-chave e linhas de concordância - com o intuito de fazer uma análise comparativa do texto Trauer und Melancholie , escrito por Freud em 1917, e suas cinco retraduções publicadas em português no Brasil. Devido à insatisfação em relação às traduções indiretas dos escritos freudianos, desde a década de 1990 têm surgido propostas de retraduções que visam recuperar nos textos em português a terminologia e o estilo que o pai da Psicanálise utilizou em alemão. A fim de verificar até que ponto as escolhas tradutórias estão diretamente ligadas ao texto-fonte, partimos de dados empíricos levantados por ferramentas computacionais. As análises quantitativas e qualitativas revelaram que as retraduções diretas foram influenciadas pelas anteriores - indiretas -, mostrando que outros fatores, além do texto de partida, afetam o texto traduzido, ainda que os tradutores não se deem conta disso.

Palavras-chave:
retradução; Trauer und Melancholie; terminologia; Freud; Linguística de Corpus

Abstract

This essay aims at using the main principles of Corpus Linguistics - wordlists, keywords and concordances - to make a comparative analysis of Freud's Trauer und Melancholie , written in 1917, and its five retranslations published in Brazilian Portuguese. Due to dissatisfaction with indirect translations of Freud's texts, since the 1990s there have been proposals which aim to recover in Portuguese the terminology and the style used by the father of psychoanalysis in German. In order to examine the extent to which translational choices correspond to the lexis used in the source text, we used empirical data collected by computer tools. Quantitative and qualitative analyses of the texts revealed that direct retranslations were influenced by previous - indirect - retranslations, showing that factors other than the source text affect the translated text, regardless of the translator's awareness of it.

Keywords:
retranslation; Trauer und Melancholie; lexis; Freud; Corpus Linguistics

1 Introdução

Nascido em 1856 na região da Morávia, então pertencente ao Império Austro-Húngaro, Sigmund Freud utilizou-se basicamente de sua língua materna - o alemão - para construir o arcabouço teórico da psicanálise. Portanto, a tradução desempenhou um papel primordial na disseminação dos estudos psicanalíticos. Assim, inúmeros trabalhos, em diversos idiomas, já foram dedicados à análise e às consequências das escolhas tradutórias para a compreensão da extensa obra legada pelo estudioso. Em geral, esses trabalhos buscam avaliar até que ponto o léxico, a conceituação e o estilo do precursor da psicanálise são recuperados nos textos traduzidos. Entre essas pesquisas, destacamos as de Lacan (1964Lacan, Jacques. Du "Trieb" de Freud et du désir du Psychanalyste. In: Écrits II , Paris: Éditions du Seuil, 1964, 851-54.), Timpanaro (1975Timpanaro, Sebastiano. Il lapsus freudiano. Psicanalisi e critica testuale . Firenze, La Nuova Italia, 1975.), Bettelheim (1983Bettelheim, Bruno. Freud and man's soul . New York, Knopf, 1983.), Souza (2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.) e Tavares (2012a_____. Vocabulário metapsicológico de Freud. In: Pandaemonium Germanicum 15(20), dez. 2012a, 1-21., 2012b _____. As novas traduções de Freud feitas diretamente do alemão: estilo e terminologia. In: TradTerm 19, nov. 2012b, 109-126.e 2013_____. Trieb: um conceito fronteiriço e suas travessias ao português. In: Tavares, Pedro Heliodoro / Costa, Walter Carlos / Paula, Marcelo Bueno de. Tradução e Psicanálise . Rio de Janeiro, 7Letras, 2013, 141-160.).

As primeiras incursões de Freud em português advêm de fontes incertas. Bottmann (2013Bottmann, Denise. Curiosidades freudianas (1931-1969). In: Belas Infiéis 2(2), 2013, 159-173.) afirma que os textos publicados em forma de livros avulsos na década de 1930, e posteriormente inseridos na coletânea Obras completas de Sigmund Freud , publicada pela editora Delta a partir da década de 1950, tratavam-se majoritariamente de retraduções do francês e do espanhol, e apenas alguns teriam partido dos originais em alemão. Porém, a fonte de cada texto inserido na coleção não é esclarecida.

Se a intermediação de outros idiomas por si só já motivou uma série de desconfianças por parte de estudiosos em Tradução e em Psicanálise em relação a esses textos em português, mais severas ainda são as críticas à retradução advinda da inglesa The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud , coordenada por James e Alix Strachey e lançada entre 1956 e 1974. Assim como a versão inglesa, a Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud , 2 2 Vale ressaltar que a obra foi apresentada ao público brasileiro como tradução direta do alemão, contando, inclusive, com um prefácio de Anna Freud, no qual a filha do estudioso elogia a iniciativa da editora local. que começou a ser publicada no Brasil na década de 1970, também é acusada de ser tecnicista demais, contrariando a linguagem corriqueira empregada nos textos originais. Diante dessa insatisfação, versões diretas do alemão foram ansiosamente aguardadas.

Apesar de alguns trabalhos começarem a ser retraduzidos separadamente antes mesmo de a obra freudiana cair em domínio público, os primeiros projetos de versão direta do alemão para o português em forma de coletânea só vieram a público no início do século XXI. Contudo, diferentemente do que se poderia esperar, o fato de a obra de Freud receber as primeiras retraduções diretamente do alemão não cessou as discussões entre os estudiosos em psicanálise e em tradução. A contínua insatisfação motivou outras retraduções e, atualmente, estão em andamento outros projetos de coletâneas de textos freudianos retraduzidos diretamente do alemão, como o da Companhia das Letras , a cargo de Paulo César de Souza, e a versão de Renato Zwick, que está sendo lançada pela editora L&PM (cf. Tavares 2012a_____. Vocabulário metapsicológico de Freud. In: Pandaemonium Germanicum 15(20), dez. 2012a, 1-21.). Além dessas coleções, são frequentemente publicados livros e artigos avulsos que ajudam a divulgar no Brasil os inúmeros estudos do pai da Psicanálise. Enquanto isso, a Standard brasileira , retradução do inglês, continua sendo reeditada pela Imago, e, até o momento, é a única que reúne, em língua portuguesa, a quase totalidade dos trabalhos de Freud, conforme aqueles reunidos originariamente como Gesammelte Werke.3 3 É interessante notar que Gesammelte Werke , literalmente, 'obras reunidas', tenha sido traduzido em praticamente todo o mundo como 'obras completas', ainda que seja notório que nenhuma coletânea até hoje tenha abarcado toda a produção de Sigmund Freud. Talvez essa escolha venha a atender interesses puramente mercadológicos, mas não nos cabe confirmar essa suposição. Essa seria apenas mais uma polêmica em torno da tradução da obra freudiana.

Em geral, o que existe em comum entre esses projetos é a proposta de recuperar nos textos em português tanto a terminologia quanto o estilo que o precursor da psicanálise utilizou em alemão para introduzir conceitos até então inéditos. Porém, observa-se uma grande dificuldade em unir esses aspectos, como salienta Tavares (2013_____. Trieb: um conceito fronteiriço e suas travessias ao português. In: Tavares, Pedro Heliodoro / Costa, Walter Carlos / Paula, Marcelo Bueno de. Tradução e Psicanálise . Rio de Janeiro, 7Letras, 2013, 141-160.: 144):

Conforme o viés dado às traduções, sobretudo àquelas que privilegiaram um rigor conceitual acima da manutenção do estilo freudiano, passou-se a observar uma crescente disputa entre os freudianos quanto a quem, em que língua, ter-se-ia mantido mais fiel à obra do mestre.

Apesar de o conceito de 'fidelidade' em oposição à 'traição' já ter cedido lugar a outras questões nos estudos da tradução, inevitavelmente vem à baila nas discussões na área (cf. Schiller 2013Schiller, Paulo. Inconsciente e tradução. In: Tavares, Pedro Heliodoro/ Costa, Walter Carlos/. Paula, Marcelo Bueno de Tradução e Psicanálise . Rio de Janeiro, 7Letras, 2013, 17-22.). A premissa de incompletude, que geralmente permeia as traduções dos textos freudianos, parece compreensível aos olhos dos estudiosos. Afinal, para Freud, 'traduzir' não se limitava a passar de uma língua para outra, mas se manifestava, por exemplo, no relato de um caso: "Se Freud traduziu de forma tão magnífica e clara suas ideias no alemão, até hoje procuramos uma forma adequada de vertê-las ao português" ( Tavares 2014_____. Flusser com Freud. Tradução, Sujeito e Cultura. In: Pandaemonium Germanicum 17(23), jun. 2014, 223-239.: 234). E essa busca incessante pela adequação se 'traduz' em múltiplas retraduções da obra do mestre.

Partindo de um levantamento quantitativo, tendo como base os pressupostos subjacentes à Linguística de Corpus, analisamos as cinco retraduções - diretas e indiretas - do texto Trauer und Melancholie ( Freud [1917] 1946Freud, Sigmund. Trauer und Melancholie. In: Freud, Sigmund. Gesammelte Werke. Chronologisch geordnet (10)Werke aus den Jahren 1913-1917. Londres, Imago, [1917] 1946, 428-446.) publicadas em português brasileiro. Por meio da análise de palavras-chave levantadas a partir do texto original, buscamos verificar se as escolhas tradutórias, especialmente aquelas observadas nas versões que partiram do original em alemão, conseguem recuperar o linguajar cotidiano atribuído aos textos freudianos, evitando o tecnicismo criticado nas traduções indiretas, especialmente aquelas advindas da língua inglesa. Assim, vale ressaltar que nosso objetivo não é apontar qual a melhor tradução em português do texto analisado, mas sim avaliar se os objetivos almejados com as diferentes propostas de retradução são alcançados.

