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SOCIODRAMA EM CENA: A SAÚDE DOS RESIDENTES DE EQUIPE MULTIDISCIPLINAR

SOCIODRAMA ON STAGE: THE HEALTH OF MULTIDISCIPLINARY TEAM RESIDENTS

SOCIODRAMA EN ESCENA: LA SALUD DE LOS RESIDENTES DE UN EQUIPO MULTIDISCIPLINAR

RESUMO

Este artigo apresenta o uso do sociodrama como ferramenta no processo de formação de residentes em um hospital-ensino na cidade de Fortaleza, no que tange ao desempenho dos seus papéis de profissionais de saúde-estudantes atuando em equipes multiprofissionais numa rede de assistência hospitalar. Foram utilizadas sessões de sociodrama num intervalo de 15 dias entre elas. As análises das sessões realizadas e os relatos dos residentes evidenciaram o potencial do sociodrama como importante estratégia de intervenção de políticas públicas na medida em que contribuiu para cuidar da saúde do trabalhador de saúde e empoderou o grupo multiprofissional, promovendo fortalecimento dos vínculos e melhorando o desempenho de seus papéis profissionais na instituição. Esse artigo contribui para a divulgação do Psicodrama no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE
Saúde do trabalhador; Psicodrama; Políticas públicas; Estratégias de saúde

ABSTRACT

This paper presents the use of sociodrama as a tool in the training process of residents in a teaching hospital in the city of Fortaleza, regarding the performance of their roles as health professionals-students acting in multiprofessional teams in a hospital care chain. Sociodrama sessions were used with a 15-day interval between them. The analysis of the sessions and the residents’ reports showed the potential of sociodrama as an important strategy for public policy intervention in that it contributed to health care for health workers and empowered the multiprofessional group, promoting the strengthening of bonds and improving the performance of their professional roles in the institution. This article contributes to the dissemination of Psychodrama in Brazil.

KEYWORDS
Occupational health; Psychodrama; Public policy; Health strategies

RESUMEN

Este artículo presenta el uso del sociodrama como herramienta en el proceso de formación de residentes, en un hospital escolar en la ciudad de Fortaleza, sobre el desempeño de sus roles profesionales de salud-estudiante trabajando en equipos multiprofesionales en una red de atención hospitalaria. Se utilizaron sesiones de sociodrama en un intervalo de 15 días entre ellas. Los análisis de las sesiones realizadas y los informes de los residentes mostraron el potencial del sociodrama como como una estrategia de intervención de políticas públicas importante en la medida en que contribuyo para cuidar de la salud del trabajador de salud, y apoderó el grupo multiprofesional promoviendo el fortalecimiento de los vínculos y mejorando el desempeño de sus roles profesionales en la institución. Este artículo contribuye para la divulgación del psicodrama en Brasil.

PALABRAS CLAVE
Salud laboral; Psicodrama; Política pública; Estrategia de salud

INTRODUÇÃO

O ambiente hospitalar é um local de cuidados e possibilidades de cura de doenças, mas também de morte, medo, ansiedade, rotinas despersonalizantes e de procedimentos invasivos que ameaçam a autonomia, com grande potencial de gerar estresse para todos aqueles que participam da sua rotina, sejam pacientes, familiares, acompanhantes, profissionais residentes ou não, que prestam assistência, direta ou indiretamente.

Souza e Drummond (2020)Souza, A. C. & Drummond, J. (2020). Organizações promotoras de saúde. In M. L. G. Schmidt (Ed.), Dicionário temático de saúde/doença mental no trabalho: Principais conceitos e terminologias (370-372). FiloCzar. mostram a importância do método sociodramático no contexto organizacional como forma de promoção da saúde dos trabalhadores. Para essas autoras, o sociodrama é um método de intervenção grupal que foca nas vincularidades das relações e nas ressignificações de valores e práticas que estejam impedindo o desenvolvimento do potencial criativo e espontâneo dentro do grupo. Assim, ao mesmo tempo em que desenvolve o desempenho de papéis, ele possibilita mudanças no grupo como um todo. Isso acaba gerando um modo de estar e de fazer que não só tem impactos no desempenho de papéis individuais, mas gera mudança na cultura organizacional.

Longhi e Valerio (2021)Longhi, C. & Valerio, N. I. (2021). Psicodrama: Desenvolvimento de papéis em equipes multidisciplinares em saúde. Brazil Publishing. apontam evidência da efetividade sociopsicodramática ao investigar e treinar relações grupais em uma equipe multidisciplinar que atuava na área da saúde no contexto de assistência pública do Sistema Único de Saúde (SUS). Após as intervenções nessas equipes de saúde, melhoras significativas na vida pessoal e no desempenho do trabalho foram percebidas a partir do treino e do desenvolvimento do papel profissional.

O presente artigo trata-se de um relato de experiência das sessões de sociodrama realizadas com um grupo de residentes interdisciplinares de saúde na cidade de Fortaleza, a fim de ajudá-los a lidar com ansiedades, estresses e possíveis adoecimentos das relações vivenciadas no desempenho de seus papéis profissionais enquanto estudantes de um curso de especialização atuando dentro do contexto hospitalar.

CONTEXTUALIZAÇÃO: INÍCIO DO TRABALHO

O programa de residência interdisciplinar buscou o serviço de Psicologia do hospital para trabalhar a gestão emocional e de conflitos de relacionamentos interpessoais no trabalho durante a formação dos residentes. Em resposta ao convite, um trabalho de grupo de periodicidade quinzenal com cada grupo de residentes foi realizado. Essa experiência de intervenção com grupo de residentes foi o que deu origem a este artigo, que foi também apresentado ao Instituto de Psicodrama e Máscaras (IPM) e à Federação Brasileira de Psicodrama (Febrap) como conclusão do nível didata de uma das autoras.

Partiu-se do seguinte questionamento: como o sociodrama poderia promover a saúde e um melhor desempenho das equipes de residentes interdisciplinar de saúde que atuam em um hospital-ensino?

