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O terceiro sexo revisitado: a homossexualidade no Archives of Sexual Behavior

Third sex revisited: homosexuality in the Archives of Sexual Behavior

Resumos

Uma das primeiras teorias científicas sobre a homossexualidade é a ideia de "terceiro sexo", desenvolvida na segunda metade do século XIX, em que o homossexual era visto como possuidor de uma "alma feminina em um corpo masculino". Com o objetivo de analisar se e como determinadas teorias contemporâneas sobre a homossexualidade se articulam à ideia de "terceiro sexo", foi feito um levantamento de 211 artigos sobre homossexualidade, publicados no periódico Archives of Sexual Behavior entre 1971 e 2006. Os artigos foram divididos em cinco categorias: Psicológicos, Biomédicos, Sociológicos/Culturais, HIV e Outros. Analisamos dois grupos de artigos da categoria Biomédicos. O primeiro grupo analisado engloba pesquisas que procuram estabelecer uma relação entre homossexualidade na vida adulta e "comportamento atípico" em crianças (como meninas preferirem bolas a bonecas e vice-versa). No segundo grupo de artigos, os pesquisadores buscam por diferenças anatômicas entre homossexuais e heterossexuais (como a proporção do comprimento dos dedos, ou o tamanho do pênis), que seriam indicadores de "níveis anormais" de hormônios pré-natais, responsáveis pela lateralização cerebral, que por sua vez definiria a orientação sexual. Concluímos que ambos os grupos de artigos estão calcados numa visão da heterossexualidade como característica distintiva de gênero, que aproxima, de um lado, o homem homossexual às mulheres heterossexuais e, do outro, as mulheres homossexuais aos homens heterossexuais. Este tipo de raciocínio possui grande similaridade com a teoria do "terceiro sexo"; entretanto, noções mais vagas ou metafísicas - como "alma" ou "mente" - são substituídas agora por outra mais concreta e física - o cérebro.

homossexualidade; ciência; pesquisas biomédicas


One of the first scientific theories about homosexuality is the "Third sex" theory, developed in late 1900's. According to this theory, the homosexual male had a "female soul in a male body". With the aim of analyzing if and how contemporary theories about homosexuality are related to the idea of the "Third sex", we reviewed 211 papers about homosexuality, published in the Archives of Sexual Behavior from 1971 to 2006. The papers were classified in five categories: Psychological, Biomedical, Sociological/Cultural, HIV and Others. We analyzed two groups of papers included in the "Biomedical" category. The first group encompasses studies that try to establish a relationship between homosexuality in adulthood and "atypical gender behavior" in childhood (for instance, how girls preferred balls instead of dolls and vice-versa). In the second group, the studies searched for anatomic differences between homosexual and heterosexual individuals (such as length of the fingers and of the penis) that would indicate "abnormal levels" of pre-natal hormones, these being responsible for the cerebral lateralization that defines sexual orientation. We concluded that both groups of papers are based on a view of heterosexuality as a distinctive characteristic of gender that links homosexual males to heterosexual females and vice versa. This type of approach has great similarity with the 19th century theory of the "Third sex"; however, vague and metaphysical concepts, such as "soul" and "mind", have been replaced by more concrete and physical concepts such as "brain".

Homosexuality; science; biomedical research


TEMAS LIVRES

O terceiro sexo revisitado: a homossexualidade no Archives of Sexual Behavior

Third sex revisited: homosexuality in the Archives of Sexual Behavior

Marina Fisher NucciI; Jane Araújo RussoII

IGraduada em Ciências Sociais pela UFRJ, mestranda do Programa de Pós–Graduação em Saúde Coletiva do IMS–UERJ. Endereço eletrônico: marinanucci@terra.com.br

IIAntropóloga, pesquisadora do CNPq, professora adjunta do Programa de Pós–Graduação em Saúde Coletiva do IMS–UERJ. Endereço eletrônico: jrusso@ims.uerj.br

RESUMO

Uma das primeiras teorias científicas sobre a homossexualidade é a ideia de "terceiro sexo", desenvolvida na segunda metade do século XIX, em que o homossexual era visto como possuidor de uma "alma feminina em um corpo masculino". Com o objetivo de analisar se e como determinadas teorias contemporâneas sobre a homossexualidade se articulam à ideia de "terceiro sexo", foi feito um levantamento de 211 artigos sobre homossexualidade, publicados no periódico Archives of Sexual Behavior entre 1971 e 2006. Os artigos foram divididos em cinco categorias: Psicológicos, Biomédicos, Sociológicos/Culturais, HIV e Outros. Analisamos dois grupos de artigos da categoria Biomédicos. O primeiro grupo analisado engloba pesquisas que procuram estabelecer uma relação entre homossexualidade na vida adulta e "comportamento atípico" em crianças (como meninas preferirem bolas a bonecas e vice–versa). No segundo grupo de artigos, os pesquisadores buscam por diferenças anatômicas entre homossexuais e heterossexuais (como a proporção do comprimento dos dedos, ou o tamanho do pênis), que seriam indicadores de "níveis anormais" de hormônios pré–natais, responsáveis pela lateralização cerebral, que por sua vez definiria a orientação sexual. Concluímos que ambos os grupos de artigos estão calcados numa visão da heterossexualidade como característica distintiva de gênero, que aproxima, de um lado, o homem homossexual às mulheres heterossexuais e, do outro, as mulheres homossexuais aos homens heterossexuais. Este tipo de raciocínio possui grande similaridade com a teoria do "terceiro sexo"; entretanto, noções mais vagas ou metafísicas – como "alma" ou "mente" – são substituídas agora por outra mais concreta e física – o cérebro.

Palavras–chave: homossexualidade; ciência; pesquisas biomédicas.

ABSTRACT

One of the first scientific theories about homosexuality is the "Third sex" theory, developed in late 1900's. According to this theory, the homosexual male had a "female soul in a male body". With the aim of analyzing if and how contemporary theories about homosexuality are related to the idea of the "Third sex", we reviewed 211 papers about homosexuality, published in the Archives of Sexual Behavior from 1971 to 2006. The papers were classified in five categories: Psychological, Biomedical, Sociological/Cultural, HIV and Others. We analyzed two groups of papers included in the "Biomedical" category. The first group encompasses studies that try to establish a relationship between homosexuality in adulthood and "atypical gender behavior" in childhood (for instance, how girls preferred balls instead of dolls and vice–versa). In the second group, the studies searched for anatomic differences between homosexual and heterosexual individuals (such as length of the fingers and of the penis) that would indicate "abnormal levels" of pre–natal hormones, these being responsible for the cerebral lateralization that defines sexual orientation. We concluded that both groups of papers are based on a view of heterosexuality as a distinctive characteristic of gender that links homosexual males to heterosexual females and vice versa. This type of approach has great similarity with the 19th century theory of the "Third sex"; however, vague and metaphysical concepts, such as "soul" and "mind", have been replaced by more concrete and physical concepts such as "brain".

