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O ENSINO DOS ESTUDOS DA DEFICIÊNCIA: CONTRIBUIÇÕES PARA A FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA

LA ENSEÑANZA DE LOS ESTUDIOS DE LA DISCAPACIDAD: CONTRIBUCIONES A LA FORMACIÓN EN PSICOLOGÍA

Resumo

Esta pesquisa objetivou identificar as contribuições do ensino dos estudos da deficiência (disability studies) para a formação em psicologia na perspectiva das/os participantes de uma disciplina intitulada “Psicologia e Pessoas com Deficiência”. O lócus da pesquisa foi um curso de Psicologia de uma universidade pública do sul do Brasil. As informações foram obtidas por meio de questionário sociodemográfico e entrevista semiestruturada com quatorze pessoas que cursaram a disciplina e analisadas a partir da técnica de análise temática. Os resultados indicaram que a disciplina contribuiu para: a apropriação do modelo social da deficiência e das contribuições dos estudos feministas da deficiência; a identificação das pessoas com deficiência como sujeitos políticos; a ampliação da percepção das barreiras sociais; a apropriação de alguns elementos da legislação brasileira sobre a deficiência. Destaca-se a relevância de os estudos da deficiência serem incluídos no currículo para a formação em psicologia na perspectiva dos direitos humanos.

Palavras-chave
Estudos da deficiência; Capacitismo; Direitos humanos; Currículo; Formação em Psicologia

Resumen

Esta investigación tuvo como objetivo identificar las contribuciones de la enseñanza de los estudios de la discapacidad a la formación en psicología desde la perspectiva de los estudiantes en una disciplina titulada “Psicología y Personas con Discapacidad”. El lugar de la investigación fue un curso de Psicología en una universidad pública del sur de Brasil. La información se obtuvo mediante la aplicación de un cuestionario sociodemográfico y una entrevista semiestructurada a catorce personas que asistieron al curso y se analizaron mediante la técnica de análisis temático. Los resultados indicaron que la disciplina contribuyó a: la apropiación del modelo social de la discapacidad y los aportes de los estudios feministas; la identificación de personas con discapacidad como sujetos políticos; la ampliación de la percepción de barreras sociales; la apropiación de algunos elementos de la legislación brasileña sobre discapacidad. Se destaca la relevancia de la inclusión de los estudios sobre discapacidad en el currículo de formación en Psicología desde la perspectiva de los derechos humanos.

Palabras clave
Estudios de la discapacidad; Capacitismo; Derechos humanos; Plan de estudios; Formación en Psicología

Abstract

This research aimed to identify the contributions of teaching disability studies to training in psychology from the perspective of participants in a discipline entitled Psychology and People with Disabilities. The locus of the research was a psychology course at a public university in southern Brazil. Information was obtained through the application of a sociodemographic questionnaire and semi-structured interviews with fourteen people who attended the course and analyzed using the thematic analysis technique. The results showed that the knowledge obtained in the discipline contributed to: the appropriation of the social model of disability and the contributions of feminist disability studies; the identification of disabled people as political people; the expansion of the perception of social barriers and; the appropriation of some elements of the Brazilian legislation on disability. Finally, it emphasizes the relevance of disability studies being included in the curriculum for training in psychology from the perspective of human rights.

Keywords
Disability studies; Ableism; Human rights; Curriculum; Psychologist training

Introdução

A Psicologia brasileira enquanto ciência e profissão, segundo Ana Cruz, Tatiana Minchoni, Adriana Matsumoto e Soraya Andrade (2017Cruz, Ana Vládia H., Minchoni, Tatiana, Matsumoto, Adriana Eiko, & Andrade, Soraya Souza (2017). A Ditadura que se perpetua: direitos humanos e a militarização da questão social. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(nspe.), 239-252. https://doi.org/10.1590/1982-3703180002017
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), foi fortemente atravessada por perspectivas teóricas normativas que compreendem o sujeito a partir da lógica norma/desvio e que se utilizam de procedimentos técnicos cuja função principal é o ajustamento dos sujeitos às normas sociais universalizantes. As autoras destacam que esse processo de ajustamento foi implementado “nas escolas, nas fábricas e empresas, nas instituições assistenciais, na relação com a justiça e, ainda mais enfaticamente, nos espaços privados das clínicas psicológicas” (Cruz et al., 2017, p. 248Cruz, Ana Vládia H., Minchoni, Tatiana, Matsumoto, Adriana Eiko, & Andrade, Soraya Souza (2017). A Ditadura que se perpetua: direitos humanos e a militarização da questão social. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(nspe.), 239-252. https://doi.org/10.1590/1982-3703180002017
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).

