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Rituais e símbolos na atenção formal à saúde: o caso do vestuário profissional, na ótica de pacientes da Atenção Básica

Rituals and symbols in the formal health care: the case of professional clothing, from the viewpoint of primary care patients

Resumos

Este trabalho teve como objetivo analisar e interpretar as reflexões e experiências de usuários frequentadores do serviço de Atenção Primária à Saúde / Unidades de Saúde da Família (USF) sobre o uso do jaleco branco ou roupas brancas por médicos e outros profissionais de saúde. O método utilizado foi o de entrevistas individuais com questões abertas, em profundidade, com usuários de USF, transcritas integralmente e analisadas quanto ao conteúdo e enunciados. A amostra foi fechada por saturação teórica. Como resultado, identificou-se nas 11 entrevistas uma marcante assimetria sociocultural e psicológica como pano de fundo dos três núcleos de sentido identificados: vestuário como marca identitária; vestuário não valorizado como símbolo de competência profissional e vestuário interferindo, positiva ou negativamente, nas relações entre clínicos e pacientes. Discutem-se a premência à simbolização na área da saúde, as dificuldades dos participantes em discorrer sobre o tema e sobre o porquê da emergência de possíveis novos símbolos de competência. Finalmente, concluiu-se que compreender os significados atribuídos pelos usuários dos sistemas de saúde aos atos e práticas realizados por seus cuidadores pode contribuir para o aperfeiçoamento progressivo dessas práticas formais de cuidado. Embora as funções ritualísticas dos comportamentos e objetos utilizados nos atos de cuidado à saúde sejam mais facilmente observadas nas chamadas práticas informais e populares, elas persistem nas maneiras formais ou profissionais de agir. Esse tipo de fenômeno se deu após a emergência da medicina científica moderna, com o jaleco branco, por exemplo, e ainda se dá, na atualidade, embora novos símbolos pareçam surgir e ocupar esse espaço ritualístico.

relações profissional-paciente; relações médico-paciente; vestuário; antropologia; comportamento ritualístico


This study aimed to analyze and interpret the thoughts and experiences of service users attending Primary Care / Family Health Units (FHU) on the use of white coat or white clothes by physicians and other health professionals. The method used was interviews with open questions, in depth, with users of FHU, transcribed and analyzed for content and statements. The sample was closed by theoretical saturation. As a result, eleven interviews were identified in a marked asymmetry and psychological and socio-cultural background of the three identified clusters of meaning: clothing as a mark of identity; clothing is not valued as a symbol of professional competence and clothing interferes, positively or negatively, in relations between clinicians and patients. We discuss the urgency of symbolization in health, the difficulties of the participants discuss the topic and why the emergence of possible new symbols of power. Finally, it was concluded that understanding the meanings assigned by users of health systems to the acts and practices carried out by their caregivers may contribute to the progressive refinement of these formal practices of care. Although the functions of ritualistic behaviors and objects used in acts of health care are more easily observed in so-called informal and popular practices, they persist in formal or professional ways of acting. This type of phenomenon occurred after the emergence of modern scientific medicine, with the white coat, for example, and remains at present, although new symbols appear to arise and occupy this ritual space.

Professional-patient relationship; doctor-patient relationship; clothing; anthropology; ritualistic behavior


TEMAS LIVRE

Rituais e símbolos na atenção formal à saúde: o caso do vestuário profissional, na ótica de pacientes da Atenção Básica

Rituals and symbols in the formal health care: the case of professional clothing, from the viewpoint of primary care patients

Bruno José Barcellos FontanellaI; Fernanda Rodrigues da SilvaII; Romeu GomesIII

IProfessor adjunto do Departamento de Medicina (Área de Saúde Mental) do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Federal de São Carlos. Endereço eletrônico: bruno.fontanella@gmail.com

IIEstudante de graduação do Curso de Medicina da Universidade Federal de São Carlos. Endereço eletrônico: fer_rodriguesilva@hotmail.com