Key words: Homosexuality; science; biomedical research.

Introdução

O filme "Se eu fosse você", dirigido por Daniel Filho e que entrou em cartaz em 2006, conta a história de um casal, Helena (Glória Pires) e Cláudio (Tony Ramos), que, devido a um alinhamento dos astros, acaba trocando de corpo depois de uma briga conjugal. Após o ocorrido, cada um passa a viver a vida do outro, tendo, assim, que se adaptar a novas situações como, no caso de Cláudio, aprender a usar salto alto ou, de Helena, a frequentar o banheiro masculino.

Essas situações, além de grande apelo cômico, acabam por reforçar certos estereótipos ligados ao gênero e à orientação sexual. Assim, por exemplo, quando Helena se encontra dentro do corpo do marido, os colegas de trabalho de Cláudio passam a desconfiar que ele estaria se transformando numa "bicha", uma vez que seus trejeitos estariam mais "femininos". Desta forma, o filme reedita a ideia da "alma feminina em um corpo masculino" (e vice–versa) presente entre os primeiros teóricos da homossexualidade1 1 André Béjin (1987) verá no trabalho destes primeiros teóricos sobre a sexualidade o nascimento da Ciência do Sexual, a Sexologia. Tais teóricos, como Krafft–Ebing, Ulrichs e Magnus Hirschfeld, constituiriam uma proto–sexologia, centralizada nas doenças venéreas, na psicopatologia da sexualidade e no eugenismo. Já a segunda sexologia nasceria com Kinsey em 1948, e teria seu foco voltado principalmente para o orgasmo. da segunda metade do século XIX, que viam o homossexual como pertencente a um "terceiro sexo" (HERDT, 1993).

Para o jurista alemão Karl Heinrich Ulrichs, criador da primeira teoria científica a respeito da homossexualidade e defensor de sua não–criminalização, a homossexualidade não seria algo monstruoso ou condenável, mas, sim, uma espécie de "hermafroditismo da mente", cuja origem biológica e inata impossibilitaria uma "cura" ou mudança do objeto de paixão do homossexual (LANTÉRI–LAURA, 1994). O homossexual, portanto, deveria possuir uma "alma feminina em um corpo masculino", uma vez que o desejo por homens seria essencial – e necessariamente – de ordem feminina.

Magnus Hirschfeld, médico e fundador da primeira organização de direitos homossexuais em 1897 na Alemanha, também teorizou sobre a homossexualidade a partir desta ideia de uma "inversão sexual", em que os homossexuais seriam homens femininos, pertencentes ao "terceiro sexo". Hirschfeld, assim como Ulrichs, via na homossexualidade não uma patologia, mas uma variação natural do instinto sexual (STEAKLEY, 1997; KENNEDY, 1997; BULLOUGH, 1994; ROBINSON, 1977). Podemos notar como nesses argumentos as dimensões da orientação sexual e de gênero encontram–se interligadas.

A ideia de que existiriam dois sexos estáveis, incomensuráveis e opostos, a partir de características anatômicas intrínsecas, somente começou a existir como visão dominante a partir do século XVIII. Segundo Laqueur (2001), antes deste período vigorava o "modelo do sexo único", em que as mulheres eram vistas como homens imperfeitos. Acreditava–se que a mulher possuía a mesma genitália que os homens, só que dentro do corpo, e não fora. Assim, a vagina nada mais era do que um pênis interno, que não havia se desenvolvido suficientemente devido à falta de calor vital, e sendo assim, menos perfeito. Haveria, deste modo, uma escala hierárquica, onde os homens, que haviam recebido mais calor e desenvolvido melhor seus órgãos genitais, ficavam no topo, e as mulheres, cuja falta de calor era responsável pela localização interna de seus órgãos, eram vistas como seres inferiores. Neste modelo a diferença entre o homem e a mulher não era uma diferença de espécie, mas uma diferença de grau, podendo inclusive as mulheres – pelo menos teoricamente –, caso recebessem mais calor, "subir de grau", transformando–se em homens.

No modelo de dois sexos, ser homem ou ser mulher é algo naturalizado, calcado numa anatomia e numa fisiologia absolutamente particulares que, por sua vez, "produzem" uma psicologia e um modo de ser. A hierarquia entre homens e mulheres deixa assim de estar calcada em papéis sociais diversos, mas, ao contrário, os próprios papéis sociais são justificados por uma natureza incomensurável. Estes papéis, por sua vez, associam–se estreitamente à orientação sexual, em que ser mulher é relacionar–se sexualmente com homens e vice–versa, tendo como objetivo primordial a reprodução.

É contra essa concepção naturalizante e essencialista dos dois sexos que se insurge o movimento feminista. Segundo Scott (1995), o termo gênero começa a ser utilizado pelas feministas norte–americanas para enfatizar o caráter social das distinções baseadas no sexo anatômico, rejeitando assim o determinismo biológico presente nas diferenças – que segundo as feministas, são socialmente produzidas – entre homens e mulheres.

Anne Fausto–Sterling (2002) aponta como os modos europeus e norte–americanos de entender o mundo dependem em grande parte do uso de dualismos, tais como sexo e gênero. Segundo a autora, as definições relacionadas à sexualidade, tais como a homossexualidade e bissexualidade, seriam construídas sobre o modelo de dois sexos. A partir desta visão dualista, então, um homem homossexual seria de alguma forma visto como um homem "efeminado" ou menos masculino. Esta concepção, típica do século XIX, se mantém no decorrer do século XX na percepção tradicional da homossexualidade.

Um bom exemplo dessa percepção, permeada pela concepção do homossexual como um homem "efeminado", aparece no texto clássico de Peter Fry (1982) sobre trabalho de campo realizado em Belém. Lá, Fry observou a existência de uma classificação hierárquica que regia as relações entre homens, e em que o passivo sexual era associado (tanto em termos de comportamento quanto de status social) às mulheres. Assim, os homens "homossexuais" (isto é, aqueles que mantinham relações sexuais com outros homens) eram divididos em "homens" e "bichas". O "homem" possui papel de gênero masculino, é o "ativo" da relação, é quem penetra. Já a "bicha" tenderia a reproduzir comportamentos geralmente associados às mulheres, é "passivo", e é penetrado. Deste modo, o mesmo sistema que rege as relações entre homens e mulheres rege a relação entre o "homem" e a "bicha". Relações realmente desviantes, segundo Fry, seriam aquelas que ocorrem entre pessoas que desempenham o mesmo papel de gênero, ou seja, ente uma "bicha" e outra.