2 (Re)tradução de Freud

Conforme já mencionado, a grande discussão em torno da tradução dos escritos de Freud está relacionada ao fato de os textos originais apresentarem conceitos inéditos utilizando o linguajar cotidiano, por meio de um estilo peculiar, que, segundo Souza (2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.), seria acessível até mesmo a uma criança. Para alguns pesquisadores, esses conceitos deveriam ser introduzidos por meio de uma nova terminologia nas diferentes línguas-culturas de chegada. Para outros, a opção do autor por utilizar palavras do vernáculo alemão deveria ser recuperada nos textos traduzidos. Em outras palavras, poderíamos dividir as vertentes em pelo menos dois grandes grupos: a um pertenceriam aqueles favoráveis à criação de uma terminologia própria para tratar de conceitos psicanalíticos, enquanto ao outro restariam os que acreditam que o linguajar coloquial utilizado pelo autor deveria ser recriado nas (re)traduções, mantendo-se, assim, uma literalidade com o texto-fonte. Diante desse impasse, observamos uma constante retradução dos textos freudianos.

Antes de tudo, parece importante distinguir o uso dos termos 'tradução' e 'retradução' conforme utilizados neste artigo. Na definição de Baker e Saldanha (2009Baker, Mona / Saldanha, Gabriela. Routledge encyclopedia of Translation Studies . 2nd ed. New York, Routledge, 2009.), retradução é o termo utilizado para se referir tanto ao ato de traduzir uma obra que tenha sido previamente traduzida naquela língua (assim como ao resultado desse ato) quanto a uma tradução indireta, ou seja, intermediada por outra língua que não a original. Sendo assim, poderíamos afirmar que a obra de Freud em língua portuguesa seria quase sempre uma retradução, visto que teria sido introduzida no país por meio de textos previamente traduzidos em espanhol, francês e inglês, e apenas mais tarde esses mesmos textos receberiam versões diretas do alemão (cf. Bottmann 2013Bottmann, Denise. Curiosidades freudianas (1931-1969). In: Belas Infiéis 2(2), 2013, 159-173.). Talvez a única exceção seja a tradução de Durval Marcondes para Cinco lições de psicanálise , publicada pela editora Nacional na década de 1930 e republicada pela editora Imago na década de 1970, já como parte da Standard brasileira. Porém, conforme mencionado acima, as primeiras publicações de Freud em português nem sempre forneciam informações sobre os textos-fonte. Ressaltamos, ainda, que, neste artigo, utilizamos a grafia '(re)tradução(ões)' para nos referirmos tanto a tradução(ões) quanto a retradução(ões).

Tradicionalmente, as obras mais retraduzidas costumam ser os textos religiosos e aquelas pertencentes ao cânone literário, ao passo que a retradução de textos técnicos e científicos seria desnecessária. Tratando especificamente de textos não técnicos, Berman (1990Berman, Antoine. La retraduction comme espace de la traduction. In: Palimpsestes 4, 1990, 1-8.) argumenta que a tradução seria sempre um ato incompleto que pode chegar à completude por meio das retraduções, uma vez que as primeiras traduções teriam o objetivo de domesticar o texto estrangeiro na cultura de chegada, enquanto às subsequentes seria dedicada mais atenção, tanto em relação ao conteúdo quanto ao estilo do original. Contudo, a crença em um texto-fonte como possuidor de um significado imanente que deve ser recuperado na tradução tem sido muito questionada. Para Gambier (1994Gambier, Yves. La retraduction, retour et detour. Meta 39(3), 1994, 413-417.), essa visão 'logocêntrica' do texto original é apenas ilusória, pois não existiria um sentido imutável depositado no original.

Outra justificativa para a retradução estaria ligada ao 'envelhecimento' de traduções prévias, pois, ao contrário dos originais, as traduções 'envelheceriam' e, portanto, deveriam ser atualizadas ( Berman 1990Berman, Antoine. La retraduction comme espace de la traduction. In: Palimpsestes 4, 1990, 1-8.). É importante considerar, no entanto, que nem todas as traduções são afetadas pela passagem do tempo da mesma forma, e o período entre uma (re)tradução e outra varia bastante. Em se tratando da obra de Freud, conforme já observado, 'envelhecimento' não é o que determina a necessidade de novas retraduções. Afinal, diferentes retraduções de sua obra ocorrem inclusive simultaneamente.

Alguns estudiosos acreditam ainda que as retraduções não deveriam se deixar influenciar pelas primeiras traduções: "O tradutor não deve prestar muita atenção à tradução anterior. O objetivo da nova tradução não é melhorar a outra. O tradutor não é uma empresa de reformas: ele deve construir um prédio novo. O velho ainda está de pé; ninguém vai demoli-lo ou reformá-lo" (Tulli 2001 apud Skibińska & Blumczyński 2009Skibińska, Elżbieta / Blumczyński, Piotr. Polish metaphorical perceptions of the translator and translation. Target 21(1), 2009, 30-57.: 45). 4 4 "The translator [...] should not pay too much attention to a previous translation. A new translation does not consist in improving an earlier one. A translator is not a remodeling company: he is to erect a new building. The old building still stands; no one is going to demolish or remodel it." [tradução de R. Rebechi]. Gambier (1994Gambier, Yves. La retraduction, retour et detour. Meta 39(3), 1994, 413-417.) não só afirma que esse distanciamento é impossível, como também defende a análise da relação estabelecida entre o tradutor e as versões anteriores, das restrições dos editores e da opinião dos leitores. Naturalmente, esse aprofundamento nem sempre é possível. Aliás, acreditamos que nem seja necessário, pois, muitas vezes, as escolhas tradutórias falam por si, ainda que os tradutores nem sempre se deem conta disso: "[...] o trabalho do tradutor é, em grande medida, de natureza inconsciente" ( Schiller 2013Schiller, Paulo. Inconsciente e tradução. In: Tavares, Pedro Heliodoro/ Costa, Walter Carlos/. Paula, Marcelo Bueno de Tradução e Psicanálise . Rio de Janeiro, 7Letras, 2013, 17-22.: 19).

A intertextualidade - seja ela explícita ou sutil - é inerente a qualquer texto e, para Venuti (2009Venuti, Lawrence. Translation, Intertextuality, Interpretation. In: Romance Studies 27(3), jul/2009, 157-73.: 158), a tradução é um caso ímpar de intertexto, pois, nela, três relações ocorrem concomitantemente. A primeira se dá entre o texto original e as leituras feitas pelo autor; a segunda, entre esse original e sua tradução; e a terceira, entre o texto traduzido e o leitor. Enfatiza, ainda, que a intertextualidade não envolve apenas escolhas lexicais, mas também interpretação. Para o pesquisador, a tradução é sempre um processo de descontextualização e recontextualização, que se mostra ainda mais exacerbado quando se trata de um texto que já é tradução na língua de partida, como é o caso das primeiras retraduções dos textos freudianos em português, que tiveram como fonte textos já traduzidos em outros idiomas.

2.1 Freud em português

As primeiras (re)traduções da obra de Freud em português foram realizadas na década de 1930 sob supervisão de Elias Davidovitch, que, juntamente com Odilon Gallotti e outros tradutores, traduziu textos que foram lançados em forma de livros avulsos e, mais tarde, seriam inseridos na primeira coleção dos escritos freudianos publicada no Brasil - Obras completas de Sigmund Freud . Não se sabe ao certo a língua de origem dos textos traduzidos, mas, em nota introdutória à coleção, o leitor é informado que a maior parte teria como fonte textos previamente traduzidos em espanhol e francês. No que tange ao seu trabalho, Elias Davidovitch esclarece anos mais tarde: "Não traduzi do alemão, mas do francês, um pouco do espanhol, algo do inglês. Não havia terminologia em português. Para esclarecer, eu dava exemplos em nota de pé de página". 5 5 Entrevista concedida a Sieni Campos para o caderno Ao pé da letra do Sindicato Nacional de Tradutores, em agosto de 1992. Essa primeira versão de Freud publicada no Brasil não seria referência por muito tempo.

Durante aproximadamente três décadas, a versão amplamente utilizada em português por estudantes e pesquisadores da psicanálise freudiana foi a Edição Standard brasileira , publicada entre as décadas de 1970 e 1980, que teve como fonte a Standard Edition inglesa, o que não significa que a aceitação dessa versão tenha se dado de forma incontestável. Mas retomemos brevemente a recepção da Standard Edition inglesa antes de nos voltarmos para sua retradução em português.

Apesar de popularizar a obra de Freud na língua que estava se tornando referência, principalmente devido à ascensão econômica e cultural norte-americana na época, a Standard Edition sofreu severas críticas, entre as quais destacamos as de Bruno Bettelheim que, em Freud and Man's Soul (1983Bettelheim, Bruno. Freud and man's soul . New York, Knopf, 1983.), acusa-a de ser demasiadamente técnica, sacrificando o estilo humanista de Freud para se adequar à vertente cientificista que imperava na Inglaterra na época. Nessa tradução, Freud 'falaria' por meio de termos de origem grega e latina, como se tornou praxe nas ciências. Para citar alguns exemplos já amplamente discutidos, Ich [eu] no original se tornou ego na versão inglesa, e Fehlleistung [ato falho] foi traduzido por parapraxis .

No Brasil, vários estudos também já foram dedicados à análise e à crítica das escolhas lexicais empregadas nas traduções dos textos freudianos. Para Tavares (2012a_____. Vocabulário metapsicológico de Freud. In: Pandaemonium Germanicum 15(20), dez. 2012a, 1-21.: 13), a versão inglesa seria a responsável por 'dissipar' a peculiaridade da escrita freudiana: a terminologia que soaria familiar aos leitores do texto em alemão poderia se tornar inacessível para o leitor dos textos traduzidos. Para Souza (2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.: 31), "Um traço marcante do prosador Freud é a relação de camaradagem, quase de cumplicidade, que logra estabelecer com o leitor". Retomando as pesquisas de Pörksen (1973Pörksen, Uwe. Zur Terminologie der Psychoanalyse. In: Deutsche Sprache 3, 1973, 7-36.), Souza (2010)_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.admite que as novas ciências pressuponham a criação de termos ou mesmo a utilização de antigos, mas com novas acepções. Contudo, no tocante à obra freudiana, argumenta que a linguagem empregada não poderia ser denominada 'técnica', mas sim 'culta'. O viés tecnicista empregado no texto traduzido causaria um estranhamento ao leitor, ao passo que as palavras e expressões vernáculas, utilizadas no texto original, seriam facilmente compreendidas em alemão, ainda que se referissem a novos conceitos.