Buscando responder à pergunta acima foram realizadas sessões de sociodramas numa equipe de residentes interdisciplinar em saúde identificando e intervindo nas dificuldades de construção do papel profissional desses residentes, bem como buscando promover saúde e mudanças no desempenho individual de seus papéis e do grupo como um todo.

Além disso, intentou-se contribuir para pesquisas sobre saúde do trabalhador em Fortaleza. Para isso, possui como referenciais teóricos a Socionomia, como ciência, e o Sociodrama, como sua metodologia de ação e intervenção, bem como a Política Nacional de Humanização do SUS (Brasil, 2006Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. (2006). Humaniza SUS: Documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 3. ed. Editora do Ministério da Saúde. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/documento_base.pdf
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) e a Política Nacional do Trabalhador e da Trabalhadora (2012)Política Nacional de Saúde do Trabalhador e Trabalhadora. (2012). Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Ministério da Saúde. Brasil. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt1823_23_08_2012.html
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REFERENCIAL TEÓRICO

Jacob Levi Moreno, mais conhecido no Brasil como o criador do Psicodrama e pouco conhecido como o criador da ciência Socionômica, construiu toda sua obra como expressão de sua vida sem se preocupar muito com questões acadêmicas. A Socionomia foi concebida após todas as práticas de compreensão de grupos sociais e estudos de medição das relações grupais, o que permitiu um aprofundamento teórico e alcance maior de ação. Mas, afinal, o que é a Socionomia?

Fonseca (2018)Fonseca, J. (2018). Essência e personalidade: Elementos de psicologia relacional. Ágora. afirma que Moreno “propõe a socionomia como a ciência das leis sociais e a divide em três ramos: a sociodinâmica, a sociometria e a sociatria” (p. 94). A Sociodinâmica compreende todos os conceitos para o estudo das relações. Já a Sociometria compreende o estudo da mensuração e do mapeamento das relações grupais, a qualidade e a quantidade de vínculos e o grau de coesão entre os membros. A Sociatria compreende a parte do tratamento dos sistemas sociais e das relações humanas e possui três métodos de ação: psicoterapia de grupo, sociodrama e psicodrama. Com o desenvolvimento da Socionomia e sua prática de intervenção e tratamento, a Sociatria vem utilizando o método sociopsicodrama por entender que qualquer trama/drama humano acontece nas relações. Por questões didáticas pode-se definir Psicodrama quando o protagonista é um indivíduo e Sociodrama quando o grupo como um todo é o protagonista. Neste estudo utilizou-se o sociodrama como método de intervenção, tendo o grupo de residentes como protagonistas.

Importantes conceitos da socionomia, como teoria dos papéis, criatividade e espontaneidade, são utilizados na discussão dos resultados para compreender os impactos que as sessões de sociodrama tiveram nos residentes que participaram.

Vale ressaltar que a proposta deste estudo se encontra fundamentada na Política Nacional de Humanização do SUS (Brasil, 2006Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. (2006). Humaniza SUS: Documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 3. ed. Editora do Ministério da Saúde. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/documento_base.pdf
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) em especial na Política Nacional do Trabalhador e Trabalhadora (2012)Política Nacional de Saúde do Trabalhador e Trabalhadora. (2012). Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Ministério da Saúde. Brasil. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt1823_23_08_2012.html
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. Humanizar processos humanos pode parecer um pouco estranho, mas toda a realidade de precarização que a saúde e a educação vêm historicamente sofrendo no Brasil torna importante o foco nos processos das relações humanas, o que, inclusive, é objetivo maior da ciência socionômica e dos seus métodos de ação, como o sociodrama aqui utilizado.

Humanizar pressupõe valorizar e atender responsavelmente as necessidades dos usuários, dos trabalhadores e dos gestores no processo de produção de saúde. Para isso, é fundamental desenvolver autonomia e ampliação da consciência coletiva de corresponsabilidade na transformação da realidade, fortalecendo vínculos afetivos entre equipes multiprofissionais no fazer cotidiano dos processos de produção de saúde. A Política Nacional de Humanização convida e anima a construção coletiva entre usuários, trabalhadores e gestores visando potencializar as relações de poder, trabalho, afeto e superar as fragilidades que, muitas vezes, desumanizam os sistemas, enfraquecem equidades, geram sentimentos de impotências, adoecimentos físicos e mentais, não só aos envolvidos diretamente, mas a toda a população (Brasil, 2006Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. (2006). Humaniza SUS: Documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 3. ed. Editora do Ministério da Saúde. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/documento_base.pdf
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).

A humanização é a valorização dos usuários, trabalhadores e gestores no processo de produção de saúde. Valorizar os sujeitos é oportunizar maior autonomia e ampliação da sua capacidade de transformar a realidade em que vivem, através da responsabilidade compartilhada, da criação de vínculos solidários, da participação coletiva nos processos de gestão e de produção de saúde (Brasil, 2006Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. (2006). Humaniza SUS: Documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 3. ed. Editora do Ministério da Saúde. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/documento_base.pdf
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).

Entre as ressonâncias deste trabalho com as políticas de humanização e de saúde do trabalhador, destaca-se no parágrafo único do artigo 3º da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (2012)Política Nacional de Saúde do Trabalhador e Trabalhadora. (2012). Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Ministério da Saúde. Brasil. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt1823_23_08_2012.html
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Parágrafo único. A Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora alinha-se com o conjunto de políticas de saúde no âmbito do SUS, considerando a transversalidade das ações de saúde do trabalhador e o trabalho como um dos determinantes do processo saúde-doença.

No livro Palavras de Jacob Levi Moreno, Cukier (2019)Cukier, R. (2019). Palavras de Jacob Levi Moreno: Vocabulário de citações da psicoterapia de grupo, do sociodrama e da sociometria. Ágora. afirma que “o sociodrama tem sido definido como método profundo de ação que trata de relações intergrupais e de ideologias coletivas” (p. 271). O foco deste trabalho apoia-se nessa definição e acredita no Sociodrama como método de intervenção preventiva e terapêutica dos grupos, utilizando-o como método de ação para intervenção junto a um grupo de residentes multiprofissionais em saúde de um hospital-ensino da rede SUS.