Neste trabalho, partindo da leitura de artigos sobre a homossexualidade publicados no Archives of Sexual Behavior entre 1971 e 2006, analisamos como determinadas teorias contemporâneas sobre a homossexualidade se articulam ou não à ideia de "terceiro sexo", chamando atenção para uma correlação entre ideias do senso comum e visões biomédicas, como o exemplo do filme "Se eu fosse você" procurou mostrar.

Nosso objetivo é duplo. Em primeiro lugar, temos a intenção de contribuir para uma discussão crítica acerca da neutralidade da pesquisa científica sobre a sexualidade de um modo geral e a homossexualidade em particular. Acreditamos que a atual "voga" biológica, que busca explicar os mais variados comportamentos por um suposto substrato fisiológico, deve ser objeto de cuidadosa análise e discussão no campo da saúde coletiva. Por outro lado, buscamos apontar as articulações entre a pretensa neutralidade das pesquisas científicas e o ativismo político. É comum considerarmos que a visão política da sexualidade é necessariamente antinaturalizante – ou naturalmente construcionista. Embora tal discussão fuja do escopo deste artigo, procuramos problematizar essa visão habitual, apontando a possibilidade, sugerida por diversos autores, de uma convivência, por vezes bastante amigável, entre, de um lado, a politização da orientação sexual, e de outro, sua naturalização.

Análise dos artigos

O periódico Archives of Sexual Behavior é a publicação oficial da International Academy of Sex Research, tendo sido, por sua relevância, escolhido para análise na pesquisa que deu origem a este artigo. Ele é publicado bimensalmente e surgiu em 1971.

A pesquisa consistiu de um levantamento dos artigos publicados entre 1971 e 2006, nos quais procuramos identificar aqueles referentes à homossexualidade. Foram levantados 211 artigos, que foram divididos em cinco categorias: Psicológicos, Biomédicos, Sociológicos/Culturais, HIV e Outros. As três primeiras categorias dizem respeito ao ponto de vista a partir do qual a categoria "homossexualidade" é tratada, enquanto que a categoria HIV refere–se ao tema do artigo. A seleção e classificação dos artigos foram feitas a partir da leitura dos resumos online, além da presença de determinados termos "chaves", tais como "psicológico", "HIV" ou "cultural" nos títulos e resumos.

A existência da categoria "Outros" é sempre problemática, tendo em vista que se trata de artigos que não conseguimos encaixar em outra categoria. No caso, tal categoria possui apenas cinco artigos, sendo dois sobre comportamento homossexual em primatas e outros três cujos resumos não se encontravam disponíveis online.

O resultado do levantamento pode ser visto nos dois quadros abaixo:

Podemos observar acima como o número de artigos Biomédicos sobe significativamente com o passar do tempo, e como os artigos Psicológicos diminuem a partir da década de 80, voltando a subir novamente em 2000. Podemos notar também que o número de artigos Sociológicos/Culturais aumenta na década de 80. Uma hipótese é que tal aumento pode ter sido ocasionado pela epidemia de Aids que teve início nessa década, e que por sua vez pode ter suscitado maior preocupação em se estudar a homossexualidade do ponto de vista das Ciências Sociais.

Neste trabalho, analisaremos dois grupos de artigos presentes na categoria Biomédicos: artigos que ligam a "não–conformidade de gênero na infância" à homossexualidade na vida adulta, e artigos que buscam por diferenças anatômicas entre homossexuais e heterossexuais.

Outros grupos de artigos Biomédicos – tais como hormônios, genética, habilidades cognitivas, mensuração da identidade de gênero, função/ disfunção sexual, epidemiologia e outros – serão objeto de análise posterior.

Não conformidade de gênero na infância

Quinze artigos, entre 1977 e 2006,2 2 Lista dos artigos no Anexo I. estabelecem uma relação entre a homossexualidade e bissexualidade na vida adulta e a "não–conformidade de gênero" na infância. Para tal há, entre os autores, grande preocupação em se definir conceitos como "identidade de gênero" e "papel de gênero".

Beijsterveldt et al. (2006, p. 647)3 3 Artigo número 15 do Anexo I. definem "identidade de gênero" como "os sentimentos básicos de se pertencer a um sexo ou ao outro", e o "papel de gênero" como "o comportamento típico masculino ou feminino que uma pessoa expressa". Segundo os autores – que sistematizam conceitos presentes em praticamente todos os artigos anteriores analisados sobre o tema – esse comportamento típico, que se firmaria definitivamente aos seis ou sete anos de idade, já poderia ser observado em crianças a partir de dois anos, manifestando–se através dos interesses por brinquedos e brincadeiras.4 4 Tipicamente, a menina teria preferência por brincar com bonecas, e os meninos, com bolas.

Nesses estudos, o "comportamento atípico" em crianças é pensado pelos autores como um indicador, na infância, de uma possível homossexualidade na vida adulta. Tal teoria, como vimos anteriormente, está ancorada na associação entre gênero e preferência sexual, onde ser homem é igual a ser heterossexual, e a preferência heterossexual é signo de masculinidade. Como consequência, o homem homossexual seria de algum modo feminino (neste caso, seu comportamento na infância seria "feminino") e a mulher homossexual, da mesma forma, seria masculina.

Entretanto, o frequente uso do termo "não–conformidade de gênero", ao invés do termo "comportamentos ligados ao sexo oposto" (cross gender behavior), utilizado com menor frequência, sugere que os comportamentos analisados nos estudos não são necessariamente comportamentos tipicamente ligados ao sexo oposto, mas comportamentos caracterizados pela ausência de traços geralmente atribuídos ao sexo do sujeito estudado. Sendo assim, muitos autores chamam atenção para o fato de que seria imprópria a utilização de termos como "meninos efeminados" ou "meninas masculinizadas" para descrever essas crianças. Porém, embora exista tal discurso, podemos ver que, na prática, a partir da análise de uma escala para a medição da "não–conformidade de gênero", a visão que vincula sexo e gênero, levando, portanto, ao "gay efeminado" e à "lésbica masculinizada", continua presente.