IIIPesquisador titular do Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (IFF-FIOCURZ). Endereço eletrônico: romeu@iff.fiocruz.br

RESUMO

Este trabalho teve como objetivo analisar e interpretar as reflexões e experiências de usuários frequentadores do serviço de Atenção Primária à Saúde / Unidades de Saúde da Família (USF) sobre o uso do jaleco branco ou roupas brancas por médicos e outros profissionais de saúde. O método utilizado foi o de entrevistas individuais com questões abertas, em profundidade, com usuários de USF, transcritas integralmente e analisadas quanto ao conteúdo e enunciados. A amostra foi fechada por saturação teórica. Como resultado, identificou-se nas 11 entrevistas uma marcante assimetria sociocultural e psicológica como pano de fundo dos três núcleos de sentido identificados: vestuário como marca identitária; vestuário não valorizado como símbolo de competência profissional e vestuário interferindo, positiva ou negativamente, nas relações entre clínicos e pacientes. Discutem-se a premência à simbolização na área da saúde, as dificuldades dos participantes em discorrer sobre o tema e sobre o porquê da emergência de possíveis novos símbolos de competência. Finalmente, concluiu-se que compreender os significados atribuídos pelos usuários dos sistemas de saúde aos atos e práticas realizados por seus cuidadores pode contribuir para o aperfeiçoamento progressivo dessas práticas formais de cuidado. Embora as funções ritualísticas dos comportamentos e objetos utilizados nos atos de cuidado à saúde sejam mais facilmente observadas nas chamadas práticas informais e populares, elas persistem nas maneiras formais ou profissionais de agir. Esse tipo de fenômeno se deu após a emergência da medicina científica moderna, com o jaleco branco, por exemplo, e ainda se dá, na atualidade, embora novos símbolos pareçam surgir e ocupar esse espaço ritualístico.

Palavras-chave: relações profissional-paciente; relações médico-paciente; vestuário; antropologia; comportamento ritualístico.

ABSTRACT

This study aimed to analyze and interpret the thoughts and experiences of service users attending Primary Care / Family Health Units (FHU) on the use of white coat or white clothes by physicians and other health professionals. The method used was interviews with open questions, in depth, with users of FHU, transcribed and analyzed for content and statements. The sample was closed by theoretical saturation. As a result, eleven interviews were identified in a marked asymmetry and psychological and socio-cultural background of the three identified clusters of meaning: clothing as a mark of identity; clothing is not valued as a symbol of professional competence and clothing interferes, positively or negatively, in relations between clinicians and patients. We discuss the urgency of symbolization in health, the difficulties of the participants discuss the topic and why the emergence of possible new symbols of power. Finally, it was concluded that understanding the meanings assigned by users of health systems to the acts and practices carried out by their caregivers may contribute to the progressive refinement of these formal practices of care. Although the functions of ritualistic behaviors and objects used in acts of health care are more easily observed in so-called informal and popular practices, they persist in formal or professional ways of acting. This type of phenomenon occurred after the emergence of modern scientific medicine, with the white coat, for example, and remains at present, although new symbols appear to arise and occupy this ritual space.

Key words: Professional-patient relationship; doctor-patient relationship; clothing; anthropology; ritualistic behavior.

Introdução

Alguns dos signos presentes nos atos de cuidado à saúde repetem-se, são aconselhados, indicados ou mesmo normatizados, porém não têm funções técnicas precisas e tampouco produzem resultados tecnológicos facilmente objetiváveis. Têm significados principalmente simbólicos e funções ritualísticas (LOUDON, 1966), sendo, por vezes, difundidos em diferentes sociedades, atravessando diversas gerações e épocas.

Esse parece ser o caso do vestuário típico dos profissionais de saúde, os jalecos e outras roupas brancas. Apesar do uso tão propagado, não foram encontradas referências a estudos sobre os significados simbólicos do uso desse vestuário na base de dados LILACS e na biblioteca SciELO. Pareceu-nos justificável, então, iniciar uma exploração desse tema no sistema formal de saúde pública brasileiro, particularmente no atual momento da história de sua organização, em que os gestores públicos procuram expandir a cobertura da Atenção Básica por meio da Estratégia de Saúde da Família.