MÉTODOS

Este estudo foi realizado a partir do contexto do trabalho em um hospital-ensino da rede SUS vinculado à Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, que possui a missão de prestar assistência em saúde, desenvolvendo ações de ensino e pesquisa. É um hospital de grande porte que tem como visão ser, até 2023, o centro de referência em gestão com padrão de qualidade internacional, desenvolvimento profissional e científico, atenção especializada no cuidado centrado no paciente e nas necessidades da rede de assistência (Secretaria da Saúde do Governo do Estado do Ceará, 2022Secretaria da Saúde do Governo do Estado do Ceará (2022). Hospital Geral Dr. César Cals – HGCC. Fortaleza: Portal de Saúde. Disponível em: https://www.hgcc.ce.gov.br/institucional/o-hospital/. Acesso em: 13 de maio de 2022.
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).

Este artigo adota o paradigma de pesquisa qualitativa sob a lente da ciência socionômica, na vertente da Sociatria, utilizando o Sociodrama como método de ação, investigação e intervenção das relações humanas. A metodologia Socionômica compreende as inter-relações humanas e o estudo da dinâmica grupal a partir da sua práxis.

Participaram deste estudo um grupo de profissionais inscritos no programa de Residência Interdisciplinar em Saúde, lotadas num hospital de grande porte da rede pública estadual (SUS). Esse programa segundo seu regimento, artigo 1° “constitui uma modalidade ensino de pós-graduação lato sensu, sob a forma de especialização em caráter de Residência, em regime de tempo integral e dedicação exclusiva, caracterizando-se como educação para o trabalho” (Secretaria da Saúde do Governo do Estado do Ceará, 2013Secretaria da Saúde do Governo do Estado do Ceará (2013). Escola de Saúde Pública- Residência Integrada em Saúde- RIS-ESP/CE. Comissão de Residência Multiprofissional em Saúde- COREMU RIS ESP/CE. Regimento Interno. Fortaleza., p. 3).

Vale ressaltar que este relato de experiência está adequado às normas éticas de pesquisas com seres humanos prevista na Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde (1996)Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde. (1996). Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1996/res0196_10_10_1996.html. Acesso em: 13 de maio de 2022.
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. Antes de iniciar os encontros, essas pessoas foram chamadas para a apresentação da proposta dos encontros pela psicodramatista que iria dirigir os grupos e pela gestora da residência. Na ocasião foram descritos os objetivos, métodos, resultados e benefícios esperados, possíveis riscos, bem como garantia de cuidados, e foi assegurado o anonimato em caso de publicação. Após a explicação, todos os residentes aceitaram participar dos encontros e assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Esse grupo de profissionais era constituído por residentes do segundo ano de formação das seguintes categorias profissionais: Psicologia, Enfermagem, Assistência Social e Fisioterapia, sendo duas psicólogas, cinco enfermeiras e um enfermeiro, duas assistentes sociais e duas fisioterapeutas. Foram realizadas nove sessões de sociodrama com duração de duas horas e intervalos de encontros quinzenais. Esses encontros faziam parte do cronograma de atividades, mas, algumas vezes, coincidiam com atividades extra-hospitalares e alguns deles não conseguiam participar de todos os encontros.

No Sociodrama, as etapas acontecem da mesma forma que no Psicodrama, a saber: aquecimento (inespecífico e específico), dramatização e compartilhamento — a diferença é que o foco do trabalho é o grupo ao invés da história pessoal de cada um. A etapa do aquecimento é uma etapa preparatória para ação que acontece de forma geral, inespecífica e vai aos poucos ficando mais específica e dirigindo-se para o tema. A segunda etapa da dramatização é quando acontece a ação dramática, o tema é vivenciado de forma criativa tendo sido a espontaneidade e a criatividade já liberadas durante a etapa do aquecimento; é a fase da criação de respostas novas, as velhas situações cotidianas, no como se dramático, sem a tensão que é normalmente vivenciada nas situações reais. A terceira etapa é do compartilhar e se trata do momento em que a dramatização já terminou e as pessoas compartilham suas emoções, seus sentimentos, lembranças, pensamentos e reflexões. Falarão de si e não do outro, compartilharão suas emoções, sentimentos e insights (Moreira & Bernardes, 2017Moreira, B. H. & Bernardes, M. P. (2017). O Sociodrama como método para o desenvolvimento de competências gerenciais. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(2), 55–64. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170022
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).

Os encontros aconteceram dentro do hospital em uma sala de videoconferência, com cadeiras com pranchetas removíveis, ar condicionado, internet e acústica controlada. A cada encontro as cadeiras eram colocadas em círculo, e os participantes tinham à disposição uma lousa branca com pincéis coloridos e uma mesa de apoio com papéis, lápis coloridos e outros materiais.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Um dos conceitos mais importante para a socionomia é o de espontaneidade e criatividade e a sua importância no desempenho saudável dos papéis. Aprender a dar respostas novas a velhas situações e respostas adequadas a novas situações é básico para o desenvolvimento e desempenho de papéis. O conceito de papel como anterior à construção da identidade do eu também traz aqui uma importante contribuição para compreender a sua influência social, visto que a pessoa vai construindo sua identidade a partir das interações entre seus diferentes papéis (Longhi & Valerio, 2021Longhi, C. & Valerio, N. I. (2021). Psicodrama: Desenvolvimento de papéis em equipes multidisciplinares em saúde. Brazil Publishing.). O cotidiano de trabalho desses residentes dentro de um contexto hospitalar do SUS é permeado por desafios que ameaçam sua saúde mental quando não conseguem desenvolver seus potenciais espontâneos e criativos e isso gera sofrimentos psíquicos, frustrações e adoecimentos. Inclusive muitos deles durante os encontros compartilharam vivências adoecedoras no desempenho dos seus papéis no hospital.

Inicialmente foi preciso conhecer as profissionais da equipe multiprofissional de residentes, chamadas de R2 (residentes do segundo ano) as quais trabalhavam juntas há mais de um ano. Foi necessário fazer um levantamento das necessidades de intervenção nesse grupo a partir dos seus membros, bem como sensibilizar e estimular a participação do grupo nos encontros quinzenais de Sociodrama. Isso foi feito principalmente nos primeiros encontros, mas vale ressaltar que a cada encontro o foco de intervenção eram nas temáticas trazidas pelo grupo. Seguem descrições das sessões.