Boyhood Gender Conformity Scale (BGCS)

A partir da análise da Boyhood Gender Conformity Scale (BGCS)5 5 O desenvolvimento da BGCS foi relatado por seus criadores, S. L. Hockenberry e R. H. Billingham, no artigo " Sexual orientation and boyhood gender conformity: Development of the Boyhood Gender Conformity Scale (BGCS)" (1997). (ver Anexo II ANEXO II – SCALES USED TO MEASURE BOYHOOD GENDER CONFORMITY / NONCONFORMITY (BGCS) ), uma escala desenvolvida para a medição da conformidade de gênero em homens e amplamente utilizada (juntamente com outros tipos de escalas e adaptações da mesma6 6 No artigo " Differences between heterosexual, bisexual, and lesbian women in recalled childhood experiences" (1995), de Gabriel Phillips e Ray Over, há uma adaptação da BGCS para o estudo de mulheres, uma vez que a BGCS é apenas medir a não–conformidade em homens. ) pelos autores dos artigos analisados, podemos ter uma ideia do que se constitui o "comportamento típico" e o "comportamento atípico".

A escala contém 20 itens, onde cada item deve ser respondido a partir de um continuum de respostas – nos moldes da Escala Kinsey7 7 Para Kinsey, a orientação sexual não se dividiria apenas em "homossexuais" e "heterossexuais", sendo, ao invés disso, pensada como um continuum e medida através de uma escala em que um dos extremos seria igual a "exclusivamente homossexual" e o outro a "exclusivamente heterossexual". – no qual "0" se refere a "quase nunca ou nunca" e "6" a "quase sempre ou sempre". Os itens se iniciam sempre da mesma forma: "quando criança eu...". Importante ressaltar que uma característica marcante nos estudos sobre a não–conformidade de gênero, tanto através das escalas quanto através de entrevistas, é o uso de relatos retrospectivos, ou seja, relatos baseados nas lembranças dos sujeitos – ou, muitas vezes, também na lembrança de suas mães – sobre sua infância. O uso deste tipo de relato, embora presente em praticamente todos os estudos, é apontado pela maioria dos autores como fonte de possível viés. Segundo eles, há o risco de que os estereótipos culturais sobre a homossexualidade "contaminem" a memória dos entrevistados, gerando, assim, um falso resultado.

Os itens da BGCS se referem à preferência por brincadeiras durante a infância. Um sinal de um comportamento atípico na infância, para homens, por exemplo, é a preferência por brincar com meninas em vez de brincar com meninos. Do mesmo modo, a preferência por histórias românticas no lugar de histórias de aventura ou de esporte, ou o caso de se imaginar mais frequentemente como um personagem feminino em tais histórias, do que como um cowboy, detetive, soldado ou explorador, são indícios de comportamentos atípicos para meninos.

É evidente que tais critérios de comportamento típico e atípico estão apoiados em estereótipos de gênero. Como já observamos, tais pesquisas articulam dois conceitos, que no âmbito das pesquisas feministas e das pesquisas em ciências sociais, de um modo geral, são vistos como separados: o "gênero" e a "orientação sexual". Contrariamente, as pesquisas levantadas buscam unir o gênero à orientação sexual, de modo que um indivíduo cujo comportamento de gênero é desviante possuirá também uma orientação sexual "desviante".

Homossexuais e heterossexuais: diferenças anatômicas

A principal diferença entre estes estudos e os estudos anteriores diz respeito à busca por uma etiologia biológica para a homossexualidade. Nos estudos sobre a "não–conformidade de gênero na infância", buscava–se apenas estabelecer a relação entre o "comportamento atípico" na infância e uma orientação sexual também "atípica" na vida adulta, sem haver maior preocupação com as questões referentes às causas desta relação.8 8 Embora Wijngaard (1997) chame atenção para uma certa hegemonia da teoria dos hormônios pré–natais nas pesquisas sobre desenvolvimento da identidade de gênero, encontramos poucas referências a esta teoria nos artigos analisados sobre "não–conformidade de gênero na infância". Essa falta de interesse por apontar uma etiologia, de um modo geral, e pela teoria dos hornônios pré–natais, especificamente, por si só constitui uma questão a ser investigada, uma vez que – como veremos a seguir – nas outras categorias de artigos analisados os hormônios pré–natais aparecem maciçamente como provável fator etiológico. Já nos artigos sobre as "diferenças anatômicas", a etiologia, tanto para tais diferenças quanto para a orientação sexual, é o ponto central. Os chamados "hormônios sexuais pré–natais" serão apontados nesses estudos como responsáveis pela lateralização cerebral, que, por sua vez, será responsável pela orientação sexual.

Tal teoria está ancorada nas experiências com hormônios feitos em ratos na década de 1930 nos Estados Unidos (WIJNGAARD, 1997). A partir do resultado de tais estudos, os pesquisadores concluíram que os hormônios andrógenos possuiriam um efeito "organizador" no cérebro dos fetos machos, e que, por sua vez, o cérebro das fêmeas seria desenvolvido a partir da ausência de tais hormônios.9 9 Tal teoria possui evidente similaridade com o "modelo de sexo único" apresentado por Laqueur (2001), no qual o corpo feminino era visto como resultante da ausência de um calor vital.

A teoria dos hormônios pré–natais se organiza a partir dos dois pressupostos básicos que apresentamos no início deste trabalho. O primeiro refere–se à construção biológica dos dois sexos – concebidos, conforme indica Laqueur, como duas espécies incomensuráveis de seres humanos. O segundo diz respeito à vinculação entre sexo (masculino ou feminino) e orientação sexual, isto é, faz parte da masculinidade, como sua essência, a orientação heterossexual, o mesmo ocorrendo com a mulher. A ideia de um sexo "cerebral", a partir da ação dos hormônios pré–natais, nos remete a uma curiosa versão – mais moderna e mais corporal – do antigo tema da "alma feminina em um corpo masculino".

Mas como estudar os níveis de hormônios pré–natais em adultos, isto é, quando a orientação sexual é conhecida? É aí, então, que entram as diferenças anatômicas, que, segundo os autores, funcionam como "marcadores" dos "níveis anormais" de hormônios. Dois tipos de diferenças anatômicas foram apontadas: a proporção do comprimento dos dedos "2D" (indicador) e "4D" (anelar), e o tamanho do pênis.