Essa lógica universalizante também está bastante presente, embora não de forma hegemônica, na compreensão da deficiência e nas práticas profissionais em psicologia junto às pessoas com deficiência. Rhonda Olkin (2017Olkin, Rhonda (2017). Disability-affirmative therapy: A case formulation template for clients with disabilities. Oxford University Press.), Dan Goodley (2019Goodley, Dan (2019). The psychology of disability. In Nick Watson & Simo Vehmas (Orgs.), Routledge Handbook of Disability Studies - (2a ed., pp.362-376). Routledge.) e Marivete Gesser, Pamela Block e Adriano Nuernberg (2019Gesser, Marivete, Block, Pamela, & Nuernberg, Adriano Henrique (2019). Participation, agency and disability in Brazil: transforming psychological practices into public policy from a human rights perspective. Disability and the Global South, 6(2), 1772-1791. https://disabilityglobalsouth.files.wordpress.com/2019/07/06_02_05.pdf
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a) apontam que a produção do conhecimento e as práticas psicológicas nesse âmbito são ainda bastante circunscritas ao modelo biomédico da deficiência. Esse, por compreender a experiência da deficiência como circunscrita ao corpo com impedimentos, acaba focando suas ações muito mais na busca pela adequação dos corpos e mentes do que para a construção de espaços voltados à promoção do acesso coletivo. Embora autoras/es como Anahi Mello e Gisele de Mozzi (2018Mello, Anahi Guedes & Mozzi, Gisele (2018). A favor da deficiência nos estudos interseccionais de matriz feminista. In Henrique C. Nardi, Marcus Vinicius F. Rosa, Paula S. Machado & Raquel S. Lima (Orgs.), Políticas públicas, relações de gênero, diversidade sexual e raça na perspectiva interseccional (pp. 17-30). Secco Editora.), Lucia Leite, Taize de Oliveira e Hugo Cardoso (2019Leite, Lucia Pereira, Oliveira, Taize, & Cardoso, Hugo Ferrari (2019). Concepções de deficiências em profissionais de uma universidade do interior paulista. Barbarói, 55, 153-170. http://dx.doi.org/10.17058/barbaroi.v0i0.11309
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) e Camila Alves e Marcia Moraes (2019Alves, Camila Araújo & Moraes, Marcia (2019). Proposições não técnicas para uma acessibilidade estética em museus: Uma prática de acolhimento e cuidado. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 19(2), 484-502. https://doi.org/10.12957/epp.2019.44287
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) tenham produzido conhecimentos em psicologia com base no campo dos Estudos da Deficiência, segundo Gesser, Block e Nuernberg (2019Gesser, Marivete, & Martins, Reginaldo Medeiros (2019). Contributions of a teacher training program to inclusive education. Paidéia (Ribeirão Preto), 29 https://doi.org/10.1590/1982-4327e2907
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) e Dan Goodley (2019Goodley, Dan (2019). The psychology of disability. In Nick Watson & Simo Vehmas (Orgs.), Routledge Handbook of Disability Studies - (2a ed., pp.362-376). Routledge.), a patologização das pessoas com deficiência e, muitas vezes, a redução dessa experiência a uma tragédia pessoal, ainda predominam no contexto da atuação profissional e até mesmo na formação em Psicologia. Essa perspectiva contribui para a manutenção do capacitismo que, de acordo com Anahi Mello (2016Mello, Anahi Guedes (2016). Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência & Saúde Coletiva, 21(10), 3265-3276. https://doi.org/10.1590/1413-812320152110.07792016
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), é um processo de hierarquização das pessoas com deficiência com base na corponormatividade que contribui para que essas sejam tratadas de modo generalizado como incapazes. Ademais, embora muitos núcleos de estudo tenham incorporado a perspectiva interseccional, são poucos os que consideram a deficiência como uma categoria de análise da psicologia, que na intersecção com gênero, sexualidade, raça, geração, é constitutiva da subjetividade, como apontaram Gesser, Nuernberg e Maria Juracy Toneli (2012Gesser, Marivete, Nuernberg, Adriano Henrique, & Toneli, Maria Juracy Filgueiras (2012). A contribuição do modelo social da deficiência à psicologia social. Psicologia & Sociedade, 24(3), 557-566, https://doi.org/10.1590/S0102-71822012000300009.
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).

A partir da organização do Movimento Político das Pessoas com Deficiência, surgiu, na década de 1970, um campo de estudos denominado estudos da deficiência que teve, quando emergiu, o modelo social da deficiência como o principal modelo teórico. Michael Oliver (1990Oliver, Michael (1990). The Politics of Disablement. Macmillan.) destaca que esse, contrapondo-se ao modelo médico da deficiência, propôs a compreensão da deficiência como uma forma de opressão pelas barreiras sociais que obstaculizam a participação das pessoas com deficiência. Debora Diniz (2007Diniz, Débora (2007). O que é deficiência? Brasiliense.) destaca que, com a entrada das autoras feministas nesse campo, foram incorporados temas como a compreensão da deficiência como uma categoria de análise, a interseccionalidade da deficiência com outros marcadores sociais, a experiência da dor, a dependência e a interdependência como questões inerentes à condição humana e a perspectiva do cuidado como uma questão de justiça. Esses temas consolidaram o campo dos estudos feministas da deficiência (feminist disability studies), proposto por Rosemari Garland-Thomson (2005Garland-Thomson, Rosemarie (2005). Feminist disability studies. Signs, 30(2), 1557-1587, https://doi.org/10.1086/423352
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).

As contribuições dos estudos da deficiência foram amplamente incorporadas à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), a qual foi ratificada por 182 países do mundo, dentre eles o Brasil. Para a implementação da CDPD, que foi incorporada à legislação brasileira (Decreto n. 186/2008Decreto n. 6.949, de 26 de agosto de 2009. (2009). Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. CDH.), foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - LBI (Lei n. 13.146/2015Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. (2015). Institui a Lei Brasileira da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). CDH.).

Tanto os estudos da deficiência como também a legislação brasileira sobre a deficiência têm desafiado a Psicologia a repensar o currículo. Foi com base nesse campo de estudos que o curso de Psicologia de uma Universidade Pública do sul do Brasil buscou construir a ementa da disciplina “Psicologia e Pessoas com Deficiência” a partir da reestruturação curricular. Essa ementa foi organizada de modo a abordar os seguintes temas: o significado histórico-cultural da deficiência; terminologias e conceituações da deficiência; o contexto social e exclusão das pessoas com deficiência; o Movimento Político das Pessoas com Deficiência; as políticas públicas e pessoas com deficiência; os modelos de compreensão da deficiência e suas implicações na atuação profissional em psicologia. Também são abordadas as especificidades das deficiências e a atuação profissional em psicologia junto à pessoa com deficiência, suas famílias e comunidade.