No primeiro encontro, para o aquecimento inespecífico foi solicitado que cada uma pensasse num objeto para cada parte do seu nome e para sua profissão, que apresentasse através deles características suas, das suas famílias e da profissão. Depois, deveriam pensar em um objeto que simbolizasse sua expectativa para os encontros. Para cada uma dessas consígnias foi feita uma rodada de apresentação individual, em que todos apresentaram seus objetos e as relações que faziam. Após a rodada de apresentação individual, foi iniciado o aquecimento específico dividindo em subgrupos com o intuito de escreverem uma proposta para a construção dos objetivos sobre os encontros de acordo com as necessidades do grupo. A etapa da dramatização se deu com apresentação dos trabalhos dos subgrupos para o grupo. No compartilhamento foram comuns recordações de vivências de situações na família de origem, as relações com a escolha profissional, o estar num processo de residência multiprofissional em neonatologia e obstetrícia. No final desse encontro foi solicitada uma avaliação e todas as pessoas relataram que nunca tinham ficado tão à vontade com a equipe para falarem de si mesmas e não imaginavam o quanto as experiências familiares influenciavam em suas atuações profissionais. Também falaram que gostaram muito e que desejavam que os encontros pudessem melhorar a forma como elas interagem com outras equipes de trabalho nas enfermarias do hospital.

No segundo encontro pretendeu-se mapear o cotidiano do grupo para avaliar possibilidades de intervenções. O aquecimento inespecífico nesse dia foi feito em silêncio, enquanto caminhavam pela sala e pensavam em como estavam se sentindo naquele momento, após quase 12 horas de plantão. Em seguida, solicitou-se que pensassem em uma música que identificasse o sentimento naquele momento. Em círculos, sentadas, foi pedido para que cantassem a música na qual pensaram e, quem soubesse, poderia ajudar cantando junto ou, quem não se sentisse à vontade, poderia só falar. Todas cantaram. Abaixo seguem as músicas apresentadas e em grifos as falas dos participantes relatadas a elas:

  • Não tenhas sobre ti – “Entregar o cansaço”.

    Lanterna dos afogados – “Foi um dia pesado. De entrega e emoções. Perda de qualidade de vida. Isolamento. Música depressiva ‘luz no fim do túnel’”.

  • Dias de luta, dias de glória – “Não se sabe o que cada um passa. Dias de luta, dias de glória. Pensar no futuro, no melhor”.

    Tocando em frente – “Diminuir o ritmo no fim do dia, hoje começou bem complicado. Suga muito. Ter postura profissional. Mesmo diante de tanta coisa, tem que seguir em frente”.

  • Pés cansados – “O dia hoje foi bem ‘rock’. Lutar, não foi fácil chegar aqui e estar aqui é exaustivo. Não tenho mais tempo pros hobbies, coisas que gostava de fazer”.

  • Andar com fé – “Se apegar em algo para seguir em frente. Vou respirar e levantar, se não aqui eu fico”.

  • Nada sei – “Por mais que acha que sabe das coisas, a gente nunca sabe o bastante, sempre tem algo a aprender. Esses momentos são pra gente aprender”.

Pelas falas acima ficou evidente o cansaço físico e emocional, o quanto as longas jornadas de plantões estavam indicando importante fonte de estresse e já sinalizavam a grande possibilidade de interferência nas rotinas diárias de trabalho, nas relações interpessoais e no desempenho dos papéis profissionais e pessoais. Após a apresentação das músicas e de seus correlatos com o estado emocional naquele momento, foi feito o aquecimento de forma mais específica, em que foi solicitado para que formassem subgrupos por categoria profissional (psicologia, fisioterapia, serviço social e enfermagem), tentassem construir uma imagem do que simbolizava o cotidiano de trabalho da sua categoria profissional e dessem um título para a imagem. Foi oferecido um tempo para as atividades em subgrupo e depois para apresentação.

No compartilhamento falaram de como as esculturas uma das outras revelavam a rotina e que estavam impressionadas com as semelhanças tão estressantes, que estavam se dando conta de como isso poderia interferir nas suas relações pessoais, atividades de lazer e estudo. Algumas falaram como o trabalho em equipe fortalece e que desejavam muito que os dois anos de residência pudessem fortalecer o vínculo de aprendizagem para melhorar o desempenho profissional e pessoal.

No terceiro encontro foi feito o aquecimento inespecífico, solicitou-se que elas ficassem de pé e em círculo e que as fisioterapeutas orientassem de improviso as atividades de alongamento e respiração. Aos poucos a facilitadora entrou e pediu que as participantes se concentrassem nas partes do corpo, respirassem e se enchessem de bons pensamentos quando inspirassem e expelissem aquilo que não precisam mais ou aquilo que as sufocava e dificultava a respiração ao expirarem. Ainda de pé, foram orientadas a virarem em sentido horário, ficando uma de costas pra outra, a fazerem massagem em quem estava à sua frente e a se deixarem ser massageadas nas costas. Uma delas disse: “Ser cuidada é bom”. E todas riram. Depois de um tempo em que simultaneamente puderam massagear e se sentir massageada foi pedido que virassem para o círculo de frente uma pra outra e escolhessem em silêncio uma pessoa para ficarem em dupla.