Cinco artigos, entre 2002 e 2005, procuram estabelecer uma correlação entre a orientação sexual e a proporção o comprimento dos dedos 2D (dedo indicador) e 4D (dedo anelar). Tal relação é investigada tendo em vista que, segundo os autores, a proporção entre 2D e 4D é diferente em homens e mulheres, sendo que os homens teriam uma proporção menor do que as mulheres. A explicação dada pelos autores é que esta diferença seria relacionada aos chamados hormônios pré–natais, ou, mais especificamente, que haveria uma relação inversa entre o nível dos hormônios andrógenos pré–natais e a proporção 2D:4D. Sendo assim, quanto mais hormônios andrógenos pré–natais uma pessoa receber, menor será sua proporção entre 2D:4D.

Para justificar esta relação, os estudos utilizam como evidência o caso das mulheres com hiperplasia adrenal congênita (congenital adrenal hyperplasia CAH). Mulheres com CAH teriam recebido níveis anormalmente altos de hormônios andrógenos durante o desenvolvimento pré–natal, nascendo então com genitálias masculinizadas, além de uma proporção menor entre 2D:4D, quando comparadas com outras mulheres.

Em meio a esta relação estabelecida entre homens e mulheres, níveis de hormônios andrógenos pré–natais, sexualização do cérebro e da pessoa, e proporção entre 2D:4D, os autores irão introduzir a questão da orientação sexual. Assim, a proposta central dos estudos é identificar o papel dos hormônios pré–natais na orientação sexual, e para isso eles utilizarão a proporção 2D:4D como um "marcador". Ou seja, como não é possível investigar retrospectivamente os níveis dos hormônios pré–natais, mas, ao mesmo tempo, como a relação entre tais hormônios e a proporção dos dedos foi estabelecida (no caso das mulheres com CAH), tal proporção funcionaria como sinal de um maior ou menor grau de exposição aos hormônios pré–natais.

A hipótese dos estudos é de que mulheres homossexuais teriam recebido maiores níveis de hormônios andrógenos pré–natais, possuindo, consequentemente, menor proporção do comprimento de 2D:4D em comparação às mulheres heterossexuais. Da mesma forma, os homens homossexuais teriam recebido menores níveis de hormônios andrógenos pré–natais, possuindo maior proporção entre 2D:4D em comparação aos homens heterossexuais.

Essas pesquisas partem de dois pressupostos subjacentes que, por serem naturalizados, não são objeto de discussão: o primeiro diz respeito à articulação entre gênero e heterossexualidade a que já nos referimos; o segundo refere–se à possibilidade de uma explicação eminentemente fisicalista de ambos (gênero e orientação sexual). Neste sentido, é natural que mulheres homossexuais se aproximem biologicamente de homens heterossexuais, sendo "masculinizadas"; do mesmo modo, homens homossexuais, por sentirem atração por homens, possuem similaridade biológica com mulheres heterossexuais, sendo portanto "feminilizados".

Homossexualidade feminina

De um modo geral, poucos são os artigos no Archives of Sexual Behavior que se referem diretamente à homossexualidade feminina. É interessante notar como as diferenças de gênero estão presentes também nas teorias etiológicas sobre a homossexualidade, uma vez que, de um modo geral, os autores dizem que as formas e os processos biológicos que levam um homem a ser homossexual é essencialmente diferente das formas e processos que causam a homossexualidade feminina. Esta visão diferenciada do homossexual masculino e do homossexual feminino está, com certeza, relacionada à visão dos corpos masculinos e femininos como dois corpos radicalmente distintos e incomensuráveis (LAQUEUR, 2001).

Além disso, raramente mulheres e homens são estudados em conjunto, sendo a grande maioria dos artigos dedicados apenas ao homossexual masculino. Uma exceção são os artigos sobre "2D:4D", em que a homossexualidade feminina parece finalmente ser uma questão.

Chama atenção o artigo publicado em 2002: "Differences in Finger Lenght Between Self–Identified 'Butch' and 'Femme' Lesbians", escrito por Windy M. Brown, Christopher J. Finn, Bradley M. Cooke e S. Marc Breedlove. Nesse estudo, as mulheres homossexuais eram classificadas em duas categorias: "butch" – lésbicas mais "masculinas" – e "femme" – lésbicas mais "femininas". A classificação era feita pela própria mulher: perguntavam se ela se considerava mais "masculina" ou mais "feminina". A hipótese do estudo é que as lésbicas "butch" teriam sido mais expostas ao hormônio "andrógeno" pré–natal do que as lésbicas "femme".10 10 Este tipo de classificação em lésbicas "mais femininas" e "menos femininas" é similar à classificação hierárquica apontada por Fry (1982), citada no início deste trabalho, em que homens "homossexuais" eram divididos entre "bichas" e "homens".

Nenhuma das pesquisas (tanto as que se referiam à homossexualidade feminina quanto as que se referiam à homossexualidade masculina) conseguiu comprovar a relação entre 2D:4D e orientação sexual, e seus autores chamam atenção para a necessidade de novos estudos. Nota–se que quando uma teoria deixa de ser comprovada por pesquisas empíricas, esta não é necessariamente abandonada, mas buscam–se razões metodológicas para sua não–comprovação, ou se sugerem estudos mais bem realizados.11 11 O artigo " Photocopies Yield Lower Digit Ratios (2D:4D) Than Direct Finger Measurements", por exemplo, escrito por J. Manning, B. Fink, N. Neave e N. Caswell (2005), se concentra nos problemas metodológicos das pesquisas sobre 2D:4D. Segundo os autores, medir os dedos diretamente, ou a partir de fotocópia das mãos, poderia trazer resultados completamente diferentes para a pesquisa.

"Tamanho do pênis"

Apenas um artigo, "The Relation Between Sexual Orientation and Penile Size" de Anthony F. Bogaert e Scott Hershberger, publicado em 1999, trata da relação entre o tamanho do pênis e a orientação sexual. De acordo com os autores, alterações nos níveis dos "hormônios pré–natais" podem afetar o tamanho e a morfologia dos órgãos genitais.

A questão central desse estudo é a seguinte: se os hormônios pré–natais são responsáveis pela diferenciação das estruturas cerebrais que, por sua vez, são responsáveis pela orientação sexual dos sujeitos, e, além disso, também são responsáveis pela alteração do tamanho e morfologia dos órgãos genitais, por que não há diferenças nos órgãos genitais dos homossexuais e heterossexuais? Uma possível explicação oferecida pelos autores é que a diferenciação genital ocorreria no início da gestação, enquanto que a definição da orientação sexual ocorreria mais tarde. Sendo assim, nessa pesquisa os autores irão procurar possíveis diferenças nos órgãos genitais de homens heterossexuais e homossexuais.