Apesar de tecer críticas a algumas traduções de seus textos (cf. Escalante 2013Escalante, Alba. Traduzir Psicanálise: Impasses de um Texto. In: Tavares, Pedro Heliodoro / Costa, Walter Carlos / Paula, Marcelo Bueno de. Tradução e Psicanálise . Rio de Janeiro: 7Letras, 2013, 37-46.), Freud, provavelmente focado na divulgação da psicanálise, não parecia compartilhar da mesma inquietude em relação às questões terminológicas que tanto afligem seus discípulos ( Tavares 2011Tavares, Pedro Heliodoro. Versões de Freud - Breve panorama crítico das traduções de sua obra . Rio de Janeiro, 7Letras, 2011.). E isso nos parece bastante coerente, uma vez que não estava desenvolvendo uma área já fundamentada, mas sim criando uma nova disciplina, sem terminologia prévia: "[...] Freud, para criar esse campo do conhecimento absolutamente novo só criou, na verdade, um único neologismo: a palavra psicanálise ." ( Carone 1989c_____. Freud em português: tradução e tradição. In: Souza, Paulo César de. (org.) Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan . São Paulo, Brasiliense, 1989c, 176-188.) (ênfase no original.). Aliás, é preciso lembrar que questões relativas à padronização terminológica começaram a circular apenas no final da década de 1960, com o lançamento da obra Einfuhrung in die Allgemeine Terminologielehre und terminologische Lexikographie ( Wüster 1979Wüster, Eugen. Einführung in die allgemeine Terminologielehre und terminologische Lexikographie . 2 v. Viena/Nueva York, Springer, 1979.).

Muitas das ferrenhas críticas à edição Standard brasileira foram feitas pela psicanalista e tradutora Marilene Carone. Apesar de também criticar a Standard Edition inglesa por seu viés tecnicista, Carone (1989aCarone, Marilene. Freud em português: uma tradução selvagem. In: Souza, Paulo César. (org.) Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan . São Paulo, Brasiliense, 1989a, 160-166.) acredita que esse aspecto possa ser perdoado, pois se justificaria por questões ideológicas envolvidas na tarefa de apresentar as ideias psicanalíticas nos países anglófonos em determinado momento social e cultural. Em relação à contraparte em português, contudo, a pesquisadora identifica "falta de competência" que faria com que Freud falasse como "um personagem de filme dublado de televisão" ( Carone 1989aCarone, Marilene. Freud em português: uma tradução selvagem. In: Souza, Paulo César. (org.) Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan . São Paulo, Brasiliense, 1989a, 160-166.: 161). Para a tradutora, uma boa tradução não deixaria transparecer a língua de origem, e isso só seria alcançado por meio de equivalentes tradutórios que soassem "naturais e usuais na língua de chegada" ( Carone 1989aCarone, Marilene. Freud em português: uma tradução selvagem. In: Souza, Paulo César. (org.) Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan . São Paulo, Brasiliense, 1989a, 160-166.: 161). Critica, também, o descaso pela busca do "sentido exato" da palavra utilizada no original ( Carone 1989aCarone, Marilene. Freud em português: uma tradução selvagem. In: Souza, Paulo César. (org.) Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan . São Paulo, Brasiliense, 1989a, 160-166.: 165).

Nem mesmo o título da versão brasileira das obras de Freud escapou das críticas. Em relação à palavra standard (padrão), utilizada na versão inglesa e posteriormente mantida na coletânea da Imago em português, Bracco (2012_____. As novas traduções de Freud: uma renovação bem-vinda! Jornal de Psicanálise 45(83), 2012, 233-241.: 239) argumenta que "[...] remete a uma rigidez de interpretação do pensamento freudiano [...]", ainda que seja compreensível para aquele momento histórico que James Strachey, sob supervisão de Ernest Jones, tenha imprimido em sua tradução um viés mais acadêmico do que aquele empregado no texto original. Ainda assim, a estudiosa questiona a aceitação das escolhas tradutórias presentes na obra como se fossem "imutáveis".

Diante de tamanha insatisfação com os textos freudianos em português disponíveis na época, na década de 1980 Marilene Carone decidiu assumir a tarefa de traduzir Freud diretamente do alemão a fim de oferecer uma opção àquela advinda de James Strachey, a quem acusava de nortear seu trabalho de acordo com seus próprios gosto e concepção. Infelizmente, a morte precoce a impediu de concluir o trabalho. Ainda assim, Carone chegou a elaborar a tradução comentada dos textos que receberam, em português, os títulos A negação, Luto e melancolia e Conferências introdutórias à psicanálise .

Antes mesmo de a obra freudiana cair em domínio público em 2009, a própria Imago, que detinha os direitos do autor no Brasil, começou a lançar a série temática Escritos sobre a psicologia do inconsciente , com tradução direta do alemão, coordenada pelo psicanalista e tradutor Luiz Alberto Hanns. Enquanto isso, Paulo César de Souza já iniciava suas próprias versões de Freud, que começaram a ser publicadas em 2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.pela Companhia das Letras . Mantendo as frases longas e limitando-se a comentários próprios sobre questões de tradução e semântica, essa versão é considerada "clean" e próxima do original ( Bracco 2011Bracco, Mariangela O. Kamnitzer. E finalmente Freud aprendeu a falar português. In: Ide 34(52). São Paulo, ago. 2011, 260-267.: 264).

Contudo, o entusiasmo inicial com os textos traduzidos diretamente do alemão foi diminuindo e logo os psicanalistas voltaram a basear seus estudos na Standard brasileira , muitos deles simplesmente por comodismo, não necessariamente por crítica às novas traduções ( Bracco 2012_____. As novas traduções de Freud: uma renovação bem-vinda! Jornal de Psicanálise 45(83), 2012, 233-241.). Afinal, as críticas mais ferrenhas à edição Standard brasileira são aquelas imputadas pelos estudiosos (também) preocupados com as questões tradutórias e terminológicas, não só com as conceituais, que preocupariam aqueles que se dedicam exclusivamente às questões psicanalíticas.

Além das (re)traduções aqui mencionadas, outras estão a caminho (cf. Tavares 2013_____. Trieb: um conceito fronteiriço e suas travessias ao português. In: Tavares, Pedro Heliodoro / Costa, Walter Carlos / Paula, Marcelo Bueno de. Tradução e Psicanálise . Rio de Janeiro, 7Letras, 2013, 141-160.), e com elas, certamente, mais polêmica em torno de qual seja a melhor tradução de Freud em português. Mas limitar-nos-emos a analisar algumas questões terminológicas nas retraduções já publicadas de Trauer und Melancholie .

2.2 Trauer und Melancholie em português

Escrito em 1915 e publicado em 1917, Trauer und Melancholie é um dos escritos que tratam da formação do inconsciente e de seu papel na psicopatologia, conhecidos como 'trabalhos metapsicológicos'. Foi nele que Freud explicou, pela primeira vez, que o Über-Ich ('superego', 'super-eu'), sempre agressivo, está mais a serviço da morte do que da vida (cf. Gay 1988Gay, Peter. Freud: a life for our time . London, J. M. Dent & Sons, 1988.). Contudo, não foi apenas devido a sua importância psicanalítica que esse texto foi escolhido para ilustrar a metodologia de análise empregada neste estudo, mas principalmente pelo fato de contar com cinco versões publicadas em português brasileiro.

A primeira versão foi lançada pela editora Delta entre o final da década de 1950 6 6 Não há menção em nenhum dos dezoito volumes da coletânea sobre a data de publicação. Bottmann (2013) acredita que a coletânea tenha sido lançada em 1950. Como Luto e melancolia está incluída no VIII volume da série, nesse caso talvez tivesse vindo a público somente na década de 1960. Já Rivera (2012) afirma que a obra foi lançada na década de 1940. e a década de 1960, no oitavo volume da coletânea Obras completas de SigmundFreud , com o título A Tristeza e a melancolia (Freud 1950_____. A tristeza e a melancolia. In: Freud, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud , vol. 8, Rio de Janeiro, Delta, 1950, 235-253.), com tradução de Isaac Izecksohn. Não há informações precisas sobre o texto-fonte utilizado. Conforme já mencionado, o leitor dessa coletânea é informado de que os textos foram retraduzidos do francês e do espanhol, mas a língua de partida de cada um não é revelada. É possível, contudo, fazer algumas inferências, como será mostrado na análise.

Tendo como texto-fonte Mourning and Melancholia ( Freud 1957_____. Mourning and melancholia. In: Freud, Sigmund. The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud , vol. 8. Trad. James Strachey. Londres, Hogarth Press, 1957, 243-258.), a segunda versão em português, já com o título Luto e melancolia , faz parte do volume XIV da coletânea ( Freud 1976_____. Luto e melancolia. In: Freud, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud , vol. 14Rio de Janeiro, Imago, 1976, 243-263.). Assim como a versão inglesa, a Standard brasileira também foi alvo de severas críticas, muitas delas advindas de Marilene Carone, que, apesar de não ter levado a cabo o projeto de retraduzir toda a obra de Freud para o português, conseguiu oferecer sua versão de Luto e Melancolia , tendo como texto-fonte o original em alemão. Essa versão foi publicada primeiramente no periódico Novos estudos Cebrap ( Freud 1992_____. Luto e melancolia. Trad. Marilene Carone. In: Novos Estudos - Cebrap 32, março 1992, 128-142.), e republicada em forma de livro em 2011, pela editora Cosac Naify. Na introdução, Carone apresenta dois objetivos que justificariam sua proposta de tradução: "[...] oferecer uma tradução desse texto a partir do original alemão [...] e abrir espaço para a discussão da questão da tradução de Freud no Brasil" (in Freud 2011_____. Luto e melancolia . Trad. Marilene Carone. São Paulo, Cosac Naify, 2011.: 37). Na obra, a tradutora também aborda algumas divergências entre escolhas tradutórias, a partir do cotejo do texto original alemão, da versão contida na Standard Edition inglesa, daquela presente na Standard brasileira , assim como da sua própria versão. Segundo Carone, os termos e expressões inseridos nessa discussão referem-se aos "[...] conceitos e formulações básicas que não prescindem de um tratamento rigoroso, preciso e homogêneo, sob pena de deturpar seriamente o pensamento do criador da psicanálise" (Carone in Freud 2011: 38).