Visando politizar a compreensão dos estudantes na temática da deficiência, a disciplina tem buscado incluir teóricas com deficiência na bibliografia e convidar ativistas da deficiência como palestrantes. Isso tem oportunizado uma melhor compreensão do lema do Movimento Político de Pessoas com Deficiência: “Nada sobre nós, sem nós”. A realização de atividades como a de levantamento de barreiras em local público também tem sido utilizada pelos professores que ministram a disciplina visando aumentar a percepção dos estudantes acerca das barreiras que obstaculizam a participação das pessoas com deficiência.

Assim, o objetivo desta pesquisa foi o de identificar, a partir da perspectiva dos estudantes da disciplina chamada “Psicologia e Pessoas com Deficiência”, as contribuições do ensino dos estudos da deficiência para a formação em psicologia. Procurou-se dar visibilidade às apropriações dos conhecimentos que coadunam com a CDPD e a LBI, uma vez que, do ponto de vista legal, a atuação em psicologia deve ser baseada nestes marcos legais.

Parte-se do pressuposto de que as concepções de deficiência medeiam as práticas profissionais, conforme destacam Leite et al. (2019Leite, Lucia Pereira, Oliveira, Taize, & Cardoso, Hugo Ferrari (2019). Concepções de deficiências em profissionais de uma universidade do interior paulista. Barbarói, 55, 153-170. http://dx.doi.org/10.17058/barbaroi.v0i0.11309
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), e que a apropriação dos estudos da deficiência pode qualificar a atuação em psicologia junto a pessoas com deficiência nos diferentes contextos em que esse profissional está inserido. Ademais, considerando a indissociabilidade entre o pensar, sentir e agir já apontada por Bader Sawaia (2014Sawaia, Bader Burihan (2014). Transformação social: um objeto pertinente à psicologia social? Psicol. Soc. 26(nspe2), 4-17. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822014000600002
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), entende-se que é fundamental que os estudantes de psicologia tenham acesso a modelos de compreensão da deficiência que rompam tanto com concepções que a circunscrevem como uma experiência que demanda ações de caridade como também que, a partir da lógica norma/desvio, situam ela como uma doença que requer a cura/normalização.

A relevância do estudo das contribuições dos estudos da deficiência para a formação em psicologia está relacionada ao impacto que essa poderá produzir nas práticas profissionais junto às pessoas com deficiência. Nesse sentido, o Relatório Mundial sobre a Deficiência da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2011), com base em um estudo de revisão de literatura que integrou estudos realizados em diferentes países do mundo, identificou que as atitudes de profissionais da saúde frente às pessoas com deficiência mudaram depois da participação em cursos, disciplinas ou aulas sobre o tema.

Uma pesquisa realizada por Pearson et al. (2016Pearson, Holly, Cosier, Meghan, Kim, Joanne J., Gomez, Audri M., Hines, Carol, McKee, Aja A., & Ruiz, Litzy Z. (2016). The impact of disability studies curriculum on education professionals’ perspectives and practice: implications for education, social justice, and social change. Disability Studies Quarterly, 36(2). https://dsq-sds.org/article/view/4406/4304
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) com o objetivo de compreender como o currículo em estudos da deficiência influencia as perspectivas e práticas de estudantes de pós-graduação na área da educação identificou que os participantes apresentaram transformações na conceitualização da deficiência, nas práticas profissionais, e neles próprios. O estudo realizado por Gesser e Reginado Martins (2019Gesser, Marivete, & Martins, Reginaldo Medeiros (2019). Contributions of a teacher training program to inclusive education. Paidéia (Ribeirão Preto), 29 https://doi.org/10.1590/1982-4327e2907
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) junto aos professores da educação básica participantes do Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola evidenciou mudanças nas concepções de deficiência pelos participantes depois de cursarem a disciplina “Deficiências e Inclusão”, as quais passaram a estar mais próximas ao modelo social da deficiência.

Método

Essa pesquisa é de cunho qualitativo. Nessa modalidade, de acordo com Irene Gialdino (2006Gialdino, Irene Vasilachis (2006). La Investigación cualitativa. In Estrategias de investigación cualitativa (pp. 23-64). Gedisa.), há um enfoque na perspectiva dos participantes acerca de suas vivências e significações, situadas em contextos específicos. Assim, neste estudo não se buscou ter um caráter conclusivo e classificatório dos resultados, mas os processos de apropriação dos estudos da deficiência situados em um contexto específico. Esse contexto se refere ao curso de Psicologia da Universidade pública do sul do Brasil, por esse ter em sua estrutura curricular uma disciplina obrigatória denominada “Psicologia e Pessoas com Deficiência” com a ementa em consonância com a legislação vigente no Brasil e com os estudos da deficiência. A perspectiva teórica utilizada neste estudo foi a dos estudos feministas da deficiência.

Participantes

A amostra da pesquisa foi constituída por 14 participantes que cursaram a disciplina “Psicologia e Pessoas com Deficiência”, oferecida na nova estrutura curricular do curso de Psicologia, aprovada em 2011. Como critérios de inclusão, os entrevistados deveriam ter ingressado no curso de Psicologia a partir de 2011/1, ter concluído a disciplina do curso com aprovação e ter disponibilidade para participar do estudo.