Há registros iconográficos do uso desse tipo de indumentária desde o final do século dezenove, no advento das ciências médicas modernas e do modelo biomédico de exercício clínico. Tal modelo promoveu uma configuração das relações entre médicos e pacientes diferente daquela praticada até então (BURY, 2001), e, ao que nos parece, não por uma coincidência casual, essas relações teriam passado a ser intermediadas simbolicamente por um anteparo físico.

O uso do jaleco branco começou nos ambientes laboratoriais, por razões práticas de proporcionar uma barreira física com os objetos de trabalho (KAZORY, 2008). A partir daí, teria passado a ser um costume também na área clínica, que progressivamente incorporava os conhecimentos biomédicos e seu então recente status de cientificidade (JONES, 1999). O uso da cor branca, nesse mesmo contexto clínico, tem sido registrado também desde o final do século XIX (CALLEGARI, 2004), com prováveis conotações de pureza e limpeza (KAZORY, 2008). Passado mais de um século, o simbolismo do uso do jaleco branco persiste, marcando, inclusive, por meio das "white coat ceremonies" de algumas escolas médicas, a transição curricular da fase pré-clínica para a fase clínica (JONES, 1999).

Tacitamente, o jaleco é geralmente justificado como uma medida de biossegurança e como meio de facilitação da relação entre clínicos e pacientes, embora os principais livros de medicina interna e de semiotécnica sequer abordem tais assuntos. Sabe-se que é possível, na verdade, facilitar a veiculação de microrganismos (LOH; NG; HOLTON, 2000) e, sob esse argumento, algumas sanções ao seu uso já são verificadas (EDITORIAL, 2007).

Sobre facilitar ou não a relação clínico-paciente, os achados comentados na literatura são conflitantes, parecendo variar os significados desse objeto nos diferentes contextos culturais pesquisados. A maioria dos pacientes seria indiferente ou preferiria que os clínicos não usassem o jaleco (NEINSTEIN; STEWART; GORDON, 1985; MENAHEM; SHVARTZMAN, 1998; FISCHER et al., 2007). Em outros estudos, o uso foi considerado desejável pela maioria dos pesquisados (DUNN et al., 1987; GOODEN et al., 2001; BUDNY et al., 2006), sobretudo por crianças (BUDNY et al. 2006) e idosos (MENAHEM; SHVARTZMAN, 1998). Quanto aos próprios médicos, as gerações mais recentes e os estudantes de medicina tenderiam a não valorizá-lo (WATSON, 2002; GJERDINGEN; SIMPSON; TITUS, 1987).

Tendo em vista o exposto, consideramos importante tentar compreender alguns dos significados que os usuários atribuem a alguns comportamentos dos profissionais que os assistem, e com os quais poderão ter uma relação profissional de longo prazo, favorecendo ou não o cuidado longitudinal, aspecto particularmente valorizado nos contextos da Atenção Primária à Saúde. Neste trabalho, nosso foco foram os significados do uso do jaleco ou outras roupas brancas.

Método

O método, as técnicas e os procedimentos empregados foram qualitativos, consoante à natureza do objeto estudado (significados simbólicos). Foi considerada, em particular, a literatura especializada no aparato metodológico qualitativo no campo da saúde (MINAYO, 1993; MORSE; FIELD, 1995) e no contexto clínico (TURATO, 2003), procurando-se valorizar aspectos experienciais e representacionais relacionados ao processo saúde-doença (GOMES; MENDONÇA, 2002).

O campo de estudo compreendeu três Unidades de Saúde da Família (USF) de um município do interior paulista às quais a entrevistadora tinha acesso como estudante de medicina. O principal critério de inclusão de participantes foi um histórico de vinculação institucional com a USF de pelo menos seis meses e, portanto, supostamente, uma suficiente aculturação à problemática investigada. Todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos de uma das instituições a que os autores se filiam.