Vale ressaltar que a versão utilizada neste estudo para o levantamento semiautomático dos dados é a de 2011, na qual não só foram feitas alterações que adequam o texto às regras de ortografia em vigor no Brasil desde 2009, mas, acertadamente, também correções gramaticais, especialmente no que concerne ao uso correto dos pronomes 'este(s)', 'esta(s)' e 'isto', por vezes trocados corretamente, na nova versão, por 'esse', 'essa' e 'isso'. Afinal, uma das críticas de Carone (1989aCarone, Marilene. Freud em português: uma tradução selvagem. In: Souza, Paulo César. (org.) Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan . São Paulo, Brasiliense, 1989a, 160-166.: 161) era justamente lançada aos "erros crassos de português" da Standard Brasileira .

O quarto texto em português utilizado neste estudo também foi publicado pela editora Imago, mas dessa vez foi o original em alemão que serviu de fonte para essa versão de Trauer und Melancholie , e que faz parte da série Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Essa tradução, coordenada pelo psicanalista e tradutor Luiz Alberto Hanns, é parte do volume II, publicado em 2006, que abrange trabalhos originalmente escritos entre 1915 e 1920. De acordo com Bracco (2011Bracco, Mariangela O. Kamnitzer. E finalmente Freud aprendeu a falar português. In: Ide 34(52). São Paulo, ago. 2011, 260-267.: 264), esse projeto buscaria uma "tradução sem sotaque", uma forma de reproduzir o pensamento de Freud dando prioridade ao conteúdo, não à forma. As intervenções no texto serviriam para adaptá-lo ao contexto sintático-semântico da língua portuguesa, a fim de torná-lo completamente compreensível, sem soar estranho para os leitores. Como exemplo, podemos citar a prática de transformar frases longas, frequentes na língua alemã, em frases mais curtas, comuns em português.

Diferentemente das outras versões utilizadas nesta pesquisa, nesse Luto e melancolia observa-se a opção por deixar explícito no texto algumas palavras em alemão, entre colchetes, como no excerto abaixo:

Na realidade, o que se nos apresenta aqui é a instância comumente denominada consciência moral [ Gewissen ]. Devemos incluí-la entre as grandes instituições do Eu juntamente com a censura que parte do consciente [ Bewusstseinszensur ] e com o teste de realidade [ Wahrheit ] 7 7 Ressaltamos que no trecho citado o termo utilizado no original em alemão é Realität , parte do substantivo composto Realitätsprüfung , não Wahrheit . . ( Freud 2006_____. Luto e melancolia. In: Freud, Sigmund. Escritos sobre a psicologia do inconsciente , vol. 2. Trad. Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro, Imago, 2006, 99-122.: 107)

Segundo o coordenador da tradução, Luiz Alberto Hanns, esse recurso é utilizado porque nem sempre os termos fundamentais da Psicanálise em alemão foram traduzidos da mesma forma em português.

Em 2010, é reeditado o livro As palavras deFreud , que teria o objetivo de "preparar o terreno" (Souza 2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.: 9) para as versões diretas do alemão dos textos freudianos que começariam a ser lançadas no mesmo ano pela Companhia das Letras , com tradução de Paulo César de Souza. Tomando como base textos escritos originalmente entre 1914 e 1915, na obra Souza (2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.: 18) discute problemas de tradução de termos que julga "[...] básicos da teoria freudiana" na Standard inglesa e nas Œuvres Complètes francesa, e lamenta a inexistência de tradução direta do alemão das Obras completas de Freud em português.

Apesar de reconhecer no precursor da psicanálise diferentes características de escrita, evitando, assim, uma definição taxativa do estilo freudiano, Souza (2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.) acredita ser predominante nos escritos freudianos a busca pelo envolvimento com o leitor. Por vezes, Souza se utiliza do adjetivo 'claro' para se referir ao estilo de escrita de Freud, mas ressalta que o grau de 'clareza' pode variar de acordo com a tipologia de seus escritos - relatos, cartas, ensaios teóricos etc. Como exemplo, observa os traços de oralidade comuns na sua obra, evidenciados pelo uso de estruturas sintáticas e escolhas lexicais transparentes, mas nem por isso de fácil compreensão.

Portanto, a mais recente retradução de Luto e melancolia analisada nesta pesquisa é a de Paulo César de Souza que, em nota introdutória à edição, esclarece que seu objetivo é "[...] oferecer os textos com o máximo de fidelidade ao original, sem interpretações ou interferências de comentaristas e teóricos" ( Freud 2010_____. Luto e melancolia. Trad. Paulo César de Souza. In: Obras completas , vol. 12. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, 170-194.: 10). Souza ressalta que se utilizou de notas para esclarecer sobre passagens e termos julgados problemáticos e/ou reproduzidos a partir de equivalentes encontrados em versões estrangeiras dos textos, mas que evitou soluções pertencentes às versões das editoras Delta e Imago por não terem sido traduzidas diretamente do alemão.

Parece importante investigar o conceito de 'fidelidade' para Paulo César de Souza: "A fidelidade, em tradução, implica reconhecer o que houver de sombra no original, e não querer lançar luz ali onde o autor tateia na penumbra" ( Souza 2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.: 274). O pesquisador propõe ainda três considerações para os tradutores de Freud: i) procurar manter a uniformidade, mas sempre considerando o contexto; ii) evitar o excesso de literalidade; e iii) conter o excesso de liberdade. Sobre essa versão de Freud em português, Bracco (2011Bracco, Mariangela O. Kamnitzer. E finalmente Freud aprendeu a falar português. In: Ide 34(52). São Paulo, ago. 2011, 260-267.: 265) atribui ao tradutor o mérito de escolher "a exata palavra em português" para recuperar o significado pretendido por Freud.

Em relação às retraduções dos textos freudianos diretamente do alemão, em especial ao que concerne às versões de Trauer und Melancholie , podemos observar nos tradutores e nos críticos grande preocupação em relação à manutenção da 'naturalidade' (tradução sem sotaque), da ampla compreensão por parte do leitor, da 'fidelidade' ao texto original, da 'uniformidade', da 'literalidade' - ainda que sem excesso -, além da busca pela 'palavra exata'. A fim de verificar se esses propósitos foram alcançados nas retraduções de Trauer und Melancholie , especialmente naquelas advindas do alemão, procedemos à análise semiautomática dos textos, ou seja, partimos de dados quantitativos para tecer uma análise qualitativa de termos recorrentes no texto freudiano.

3 Análise semiautomática das traduções de Trauer und Melancholie para o português

A metodologia utilizada nesta análise está fundamentada nos pressupostos da Linguística de Corpus (doravante LC), disciplina que se ocupa da investigação de unidades convencionais da língua em um texto ou conjunto de textos em formato eletrônico ( corpus ), ou seja, daquilo que é mais provável de ocorrer na língua, não necessariamente daquilo que é apenas possível (cf. Berber Sardinha 2004Berber Sardinha, Tony. Linguística de corpus . Barueri, Manole, 2004.; Sinclair 2004Sinclair, John. Trust the text: language, corpus and discourse . London/New York, Routledge, 2004.; Viana/ Tagnin 2015Viana, Vander / Tagnin, Stella E. O. (org.). Corpora na Tradução . São Paulo: HUB Editorial, 2015.; entre outros). Uma das vantagens da observação dos dados por meio de corpora é que ela revela evidências empíricas e sistemáticas da linguagem que poderiam passar despercebidas sem o auxílio de ferramentas computacionais específicas para esse tipo de investigação. Além disso, uma pesquisa puramente intuitiva pode levar o pesquisador a 'encontrar' dados que simplesmente 'comprovem' suposições ou hipóteses previamente estabelecidas, sem revelar dados novos que possam levar a outras descobertas.

Naturalmente, a intuição está presente em várias etapas de qualquer pesquisa, desde a escolha do que se considera importante pesquisar, até a análise propriamente dita. Nesse processo, chamado serendipidade , "[...] o pesquisador tem uma intuição sobre a língua e verifica essa intuição no corpus. Esse processo de verificação geralmente sugere outros caminhos - quase sempre inesperados no início do processo - pelos quais a pesquisa vai enveredar" ( Partington 1998Partington, Alan. Patterns and Meanings: using corpora for English language research and teaching . Amsterdam/Philadelphia, John Benjamins, 1998.: 1). 8 8 " A researcher has an intuition about language, checks this against the data the corpus provides, and this checking process frequently suggests other avenues of research to be taken, often unsuspected at the start of the process ". [trad. R. R.] Assim, intuição e dados caminham lado a lado, o que significa que, normalmente, o pesquisador depara com informações das quais não suspeitava no início do trabalho e vai descobrindo novas possibilidades à medida que a pesquisa avança.

A junção entre a LC e os Estudos Descritivos da Tradução possibilita uma análise contrastiva de amostras autênticas de originais e traduções ( Laviosa 2002Laviosa, Sara. Corpus-based translation studies: theory, findings, applications . Amsterdam/New York, Rodopi, 2002.). Existem várias ferramentas que auxiliam nesse tipo de pesquisa. Para esta pesquisa, utilizamos o AntConc 3.4.1w, 9 9 O AntConc 3.4.1.w é uma ferramenta de acesso gratuito utilizada para análise linguística. Disponível em: http://www.laurenceanthony.net/software.html. Acesso em: 22 ago. 2015. que é uma ferramenta semiautomática para levantamento de dados, e o ParaConc , ferramenta de alinhamento e análise contrastiva bilíngue e multilíngue. Neste estudo, fazemos um levantamento linguístico a partir da análise comparativa do texto original em alemão Trauer und Melancholie , de Sigmund Freud, com as cinco retraduções disponíveis em português, a saber:

  • 1) a versão contida no VIII volume das Obras completas de Sigmund Freud, com o título A Tristeza e a Melancolia, a que chamaremos Delta;

  • 2) Luto e melancolia, publicada no volume XIV das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, da editora Imago (doravante Standard brasileira);

  • 3) o texto Luto e melancolia traduzido por Marilene Carone, conforme publicado em livro em 2011 pela editora Cosac Naify (Carone);

  • 4) a segunda versão de Luto e melancolia publicada pela Imago, a partir do texto original em alemão, a que chamaremos pelo nome do coordenador da tradução (Hanns);

  • 5) a mais recente retradução de Luto e melancolia, realizada por Paulo César de Souza e publicada pela Companhia das Letras em 2010 (Souza).