O tamanho do pênis de homossexuais e heterossexuais foi medido e comparado. Concluiu–se que o pênis dos homossexuais era maior – no tamanho e na circunferência – do que o dos heterossexuais. A explicação é que em homens homossexuais, juntamente com características mais "femininas" que refletiriam o declínio – tardio, porém permanente – da testosterona pré–natal, haveria também características mais "masculinas", que refletiriam os primeiros efeitos da testosterona pré–natal. Uma dessas características mais "masculinas" seria justamente a presença de um órgão genital maior.

Interessante notar como, a partir da lógica da teoria dos hormônios pré–natais, o resultado esperado seria o oposto, ou seja, que os homossexuais tivessem o pênis menor que os heterossexuais, uma vez que o homossexual seria "menos masculino" – ou "mais feminino" – por receber menores níveis hormonais.12 12 Esta ideia da virilidade e masculinidade ligada ao pênis, seja ao seu tamanho seja ao seu funcionamento, pode ser encontrada em Marshall (2006), sobre o caso específico da disfunção sexual. Entretanto, o que para o senso comum pode ser visto como uma "falha" da teoria, para os autores não é. Além disso, a explicação para tal resultado pode ser encontrada dentro da própria teoria dos hormônios pré–natais, de modo que ela não seja invalidada.

Considerações finais: a política da ciência ou a ciência da política?

Como vimos, tanto os artigos sobre a "não–conformidade de gênero na infância" quanto aqueles sobre as "diferenças anatômicas" estão calcados numa visão da heterossexualidade como uma característica distintiva de gênero. Essa visão produz uma aproximação entre, de um lado, o homem homossexual e as mulheres heterossexuais e, de outro, as mulheres homossexuais e os homens heterossexuais.

Este tipo de raciocínio possui grande similaridade com a teoria do "terceiro sexo" dos primeiros teóricos da homossexualidade, em que o homem homossexual era pensado como possuidor de uma "alma feminina em um corpo masculino". Sobretudo nos artigos mais "biologizantes", como os que utilizam a teoria dos hormônios pré–natais, a semelhança com a visão da homossexualidade como pertencentes a um "terceiro sexo" é clara. Entretanto, noções mais vagas ou metafísicas – como "alma" ou " mente" – são substituídas por outra mais concreta e física – o cérebro. A separação corpo/mente que se entrevê nos escritos de Ulrichs e Hirshfeld, e que de algum modo apontava para a distinção entre fenômenos mais morais do que propriamente corporais ou físicos, deixa de operar. A "sexualização" do cérebro, que é eminentemente física, corresponde à "sexualização" (ou "generificação") da pessoa, que passa a estar subordinada a uma concepção fisicalista do humano.

Os dois tipos de artigos aqui analisados apontam para uma naturalização da orientação sexual. Em um e noutro caso, trata–se de afirmar que alguém nasce (e não se torna) homossexual. Esse embate, que remete à tradicional dualidade nature x nurture tem implicações políticas importantes. De um lado, apoiando–se na ideia de uma "natureza" homossexual imutável encontramos uma parcela significativa de ativistas gays e lésbicas, para quem a ancoragem numa pretensa natureza fornece um argumento forte em prol do reconhecimento dos direitos civis dos homossexuais.13 13 Ver sobre isso Stein (1999). Para uma discussão crítica dessa posição, ver os artigos de Terry (1997) e Allen (1997). De outro, os opositores do movimento gay e lésbico, em geral vinculados a algum tipo de fundamentalismo religioso, argumentam a favor da homossexualidade como comportamento "aprendido" (ou mesmo escolhido) e que, portanto, pode ser modificado (em outras palavras, "curado").14 14 Ver sobre isso o número especial do Archives of Sexual Behavior, no qual o psiquiatra Robert Spitzer apresenta sua pesquisa " Can some gay men and lesbians change their sexual orientation? 200 participants reporting a change from homosexual to heterosexual orientation", à qual se seguem 26 comentários a favor e contra a ideia de que é possível modificar a orientação sexual de uma pessoa. Tipicamente, vários entre os opositores da possibilidade de modificação argumentam através da afirmação de uma homossexualidade inata. (cf. Archives of sexual behavior v. 32, n. 5, out. 2003).

É curioso observar as idas e vindas na relação entre os homossexuais e a biomedicina desde a virada do século XIX para o XX. Personagens como Ulrichs e Hirschfeld buscavam na ciência dos médicos a afirmação de uma especificidade propriamente física (ou natural) da homossexualidade, de modo a distanciá–la do puro e simples delito criminoso – como era classificada no código penal alemão.15 15 De origem prussiana, ver Bullough (1994, p. 33). No início dos anos 1970, o nascente movimento homossexual norte–americano engajou–se numa luta feroz contra a medicalização da condição de homossexual, tendo como objetivo a retirada do diagnóstico de "homossexualismo" da segunda versão do Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM II) da American Psychiatric Association.16 16 O que de fato acabou acontecendo em 1973. Ver, sobre isso, Bayer (1987). Naquele momento, a aproximação com a medicina significava patologizar a homossexualidade. Hoje a leitura medicalizante (ou biologizante) é vista como positiva na medida em que uma condição "natural" (não escolhida) pode ser beneficiada por leis que protejam uma determinada comunidade através da discriminação positiva.17 17 Evidentemente essa posição não é unânime. Para uma crítica da mesma,ver Brookey (2002). Do nosso ponto de vista, essa relação com a ciência de um modo geral e a medicina em particular deve ser objeto de cuidadosa reflexão. Quais os efeitos possíveis desse "inatismo" na expressão do desenvolvimento moral dos sujeitos? Como articular a luta política desenvolvida na seara pública com a concepção de um sujeito moralmente determinado por sua constituição biológica? São essas algumas das questões que, ao nosso ver, as atuais pesquisas em torno da homossexualidade como fenômeno biológico ou natural devem enfrentar.

Recebido em: 06/03/2008.

Aprovado em: 05/09/2008.

Não conformidade de gênero na infância

1. Childhood indicators of male homosexuality 1977 (Vl. 6 N.2) F. L. Whitam.

2. Ninety–nine "tomboys" and "non–tomboys": Behavioral contrasts and demographic similarities 1982 (Vl.11 N.3) R. Green, K. Wiliams e M. Goodman.