O fechamento da amostra intencional foi tecnicamente feito por saturação teórica, interrompendo-se a captação de novos participantes quando as entrevistas individuais realizadas foram julgadas suficientes para sustentar empiricamente o desenvolvimento de novas reflexões sobre o tema (GLASER; STRAUSS, 1967; FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008). As entrevistas foram feitas entre maio de 2008 e julho de 2009.

Um tema principal foi proposto aos participantes: "O que você pensa sobre o uso de jaleco ou outras vestimentas brancas pelos médicos e outros profissionais de saúde?". Alguns subtemas foram ativamente introduzidos, caso não abordados espontaneamente: possíveis motivos para o uso; preferências pessoais do participante; por que o branco seria a cor mais usada; influência do vestuário na relação com o paciente; variações quanto aos diferentes tipos de serviços, especialidades e profissões. O fraseado das questões foi adaptado, à medida do possível, ao universo sociocultural e educacional de cada entrevistado.

O áudio das entrevistas foi gravado digitalmente e integralmente transcrito. Depois de familiarizados com a leitura desse corpus, os pesquisadores procederam a uma análise de conteúdo nas modalidades temática e de enunciados (MINAYO, 1993; BARDIN, 1979) e circunscreveram os achados em algumas categorias, de acordo com a identificação de núcleos de sentido nesses enunciados. Procurou-se manter uma postura de atenção constante aos pormenores e ao corpus como um todo, em busca de validade interna dos achados, ou seja, da presença de uma consistência empírica suficiente para uma discussão teórica considerada relevante.

Resultados

Foram realizadas 11 entrevistas, que totalizaram um corpus transcrito de cerca de 25 mil palavras. O Quadro 1 expõe algumas características sociodemográficas da amostra (os entrevistados são identificados por letras).


A partir do andamento observado em algumas entrevistas, com respostas que tendiam a ser curtas, supõe-se ter havido dificuldades de alguns participantes de se estenderem sobre o tema – tendo a entrevistadora proposto ativamente os subtemas para a maioria dos participantes.

Assimetria da relação clínico-paciente como contexto das significações

Os núcleos de sentido identificados nas entrevistas se assentaram, segundo nossa avaliação, em marcantes assimetrias socioculturais e psicológicas entre os participantes e seus clínicos, permitindo inferências de quatro "eixos" de polarização (Quadro 2).


O primeiro eixo diz respeito às diferentes formas de conhecimento sobre o processo saúde-doença-cuidado. Polarizam-se ao seu redor a visão leiga das práticas populares em saúde e os conhecimentos dos profissionais.

Um segundo eixo refere-se à identificação, por parte dos entrevistados, de pertença a um estrato social diferente dos que ocupam o polo profissional da relação. No Quadro 2 há exemplos da ideia de "igualar" os componentes da relação - o que mostra uma visão apriorística de desigualdade. O suposto domínio dos profissionais de conhecimentos científicos e de recursos tecnológicos pareceu também servir aos participantes como um indicador de pertencimento a estratos sociais mais elevados.

O terceiro eixo diz respeito a quem ocupa, no encontro paciente-profissional, o papel de quem sofre as angústias relacionadas ao agravo à saúde. Mesmo que podendo ser vistas como compartilhadas empaticamente com o profissional, tal lugar foi, como esperado, visto pelos participantes como ocupado por eles próprios.

Por fim, um quarto eixo que estruturaria a assimetria das relações diz respeito aos polos decorrentes do processo de objetivação da doença. Aparentemente, os entrevistados se alternaram nas posições de serem objetivados (à medida que "portam" a doença) e de objetivadores (quando assumem, como seus, o discurso das ciências médicas e da saúde).