O primeiro passo da pesquisa foi gerar uma lista de palavras de cada texto que compõe o corpus de estudo por meio do utilitário Wordlist do AntConc . Essa lista indica a frequência de cada uma das palavras existentes em um texto ou corpus . É importante ressaltar que, para a ferramenta, 'palavra' é entendida como uma sequência de letras, que pode conter sinais como apóstrofo e hífen, separada por espaço em branco ( Barnbrook et al. 2013Barnbrook, Geoff / Mason, Oliver / Krishnamurthy, Ramesh. Collocation: applications and implications . London, Palgrave Macmillan, 2013.) e é com esse conceito que utilizamos 'palavra' neste artigo.

A Figura 1mostra uma lista das vinte primeiras palavras, em ordem decrescente de frequência, do texto original em alemão Trauer und Melancholie :

Figura 1:
Primeiras vinte palavras do texto Trauer und Melancholie , em ordem decrescente de frequência.

Esse levantamento apresenta o número de palavras distintas no texto ( Word Types → 1.732), o número total de palavras ( Word Tokens → 5.179), a classificação, em ordem decrescente, da palavra mais frequente até a menos frequente no texto ( Rank ), a frequência com que a palavra aparece no texto ( Freq ) e a palavra propriamente dita ( Word ). Corroborando as conclusões de Biber et al. (1998Biber, Douglas / Conrad, Susan / Reppen, Randi. Corpus Linguistics: investigating language structure and use . Cambridge, Cambridge University Press, 1998.) e Baayen (1998)Baayen, R. Harald. Lexis, word frequencies, and text types. In: IV-V Jornades de corpus linguistics 1996-1997 , Barcelona, Institut Universitari de Lingüistica Aplicada, Universitat Pompeu Fabra, 1998, 87-102., que afirmam que as palavras funcionais ( function words ) são as mais recorrentes na maior parte dos textos, em Trauer und Melancholie artigos, conjunções, preposições, pronomes etc. - der, die, und, sich etc. - aparecem nas primeiras posições na ordem de frequência. Também é possível reconhecer palavras de conteúdo ( content words ) entre as vinte mais frequentes - Melancholie e Objekt . Naturalmente, tal classificação não tem como objetivo determinar o que vale a pena ser analisado ou não, mesmo porque palavras funcionais podem ser determinantes em alguns textos, como é o caso do pronome pessoal Ich nos textos freudianos, grafado, inclusive, com inicial maiúscula. De qualquer forma, neste estudo a lista de palavras, evidenciada pelo utilitário Word List , serve unicamente para possibilitar o contraste entre diferentes textos, resultando em palavras-chave, a partir das quais procederemos com a nossa análise.

Em LC, palavras-chave referem-se àquelas palavras que ocorrem significativamente com mais frequência em determinado texto ou corpus , na comparação com outro texto ou corpus de referência. 10 10 Para informações detalhadas sobre o levantamento de listas de palavras, listas de palavras-chave, linhas de concordância etc., recomendamos a leitura de Bowker e Pearson (2002) e McEnery e Hardie (2012). Vale enfatizar, ainda, que a tipologia do corpus de referência é determinante para a obtenção dos dados do corpus de estudo. 11 11 É recomendável que o corpus de referência seja de três a cinco vezes maior do que o corpus de estudo. Para mais informações sobre tamanho e tipologia de corpus , ver Berber Sardinha (2004). Nesta pesquisa, utilizamos corpora de generalidades a fim de ressaltar o que é característico dos textos analisados.

A Figura 2apresenta as vinte primeiras palavras-chave ( Keywords ) em ordem decrescente de chavicidade ( Keyness ) 12 12 Termo utilizado em Linguística de Corpus para se referir à medida que determina quão chave determinada palavra é no contexto em que aparece. do texto Trauer und Melancholie . Ressaltamos que ajustamos a ferramenta para considerar como chave palavras que tiveram frequência igual ou superior a dois:

Figura 2:
Primeiras vinte palavras-chave do texto Trauer und Melancholie , em ordem decrescente de chavicidade.

Podemos observar que a palavra com o maior índice de chavicidade é a conjunção daß , que utiliza a ortografia anterior à reforma da língua alemã de 1996, quando ß foi substituído por ss . Portanto, isso não significa que essa seja uma palavra característica do texto, mas simplesmente que foi ressaltada na comparação com textos mais recentes, que compõem o corpus de referência. O mesmo ocorre com muß , que passou a ser grafado muss . Excluindo-se essas variantes, podemos afirmar que Melancholie , Ich , Objekt , Trauer etc. são palavras características do texto de estudo, ou seja, ocorrem significativamente com mais frequência nesses textos do que no corpus de referência.

O levantamento das palavras-chave também foi feito com as cinco retraduções de Trauer und Melancholie para o português, dessa vez utilizando como referência um corpus em português, obviamente. A Tabela 1apresenta as trinta e cinco primeiras palavras-chave do texto em alemão e de cada uma das cinco traduções em português, 13 13 Por uma limitação de espaço, optamos por apresentar apenas as primeiras trinta e cinco palavras-chave. Além disso, julgamos serem essas suficientes para mostrar as principais palavras de conteúdo do texto. Mas vale ressaltar que o número de palavras-chave varia de acordo com as especificações estabelecidas na ferramenta. em ordem decrescente de chavicidade. O número ao lado de cada palavra se refere à frequência da palavra no texto:

Tabela 1:
Trinta e cinco primeiras palavras-chave das retraduções em português:

O cotejo das cinco listas nos mostrou que são várias as palavras-chave que recorrem nas cinco retraduções (ainda que com frequência e chavicidade diferentes), especialmente as palavras cognatas - 'melancolia' [ Melancholie ], 'objeto' [ Objekt ], 'libido' [ Libido ], 'mania' [ Manie ], 'ambivalência' [ Ambivalenz ], 'identificação' [ Identifizierung ] etc. Observamos, também, escolhas distintas entre sinônimos 14 14 Para a Terminologia, a relação de equivalência total que designaria um caso de sinonímia é muito rara (ver Barros 2004). Neste trabalho, contudo, estamos considerando como sinônimos os equivalentes apresentados em dicionários de língua geral. nas diferentes versões: 'tristeza'/ 'luto'; 'narcisista'/ 'narcísica'; 'enfermo'/ 'paciente'/ 'doente' etc. Em ambos os casos, as opções revelam certa literalidade com o texto original. No entanto, também é possível observar a utilização de equivalentes tradutórios bastante distintos nas diferentes retraduções.

Como equivalente tradutório de Ich , em Delta optou-se por 'Eu'. Já em Standard brasileira e em Carone , observamos a escolha por 'ego', enquanto nas duas versões mais recentes - Hanns e Souza -, recupera-se o 'Eu', como na primeira versão. Sendo a Standard brasileira uma retradução da Standard Edition inglesa, não surpreende a opção por 'ego', mantendo a correspondência prima facie com o texto-fonte. No entanto, visto ter Carone proposto a primeira retradução brasileira diretamente do alemão, poderíamos esperar que o equivalente escolhido fosse 'Eu', mantendo-se, assim, a proposta do texto-fonte. Porém, nesse caso específico a tradutora/psicanalista aceita a influência de versões anteriores e, apesar de reconhecer que "Dentro da opção pelo 'modo popular de pensar', evidentemente o mais coerente seria [...] traduzir [ Es, Ich e Überich ] por isso, eu e supereu [...]", acredita que "[...] ego veio para ficar" ( Carone 1989c_____. Freud em português: tradução e tradição. In: Souza, Paulo César de. (org.) Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan . São Paulo, Brasiliense, 1989c, 176-188.: 185). Essa justificativa, contudo, não se mostra consistente em relação a outros termos, como veremos posteriormente.

Recorrente entre as primeiras palavras-chave em Carone, Hanns e Souza , mas ausente em Delta e Standard brasileira , é 'investimento'. Aliás, o termo ocupa a mesma posição (13ª) nas três listas de palavras-chave. Estudos dedicados a analisar as escolhas tradutórias para termos próprios do léxico freudiano já identificaram que, além de 'carga' e 'catexia', esse é um equivalente em português para Besetzung (cf. Souza 1989Carone, Marilene. Freud em português: uma tradução selvagem. In: Souza, Paulo César. (org.) Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan . São Paulo, Brasiliense, 1989a, 160-166.e 2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.; Tavares 2012a_____. Vocabulário metapsicológico de Freud. In: Pandaemonium Germanicum 15(20), dez. 2012a, 1-21.e 2014_____. Flusser com Freud. Tradução, Sujeito e Cultura. In: Pandaemonium Germanicum 17(23), jun. 2014, 223-239.). Devido à estrutura particular de composição de substantivos na língua alemã, se comparada ao português, não surpreende que a palavra, isoladamente, esteja ausente da lista de palavras-chave do artigo em alemão. Neste, a palavra recorre nos substantivos compostos em Objektbesetzung(en) (oito ocorrências), Gegenbesetzung (duas ocorrências) e Liebesbesetzung (duas ocorrências). A forma isolada - Besetzung(en) - e outras formas compostas - Libidobesetzung, Wortbesetzungen e Besetzungenergie - estão ausentes da lista de palavras-chave por possuírem apenas uma ocorrência cada. Podemos concluir, portanto, que Objektbesetzung(en) é, dentre essas combinações, a que possui maior chavicidade, ocupando a 28ª posição na lista de palavras-chave, considerando-se apenas sua forma-raiz - Objektbesetzung . Portanto, esse foi o termo escolhido para ilustrar a análise qualitativa que se seguiu ao levantamento automático das palavras-chave.