3. Bisexual feelings and opposite–sex behavior in male Malaysian medical students 1982 (Vl.11 N.5) N. Burich, M. S. Armstrong e N. McConaghy.

4. Childhood play activities of male and female homosexuals and heterosexuals 1982 (Vl.11 N.6) E. A. Grellert, M. D. Newcomb e P. M. Bentler.

5. Defeminization and adult psychological well–being among male homosexuals 1983 (Vl.12 N.1) J. Harry.

6. Sexual orientation and boyhood gender conformity: Development of the Boyhood Gender Conformity Scale 1987 (Vl.16 N.6) S. L. Hockenberry e R. E. Billingham.

7. Homosexuality in families of boys with early effeminate behavior: An epidemiological study 1989 (Vl.18 N.2) B. Zuger.

8. Adult sexual orientation in relation to memories of childhood gender conforming and gender nonconforming behaviors 1992 (Vl.21 N.6) G. Phillips e R. Over.

9. Maternally rated childhood gender nonconformity in homosexuals and heterosexuals 1993 (Vl.22 N.5) J. M. Bailey, J. S. Miller e L. Willerman.

10. Opposite sex–linked behaviors and homosexual feelings in the predominantly heterosexual male majority 1994 (Vl.23 N.5) N. McConaghy, N. Burich e D. Silove.

11. Differences between heterosexual, bisexual, and lesbian women in recalled childhood experiences 1995 (Vl.24 N.1) G. Phillips e R. Over.

12. Retrospectively measured individual differences in childhood sex–typed behavior among gay men: Correspondence between self– and maternal reports 1995 (Vl.24 N.6) J. M. Bailey, J. Nothnagel e M. Wolfe.

13. Who Are Tomboys and Why Should We Study Them? 2002 (Vl.31 N.4) M. Bailey, K. T. Bechtold e Sheri A. Berenbaum.

14. Gender Nonconformity, Childhood Rejection, and Adult Attachment: A Study of Gay Men 2004 (Vl.33 N.2) M. A. Landolt, K. Bartholomew, C. Saffrey, D. Oram e D. Perlman.

15. Genetic and Environmental Influences on Cross–Gender Behavior and Relation to Behavior Problems: A Study of Dutch Twins at Ages 7 and 10 Years 2006 (Vl.35 N.6) C. E. M. Beijsterveldt, J. J. Hudziak e D. I. Boomsma.

Anatômicos

16. The Relation Between Sexual Orientation and Penile Size 1999 (Vl.28 N.3) A. F. Bogaert e S. Hershberger.

17. Differences in Finger Length Ratios Between Self–Identified "Butch" and "Femme" Lesbians 2002 (Vl.31 N.1) W. M. Brown, C. J. Finn, B. M. Cooke e S. Marc Breedlove.

18. Finger–Length Ratios in Female Monozygotic Twins Discordant for Sexual Orientation 2003 (Vl.32 N.1) L. S. Hall e C. T. Love.

19. Photocopies Yield Lower Digit Ratios (2D:4D) Than Direct Finger Measurements 2005 (Vl.34 N.3) J. T. Manning, B. Fink, N. Neave e N. Caswell.

20. Digit Ratio (2D:4D) in Homosexual and Heterosexual Men from Austria 2005 (Vl.34 N.3) M. Voracek, J. T. Manning e I. Ponocny.

21. A Reanalysis of Five Studies on Sexual Orientation and the Relative Length of the 2nd and 4th Fingers (the 2D:4D Ratio) 2005 (Vl.34 N.3) D. McFadden, J. C. Loehlin, S. M. Breedlove, R. A. Lippa, J. T. Manning e Q. Rahman.

(Escala publicada em anexo ao artigo "Sexual Orientation and Boyhood Gender Conformity: Development of the Boyhood Gender Conformity Scales (BGCS)" de Stewart L. Hockenberry e Robert E. Billingham, 1987).

Scale:

0 = NEVER OR ALMOST NEVER TRUE

1 = USUALLY NOT TRUE

2 = SOMETIMES BUT INFREQUENTLY TRUE

3 = OCCASIONALLY TRUE

4 = OFTEH TRUE

5 = USUALLY TRUE

6 = ALWAYS OR ALMOST ALWAYS TRUE

1. As a child I felt like I was similar to or not very different from other boys my age.

2. As a child I felt like a girl or a woman.

3. As a child I imagined or wished I was a policeman or a soldier.

4. As a child I put on women's clothing, make–up, jewelry, etc.

5. As a child I would imagine I was the male character (cowboy, detective, soldier, explorer) in the stories I read or watched on TV.

6. As a child I would imagine I was the female character (girl being saved, etc.) in the stories I read or watched on TV.