Instrumentos

Para a obtenção das informações, foram utilizados como instrumentos o questionário sociodemográfico e a entrevista semiestruturada. O primeiro teve como finalidade reunir informações sobre os participantes da pesquisa relacionadas à idade, escolaridade, raça e condição funcional, visando identificar as/os participantes no que se refere a suas características interseccionais. As entrevistas semiestruturadas abrangeram os seguintes eixos: (a) concepções sobre a deficiência aprendidas pelos participantes ao longo de suas trajetórias de vida; (b) contribuição da disciplina para a apropriação dos Estudos da Deficiência e mudança das concepções sobre deficiência; (c) contribuição da disciplina para a atuação profissional em psicologia junto às pessoas com deficiência nos diferentes espaços sociais. Esse último item só pode ser investigado em decorrência de o curso de Psicologia investigado ter estágios básicos desde a primeira fase, o que possibilita que as/os estudantes estejam inseridos em atividades profissionais.

Procedimentos de coleta dos dados

Todas/os as/os estudantes e recém-formadas/os na nova estrutura do curso de psicologia foram convidadas/os a participar do estudo por e-mail. Quatorze pessoas responderam ao e-mail confirmando o interesse em participar. As entrevistas foram agendadas de acordo com a disponibilidade de tempo de cada participante e realizadas em uma sala na universidade com isolamento acústico visando garantir a privacidade. Após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido, as/os participantes realizaram o preenchimento do questionário sociodemográfico e, depois, responderam às perguntas do roteiro de entrevista.

Procedimentos Éticos

Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (CAAE - 12249419.5.0000.0121, Parecer n. 3.527.784). Todos os princípios éticos recomendados pelas Resoluções n. 466/12 e n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde foram assegurados. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual constavam as informações sobre a pesquisa, foi lido e assinado por todas/os as/os participantes. Visando assegurar o anonimato, foram atribuídos nomes fictícios aos sujeitos da pesquisa.

Análise dos dados

Os dados foram analisados com base na análise temática proposta por Virginia Braun e Victoria Clarke (2006Braun, Virginia & Clarke, Victória (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101. https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa
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). Para tanto, primeiramente os dados foram transcritos e revisados por meio de leituras e releituras. A partir dessa primeira etapa, buscou-se a geração de códigos por meio dos dados relevantes para a pesquisa. Após, esses códigos e dados referentes a eles foram reunidos em possíveis temas, que têm como característica serem amplos e reunir vários códigos. Na etapa seguinte, foi verificado se os potenciais temas respondiam ao objetivo da pesquisa. Após, os temas foram nomeados e refinados. Por fim, os temas foram discutidos por meio da apresentação de algumas falas representativas das/os participantes, relacionando-as com a questão da pesquisa e com a literatura.

Resultados e discussão

A tabela 1 apresenta a caracterização de quem participou da pesquisa. Nela constam informações como o nome fictício, idade, sexo, raça, se pessoa com deficiência, religião e se a formação em psicologia está em andamento ou já está concluída.

Tabela 1
Caracterização sociodemográfica dos participantes

Participaram da pesquisa dez mulheres e quatro homens com idades entre 19 e 38 anos. Treze das/os quatorze participantes se caracterizaram como brancos e um como pardo. Quanto à formação, oito participantes estavam cursando Psicologia, e seis já tinham se formado havia menos de dois anos e já estavam atuando profissionalmente na área. Das/os quatorze entrevistadas/os, apenas uma é pessoa com deficiência.

Visando identificar as contribuições da disciplina estudada, obtivemos as seguintes categorias: as aprendizagens do campo dos estudos da deficiência; a percepção das pessoas com deficiência como sujeitos políticos; ampliação da percepção das barreiras sociais; e conhecimentos da legislação sobre a temática da deficiência.

Aprendizagens acerca do campo dos estudos da deficiência

A aprendizagem dos estudos da deficiência é de grande importância para a formação profissional em Psicologia, uma vez que os fundamentos desse campo têm sido incorporados nas principais legislações sobre a deficiência e estão em consonância com a perspectiva dos direitos humanos, conforme já destacado por Gesser, Block e Nuernberg (2019Gesser, Marivete, & Martins, Reginaldo Medeiros (2019). Contributions of a teacher training program to inclusive education. Paidéia (Ribeirão Preto), 29 https://doi.org/10.1590/1982-4327e2907
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). Ao serem questionados sobre suas aprendizagens relacionadas à deficiência anteriores à disciplina, as pessoas entrevistadas relataram que essas eram baseadas no modelo biomédico. Assim, antes da disciplina eles compreendiam a deficiência como consequência natural de um corpo com lesões e a pessoa com deficiência como alguém que deve ser objeto de cuidados e intervenções do saber biomédico. A lógica da superação também esteve muito presente, conforme o relato de Fabiana: “[eu] entendia a deficiência enquanto essa tragédia pessoal, essa questão a ser superada”. A compreensão da deficiência como produtora de sofrimento também foi bastante presente e pode ser sintetizada no depoimento de Laís: “Eu lembro que no primeiro dia de aula a professora pediu para a gente o que que a gente estava esperando da disciplina e eu disse que era ‘entender o sofrimento psíquico das pessoas com deficiência’”. Os resultados da pesquisa identificaram que todas/os as/os participantes conseguiram se apropriar dos conhecimentos relativos ao modelo social da deficiência. A maior parte das/os entrevistadas/os também se apropriou das contribuições das autoras feministas para os estudos da deficiência.