A fim de identificar as escolhas tradutórias em português para Objektbesetzung* , 15 15 O asterisco (*) representa qualquer letra ou conjunto de letras que segue Objektbesetzung nos textos analisados. procedemos ao alinhamento do texto em alemão com as cinco traduções em português, por meio da ferramenta ParaConc . Mas antes de prosseguir com esse levantamento, parece importante discutir brevemente o processo de alinhamento dos textos a partir dessa ferramenta.

A análise dos textos paralelos depende do correto alinhamento de trechos dos textos em cada idioma. Em geral, esse alinhamento se dá a partir de sentenças, ou seja, dos segmentos terminados com ponto final. No entanto, sabe-se que nem sempre ocorre a exata correspondência entre as sentenças da língua de partida e da língua de chegada. Além disso, a utilização de um ponto não significa necessariamente o término de uma sentença. Como exemplos, podemos citar as abreviações 'etc.' e ' z. B. '. Nesses e em outros casos a 'correspondência' foi feita manualmente, de forma a unir ou separar sentenças dos textos retraduzidos para que coincidissem com as do original. Durante esse processo, foi possível realizar algumas inferências acerca das retraduções. Observamos, por exemplo, que quanto mais simples foi a tarefa de alinhar o texto original ao retraduzido, maior a aproximação com o original, ao menos no que tange à quebra das sentenças.

A título de curiosidade, procedemos à contagem das sentenças. Verificamos, assim, que, nesse quesito, a versão que mais se aproxima do original é Carone , que possui as mesmas 196 sentenças do texto original. A que mais se distancia é a Standard brasileira , com 206 sentenças, equiparando-se à versão inglesa, que possui 207. Souza e Delta empatam com 200 sentenças cada, enquanto Hanns contabiliza 203. Voltemos, então, à busca pelos equivalentes tradutórios de Objektbesetzung * nas cinco versões em português.

Como a ferramenta ParaConc só processa até quatro traduções de um mesmo original, realizamos a busca pelo equivalente tradutório de Objektbesetzung * nos cinco textos traduzidos separadamente. A Figura 3apresenta parcialmente o alinhamento do texto original com Delta , salientando os equivalentes tradutórios encontrados (ênfase nossa):

Figura 3:
Visualização parcial do alinhamento das sentenças em alemão com a palavra de busca Objektbesetzung * e os equivalentes tradutórios encontrados em Delta.

Por meio do alinhamento do texto original em alemão com as cinco retraduções de Trauer und Melancholie , constatamos que Delta mantém o equivalente tradutório 'carga de/do objeto' em todo o texto. A Standard brasileira também é consistente durante todo o texto na tradução do termo, optando por 'catexia(s) objetal(ais)'. Já Carone alterna entre 'investimento(s) de objeto(s)' (cinco ocorrências) e 'investimento(s) objetal(ais)' (três ocorrências), semelhante ao observado em Souza . Contudo, neste último é possível identificar a predominância da forma 'investimento(s) objetal(ais)', com sete ocorrências. Hanns , por sua vez, utiliza diferentes formas de resgatar Objektbesetzung* no texto traduzido: 'investimento de carga no objeto' (três ocorrências), 'investimento depositado no objeto' (uma ocorrência), 'investimentos objetais' (uma ocorrência), e em outros casos opta por refrasear as sentenças originais.

Apesar de a escolha por equivalentes tradutórios derivados do termo em latim investire ser bastante recorrente nas traduções dos textos freudianos para línguas europeias modernas (cf. Tavares 2014_____. Flusser com Freud. Tradução, Sujeito e Cultura. In: Pandaemonium Germanicum 17(23), jun. 2014, 223-239.), vale ressaltar que os dicionários de língua geral no par de línguas alemão-português consultados 16 16 Foram consultados os dicionários online bab.la (http://pt.bab.la/dicionario/portugues-alemao/investimento), Pons (http://pt.pons.com/tradu%C3%A7%C3%A3o?q=investimento&l=dept&in=ac_pt&lf=pt) e Linguee (http://www.linguee.com.br/portugues-alemao/search?source=auto&query=investimento). não fornecem essa opção. Nesses, os equivalentes de 'investimento' apresentados são Anlage, Investition, Ausgabe e Investierung . Já a busca pela tradução de Besetzung em português resultou majoritariamente em 'ocupação', 'enfeite', 'ornamento', 'nomeação', 'distribuição (dos papéis no teatro), 'preenchimento' e 'elenco'. Tais equivalentes também não aparecem entre as palavras-chave em Delta e Standard brasileira , que optaram, respectivamente, por 'carga' e 'catexia', esta condizente com o texto-fonte. Afinal, o equivalente utilizado na versão Mourning and Melancholia , da Standard Edition inglesa - cathexis -, é uma adaptação gráfica de um termo grego.

Apesar das justificativas já mencionadas, segundo Souza (2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.), o então neologismo em língua inglesa não satisfez Freud, notoriamente desfavorável ao uso desnecessário de termos técnicos. Souza (2010_____. Luto e melancolia. Trad. Paulo César de Souza. In: Obras completas , vol. 12. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, 170-194.) ainda salienta que o verbete Besetzung não possui acepção psicanalítica nos dicionários alemães de língua geral, ao passo que cathexis carrega tamanho grau de tecnicismo que dificilmente seria proferido durante conversas rotineiras.

Em relação ao termo 'carga', utilizado na versão Delta , parece evidente tratar-se de influência de uma versão espanhola do texto, intitulada Duelo y Melancolía ( Freud 1981_____. Duelo y Melancolía. In: Freud, Sigmund. Obras Completas de Freud , vol. 6. Trad. L. Lopez-Ballesteros y de Torres. Madrid, Biblioteca Nueva, 1981, 2091-2100. (Trabalho original publicado em 1917).), que faz parte da primeira tradução da totalidade dos textos freudianos, iniciada na década de 1920 na Espanha, a cargo de Ballesteros Y de Torres_____. Duelo y Melancolía. In: Freud, Sigmund. Obras Completas de Freud , vol. 6. Trad. L. Lopez-Ballesteros y de Torres. Madrid, Biblioteca Nueva, 1981, 2091-2100. (Trabalho original publicado em 1917).. 17 17 Não há informação sobre a data de publicação da primeira edição da obra. Versão disponível em: http://www.edipica.com.ar/archivos/leandro/psicoanalisis/general/freud5.pdf. Acesso em: 22 ago. 2015. Aliás, Carone (1989c_____. Freud em português: tradução e tradição. In: Souza, Paulo César de. (org.) Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan . São Paulo, Brasiliense, 1989c, 176-188.: 181) conclui que o equivalente tradutório do termo Besetzung evidencia o texto que influenciou a tradução: "[...] o destino em cada língua é individualizado: se catexis ou catexia , inglês; se carga , espanhol (B. y Torres); se investimento , francês [...]". Portanto, depreende-se daí que as três últimas traduções seguem a corrente francesa, distanciando-se do original em alemão.

Em relação a 'objetal(ais)', palavra-chave recorrente nas retraduções em português, com exceção de Delta , o termo também ocorre nos compostos 'amor objetal' ( Carone e Souza ) e 'escolha objetal' ( Souza e Hanns ).

A consulta em importantes obras de referência lançadas na última década 18 18 Segundo consulta no Dicionário Unesp do Português Contemporâneo (Borba 2004) e no Dicionário Aurélio (Ferreira 2009). mostrou que 'objetal' é palavra dicionarizada, sendo definida como 'relativo ou pertencente ao objeto'. Vejamos, contudo, uma amostragem de como o vocábulo é utilizado em textos autênticos, utilizando a ferramenta de busca WebCorp19 19 Disponível em: http://www.webcorp.org.uk/live/. Acesso em: 22 ago. 2015. :

1: O P Q R S T U V W X Y Z objetal, relação Em psicanálise,

2: r O brincar e a relação objetal no espectro autístico Ellen

3: pos de objeto e relação objetal é um importante indicador

4: narcisismo e a escolha objetal Publicações - Revista

5: narcisismo e a escolha objetal Metapsychological considerations

6: mo; narcisismo; escolha objetal; metapsicologia. ABSTRACT This

7: uo e a primeira escolha objetal 10 se daria via apoio ou

8: e transformado em amor objetal. O Narcisismo primário

9: ais, há um investimento objetal, que em geral se dirige para a

10: ravés do outro. Escolha objetal Narcísica A escolha objetal

Por meio das linhas de concordância com a palavra de busca, é possível observar que 'objetal' ocorre em textos próprios da área psicanalítica ou afins, o que é comprovado pelos vocábulos 'psicanálise', 'espectro autístico', 'narcisismo' etc. em seu entorno. Portanto, como supúnhamos, não faz parte do linguajar cotidiano dos brasileiros. Surpreende, então, que tenha sido utilizado em Carone , uma vez que a pesquisadora considera que "[...] uma das qualidades elementares de uma boa tradução é não deixar transparecer a língua de origem, o que se consegue com a escolha de termos que sejam naturais e usuais na língua de chegada" ( Carone 1989aCarone, Marilene. Freud em português: uma tradução selvagem. In: Souza, Paulo César. (org.) Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan . São Paulo, Brasiliense, 1989a, 160-166.: 161), enfatizando que, ainda que constem do dicionário, alguns termos "soam totalmente artificiais aos nossos ouvidos".

Na Tabela 1, observamos que a versão com maior número de ocorrências de 'objetal' é a Standard brasileira , na qual o termo aparece dezessete vezes, sem contar duas ocorrências do plural 'objetais'. A fim de identificarmos as colocações 20 20 Entendidas aqui como palavras que frequentemente ocorrem juntas em determinado texto ou corpus . mais frequentes, recorremos ao utilitário Clusters/N-Grams do AntConc com a palavra de busca 'objeta*', a fim de visualizarmos ocorrências no singular e no plural. A Figura 4apresenta as combinações ( clusters ) mais frequentes com a palavra na versão Standard brasileira :

Figura 4:
Tela do AntConc que mostra as treze combinações mais frequentes com a palavra de busca 'objeta*'.