Jaleco branco como marca identitária

Perguntados sobre o que pensam sobre os jalecos e outras roupas brancas, os entrevistados referiram-se a esse vestuário, em geral com imediatismo, como marcas identitárias. A despeito de os entrevistados desejarem ou não que seja assim, o sentido mais facilmente explicitável pareceu claro nas entrevistas: indicaria a presença de pessoa em exercício de uma profissão do setor saúde.

Talvez a designação semiótica mais correta desta indumentária seja a de tratar-se de um ícone desse setor profissional, dada a unanimidade dessa significação, pelo menos na amostra estudada. O Quadro 3 expõe exemplos.


Algumas especificações desse tipo de significação foram percebidas nas menções dos participantes às distinções facilitadas pelo vestuário: profissionais X não-profissionais, profissionais X estudantes, médicos X outros profissionais e também entre os diferentes tipos de exercício profissional, de acordo com o cenário assistencial em que ocorrem.

Vestuário como indicador (porém não como ícone) de competência

A despeito de identificarem o exercício profissional, os significantes jaleco e outras roupas brancas não pareceram corresponder de modo imediato, na fala dos participantes, ao atributo de competência profissional. A identidade de que esse vestuário pareceu servir como ícone seria antes a de um detentor do direito legal de exercer uma profissão da saúde, ou seja, uma espécie de identificador de certificação profissional.

Os dados coletados não permitiram inferir que o vestuário seja uma marca identitária forte de como (ou mesmo se) a competência associada à profissão seria exercida. Em outras palavras, o vestuário não designaria, para os participantes, ao menos necessariamente, estarem diante de alguém em efetivo exercício clínico, entendido como a função reconhecida e legitimada historicamente e socialmente de observar, avaliar, tratar e cuidar de um paciente. Do mesmo modo como enfatizaram esse tipo de identidade profissional, com a mesma ênfase os entrevistados destacaram que poderiam facilmente prescindir desse tipo de marca.

Como também exemplificado No Quadro 4, outros tipos de símbolos de competência médica (carimbos, solicitação de exames, postura respeitosa, não prescindir do exame físico) parecem emergir na amostra estudada.


O jaleco e outras roupas brancas e a relação profissional-paciente

Embora aparentemente prescindível quanto ao uso, o jaleco e outras roupas brancas parecem ainda associar-se, na amostra estudada, a atributos relacionados à atenção à saúde. Ideias relacionadas à limpeza e à proteção física (quanto à contaminação) foram explicitadas. Estar asseado, demonstrando isso pelo vestuário utilizado, mostraria boa vontade do profissional para atender. Como contraponto, um entrevistado associou-o ao não cuidado (Quadro 5).


Alguns elementos da esfera da afetividade do profissional estariam representados pelo vestuário. No quadro 5 encontram-se menções a "gosto por atender", "obediência" (no sentido de não anomia no exercício da prática clínica), "disciplina" e "pureza". Do mesmo modo, elementos afetivos próprios dos participantes seriam suscitados pelo jaleco branco, como o "medo" e "respeito" pelo profissional.

Houve menções a uma possível facilitação do início da relação profissional-paciente, em razão de o jaleco identificar o profissional e as diferenças de comportamentos nos serviços público e privado.

Discussão

Premência à simbolização

A necessidade humana de gerar sentidos/significados decorre, em última instância, da polarização eu-mundo, e, no caso do presente objeto de pesquisa, esses significados teriam tido suas expressões catalisadas por tensões resultantes de um encontro paciente-cuidador marcado por disparidades e assimetrias. A explicitação das assimetrias socioeconômicas foi facilitada, aparentemente, pelo contexto assistencial das entrevistas, já que os usuários das USF correspondem ainda hoje aos estratos mais baixos da população brasileira. Porém, estariam em jogo também um forte antagonismo cultural entre clínicos e pacientes nos modos de interpretar o processo saúde-doença-cuidado, além de potenciais e intensas angústias, vividas, sobretudo, pelos pacientes, o que pode explicar a busca por significações de competência clínica.