Quando escolheram as próprias duplas, foi orientado que as duplas ficassem afastadas umas das outras e que cada par segurasse as mãos, uma de frente para a outra, sem poderem se soltar. Logo, afastaram-se o máximo sem soltarem as mãos. Foi perguntado como se sentiam e todas disseram: “muito ruim, desconfortável”. Depois ocuparam o menor espaço e foi perguntado como se sentiam. Elas relataram: “confortável, acolhido, aconchegante, acolchoado, carinho”. Assim, foram formados grupos de quatro que relataram enquanto ocupavam o maior espaço: “largado, desconfortável, ruim”. Ocupando o menor espaço: “ótimo, quente”. Em seguida, o grupo todo junto ocupando maior espaço: “longe, frio, pressionado, esticado, aberto, instabilidade, laços, rodam união, fragilidade, por um fio, ambivalência, desconforto, dormência”. Ocupando o menor espaço: “tá cheiroso, bom, confortável para todos”. Dando prosseguimento ao aquecimento, o grupo criou uma paródia que representasse o dia a dia de uma equipe multiprofissional. Eles produziram uma paródia com a música Vida de gado e apresentaram com coreografia improvisada. Por fim, as participantes bateram palmas para si mesmas e ficaram rindo de forma leve e descontraída. Abaixo segue a paródia produzida pelo grupo:

Vocês que fazem parte dessa casa. Que passam 60 horas e muito mais. É duro tanto ter que acordar. Mas juntos a gente consegue muito mais. E ter que trabalhar na integralidade. E assim fica mais fácil o nosso fazer. E ver que toda essa aprendizagem. Nos ajuda a crescer e fortalecer. Ê ô ô povo cansado ê. R marcado ê. Mas é feliz.

Um vídeo intitulado “O que eu posso fazer por você agora?” foi colocado com o intuito de compartilhar as vivências de cada uma no encontro. Esse vídeo é uma palestra de menos de 10 minutos disponível no canal do YouTube da empreendedora social Renata QuintellaQuintella, R. (2016). Vídeo. “O que eu posso fazer por você agora?”. YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l7kVyGorGgo. Acesso em: 20 julho de 2021.
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fundadora do Instituto A Nossa Jornada, no qual ela narra suas histórias pessoais de como conectar pessoas e viver na prática a força da união entre elas. O momento foi rico de emoção, algumas choraram ao se darem conta de como as pequenas coisas diárias podem ser mais leves se dividissem com o outro e não guardassem só para si mesmas.

No quarto encontro foi feito o aquecimento, que ocorreu com um fundo musical animado e sob a consígnia de dançar uma música de forma livre. Durante o aquecimento, o grupo foi dividido em dois subgrupos para criarem uma história coletiva cada e a escrevessem com tema livre, que foram lidas em seguida. Um dos subgrupos não escreveu, mas relatou a história criada. O grupo 1 criou a história de um grupo com seis diferentes pessoas e características, que resolveram ir a uma festa de São João, onde lá se divertiam de muitas formas. O grupo 2 criou uma história de uma moça simples, tímida, que se apaixona por um homem muito alegre numa festa e eles acabam se casando, depois de muitas coisas que ela passou com o amor platônico. Já preparando para dramatização, foi-lhes perguntado com quais personagens cada uma se identificava e por quê. Eles foram relatando: “determinação, parceria, animação, busca por conquistar um sonho, é o que nos faz acordar 5h30min todo dia”. Logo, criaram uma única história que unisse todos os personagens com que eles se identificaram e depois dramatizaram. Foi um momento bem descontraído, eles riam muito. Segue a história criada de forma coletiva por todo o grupo, juntando elementos das histórias dos subgrupos:

Era uma vez um grupo formado por seis pessoas diferentes com diversas características bem peculiares, uma parecia uma garça saltitante, outra não tinha fim ou limites na fome, comendo tudo que aparecia pela frente, uma parecia ter fixação por gaiolas, outra tinha canelas finas de tanto andar para lá e para cá, tinha outra que era empresária e dona de várias cabeças de gado, outra era tipo uma baladeira e blogueirinha. Enfim, a diversidade era tamanha que não dá para descrever todas as características. Certo dia, resolveram viajar juntas de férias. Aí começaram uma aventura, em plena época de São João. A dona das cabeças de gado e empresária logo patrocinou toda a viagem. O lugar escolhido foi São João de Campina Grande, maior festa de São João do mundo. A que parecia uma garça saltitante rodou todo o salão dançando freneticamente, não se contendo de tanta felicidade. A baladeira blogueirinha fez moda caipira e arranjou muitos seguidores por lá. A comida lá era muito gostosa, comida junina da boa, só deu pra “comer tudo”, que provou de tudo, mas o bucho que é bom ainda cabia alguma coisa. O maior São João do mundo acontece em um espaço grande, logo a de canelas finas tratou de andar e andar e andar e andar para ver se com todos conseguiria encontrar. A fixação da outra por gaiolas, tinha um fundamento que até então não conseguiríamos entender, a miss Acopiara queria era prender o noivo em seu coração. Tratamos então de logo ajeitar o casório com uma bela festa à moda junina. Tudo foi muito bem aproveitado, a volta foi fantástica, exceto para a gaioleira que ficou presa ao seu amor.

No compartilhamento relataram que o encontro tinha sido “agitado, intenso, engraçado, que ajudou a esquecer o cansaço ... Parece que saímos aqui do hospital, deixamos tudo de ruim lá fora, parece que estamos saindo de férias, muita alegria”.

O quinto encontro só aconteceu após um intervalo de três meses devido às férias e às atividades fora do hospital do grupo de residentes. O aquecimento inespecífico foi realizado com uma meditação com fundo musical instrumental e foi pedido que se lembrassem de como foram esses dias de práticas fora do hospital, suas aprendizagens e os desafios superados, e procurassem sentir como estavam chegando para o encontro, que deixassem as emoções e os sentimentos virem à tona.

Quando eles voltaram da meditação, um aquecimento mais específico foi feito, solicitando que desenhassem numa folha como se percebiam naquele dia (1) e no verso como gostariam de estar se vendo (2). Seguem abaixo os relatos dos participantes indicados pelas letras em parêntese ao lado da descrição dos dois desenhos que fizeram:

1. Montanha, denota rigidez, subir, caminhos. Fui construindo e mudando. Densidade do momento que estou vivendo. 2. Pena, a leveza que gostaria de ter

(RJ).

1. Mapa-múndi, grande. O Ceará e aqui eu, pequena, um pingo no meio do mundo. O quão pequeno a gente é perante as possibilidades. 2. Na praia, no meio das pessoas, que são do mesmo tamanho que eu

(RN).