Por meio desse levantamento, observamos que 'objetal(ais)' é utilizado para adjetivar as palavras 'escolha', 'catexia(s)', 'perda', 'relação' e 'amor'. O alinhamento com os excertos originais mostrou que essas escolhas tradutórias coincidem, em quase 100% dos casos, com suas contrapartes em alemão, em que Objekt é utilizado para adjetivar as palavras * wahl , * besetzung(en) , * verlust , * beziehung e * liebe . A única diferença observada foi que, no original, há três ocorrências de Objektverlust contra duas de 'perda objetal' na Standard brasileira . Já a análise da versão de Carone mostrou apenas quatro ocorrências de 'objetal(ais)', sendo que em três casos adjetivando 'investimento' - 'investimento(s) objetal(ais)' - e em um, 'amor' - 'amor objetal'. Nessa versão não se pôde observar uniformidade em relação ao uso do termo, pois também apresenta cinco ocorrências de 'investimento(s) de objeto', como podemos observar nos excertos abaixo:

[...] eine geringe Resistenz der Objektbesetzung.

[...] uma pequena resistência do investimento objetal.

[...] wenn es durch die Rückkehr der Objektbesetzung sich selbst [...] .

[...] por meio do retorno do investimento de objeto [...].

Interessante notar que a tradutora/psicanalista, que defende o rigor, a precisão e a homogeneidade na tradução dos conceitos freudianos (cf. Carone 1989b_____. Freud em português: ideologia de uma tradução. In: Souza, Paulo César de. (org.) Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan . São Paulo, Brasiliense, 1989b, 166-176.e 2011_____. Introdução. In: Freud, Sigmund. Luto e melancolia . São Paulo, Cosac Naify, 2011, 37-39.), opte pelo equivalente '(de/do) objeto' para traduzir * objekt * na maior parte das ocorrências, mas também utilize 'objetal(is)' em quatro ocasiões, contrariando também a impressão de Modesto Carone, que, em nota introdutória à tradução, afirma que o objetivo é alcançado, uma vez que Marilene Carone busca "[...] desentranhar, dos escritos de Freud, uma teoria da linguagem, segundo a qual o criador da psicanálise preenche de conteúdos novos palavras antigas, reconhecíveis no 'modo popular' de dar nome às coisas" ( Carone 2011_____. Introdução. In: Freud, Sigmund. Luto e melancolia . São Paulo, Cosac Naify, 2011, 37-39.: 34-35). Ora, a análise de textos autênticos revelou que 'objetal' não é unidade lexical popularizada, mas restrita ao jargão psicanalítico.

Já em Hanns , o termo 'objetal' aparece seis vezes: em 'escolha (narcísica) objetal'(4x) e em 'investimento(s) objetal(ais)' (2x). Com o termo 'perda' a opção foi pela colocação 'perda do objeto'(9x). Contudo, nessa versão o leitor é advertido de antemão que não encontrará padronização de equivalentes tradutórios.

Em Souza , 'investimento objetal' (6x) também foi o equivalente utilizado na tradução de Objektbesetzung . As duas outras ocorrências do termo 'objetal' são encontradas em 'amor objetal' (1x) e 'escolha objetal' (1x), essa última preterida por 'escolha de objeto' em seis outras colocações, conforme pode ser observado nos exemplos abaixo (ênfase nossa):

Es hatte eine Objektwahl [...].

Havia uma escolha de objeto [...].

[...] daß die Objektwahl auf narzißtischer Grundlage [...].

[...] que a escolha objetal tenha ocorrido sobre base narcísica [...].

Termo próprio da psicanálise, o adjetivo 'objetal' provavelmente foi criado para evitar ambiguidade, uma vez que, em alemão, as relações de adjetivação - por exemplo, em Objektverlust - e de posse - der Verlust des Objektes - são diferenciadas por meio da estrutura utilizada, ao passo que em português ambas as estruturas poderiam ser traduzidas por 'perda de/do objeto'. De qualquer forma, o termo causa estranhamento, ao menos fora do âmbito psicanalítico. Além disso, nas três traduções mais recentes não foi observada uniformidade em relação ao seu uso, uma vez que a adjetivação e a relação de posse nos excertos originais em alemão não coincidem com as ocorrências de 'objetal' e 'de/do objeto'.

Conforme mencionado anteriormente, não é nosso objetivo avaliar qual é a melhor entre as cinco retraduções de Trauer und Melancholie em português. O que motivou este estudo foi o propósito de desvendar o porquê de tantas retraduções do mesmo texto original e, a partir de uma análise semiautomática, verificar se os objetivos propostos por esses tradutores foram alcançados.

A partir do exposto, podemos levantar algumas questões. A Tristeza e a melancolia parece se aproximar mais do original em alemão em relação à utilização de termos do vernáculo português, evitando neologismos: escolhas tradutórias tais como 'Eu', 'carga', 'de/do objeto' etc. evidenciam que a terminologia psicanalítica não era foco de preocupação na época. Além disso, vale enfatizar que os mais importantes léxicos da psicanálise surgiram apenas na década de 1960, nas línguas inglesa e francesa ( Tavares 2012a_____. Vocabulário metapsicológico de Freud. In: Pandaemonium Germanicum 15(20), dez. 2012a, 1-21.), ou seja, foram posteriores ao lançamento da primeira versão em português. Já as versões surgidas a partir da década de 1970 foram naturalmente influenciadas, direta ou indiretamente, pelos léxicos e pelas outras influentes traduções, especialmente pela Standard Edition inglesa.

A segunda versão em português, a Standard brasileira , demonstra maior literalidade em relação ao texto-fonte - em língua inglesa -, mantendo não só o número de sentenças como a terminologia cientificista cunhada nessa versão - 'ego', 'catexia' etc. -, além de se valer de neologismos para evitar ambiguidades - 'objetal'. Essa versão também mostrou uniformidade em relação às escolhas lexicais: 'objetal(ais)' foi o equivalente escolhido para traduzir todas as ocorrências de object-* em função de adjetivo na versão inglesa.

Em diferentes graus, as três retraduções diretas do alemão revelaram influência da Standard Edition inglesa (e, consequentemente, da Standard Brasileira ) e dos léxicos psicanalíticos posteriores aos escritos de Freud, apesar de os criticarem veementemente. Observamos, por exemplo, que Carone mantém a opção pelo termo latino 'ego', evita o uso de 'objetal', mas recorre a ele em algumas situações, e faz uso do termo 'investimento', introduzido por outras línguas latinas. Hanns , por sua vez, rompe com algumas escolhas tradutórias utilizadas na versão anterior da editora Imago - utiliza, por exemplo, 'Eu' no lugar de 'ego' -, diminui (mas não elimina) o uso de (então) neologismos - usa 'objetal(ais)' em seis ocasiões - e não se compromete a manter a uniformidade quanto à utilização de um mesmo equivalente para determinado termo. Objektbesetzung , por exemplo, é traduzido de diferentes formas, entre elas 'investimento de carga no objeto', 'investimento depositado no objeto' e 'investimento objetal'.

Assim como Hanns, Souza rejeita termos latinos e gregos, utilizando, por exemplo, 'Eu' em vez de 'ego', mas também se deixa influenciar pela terminologia psicanalítica formulada a posteriori . 'Investimento' e 'objetal' exemplificam essa prática.

Referindo-se à retradução de textos literários, Berman (1990Berman, Antoine. La retraduction comme espace de la traduction. In: Palimpsestes 4, 1990, 1-8.) afirma que as primeiras traduções tendem a ser mais domesticadoras, uma vez que introduzem o trabalho estrangeiro na cultura de chegada, e que as subsequentes são as que prestam mais atenção ao texto-fonte e conseguem, assim, manter o estranhamento entre o original e a tradução. Naturalmente, o texto aqui analisado não se encaixaria no domínio da Literatura, mas também preferimos evitar a categorização estanque dos escritos freudianos. Afinal, é preciso lembrar que foi a qualidade literária dos seus escritos que levou Sigmund Freud a ganhar o prestigiado prêmio Goethe . De qualquer forma, voltando à dicotomia domesticante-estrangeirizante atribuída por Berman (1990)Berman, Antoine. La retraduction comme espace de la traduction. In: Palimpsestes 4, 1990, 1-8.às retraduções, parece que a aculturação do texto ao público-alvo não foi o mais determinante para as escolhas tradutórias.

Independente de ser uma primeira versão ou não, muitos outros fatores interferem no grau de domesticação e estrangeirização de uma tradução, entre eles o contexto social, econômico, cultural etc. ( Gambier 1994Gambier, Yves. La retraduction, retour et detour. Meta 39(3), 1994, 413-417.). Citando os projetos de retradução de Freud, o pesquisador salienta a impossibilidade de não serem afetados pelos trabalhos anteriores ao pretenderem resgatar os supostos significados subjacentes ao texto original:

[...] como se os tradutores pudessem se desvencilhar das interpretações posteriores à própria obra, como se pudessem fazer uma leitura não ideológica, não cultural de um significado supostamente permanente. A cegueira dos primeiros tradutores seria superada pelos desmentidos dos segundos, no esforço destes para se aproximar mais do texto-fonte ( Gambier 1994Gambier, Yves. La retraduction, retour et detour. Meta 39(3), 1994, 413-417.: 414). 21 21 "[...] comme si les traducteurs pouvaient faire une lecture non idéologique, non culturelle d'un sens prétendument stable. L'aveuglement des premiers traducteurs serait dépassé par les dénégations des seconds, dans leur effort pour se rapprocher de la source." [trad. R. R.]