Modelo social: a deficiência como uma forma de opressão

As/os participantes relataram que, a partir da disciplina Psicologia e Pessoas com Deficiência, conseguiram se apropriar de muitos elementos do modelo social da deficiência. As informações obtidas indicaram que eles passaram a diferenciar lesão e deficiência, demarcando esta última como uma experiência constituída a partir das barreiras presentes no contexto social que oprime pessoas com variações corporais. Também passaram a questionar concepções que circunscrevem a deficiência a um desvio e a uma patologia e que reiteram a lógica caritativa, conforme sintetizado no relato de Soraya: “Acho que por toda a questão de pensar deficiência como sendo do ambiente e não da pessoa me fez perder esse olhar assim de coitadinho”. Além disso, passaram a compreender a deficiência como inerente à condição humana, a ser vivenciada por aqueles que terão o privilégio de envelhecer. A crítica às barreiras sociais que obstaculizam a inclusão das pessoas com deficiência foi enfatizada nos relatos de todas/os as/os participantes, e pode ser ilustrada no depoimento abaixo:

Entender que são os ambientes que não são inclusivos e não as pessoas que não conseguem ser incluídas... Entender a deficiência como mais um elemento acompanhante da pessoa e que isso não precisa atravessar toda a interação dela com o mundo. (Vicente)

Os depoimentos obtidos na pesquisa apontam que a disciplina possibilitou que as/os participantes se apropriassem dos princípios fundantes do Modelo Social da Deficiência que circunscrevem a deficiência como uma experiência de opressão constituída a partir das barreiras sociais. Autoras/es como Débora Diniz, Livia Barbosa e Wederson Santos (2010Diniz, Débora, Barbosa, Livia, & Santos, Wederson (2010). Deficiência, direitos humanos e justiça. In Debora Diniz & Wederson Santos (Orgs.), Deficiência e discriminação (pp. 99-117). Letras Livres; EdUnB.) e Gesser, Nuernberg e Toneli (2012Gesser, Marivete, Nuernberg, Adriano Henrique, & Toneli, Maria Juracy Filgueiras (2012). A contribuição do modelo social da deficiência à psicologia social. Psicologia & Sociedade, 24(3), 557-566, https://doi.org/10.1590/S0102-71822012000300009.
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) destacam que a apropriação dessa concepção objetiva uma virada conceitual ao incorporar questões sociais e políticas na análise deficiência, rompendo com o seu histórico processo de patologização e medicalização.

Em consonância com o modelo social da deficiência, algumas/ns participantes também ressaltaram a importância de a deficiência ser pensada pelo acesso aos direitos, subvertendo a perspectiva da caridade e do assistencialismo. Essa questão foi representada pela fala de Ricardo, que destacou: “Essa disciplina Psicologia e Pessoas com Deficiência eu fiz... sem aquele viés de caridade e assistencialismo, pelo contrário, né? Pelo viés de acesso a direitos: sociais e políticos e humanos de uma forma geral”. Em seguida, também destacou a ênfase dada pela disciplina para “a importância de a gente ter um contato direto das pessoas com deficiência para de fato ter uma experiência com elas, uma experiência sensorial, afetiva, física, social. Para ter uma experiência concreta com elas” (Ricardo).

Portanto, as informações obtidas pela pesquisa mostraram que houve a apropriação do modelo social da deficiência. Dessa forma, as/os participantes passaram a compreender a deficiência como uma experiência marcada pela opressão pelas barreiras sociais que obstaculizam a participação social das pessoas com deficiência em igualdade de condições.

Apropriações das contribuições feministas dos estudos da deficiência

Onze participantes também evidenciaram que houve apropriação dos elementos conceituais circunscritos às contribuições feministas dos estudos da deficiência. Assim, identificaram-se falas que trazem questões como a transversalidade da deficiência com outros sistemas opressivos e a compreensão dessa como uma categoria de análise, a dependência e a interdependência como inerentes à condição humana, o cuidado e sua complexidade, e a experiência da dor. Essas aprendizagens se apresentam como significativas, uma vez que essas questões, em grande medida, já foram incorporadas na CDPD e na LBI e podem contribuir para a implementação de práticas consonantes com o que preconiza essa legislação.

Assim, um importante elemento trazido pelas/os participantes da pesquisa foi relacionado ao rompimento com os ideais modernos de independência, que atravessam e constituem o modo de conceber todos os sujeitos, negando a condição de dependência e de interdependência que, segundo Eva Kittay (2015Kittay, Eva Feder (2015). Centering justice on dependency and recovering freedom. Hypatia, 30(1), 285-291. https://doi.org/10.1111/hypa.12131
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), é inerente à condição humana. Neste tema, algumas/ns participantes trouxeram essa como uma importante contribuição da disciplina para pensar a construção de práticas profissionais que considerem diferentes condições funcionais das pessoas com deficiência e as adequações e suportes necessários para que, mesmo dependendo de cuidados para muitas das atividades da vida diária, a pessoa possa ter autonomia para fazer escolhas de acordo com suas preferências. Nessa direção, foi destacada a importância “... da relação de interdependência humana, [e de] entender o cuidado como uma parte inerente à existência” (Fabiana). Outra participante ressaltou que:

Uma coisa que eu aprendi muito com essa disciplina é que autonomia é uma coisa relacional. Então todo mundo na verdade depende de outras pessoas, todo mundo tem uma rede de cuidado, todo mundo vai ter necessidades físicas, psíquicas determinadas e que pode acionar em algum momento da vida ou pode precisar a vida inteira. (Júlia)