O último eixo gerador de assimetrias (alternância do lugar ocupado pelos entrevistados no processo de objetivação da doença, ora objetivadores, ora objetivados) parece-nos particularmente importante, à medida que alguns participantes pareceram procurar preencher uma função objetivadora "especializada", comportamento esperado, a priori, dos profissionais.

Como exemplificado em frase do Quadro 2, uma das entrevistadas [C] discorreu sobre considerar que o grau de "informação" do paciente interferiria na ideia que ele faz do branco. Para ela, o vestuário branco, típico dos médicos, seria associado a medo e aversão por parte de pessoas sem "contato com a rotina da unidade", sugerindo inclusive uma espécie de tecnofobia de parcela da população. Para compreender "o porquê da importância de usar o branco" [C], ou seja, não se constranger diante de alguém vestido assim, o paciente deve, em sua opinião, ser mais bem informado, exemplificando que os habitantes do meio rural teriam maiores dificuldades e temeriam os médicos e outros profissionais da saúde. Defrontar-se com um profissional da saúde de maneira menos ansiogênica demandaria, segundo a participante, familiaridade com a ciência e tecnologia médicas, de modo a identificar "corretamente" o jaleco branco como um símbolo do exercício de tecnologias "benéficas", e não o contrário.

Uma explicação correlata pareceu fundamentar a constatação de alguns informantes de que as crianças seriam negativamente sensíveis a um profissional vestido de branco. Como se, por incapacidade de compreender, ou por uma compreensão incorreta, o significado preponderante pudesse passar a ser "perigo", gerando medo. Curiosamente, essa suposição dos entrevistados se contrapõe a alguns achados da literatura sobre a reação das crianças ao jaleco branco (MATSUI; CHO; RIEDER, 1998).

Um tema difícil para os informantes

Uma das possibilidades levantadas para explicar o laconismo de alguns entrevistados é a dificuldade de imaginarem que algumas práticas formais de cuidado à saúde possam ter significados simbólicos. Assim, alguns entrevistados restringiram-se inicialmente a expor significações de caráter denotativo: como disse uma entrevistada, "branco é branco". A medicina (profissão mais tradicional e característica dentre as que se ocupam da saúde) apenas há poucas gerações entrou na chamada "era científica". Apesar disso, ela já não parece comportar facilmente representações de utilizar-se de um aparato ritualístico, não tecnológico.

Outra possibilidade interpretativa para as entrevistas de andamento aparentemente mais truncado ampara-se nas já referidas posições marcadamente assimétricas ocupadas pelos clínicos e pacientes. Alguns constrangimentos para falar podem ter decorrido dessas assimetrias: a entrevistadora pode ter sido identificada como representante do outro polo em questão.

Competência clínica x certificação

O vestuário branco não foi, em geral, valorizado pela amostra como importante per se - tendo sido, ao contrário, repetidamente desvalorizado e referido como dispensável, em função do atributo da competência clínica, esta sim valorizada pelos participantes. A desvalorização do jaleco branco vai ao encontro de outros estudos recentes que sugerem também essa tendência nas preferências dos pacientes sobre o vestuário dos clínicos (LILLl; WILKINSON, 2005). A razão que levaria ao uso desse vestuário foi relacionada a fatores prosaicos como moda, conforto, atenção a regras burocráticas e tradições (cujas origens os entrevistados referiram desconhecer) ou mesmo o branco como uma espécie de incentivo psicológico positivo para o profissional manter-se higienizado (sendo supostamente mais fácil identificar sujidades, o profissional logo se trocaria). Foi também comentado pela amostra o que pode ser descrito como dinamicidade histórica e geográfica dos significados, tendo sido constatado o uso, relativamente mais recente, de outras cores "neutras" ou "frias", como o verde, o azul e o rosa claros, em alguns ambientes específicos.