Por mais que os tradutores demonstrem intenção de oferecer uma versão literal, clara, sem sotaque, precisa, uniforme etc. do texto original, conforme observamos nas justificativas que levaram a novas retraduções de Trauer und Melancholie , esse objetivo dificilmente é alcançado. Conforme lembra Venuti (2009Venuti, Lawrence. Translation, Intertextuality, Interpretation. In: Romance Studies 27(3), jul/2009, 157-73.), o texto traduzido transmite apenas a interpretação que o tradutor faz do texto original, e essa interpretação advém da formação, dos pressupostos ideológicos, dos aspectos culturais e sociais etc. desse interpretante. Essas questões ficam muito evidentes no caso da tradução de James Strachey e, consequentemente, na sua contraparte em português. Naquela, a escolha dos termos não se deu ao acaso, mas tinha o propósito de imprimir um viés mais científico às pesquisas psicanalíticas, o que foi mantido em português. Já os três últimos tradutores, apesar de criticarem essa versão, não conseguem manter-se neutros em relação a ela, principalmente no caso dos profissionais também com formação em psicanálise. Retomando o exemplo de 'objetal', tal palavra pode ser estranha para os leigos na área, mas totalmente comum para os iniciados, especialmente na combinação com outros termos.

Confirmando a observação de Pörksen (1973Pörksen, Uwe. Zur Terminologie der Psychoanalyse. In: Deutsche Sprache 3, 1973, 7-36.apud Souza 2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.: 78), "[...] os discípulos escrevem de maneira mais terminológica que o mestre", e de tão utilizados, certos termos passam a ser aceitos como corriqueiros, quando na verdade não o são. Foi o observado com relação à tradução de Besetzung por cathexis em língua inglesa (cf. Souza 2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.) e o uso de 'objetal' em português. Visto ser Freud um 'prosador', que estabeleceria com seu leitor uma "relação de camaradagem, quase de cumplicidade" ( Souza 2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.: 31), tomaremos a liberdade de incluir neste artigo acadêmico um provérbio popular que explicaria a inserção desses outrora neologismos nas línguas-culturas de chegada: água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

Conforme reconhecido por Souza (2010_____. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões . São Paulo,Companhia das Letras, 2010.), o legado de Freud é tão vasto que analisar as escolhas tradutórias de toda a obra seria tarefa árdua, para não dizer impossível. Consequentemente, os estudiosos na área costumam escolher um volume ou texto e proceder ao cotejo dos termos julgados (arbitrariamente) relevantes do texto-fonte com os equivalentes tradutórios no texto de chegada. Além de possibilitar a sistematização de grandes quantidades de dados, uma metodologia baseada em Linguística de Corpus ajuda a evidenciar o que é digno de ser analisado.

Com esta pesquisa pretendemos mostrar que, independente da justificativa para a retradução, ela é sempre a manifestação da subjetividade do tradutor, que, mesmo sem se dar conta, não consegue deixar de imprimir rastros próprios ao texto traduzido ( Skibińska 2007Skibińska, Elżbieta. La retraduction, manifestation de la subjectivité du traducteur. In: Doletiana: Revista de traducció literatura i arts 1, 2007, 1-10.). Em relação a Trauer und Melancholie , e talvez a toda a obra freudiana, parece que nenhuma (re)tradução será considerada suficientemente satisfatória no sentido de unir o estilo e a terminologia que Freud utilizou no original. Dessa forma, podemos esperar que outras versões venham a público, sem, talvez, atingir o objetivo almejado.

Considerações finais

Procuramos, neste trabalho, demonstrar a possibilidade de uma análise linguística partindo de um levantamento quantitativo de dados. Nesse processo, o analista exerce um papel preponderante, pois as ferramentas computacionais necessitam do olhar atento e crítico do pesquisador, já que simplesmente apresentam os dados, mas não os analisam. A vantagem desse método de análise é que ferramentas computacionais ajudam a sistematizar os dados de vários textos ao mesmo tempo, além de possibilitar um levantamento sem conhecimento prévio do que é relevante analisar.

Aplicando os pressupostos subjacentes à Linguística de Corpus , fizemos a comparação dos termos-chave das cinco retraduções do texto Trauer und Melancholie , de Sigmund Freud, para o português brasileiro a fim de identificar diferenças que justificassem tantas versões, algumas realizadas dentro de um período relativamente curto de tempo. Tendo como objetivo manter na versão em português a terminologia e o estilo empregados pelo autor, as cinco retraduções partiram de diferentes línguas-fonte - a primeira ( Delta ) parece se tratar de uma retradução de uma versão em espanhol; a segunda ( Standard brasileira ), de um texto previamente traduzido em inglês; e as últimas três ( Carone, Hanns e Souza ) foram vertidas diretamente do original em alemão. A partir do levantamento semiautomático dos principais termos utilizados no original e nas retraduções, foi possível identificar alguns equivalentes tradutórios. Quando esses equivalentes não se mostraram evidentes, alinhamos o texto-fonte e as retraduções, por meio da ferramenta ParaConc .

A análise de alguns termos nos levou a concluir que as duas primeiras retraduções - Delta e Standard brasileira - mantiveram maior literalidade com os textos-fonte, até mesmo em relação ao número de sentenças nos textos de partida e de chegada. Constatamos, também, que mesmo as versões diretas do alemão - Carone, Souza e Hanns - não deixaram de ser influenciadas por outras já existentes, inclusive pela Standard Brasileira , essa que costuma ser alvo das críticas mais ferrenhas. Em relação ao uso de termos restritos à psicanálise, diferentemente das opções lexicais utilizadas no texto original as escolhas tradutórias podem demandar a utilização de léxicos especializados por leigos e mesmo por estudantes da área de psicanálise a fim de compreenderem os conceitos apresentados, como observado em relação a 'objetal'.

Acima de tudo, esperamos que, por meio desta pesquisa empírica, possamos ter demonstrado a possibilidade de aliar um método quantitativo a um qualitativo, no sentido de ampliar a discussão em torno das (re)traduções de Freud.

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  • 2
    Vale ressaltar que a obra foi apresentada ao público brasileiro como tradução direta do alemão, contando, inclusive, com um prefácio de Anna Freud, no qual a filha do estudioso elogia a iniciativa da editora local.
  • 3
    É interessante notar que Gesammelte Werke , literalmente, 'obras reunidas', tenha sido traduzido em praticamente todo o mundo como 'obras completas', ainda que seja notório que nenhuma coletânea até hoje tenha abarcado toda a produção de Sigmund Freud. Talvez essa escolha venha a atender interesses puramente mercadológicos, mas não nos cabe confirmar essa suposição. Essa seria apenas mais uma polêmica em torno da tradução da obra freudiana.
  • 4
    "The translator [...] should not pay too much attention to a previous translation. A new translation does not consist in improving an earlier one. A translator is not a remodeling company: he is to erect a new building. The old building still stands; no one is going to demolish or remodel it." [tradução de R. Rebechi].
  • 5
    Entrevista concedida a Sieni Campos para o caderno Ao pé da letra do Sindicato Nacional de Tradutores, em agosto de 1992.
  • 6
    Não há menção em nenhum dos dezoito volumes da coletânea sobre a data de publicação. Bottmann (2013) acredita que a coletânea tenha sido lançada em 1950. Como Luto e melancolia está incluída no VIII volume da série, nesse caso talvez tivesse vindo a público somente na década de 1960. Já Rivera (2012) afirma que a obra foi lançada na década de 1940.
  • 7
    Ressaltamos que no trecho citado o termo utilizado no original em alemão é Realität , parte do substantivo composto Realitätsprüfung , não Wahrheit .
  • 8
    " A researcher has an intuition about language, checks this against the data the corpus provides, and this checking process frequently suggests other avenues of research to be taken, often unsuspected at the start of the process ". [trad. R. R.]
  • 9
    O AntConc 3.4.1.w é uma ferramenta de acesso gratuito utilizada para análise linguística. Disponível em: http://www.laurenceanthony.net/software.html. Acesso em: 22 ago. 2015.
  • 10
    Para informações detalhadas sobre o levantamento de listas de palavras, listas de palavras-chave, linhas de concordância etc., recomendamos a leitura de Bowker e Pearson (2002) e McEnery e Hardie (2012).
  • 11
    É recomendável que o corpus de referência seja de três a cinco vezes maior do que o corpus de estudo. Para mais informações sobre tamanho e tipologia de corpus , ver Berber Sardinha (2004).
  • 12
    Termo utilizado em Linguística de Corpus para se referir à medida que determina quão chave determinada palavra é no contexto em que aparece.
  • 13
    Por uma limitação de espaço, optamos por apresentar apenas as primeiras trinta e cinco palavras-chave. Além disso, julgamos serem essas suficientes para mostrar as principais palavras de conteúdo do texto. Mas vale ressaltar que o número de palavras-chave varia de acordo com as especificações estabelecidas na ferramenta.
  • 14
    Para a Terminologia, a relação de equivalência total que designaria um caso de sinonímia é muito rara (ver Barros 2004). Neste trabalho, contudo, estamos considerando como sinônimos os equivalentes apresentados em dicionários de língua geral.
  • 15
    O asterisco (*) representa qualquer letra ou conjunto de letras que segue Objektbesetzung nos textos analisados.
  • 16
    Foram consultados os dicionários online bab.la (http://pt.bab.la/dicionario/portugues-alemao/investimento), Pons (http://pt.pons.com/tradu%C3%A7%C3%A3o?q=investimento&l=dept&in=ac_pt&lf=pt) e Linguee (http://www.linguee.com.br/portugues-alemao/search?source=auto&query=investimento).
  • 17
    Não há informação sobre a data de publicação da primeira edição da obra. Versão disponível em: http://www.edipica.com.ar/archivos/leandro/psicoanalisis/general/freud5.pdf. Acesso em: 22 ago. 2015.
  • 18
    Segundo consulta no Dicionário Unesp do Português Contemporâneo (Borba 2004) e no Dicionário Aurélio (Ferreira 2009).
  • 19
    Disponível em: http://www.webcorp.org.uk/live/. Acesso em: 22 ago. 2015.
  • 20
    Entendidas aqui como palavras que frequentemente ocorrem juntas em determinado texto ou corpus .
  • 21
    "[...] comme si les traducteurs pouvaient faire une lecture non idéologique, non culturelle d'un sens prétendument stable. L'aveuglement des premiers traducteurs serait dépassé par les dénégations des seconds, dans leur effort pour se rapprocher de la source." [trad. R. R.]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2014
  • Aceito
    04 Set 2015
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