Entender a dependência e a interdependência como inerentes à condição humana e o cuidado como relacional, bem como e incorporar essa compreensão na atuação profissional em psicologia, pode contribuir para a qualificação das práticas profissionais na direção da justiça, conforme já destacado por Gesser et al. (2019Gesser, Marivete, & Martins, Reginaldo Medeiros (2019). Contributions of a teacher training program to inclusive education. Paidéia (Ribeirão Preto), 29 https://doi.org/10.1590/1982-4327e2907
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). Helena Fietz e Anahi Guedes Melo (2018Fietz, Helena Moura & Mello, Anahi Guedes (2018). A multiplicidade do cuidado na experiência da deficiência. Revista Anthropológicas, 29, 114-141. https://doi.org/10.51359/2525-5223.2018.238990
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) ressaltam que os estudos feministas da deficiência abrem o campo para pesquisas que reconhecem a importância do cuidado para a garantia dos direitos humanos, sendo esse pensado como algo que toda pessoa compartilha: a necessidade de ser cuidada e de se constituir como cuidadora em vários momentos da vida.

Por fim, outro elemento dos estudos feministas da deficiência que os participantes relataram ter se apropriado em suas falas se refere à perspectiva da interseccionalidade da deficiência com questões tais como gênero, raça e classe social. Seis dos quatorze entrevistados trouxeram esse ponto como uma importante questão discutida na disciplina. Essa intersecção foi mais amplamente relacionada às questões de gênero, embora também tenham sido enfatizadas questões de raça e classe social. Abaixo apresentamos um depoimento que evidencia isso:

Também pensar nas transversalidades da condição humana, pensar que, sei lá, uma mulher é diferente de um homem, e uma mulher negra é diferente de um homem, e uma mulher negra com deficiência é diferente de um homem, pensar um pouco como que isso atravessa. (Soraya)

Outro participante, no que se refere à compreensão interseccional da deficiência, destaca: “Então, em certo [momento] eu comecei a ver a deficiência como uma categoria de análise dos fenômenos sociais” (Jonas). É importante destacar que a compreensão da deficiência como uma experiência interseccional e como uma categoria de análise, apresentada nas falas das/os participantes da pesquisa, contribui para ampliar o potencial analítico e político nos diferentes campos do conhecimento, conforme já apresentado por Rosemarie Garland-Thomson (2002Garland-Thomson, Rosemarie (2002). Integrating disability, transforming feminist theory. NWSA Journal, 14(3), 1-32. https://www.jstor.org/stable/4316922
https://www.jstor.org/stable/4316922...
). Sunaura Taylor (2017Taylor, Sunaura (2017). Beasts of Burden: animal and disability liberation. The New York Press.) destaca que essa compreensão também possibilita o entendimento de como racismo, sexismo, capacitismo e outros sistemas opressivos se articulam para intensificar os processos de opressão vivenciados cotidianamente por pessoas com deficiência.

É importante destacar que, embora os estudos da deficiência tenham sido fortemente apropriados pelas/os quatorze participantes, quatro delas/es citaram, em suas falas, termos como “normal”, “independência” e “incapacidade”, que são fortemente relacionados ao modelo médico da deficiência. Acredita-se, com base em Taylor (2017Taylor, Sunaura (2017). Beasts of Burden: animal and disability liberation. The New York Press.), que esse dado esteja relacionado ao caráter estrutural do capacitismo, que tem como base o modelo biomédico e que é reproduzido nas diversas áreas do conhecimento, inclusive na psicologia.

Esse tópico mostrou que as/os entrevistadas/os conseguiram, em grande medida, ampliar o entendimento da deficiência como uma experiência complexa e interseccional, marcada por relações de dependência e de interdependência. Além disso, elas/es também se apropriaram do caráter relacional do cuidado e puderam situá-lo como uma questão de justiça.

Percepção das pessoas com deficiência como sujeitos políticos

Outra questão apontada por metade das/os participantes como uma importante aprendizagem foi relacionada à compreensão das pessoas com deficiência como sujeitos políticos que, por meio da luta coletiva, conseguiram garantir muitos direitos desde a Constituição de 88 e legislações posteriores. As/os participantes da pesquisa apontaram que, antes de cursarem a disciplina, não tinham ideia de que havia, no Brasil, um movimento político de pessoas com deficiência, o qual, por meio da militância, garantiu que as pautas relacionadas à garantia de direitos às pessoas com deficiência fossem incorporadas à Constituição. Além disso, não conheciam os espaços legitimados de controle social por meio dos quais é possível propor, implementar e fiscalizar as ações voltadas às pessoas com deficiência.

A contribuição da disciplina para a compreensão das pessoas com deficiência como sujeitos políticos pode ser exemplificada por meio dos seguintes depoimentos: “Abriu muito meu olhar para a história de lutas..., para a representatividade, protagonismo, voz dessas pessoas” (Brenda); “Entender um pouco desse contexto histórico da luta por direitos. Do que é necessário enquanto política pública para que esses direitos sejam respeitados” (André); e ainda “O estudo sobre o movimento de pessoas com deficiência na Constituição de 88, que foi uma luta muito grande para que tivesse uma inclusão” (Laís).

O processo de apropriação de que as pessoas com deficiência são sujeitos políticos e que tiveram um papel de destaque na luta pelos seus direitos, presente nos depoimentos dos participantes, rompe com o histórico processo, já apontado por autores como Debora Diniz (2007Diniz, Débora (2007). O que é deficiência? Brasiliense.) e Michael Oliver (1990Oliver, Michael (1990). The Politics of Disablement. Macmillan.), de situá-las como sujeitos passivos, reduzidos aos impedimentos corporais e dignos de ações de assistência e de caridade. Assim, visibilizar o Movimento Político das Pessoas com Deficiência em disciplinas relacionadas à deficiência pode corroborar a emergência de narrativas que rompem com os estigmas morais que, baseados no capacitismo, consideram a deficiência uma tragédia pessoal, oprimem e deslegitimam as pessoas com deficiência.