1. Sol metade amarelo e metade de outra cor. O sol representa energia e esse algo que ocupa a metade dele é o que está sugando sua energia. 2. Sol inteiro, sem essas coisas que o sugam, ele pleno

(RB).

1. Martelo representa força. Me vejo mais fortalecida do que naquele momento [referente há meses atrás]. Cresci. É como lido com as dificuldades. 2. Carinha feliz, desejo sair daqui e me sentir feliz, na questão profissional. É isso que eu quero!

(RT).

1. Barca à vela, algo fixo. 2. Pessoa dançando, leveza. Gosto de música. Quero coisas mais fáceis, não me sentir em um paredão

(RY).

1. Cacto tem uma armadura, uma proteção, tô me blindando. Não é tão bonito, mas vai florescer. 2. Florzinha, solo fértil

(RM).

1. Borboleta, transformações e mudanças. Ao redor, flores, são as pessoas ao meu redor, que me ajudam a sobreviver. O sol em cima, a iluminação, Deus na minha vida, a minha orientação. 2. Barro nas mãos do oleiro, tenho muita coisa para melhorar. Construindo e desconstruindo, me adequando melhor

(RA).

As falas revelam a pressão das exigências na formação do papel de profissional de saúde, mas apontam para uma resposta mais criativa frente a essas demandas. Na apresentação do segundo desenho de como gostariam de se ver, foi-lhes perguntado se seria um ideal possível de realizar, responderam que sim. A participante RT, ao relatar que se sentia mais fortalecida do que há meses, provocava no grupo uma ressonância na linguagem corporal de concordância.

Após uma rodada em que todos puderam falar e se emocionar, foi mostrado um videoclipe da música “Dias melhores” da banda Skank e foi solicitado para que refletissem sobre o que seriam dias melhores. Logo, o grupo foi dividido em dois para que construíssem duas esculturas: como estão e como gostariam de estar. Quando foram apresentar as esculturas foi retirada uma pessoa por vez, para que elas pudessem olhar a escultura formada. No grupo 1, a primeira escultura foi descrita como “submissão, ditadura” e os sentimentos despertados foram de incômodo, opressão, desconforto e subordinação. A segunda escultura desse mesmo grupo foi descrita como “sincronia, parceria, união fortalece” e os sentimentos relatados foram de sensação boa, de possibilidades e de leveza. A primeira escultura do grupo 2 foi descrita como “sacrifício, sofrimento, bagagem, não se encaixa” e sensações de aperto, bloqueio e opressão foram descritas. A segunda escultura do grupo II foi descrita como “energia, fluidez” e os sentimentos foram de segurança, leveza, movimento e liberdade.

No momento de compartilhar estavam todos muito emocionados. Esse momento foi muito importante por reconhecerem a importância dos encontros de Sociodrama e a força do grupo. Seguem as falas:

Impactou. Poxa, é isso mesmo. Um pouco parecido em alguns aspectos.

Entrar em contato com essas coisas, “caramba”, passo por isso. Precisava ser assim?

O corpo da gente absorve... Fazer esses exercícios nos liberta dos sentimentos ruins. Imagens de bloqueio que vem do mundo do trabalho. Reconheci! Isso me tocou, a gente precisa se sustentar no outro.

Ao expor nossa vivência, essa atividade é leve, pra tentar esquecer um pouco e enfrentar essa situação.

Me assustou um pouco pensar como me sinto, é ruim, mas o enfrentamento para isso está melhor hoje. Depois de muitas pedradas, a possibilidade é que melhore.

Vivenciar isso junto nos fortalece enquanto grupo.

No final do encontro relataram o quanto as vivências sociopsicodramáticas têm ajudado no crescimento do grupo de residentes, na integração e na formação pessoal e profissional deles.

No sexto encontro, após o intervalo quinzenal, foi feito o aquecimento inespecífico ao som de uma música instrumental e foi solicitado que refletissem sobre a vida profissional antes e agora. Após um tempo, sentaram-se com as cadeiras dispostas em círculo, foram entregues papel e caneta para que cada participante traçasse uma linha de tempo contando quatro fatos marcantes de sua vida: o que aprendeu com cada um dos fatos? O que incorporou desse aprendizado hoje em sua vida profissional? Tem algo que queira mudar? Alguma dessas respostas dificulta ou facilita no cotidiano hoje?

Nessa atividade, eles deram não só um feedback de fatos importantes, mas de como conseguiram superar momentos desafiantes e de grande sofrimento. Isso ficou mais claro no momento de compartilhar quando relataram o quanto foi bom lembrar sobre a força e o empoderamento que possuem e o esforço de terem sido aprovadas na residência. As histórias de suas vidas mostraram o quanto elas tinham capacidade e desenvolveram resiliências a partir das suas vivências.

No sétimo encontro foi feito o aquecimento inespecífico pedindo para assistirem ao vídeo “Primeiros erros” da banda Capital Inicial. Quando foi perguntado ao grupo o que a música as fez pensar, apenas três pessoas falaram e as outras concordaram. Seguem as falas:

O grupo em si. A gente tem visto muito o lado negativo das coisas. Se vivêssemos o lado positivo, seria sol.

Há dois encontros atrás eu tava bem assim, mas agora tô sol.

Sempre pode melhorar.

Nesse encontro foi utilizado o jogo dramático “os gnomos e a floresta” com o objetivo de vivenciar respostas novas e a importância do trabalho em grupo. Consígnia: imagine uma floresta na qual existe uma ponte protegida por dois gnomos, um na frente do outro. Os outros precisam passar pela ponte para conhecerem outros horizontes, mas, para atravessarem a ponte, não podem repetir a forma que a pessoa atravessou das vezes anteriores nem de como os outros passaram. Solicitaram-se dois voluntários para serem os gnomos e, ao longo do jogo, os pares foram trocados, até que todos tivessem invertido todos os papéis. Após várias travessias e inversões foram feitas algumas reflexões. Seguem as perguntas e respostas:

Após o jogo, como estão? “Leve”. “Suada”. “Desopilada”. “Foi bom”. “Reflexiva”. “Bem”. “Tranquila”. “Descarregada”. “Descontraída”. “Energizada”. Como foi realizar o jogo? “Mais difícil quando pensava sozinha, no grupo era mais fácil pensar”. “Formas diferentes de atingir seus objetivos”. “O que faz parte no universo do outro. Eu trouxe a música, uma trouxe a questão corporal”. “Importante se reinventar”. “Recriar os objetivos”. Foi melhor ser gnomo ou viajante? “É mais fácil obedecer que criar”. “Não gostei de ser gnomo, muito parado, gosto não, quero tá me movimentando”. “Como gnomo foi melhor, senti dificuldade de criar novas formas, foi como uma fuga, escapar do que tem que fazer”. “Difícil ser gnomo, que saco ter que dizer o que o outro pode ou não pode. Ter que mandar voltar, tem uma regra a ser seguida, mas pode dar um toque”. Nos momentos em que só faltava você atravessar, como foi ser pressionada? “Ruim, mas faz você pensar mais rápido e querer logo resolver”. “A gente funciona sob pressão”. “Não funciono muito bem”. Como foi realizar a travessia em grupo? “Muito bom fazer em grupo”. “Gosto de trabalhar em grupo. Ter o olhar do outro (de contribuir) é legal”. “Quando quer fazer de grupo, tem alguém que quer impedir”.

Pelo acima exposto, percebeu-se o compartilhamento de emoções vivenciadas no jogo dramático e a interação e integração do grupo.

No oitavo encontro, durante o aquecimento inespecífico, foi feito um momento de silêncio, seguido de exercícios de respiração, consígnias que ampliassem a consciência corporal e o contato com sensações e sentimentos contraditórios. Foi utilizada a música “Traduzir-se” (Fagner) e foi solicitado que percebessem onde se sentiam mais tocados. O que a música lhe traz? Surgiram as falas: “ambivalência”, “uma parte se traduz em outra parte”, “equilibrar-se”. Ao final foi entregue um papel para que escrevessem com letra de forma as características que os ajudaram a estar no mundo com o outro e na outra parte da folha características que travam o estar com o outro. Depois, os papéis foram recolhidos e redistribuídos aleatoriamente, sendo solicitado que cada pessoa compartilhasse o que tinha escrito, tentando identificar a quem pertencia e acrescentando ou tirando o que a pessoa escreveu. Após, foi pedido para que quem se sentisse à vontade se identificasse e falasse se reconheciam em si as modificações feitas pelo grupo. Todos se identificaram. Alguns se sentiram surpresos com as modificações nas relações interpessoais. Foi um momento em que as palavras “gratidão” e “feliz” saíram com muita frequência.

No nono e último encontro foi feito um resgate de todos os encontros e a avaliação do significado das sessões de sociodrama para a formação deles como residentes e os impactos na equipe e na atuação. No primeiro momento foi feito um rápido alongamento, seguido de exercícios de respiração. Todos os trabalhos escritos e desenhos que tinham sido feitos em encontros anteriores ficaram expostos no centro. Solicitou-se que vissem e lembrassem do dia em que os fizeram. Durante alguns momentos emocionaram-se, principalmente quando viram expostos os trabalhos de um enfermeiro que saiu da residência (aprovado em concurso público) e depois das férias não participou mais dos encontros. Logo, cada um recolheu o seu trabalho e com folhas e canetinhas apenas foi solicitado que construíssem algo criativo que simbolizasse a importância do grupo em sua formação como residente. Seguem os objetos construídos e as falas e em parênteses letras identificando cada um dos participantes:

Um barco. “Fiz um barquinho que sou eu. Deixei um lado em branco, foi quando eu cheguei querendo aprender. Do outro lado fiz o desenho de um coração para simbolizar meu amor pela neo e como esse grupo me ajudou a amar mais, uma estrela representando um sonho, uma nuvem representando a criatividade surgidas a partir das dificuldades encontradas, desenho de pessoas com braços abertos simbolizando o companheirismo, a cumplicidade e o meu crescimento em grupo, a mala e as mãos por gratidão de tudo que vou levando e que aprendi aqui. Esses encontros me fizeram ser melhor em tudo. A gente pode trazer algumas demandas. Você vai instigando pra gente falar o que viveu, nos faz expressar pela música, dança, dramatização, para deixar a tensão do hospital mais leve depois que passávamos por aqui. Os encontros faziam eu me sentir mais, leve, aliviava tensões. Isso ajudou muito no meu trabalho

(RL).

Um pássaro. “Pra mim era uma sessão de descarrego. Chegava pesada, desabafava e superava todo cansaço. Associava sempre as temáticas com meu trabalho aqui, mas também muito além daqui. E tudo isso com muita descontração, ouvindo muito o outro e se sentindo ouvida sempre. Na nossa rotina tinham horas pesadas e o grupo funcionou um escape do que a gente ouvia aqui

(RV).

Um quebra-cabeças. “No início dos encontros eu estava muito pesada pelas coisas da residência. O grupo me ajudou a ver muitas coisas minhas que precisavam melhorar e veio mostrar muitas coisas também como o reconhecimento um pelos outros, conhecer as histórias dos colegas. Os encontros com o grupo muitas vezes foi minha base e apoio, algo resgatado e para além do profissional. Fortaleceu meus vínculos de amizades, possibilitou muitas alegrias. Saio bem mais leve e me senti muito cuidada

(RT).

Um barco todo colorido. “Aqui tem muita gente – disse apontando para o barco. Passamos por muitas coisas aqui e essas sessões começaram num momento bem difícil e turbulento. Percebi que precisava parar e ter tempo pra mim. Esvaziei e recuperei o controle. Me sinto bem mais fluida, bem melhor

(RA).

Uma bolsa. “Quando entrei na residência vim de um momento difícil, de crises, vinha de uma frustração profissional, tava sendo acompanhada. Por muitas vezes imaginava que aqui não era o meu lugar. Mas o grupo me manteve de pé. Esse grupo era onde eu podia me liberar. O processo de trabalho é muito engessado e acaba com a sua subjetividade. Chegava aqui e podia ser eu mesma. Me libertava como pessoa. Foi fantástico. Saia muito melhor quando saia do grupo e no outro dia ficava muito melhor para vir trabalhar. Conhecer as pessoas que trabalham comigo, histórias de vida que foram trabalhadas aqui. Isso foi fundamental. A gente não pode deixar que a subjetividade se perca. A gente descontraia aqui e externalizava o cotidiano. Essa bolsa é onde vou levar toda a bagagem das coisas aprendidas aqui

(RT).