7. As a child I preferred boys' games and toys (soldiers, football, etc.).

8. As a child I preferred girls' games and toys (dolls, cooking, sewing, etc.).

9. As a child I liked to read adventure or sports stories.

10. As a child I liked to read romantic stories.

11. As a child I preferred to play with boys.

12. As a child I preferred to play with girls.

13. As a child I imagined or wished I was a well–known sports figure.

14. As a child I imagined or wished I was a dancer or a model.

15. As a child I preferred being around older men (father, uncles, grandfather, coach, etc.).

16. As a child I preferred being around older women (mother, aunts, grandmother, female teachers, etc.).

17. As a child I looked to men and male peers to model my behavior and attitudes after.

18. As a child I was considered a "sissy" by the other boys.

19. As a child I felt distant and alienated from girls.

20. As a child I felt distant and alienated from boys.

  • ALLEN, Garland. The double–edged sword of genetic determinism: social and political agendas in genetic studies of homosexuality: 1940–1994 In: VERNON, Rosário (org.). Science and Homosexuality New York: Routledge, 1997. p. 242–270.
  • ARCHIVES OF SEXUAL BEHAVIOR, v. 32, n.5, out. 2003.
  • BAYER, Ronald. Homosexuality and American Psychiatry: the politics of diagnosis. Princeton: Princenton University Press, 1987. 241p.
  • BÉJIN, André. Crepúsculo dos psicanalistas, manhã dos sexólogos. In: ARIÈS, Philippe; BÉJIN, André (org.). Sexualidades ocidentais São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 211–235.
  • BROOKEY, Robert A. Reinventing the male homosexual: the rhetoric and power of the gay gene. Bloomington: Indiana University Press, 2002. 167 p.
  • BULLOUGH, Vern. Science in the bedroom: a history of sex research. New York: Basic Books, 1994. 384 p.
  • FAUSTO–STERLING, A. Dualismos em duelo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 17/18, p. 9–79, 2002.
  • FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 152 p.
  • FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: ______. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 87–115.
  • HERDT, Gilbert. Introduction. In: ______. Third sex, third gender: beyond sexual dimorphism in culture and history. New York: Zone Books, 1993. p. 21–81.
  • KENNEDY, H. Karl Heinrich Ulrichs: First Theorist of Homosexuality. In: VERNON, Rosário (org.). Science and Homosexuality New York: Routledge, 1997. p. 26–45.
  • LANTÉRI–LAURA, G. Leitura das perversões: história de sua apropriação médica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 180 p.
  • LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. 313 p.
  • MARSHALL, Barbara L. The new virility: Viagra, male aging and sexual function. Sexualities, v. 9, n. 3, p. 345–362, 2006.
  • ROBINSON, Paul. The modernization of sex. New York: Harper & Row, 1977. 224 p.
  • SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, v. 20, n.2, 1995. p. 71–100.
  • STEAKLEY, J. Per scientiam ad justitiam: Magnus Hirschfeld and the sexual politics of innate homosexuality. In: VERNON, Rosário (org.). Science and Homosexuality New York: Routledge, 1997. p. 133–154.
  • STEIN, Edward. The mismeasure of desire: the science, theory and ethics of sexual orientation Oxford: Oxford Univesity Press, 1999. 388p.
  • TERRY, J. The seductive power of science in the making of deviant subjectivity. In: VERNON, Rosário (org.). Science and Homosexuality New York: Routledge, 1997. p. 271–295.
  • WIJNGAARD, Marianne van den. Reinventing the sexes: the biomedical construction of femininity and masculinity. Bloomingtom Indianapolis: Indiana Univ. Press, 1997. 171 p.

ANEXO I  – LISTA DOS ARTIGOS ANALISADOS

ANEXO II  – SCALES USED TO MEASURE BOYHOOD GENDER CONFORMITY / NONCONFORMITY (BGCS)

  • 1
    André Béjin (1987) verá no trabalho destes primeiros teóricos sobre a sexualidade o nascimento da Ciência do Sexual, a Sexologia. Tais teóricos, como Krafft–Ebing, Ulrichs e Magnus Hirschfeld, constituiriam uma proto–sexologia, centralizada nas doenças venéreas, na psicopatologia da sexualidade e no eugenismo. Já a segunda sexologia nasceria com Kinsey em 1948, e teria seu foco voltado principalmente para o orgasmo.
  • 2
    Lista dos artigos no
    Anexo I ANEXO I – LISTA DOS ARTIGOS ANALISADOS .
  • 3
    Artigo número 15 do
    Anexo I ANEXO I – LISTA DOS ARTIGOS ANALISADOS .
  • 4
    Tipicamente, a menina teria preferência por brincar com bonecas, e os meninos, com bolas.
  • 5
    O desenvolvimento da BGCS foi relatado por seus criadores, S. L. Hockenberry e R. H. Billingham, no artigo "
    Sexual orientation and boyhood gender conformity: Development of the Boyhood Gender Conformity Scale (BGCS)" (1997).
  • 6
    No artigo "
    Differences between heterosexual, bisexual, and lesbian women in recalled childhood experiences" (1995), de Gabriel Phillips e Ray Over, há uma adaptação da BGCS para o estudo de mulheres, uma vez que a BGCS é apenas medir a não–conformidade em homens.
  • 7
    Para Kinsey, a orientação sexual não se dividiria apenas em "homossexuais" e "heterossexuais", sendo, ao invés disso, pensada como um
    continuum e medida através de uma escala em que um dos extremos seria igual a "exclusivamente homossexual" e o outro a "exclusivamente heterossexual".
  • 8
    Embora Wijngaard (1997) chame atenção para uma certa hegemonia da teoria dos hormônios pré–natais nas pesquisas sobre desenvolvimento da identidade de gênero, encontramos poucas referências a esta teoria nos artigos analisados sobre "não–conformidade de gênero na infância". Essa falta de interesse por apontar uma etiologia, de um modo geral, e pela teoria dos hornônios pré–natais, especificamente, por si só constitui uma questão a ser investigada, uma vez que – como veremos a seguir – nas outras categorias de artigos analisados os hormônios pré–natais aparecem maciçamente como provável fator etiológico.
  • 9
    Tal teoria possui evidente similaridade com o "modelo de sexo único" apresentado por Laqueur (2001), no qual o corpo feminino era visto como resultante da
    ausência de um calor vital.
  • 10
    Este tipo de classificação em lésbicas "mais femininas" e "menos femininas" é similar à classificação hierárquica apontada por Fry (1982), citada no início deste trabalho, em que homens "homossexuais" eram divididos entre "bichas" e "homens".
  • 11
    O artigo "
    Photocopies Yield Lower Digit Ratios (2D:4D) Than Direct Finger Measurements", por exemplo, escrito por J. Manning, B. Fink, N. Neave e N. Caswell (2005), se concentra nos problemas metodológicos das pesquisas sobre 2D:4D. Segundo os autores, medir os dedos diretamente, ou a partir de fotocópia das mãos, poderia trazer resultados completamente diferentes para a pesquisa.
  • 12
    Esta ideia da virilidade e masculinidade ligada ao pênis, seja ao seu tamanho seja ao seu funcionamento, pode ser encontrada em Marshall (2006), sobre o caso específico da disfunção sexual.
  • 13
    Ver sobre isso Stein (1999). Para uma discussão crítica dessa posição, ver os artigos de Terry (1997) e Allen (1997).
  • 14
    Ver sobre isso o número especial do
    Archives of Sexual Behavior, no qual o psiquiatra Robert Spitzer apresenta sua pesquisa "
    Can some gay men and lesbians change their sexual orientation? 200 participants reporting a change from homosexual to heterosexual orientation", à qual se seguem 26 comentários a favor e contra a ideia de que é possível modificar a orientação sexual de uma pessoa. Tipicamente, vários entre os opositores da possibilidade de modificação argumentam através da afirmação de uma homossexualidade inata. (cf.
    Archives of sexual behavior v. 32, n. 5, out. 2003).
  • 15
    De origem prussiana, ver Bullough (1994, p. 33).
  • 16
    O que de fato acabou acontecendo em 1973. Ver, sobre isso, Bayer (1987).
  • 17
    Evidentemente essa posição não é unânime. Para uma crítica da mesma,ver Brookey (2002).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Set 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Aceito
      05 Set 2008
    • Recebido
      06 Mar 2008
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