Desse modo, mesmo sendo possível prescindir do jaleco e outras roupas brancas como significantes do cuidado, os elementos da amostra forneceram indícios de que alguns "significantes emergentes" começam a carregar consigo esse significado historicamente tão valorizado e reiteradamente afirmado como importante pelos participantes. Dentre eles, foram mencionados o carimbo do médico numa receita, a solicitação de exames laboratoriais e as habilidades propedêuticas/semiológicas (anamnese e exame físico).

Uma questão que se coloca a partir desses achados é: por que estaria havendo essa mudança dos símbolos de competência clínica? Cogita-se que, na primeira metade do século XX, quando o uso do jaleco branco pelos profissionais de saúde aparentemente se consolidou internacionalmente (FARRAJ; BARON, 1991), as duas identidades ("profissional da área" e "profissional competente") fossem altamente superpostas.

No entanto, em que pese à medicina manter atualmente um elevado status sociocultural em relação às demais profissões, seria crescente certa trivialidade da presença dos médicos e outros profissionais de saúde na vida das pessoas, se comparado o momento atual com o de cem anos atrás. Adicionalmente, estaria ocorrendo uma "desglamourização" da profissão médica em função da quebra da hegemonia de seu discurso em relação às questões de saúde-doença, ao crescente controle da sociedade sobre as práticas de saúde (BURY, 2001) e provavelmente em função da maior dinamicidade de veiculação pela mídia de conteúdos informativos sobre saúde (incluindo de atos interpretados como erros médicos). É possível, então, que símbolos mais óbvios e "desgastados" passem a ser preteridos em função de outros.

Fenômenos sociais como esses, associados às próprias experiências pessoais dos entrevistados, provavelmente se relacionam a um descolamento das duas identidades antes superpostas: "ser um profissional certificado" não significaria mais, necessariamente, "ser competente". Para a amostra, pelo que se pôde inferir, portar um jaleco ou apresentar-se de branco, num ambiente assistencial, não significaria muito mais do que mostrar-se como alguém institucionalmente reconhecido: uma espécie de cartão ou crachá de identidade.

Possíveis novos símbolos de competência clínica

Outra questão que se coloca a partir dos achados é: o que fundamentaria o surgimento ou a utilização desses novos significantes, possíveis novos símbolos profissionais?

À primeira vista, chama a atenção que dois dos novos significantes mencionados (carimbo em receita e solicitação de exames subsidiários) relacionam-se ao processo de tecnologização crescente do setor saúde. Chama também a atenção que dois deles (solicitação de exames e habilidades propedêuticas) são significantes complexos e não puramente visuais, como é o vestuário.

No conjunto, eles parecem referenciar-se não somente a um aparato tecnológico denso, mas compor uma mescla de tecnologias ditas leves, leves-duras e duras (MERHY, 2000). Ou, em outras palavras, os novos significantes parecem referir-se ao que se entendia originalmente por techne, a sabedoria no sentido de saber-fazer metódico ou de saber encontrar o que convém em determinada situação; ou, mais precisamente, por klinike techne, algo como o ofício ou a arte de assistir pessoas necessitadas de ajuda (excluindo a metonímia original da expressão, referente a pessoas acamadas). Assim, as menções a atos considerados de destreza semiológica (incluindo a semiologia armada, no caso dos exames) podem ser vistas como menções a essa techne milenarmente reconhecida.

Conclusão

Os dados coletados permitem formular a hipótese de que o jaleco, apesar de marca identitária, tende a não mais indicar competência profissional, mas somente uma certificação burocrática (algo como "é médico" mas não, necessariamente, "é médico competente para cuidar de mim"). Porém, à medida que a antinomia dos encontros paciente-profissional levaria à premência, de ambas as partes (mas particularmente dos pacientes), de se situarem em relação ao outro, foi constatada a utilização de outros símbolos para marcar suas respectivas posições. Em razão do caráter desses encontros, potencialmente permeados por angústias relacionadas às avaliações clínicas "científicas" e precisas, os entrevistados mostraram valorizar outros signos que pudessem conotar a almejada "competência" para diagnosticar, prognosticar e tratar.