Círculo. “Os encontros aqui me oportunizaram conhecer mais as pessoas com quem convivo no trabalho e refletir sobre minhas relações também fora daqui. Tive oportunidade de me expressar e conhecer as pessoas de verdade por trás de cada profissional. Esses momentos me ajudaram a me fortalecer e sustentar. Foi muito gratificante a olhar o diferente e conseguir aprender e mudar. E é como esse círculo: momento de abertura para sair. Não consigo imaginar esse círculo fechado, mas aberto a novas experiências

(RY).

Caixinha de surpresa com sol. “Me proporcionou muita luz, conhecimento, brilho, brilho, abertura. Jogo de criança, ideia de movimento. O grupo mexeu comigo, com meus conhecimentos, desafios, cuidados, afetos, promovendo encontro e reflexão

(RI).

Uma flor. “Aprendi a fazer quando era criança essa flor e nunca desaprendi como outras coisas. De vez em quando faço e acho bonita. No começo a flor é um brotinho, mas com sol e água ela consegue crescer. Saiu daqui com sentimento de muito aprendizado. Experiência fantástica. Quando entra aqui é preciso vivenciar o dia a dia, a relação. Esse grupo de sociodrama foi o sol que eu precisava para crescer. Eu tinha o prazer de vir pra cá. Já saía pesada, pensativa na verdade, mas sempre ficava mais leve quando conseguia entender e aplicar na prática o que tínhamos vivenciado

(RN).

Essas falas de avaliação após a finalização dos encontros são na verdade depoimentos pessoais de residentes que revelam os impactos positivos que tiveram durante e após as sessões de sociodrama, não só em suas formações acadêmicas, mas em suas relações interpessoais e desempenho dos papéis profissionais.

Vale ressaltar o aspecto sociátrico desses encontros por promoverem, por meio do sociodrama, espaços de promoção de saúde e prevenção de agravos à saúde do trabalhador residente como preconizado nas Política Nacional de Humanização do SUS (Brasil, 2006Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. (2006). Humaniza SUS: Documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 3. ed. Editora do Ministério da Saúde. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/documento_base.pdf
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) e na Política Nacional do Trabalhador e Trabalhadora (2012)Política Nacional de Saúde do Trabalhador e Trabalhadora. (2012). Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Ministério da Saúde. Brasil. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt1823_23_08_2012.html
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegi...
. Considerando os objetivos do programa de residência, que se caracteriza como educação para o trabalho, o uso do sociodrama nos encontros facilitou aos residentes o desenvolvimento e o desempenho dos seus papéis profissionais. Comprovaram-se benefícios desses encontros em um curto período de tempo em que estavam sendo realizados, o que leva a crer que a médio e longo prazo devam continuar impactando positivamente em suas vidas pessoais e profissionais.

CONCLUSÃO

Percebeu-se boa aceitação relacionada à participação da equipe de residentes durante todos os encontros. O cotidiano de trabalho deles é marcado por exigências de uma longa jornada de trabalho entre assistência e estudos, relações de poder que geravam muitas vezes cansaço físico, mental e agravos à saúde mental desses profissionais de saúde. Durante os encontros, eles não só expressaram as dificuldades dos seus cotidianos de trabalho, mas de como saíam mais leves e energizados para enfrentarem novos desafios.

O uso do sociodrama no desenvolvimento de equipes do programa de residentes interdisciplinar de saúde mostrou-se uma realidade possível. Verificou-se a eficácia do sociodrama como ferramenta socioeducacional no que se referiu à identificação e à intervenção dos conflitos grupais e na construção do papel profissional do grupo de residentes envolvidos.

Considerando os desafios da composição das equipes de gestão de pessoas e de educação em saúde nas instituições hospitalares e no SUS como um todo, o cuidado com a saúde do trabalhador residente, visando promoção de saúde e prevenção de agravos a sua saúde, apresenta-se como fundamental, mas muitas vezes depara-se com limites das conservas culturais, em comportamentos estereotipados e acomodados, pouco criativos e espontâneos, além de poucos investimentos financeiros em educação e saúde. O uso do sociodrama nesse contexto de instituição pública de saúde mostrou-se uma ferramenta de cuidado humanizado eficiente na educação para o trabalho desses residentes.

O relato da experiência dos encontros com o grupo multiprofissional de residentes revelou as sessões sociodramáticas como uma intervenção importante no processo de formação acadêmica da residência integrada em saúde, além de propiciar momentos de acolhimento e cuidado dos profissionais, o desenvolvimento dos seus papéis profissionais e interações com o grupo.

A mudança de paradigma individual para o grupal ainda tem um longo caminho a ser percorrido. Este artigo contribui para as produções científicas sobre a vida grupal e os efeitos sobre a interação humana, somando-se às produções sobre sociodrama em instituições públicas de saúde, especialmente na formação do profissional de saúde em equipes multidisciplinares.

AGRADECIMENTOS

Não aplicável.

  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

    Todos os conjuntos de dados foram gerados ou analisados no estudo atual.
  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.

REFERÊNCIAS

  • Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. (2006). Humaniza SUS: Documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 3. ed. Editora do Ministério da Saúde. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/documento_base.pdf
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  • Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde. (1996). Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1996/res0196_10_10_1996.html Acesso em: 13 de maio de 2022.
    » https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1996/res0196_10_10_1996.html
  • Secretaria da Saúde do Governo do Estado do Ceará (2022). Hospital Geral Dr. César Cals – HGCC. Fortaleza: Portal de Saúde. Disponível em: https://www.hgcc.ce.gov.br/institucional/o-hospital/ Acesso em: 13 de maio de 2022.
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Editado por

Editora de seção: Heloisa Fleury

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2021
  • Aceito
    13 Jun 2022
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