Ampliação da percepção das barreiras

As barreiras continuam presentes em inúmeros espaços sociais, apesar dos avanços legais obtidos no Brasil. Essas têm forte relação com o capacitismo, processo que localiza as dificuldades de participação social no sujeito. Além disso, como destaca Taylor (2017Taylor, Sunaura (2017). Beasts of Burden: animal and disability liberation. The New York Press.), a narrativa capacitista instiga o discurso da superação, em detrimento da construção de ambientes acessíveis, abertos a uma maior variedade de pessoas. Assim, o capacitismo é incompatível com a construção de espaços planejados para possibilitar a circulação de diferentes corpos, com condições funcionais e estéticas variadas, já que em sua base é o sujeito que deve se adequar ao contexto e não o contrário.

As falas de todos as/os entrevistadas/os evidenciaram que os conhecimentos obtidos na disciplina “Psicologia e Pessoas com Deficiência” contribuíram para a ampliação da percepção das barreiras que estão presentes em diferentes contextos e de como elas dificultam a participação social das pessoas com deficiência. Os conhecimentos relativos ao modelo social da deficiência, a participação de convidados com deficiência para falarem de suas experiências como pessoas com deficiência e a realização de uma atividade de campo denominada de “Levantamento de barreiras em um local público” se mostraram significativos para a ampliação da percepção das barreiras e seus efeitos na participação social das pessoas com deficiência.

As/os estudantes relataram que, a partir da participação na disciplina, ao frequentarem diversos espaços sociais, tais como bares, restaurantes, edifícios públicos, ao andarem de ônibus, ou caminharem nos locais em que moram, passaram a perceber as barreiras, conforme os depoimentos de Letícia: “Nossa! Essa barreira sempre esteve aqui! Eu só não percebia”, e de Laís: “Depois que eu fiz a disciplina, eu comecei a olhar os espaços muito mais criticamente, tanto numa questão da preparação física, arquitetônica, até em outras formas de acessibilidade”.

Os depoimentos obtidos na pesquisa também mostraram que as/os participantes se tornaram mais sensíveis aos possíveis efeitos das barreiras no impedimento da participação social das pessoas com deficiência. Nessa direção, Soraya aponta que começou “a perceber como essas pessoas são excluídas. Como que a inclusão é muito mais do que só colocar uma rampa, aumentar a letra da legenda de um vídeo, acho que engloba muito mais coisas”. Também houve participantes que enfatizaram o processo de exclusão experienciado pelas pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Nessa direção, Letícia destacou que muitas empresas contratam pessoas com deficiência com o único intuito de preencher as cotas e evitar autuações fiscais do Ministério Público. Ela afirma que essa postura mantém as pessoas com deficiência numa situação de segregação, de exclusão, pois parte do pressuposto de que a pessoa com deficiência não é capaz de “... assumir um cargo de liderança, uma posição estratégica...”, por fim destaca que “[a empresa] tá adaptada pra pessoa [com deficiência] ficar em um lugar específico fazendo uma função específica, o espaço não é realmente acessível, ela não consegue realmente viver aquele lugar e viver aquela experiência como todos os outros” (Letícia).

Considerando que o capacitismo é estrutural e produz efeitos no modo como a sociedade é construída, enfatiza-se o potencial da disciplina para produzir fissuras no capacitismo, favorecendo a emergência de novas sensibilidades e formas de se conceber os espaços. Destaca-se a necessidade de novas pesquisas para analisar em que medida a percepção das barreiras vivenciadas pelas pessoas com deficiência têm o potencial de reverberar nas práticas profissionais inclusivas junto a essa população.

Conhecimentos acerca da legislação brasileira sobre a deficiência

O conhecimento a respeito da legislação brasileira sobre a deficiência, a qual é fortemente fundamentada nos estudos da deficiência e traz importantes indicativos para a adequação dos serviços oferecidos em diferentes políticas sociais - educação, assistência social, previdência, saúde, justiça -, é de fundamental importância para os profissionais que estão nelas inseridos.

Ao serem questionados sobre a legislação brasileira vigente relacionada à deficiência, apenas seis das/os quatorze participantes se recordavam especificamente da CDPD e da LBI. Apesar disso, todas/os apresentaram a compreensão de que existem leis voltadas à inclusão de pessoas com deficiência e citaram elementos presentes na legislação brasileira como a importância de se incluírem pessoas com deficiência nos diferentes níveis de ensino, no mercado de trabalho, na comunidade, de se garantir acessibilidade e de se combater os processos discriminatórios. Essa coerência entre os elementos trazidos pelas/os participantes e o que preconiza a legislação parece estar relacionada com o processo de apropriação do modelo social da deficiência, que foi amplamente incorporado tanto na CDPD como na LBI. Embora esses elementos apareçam difusos ao longo dos depoimentos, reproduzimos aqui duas falas que trazem os que foram mais apontados pelas/os participantes:

Leis de inclusão, que eu sei, são de porcentagem de vagas obrigatórias que têm nas empresas para pessoas com deficiência, de as pessoas com deficiências não terem mais a separação de uma escola especial, né? ... De elas frequentarem o ensino regular também... A questão da legislação de hoje em dia em relação a cotas em universidade pública que foi algo que mudou. (Francine)