Esse primeiro olhar sobre os dados nos aponta para uma polissemia acerca do jaleco branco. O espectro de significados encontrados não é necessariamente consenso interno entre os sujeitos. Ao contrário, em certo sentido, podem divergir entre si. Essa constatação pode servir para argumentar que, embora os significados sejam culturalmente construídos e partilhados por sujeitos que integram uma mesma rede semântica, eles são subjetivados por aqueles que deles fazem uso.

Embora as funções ritualísticas dos comportamentos e objetos utilizados nos cuidados à saúde sejam mais facilmente evidenciadas nas chamadas práticas informais e populares, elas permanecem presentes nas maneiras formais ou profissionais de agir na atenção à saúde. Isso persistiu (por exemplo, com o jaleco branco) após a emergência da medicina científica moderna e, na atualidade, novos símbolos parecem despontar e ocupar esse espaço ritualístico. Tais ocorrências são de estudo ainda mais instigante, por, à primeira vista, se contraporem ao movimento das práticas baseadas em evidências.

O uso de um anteparo físico entre clínicos e pacientes (à maneira dos trajes dos "médicos da peste" do século XVII), talvez não mais se justifique tacitamente pela lógica da barreira à contaminação, uma vez que as doenças infecciosas deixaram de ser o leitmotiv das intervenções médicas, lugar hoje ocupado pelas doenças crônico-degenerativas. Elas têm exigido uma abordagem profissional de mais longo prazo, e que inclui uma atualização da importância das narrativas dos pacientes sobre seus próprios problemas de saúde (BURY, 2001), algo que se opõe, portanto, ao segundo argumento tácito para justificar o uso do jaleco (suposta melhoria da relação clínico-paciente). Desse modo, um símbolo cujo significante é uma barreira/anteparo tenderia a permanecer apenas em contextos clínicos muito específicos e talvez viesse a se configurar futuramente como datado, pertencente à emergência da medicina científica moderna, episteme consolidada no século XX e que talvez, à época, necessitasse de significantes inquestionáveis.

Nesta linha interpretativa, os novos símbolos identificados no corpus viriam a se juntar a outros pouco evidentes, de materialidade ainda menor, porém aparentemente muito presentes no contexto de cuidado à saúde. Dentre eles, pensa-se no código linguístico comumente utilizado pelos profissionais mais graduados (jargão) e acompanhado de um código comportamental (impostação da voz, postura física, expressões fisionômicas, modo de se dirigir ao paciente, a etiqueta nos ambientes de cuidado, etc.).

A presente pesquisa tem as limitações de generalização dos estudos qualitativos, servindo antes à exploração científica de uma questão e ao levantamento de hipóteses. Estudos epidemiológicos que traduzam numericamente a ocorrência dos diferentes significados poderão dela se beneficiar. Profissionais e gestores do setor saúde podem, entretanto, considerar nossos resultados em suas posturas de estímulo ou não ao uso do jaleco e outras roupas brancas.1 1 B.J.B. Fontanella elaborou o projeto de pesquisa, supervisionou a coleta de dados, realizou a interpretação e discussão dos resultados e participou da redação final do artigo. F.R. Silva coletou os dados, participou da análise e interpretação dos resultados e participou da redação final do artigo. R. Gomes participou da interpretação e discussão dos resultados e da revisão teórica do artigo.

Nota

Recebido em: 21/10/2010.

Aprovado em: 21/04/2011.

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    B.J.B. Fontanella elaborou o projeto de pesquisa, supervisionou a coleta de dados, realizou a interpretação e discussão dos resultados e participou da redação final do artigo. F.R. Silva coletou os dados, participou da análise e interpretação dos resultados e participou da redação final do artigo. R. Gomes participou da interpretação e discussão dos resultados e da revisão teórica do artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012

    Histórico

    • Recebido
      21 Out 2010
    • Aceito
      21 Abr 2011
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