Essa lei é bem clara no sentido de dizer que os governos federal e municipal e estaduais, precisam criar políticas públicas e formas de incluir as pessoas com deficiência nas escolas regulares, utilizando de várias ferramentas e tecnologias que hoje em dia já existem. (Ricardo)

A legislação brasileira sobre a deficiência é uma das mais avançadas do mundo em termos da garantia de direitos, conforme destaca Isabel Maior (2017Maior, Isabel Maria M. Loureiro (2017). Movimento político das pessoas com deficiência: reflexões sobre a conquista de direitos. Inclusão Social, 10(2), 28-36. http://revista.ibict.br/inclusao/article/view/4029
http://revista.ibict.br/inclusao/article...
). Todavia, ainda impera o desafio de divulgá-la e construir as práticas sociais voltadas à sua implementação. Bruno Martins (2016Martins, Bruno Sena (2016). Deficiência, política e direitos sociais. JURIS, 26, 169-187. https://periodicos.furg.br/index.php/juris/article/view/6098/4132
https://periodicos.furg.br/index.php/jur...
) destaca que a existência da legislação e o conhecimento dela é necessário, mas não suficiente para produzir uma transformação social no campo da deficiência. O autor ainda acrescenta que é necessário criar uma cultura de direitos das pessoas com deficiência. As leis devem ser acompanhadas de uma transformação cultural e terem efetividade nos tribunais. Todavia, o conhecimento sobre a legislação e sua operacionalização pode ser muito importante para auxiliar profissionais da psicologia a identificar violações de direitos, realizar encaminhamentos intersetoriais, como também para construir práticas profissionais voltadas à garantia dos direitos.

Considerações finais

A pesquisa teve como objetivo identificar, a partir da perspectiva dos estudantes da disciplina chamada “Psicologia e Pessoas com Deficiência”, as contribuições do ensino do campo dos estudos da deficiência para a formação em psicologia. As informações obtidas indicaram que as/os participantes se apropriaram de elementos do modelo social da deficiência e das contribuições das teóricas feministas da deficiência. Temáticas como a compreensão da deficiência como uma experiência de opressão, a transversalidade da deficiência com outros sistemas opressivos e a compreensão dessa como uma categoria de análise; a dependência e a interdependência como inerentes à condição humana e o cuidado como fundamental para a garantia da dignidade das pessoas com deficiências foram apresentadas como grandes contribuições da disciplina. É importante destacar que os elementos trazidos são fundamentais, na medida em que tornam complexo o entendimento da deficiência do ponto de vista analítico e político, e coadunam com a perspectiva dos direitos humanos presente na legislação brasileira e reivindicada pelo Movimento Político das Pessoas com Deficiência.

O estudo mostrou que a disciplina também contribuiu para a identificação das pessoas com deficiência como sujeitos políticos, e para a obtenção de conhecimentos relacionados à trajetória de lutas por direitos, o que se mostra importante por romper com a compreensão histórica dessas pessoas como doentes, passivas e dignas de caridade. Todas/os as/os participantes relataram que passaram a identificar as barreiras presentes na sociedade que são obstáculos para a participação social das pessoas com deficiência, antes não percebidas por eles. Os depoimentos indicaram que os conhecimentos sobre o modelo social da deficiência, a participação de pessoas com deficiência na disciplina como palestrantes e a atividade de levantamento de barreiras foram fundamentais para que elas/es começassem a perceber essas barreiras. O estudo mostrou que há necessidade de a legislação ser mais aprofundada, já que, embora as/os participantes conhecessem alguns dos direitos previstos, não tinham uma compreensão ampla dela.

Apesar de o estudo trazer importantes elementos para visibilizar a importância do ensino dos estudos da deficiência na formação em psicologia, vale destacar que ele apresenta algumas limitações. A primeira limitação se refere à impossibilidade de se fazer uma generalização dos resultados obtidos para todos os cursos de psicologia do Brasil, já que o estudo teve uma amostra pequena (14 participantes) e de uma única universidade. Embora não tenha sido objetivo deste artigo, as informações obtidas indicam que a realização de estágios básicos e profissionalizantes, além de outras disciplinas tidas ao longo da formação, as quais abordam questões de gênero, sexualidades, raça e efeitos psicossociais das violações de direitos também foram citadas em alguns momentos como importantes para ampliar a formação sobre a deficiência. Ademais, tem-se a hipótese de que há uma maior propensão de que pessoas que consideram disciplinas relacionadas à deficiência importantes para a formação participem de pesquisas como a aqui proposta, por acreditarem que é importante visibilizar as contribuições da incorporação dos estudos da deficiência no currículo em psicologia. Assim, podem ter estudantes que tiveram diferentes percepções sobre a disciplina objeto do estudo.

Por fim, considerando que o capacitismo é estrutural e constituinte das relações e dos espaços sociais, cabe a realização de novos estudos que analisem, de forma aprofundada, até que ponto a disciplina tem o potencial de transformar as práticas sociais em contextos fortemente marcados pelo capacitismo. Assim, indica-se a realização de pesquisas com profissionais da psicologia que cursaram a disciplina e que atuam profissionalmente em diferentes políticas sociais e campos de atuação, visando analisar a potência da disciplina para a construção de práticas anticapacitistas.

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  • 6
    Aprovação, ética e consentimento: A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (CAAE - 12249419.5.0000.0121, Parecer n. 3.527.784 de 23 de agosto de 2019). Todos os princípios éticos recomendados pelas Resoluções 466/12 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde foram assegurados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2021
  • Revisado
    25 Jul 2022
  • Aceito
    06 Set 2022
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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